14 junho 2006

A Poética e as Poéticas









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Este ensaio procura mostrar como a Poética ainda é aquela reflexão que melhor dialoga com a obra artística, quando tantas incertezas existem hoje nas tradicionais Correntes Críticas. Os poetas sempre falaram de Poéticas em suas obras. Mas desde Platão a verdade filosófica se sobrepôs à verdade poética. E isto se deu pela interpretação metafísica do Logos, entendido como linguagem lingüística. Poética originou-se do verbo grego poiein, que significa fazer, agir. Mas qual é o sentido do agir? A tradição ocidental fala só de uma Poética, mas isso não é verdade. Podemos falar, no mínimo, de quatro. Uma Poética que se abra para a obra poética denominamos Poética hermenêutica. Além disso, dentro da filosofia metafísica, a Linguagem foi reduzida a um simples meio, vítima de uma concepção orgânica e causal da obra de arte. Mas a Linguagem poética é um meio? Certamente não. Eis algumas das questões aqui desenvolvidas.

O nome Poética originou-se do verbo grego poiein, que significa agir, pro-duzir. Ele indica a mais antiga reflexão sistemática sobre a arte, na cultura ocidental, quando Aristóteles, no século IV antes de Cristo escreveu o famoso tratado Peri poietikes technes. A ciência nos séculos XVIII e XIX dá origem a duas disciplinas que procuram substituí-la: a Estética e a Teoria Literária, e depois a outras disciplinas de acordo com as novas perspectivas científicas. Os poetas e os artistas, em geral, resistem a estas novas denominações e continuam a falar em suas obras da Poética, das suas poéticas. Estas poéticas, que caracterizam as obras de todos os artistas, sejam poesia, música, pintura, escultura, cinema etc. é que são propriamente o campo e âmbito de reflexão e pesquisa da Área de Poética (1). Desta maneira, a sua atividade volta-se tanto para as obras já realizadas como se abre também para as novas realizações. No âmbito desta dinâmica é sempre atual e não se prende a nenhum período ou teoria. Até porque a obra, sendo artística, portanto originária, é sempre atual, no sentido de que sempre age (atual e autor se originam do verbo latino agere, de onde se formou o verbo português agir).
Esta atualização permanente já está implícita no título que precede o tratado original de Aristóteles: Peri poietikes technes, ou seja, Em torno da arte poética. Antes de comentarmos esse título para melhor circunscrevermos o âmbito e originalidade da Área de Poética, convém esclarecer que a Poética não começa com a obra de Aristóteles nem se limita a ela e a suas interpretações, no longo e rico percurso da cultura ocidental. A poesia, os poetas e os poemas (obras) é que dão origem à Poética e não o inverso, pois são contemporâneas do próprio surgir do homem enquanto homem, ou seja do eclodir do real como Linguagem. A questão que orienta e dirige todas as pesquisas da Área de Poética diz respeito a essa questão única e permanente: a Linguagem, não entendida apenas lingüisticamente, mas poeticamente. Essa questão está implícita no título do tratado do estagirita.
Quando os latinos o traduziram, deram-lhe o título Ars poetica, em que os dois nomes praticamente se equivalem, perdendo todo o vigor da reflexão aristotélica em torno dos dois núcleos: o poietikes (a essência do agir) e o technes (a essência do saber), na medida em que se entende a arte como uma atividade guiada pelos princípios da Poética, enquanto modelos de orientação do saber implícito a cada técnica (em latim: artesanato e arte). Daí o emprego da palavra Poética para as artes em geral. Isso ainda se acentuou mais com a ciência ao estabelecer cada conhecimento como uma disciplina. Assim entendida, a Poética estudaria a arte como a Física estudaria a natureza, a Biologia a vida etc. Uma vez que as artes recobrem aspectos não simplesmente naturais foram surgindo outras disciplinas com um “ob-jeto” de conhecimento mais específico: a - de uma lado as disciplinas que implicam componentes históricos, ou seja, as ciências do espírito, por oposição às ciências da natureza; b - as disciplinas que além de serem históricas dizem respeito à sensibilidade (vista cientificamente) e ao Belo: a Estética, a Teoria Literária, a Literatura comparada, as Correntes Críticas, os Estilos de época e os Estudos Culturais. Disso resultou que a própria Poética passou para um segundo plano, pois não representa um saber que possa caber numa disciplina, definida pelo seu ob-jeto. Assim parece e assim é. Dentro do mesmo movimento científico de de-finir disciplinas pelo ob-jeto e seu método correspondente, as diversas manifestações artísticas passaram a constituir campos específicos de conhecimento enquanto linguagens. Estas linguagens dizem respeito mais estritamente aos fazeres artísticos: a música, a pintura, a arquitetura, a escultura, o cinema, a literatura etc., não enquanto agir, mas enquanto técnicas (techne). Se há diversidade de técnicas e realizações artísticas, também há algo em comum: o fato de serem arte. Mas como preservar esta identidade de estudos nas diferenças de realização não só de cada linguagem artística mas também dos diferentes saberes rácio-científicos? Diante desta aporia, a ciência tenta resolver o problema através da interdisciplinaridade.
A Poética, numa primeira aproximação e possibilidade de pesquisa, pode partir também da interdisciplinaridade. Mas como entendê-la? Apontamos dois modos.
1º Parte-se das disciplinas, vistas cientificamente, e procuram-se estabelecer canais de comunicação e relação entre conceitos e procedimentos metodológicos etc. Isso dá uma maior amplitude à pesquisa, mas não basta, porque, num primeiro momento, não se sabe porque se relacionam umas disciplinas e outras não. Qual o critério de inclusão e de exclusão? De onde provém o critério? A dificuldade em de-finir precisamente e com proveito o critério resulta de uma outra constatação: como tal, o critério que gera a interdisciplinaridade é externo à obra poética, pois provém da ciência, que, por sua vez, tem seus fundamentos em princípios filosóficos. Claro que os objetos de conhecimento são as obras artísticas. E aí se confunde ob-jeto com obra, como se fossem a mesma coisa. E não são. O conceito de ob-jeto provém da ciência, fundado este na interpretação filosófica do que seja a coisa, o ente. Correlato ao conceito de ente já desenvolveu Platão o conceito de obra como organismo. Mas tal organismo é definido de acordo com o conceito de ente concebido como matéria e forma. A obra aparece como um organismo onde a matéria é a linguagem e a forma é determinada pelas técnicas retóricas e também pelos gêneros, segundo Platão, de acordo com o fim, ou seja, a adequação à idéia. Desde então, a obra é determinada e julgada, medida (Jardim, 2000) de acordo com uma idéia subjacente (causa final). Esse é o conceito metafísico de obra. Outro é o não-metafísico. O que é então a obra? A obra é, enquanto Linguagem, a contraface da Physis. Além do mais, o âmbito dos diversos conhecimentos e seus métodos é definido pela ciência, porque só podemos ter conhecimentos enquanto construções apriori da razão. Por quê? Tudo decorre de uma problemática levantada pelos sofistas em torno da correspondência entre Linguagem e coisa (para os gregos ente). Para eles, e ao contrário da posição de Heráclito e dos poetas, não havia tensão referencial entre a Physis e o Logos (Linguagem), mas simples separação, negando assim que a linguagem possa estabelecer alguma verdade (aletheia), pois o nome é resultado de uma convenção (nomos). Se não há ligação necessária, não há verdade e, se não há verdade, cria-se um vazio de poder. Tem o poder aquele que pode persuadir: é o reino da doxa. O destino da Polis estava, assim, estreitamente ligado a uma aparente questão banal e formal. Sócrates se levanta contra os sofistas na medida em que procura preencher esse vazio através de uma nova verdade: aquela que nas mudanças permanece. Surge a verdade como essência. Quem desenvolveu este ensinamento socrático foi Platão, seu discípulo. Com seu sistema em torno das Idéias/Logos/Bem surge a filosofia como fundamento da nova verdade: em lugar da doxa passamos a ter a episteme. Essa mudança ocorreu porque o Logos foi interpretado como Idéia ou Forma. Por isso, a filosofia e o seu desdobramento posterior em ciência, decorreu da epistemologia platônica, que gerou a verdade filosófica. Esta se afirmou em tensão e oposição à verdade poética. Na medida em que aquela triunfa, a própria verdade poética passa a ser definida e estabelecida pela verdade filosófica. Dessa maneira, seja a Poética, entendida filosoficamente, seja a interdisciplinaridade, a partir das disciplinas, estas ainda não atingem a verdadeira questão da Poética. Mas isso não nega a contribuição que podem trazer tais estudos. É, contudo, necessário compreendê-los a partir de uma outra perspectiva. É o segundo modo de compreensão da palavra interdisciplinaridade: a partir da reflexão sobre o lugar e alcance do prefixo “inter”. Este modo de encaminhá-la apreende e compreende a questão artística naquilo que é fundamental para as suas diversas manifestações, ou seja, a questão do Logos/ Linguagem.
2º Em última instância todo saber quer dar conta do real. A segmentação disciplinar exacerbada resultou, em muitos casos, em intransitividades, não do real, mas das disciplinas, encurraladas num formalismo estéril e sem sentido, no limite do alcance do conhecimento enquanto tarefa meramente racional como se ele fosse o real e não apenas uma representação. Esses limites formais extremos exigiram a construção de pontes de acesso a campos que, supostamente, seriam de outras disciplinas, como modo de sair da intransitividade. O avanço dessas disciplinas pressupõe o avanço con-junto de conhecimentos. Só assim se retoma o horizonte de visibilidade, reinserindo a atividade de conhecimento no horizonte do real. Para esse fim é necessário sair do gueto das disciplinas e pensar o amplo horizonte para o qual remete o “inter”. Ou seja, uma inter-disciplinaridade radical exige uma nova atitude, uma atitude poética, uma reflexão sobre a essência do agir.
Ao agir con-junto pode-se chamar inter-disciplinaridade. Porém, sejamos cautelosos. A justaposição de disciplinas ainda não institui a inter-disciplinaridade, assim como a justaposição de tijolos não constrói nem constitui uma casa. Na inter-disciplinaridade há dois pólos de referência: 1) o das disciplinas; 2) o do “inter”. O das disciplinas poderíamos definir assim: São os campos de exercício de cada conhecimento como representação do real. O do “inter” é mais complexo e mais do que um campo é uma clareira. Usamos também a metáfora ponte.
Ponte supõe os dois campos que ela liga (disciplinas), mas também e sobretudo, um lugar, uma clareira, um espaço livre e vazio, a partir do qual se percebe o espaço, o sentido do recorte de cada disciplina dentro do real como representação. Este espaço vazio e livre ou lugar, que nenhuma disciplina recobre, também é real, embora não representável, senão tornar-se-ia disciplina. Aliás, é nele e por ele que se percebem as di-ferentes disciplinas e o sentido e a verdade da afirmação dos seus conhecimentos. Este vazio livre ou clareira é o horizonte a partir do qual cada disciplina se in-stitui e e-strutura como disciplina. No que se institui como disciplina ( apresentação e representação ), se retrai como vazio livre ou clareira.
A articulação dos tijolos para a consecução de uma casa é um vazio sempre livre que possibilita o aparecimento da casa enquanto casa e não de um simples amontoado de tijolos: é a casa como Linguagem O aparecimento da casa como Linguagem é em si um vazio livre, mas sem o qual a casa não seria casa. A casa enquanto casa se funda no “inter”. Ele é a ponte do sentido e da verdade das disciplinas. O “inter” é a Linguagem. Notemos que os tijolos manifestam a visibilidade da casa, mas eles, em si, não são a casa. Por outro lado devemos também afirmar que o “inter” ainda não é a casa. Precisamos dos tijolos para sua visibilidade. Só na visibilidade da Linguagem os próprios tijolos aparecem como tijolos. A casa se mostra (apresenta) como tijolos e se oculta como Linguagem. Por isso é que a Linguagem é “inter”.
Nesta perspectiva, não há uma hierarquia ou causalidade entre um antes e um depois (isto causa aquilo), porque simplesmente não há um antes e um depois. Há a casa constituída por tijolos e seu sentido e verdade como Linguagem: a casa como casa. Há as disciplinas (as linguagens das artes) e o “inter”. O “inter” é a Linguagem e a “Linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os poetas e pensadores lhe servem de vigias. Sua vigília é con-sumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem” (Heidegger, 1967, 24). O que importa nas artes é a Linguagem como sentido e verdade. Por isso a Poética Hermenêutica diz respeito a todas as manifestações artísticas, pois só são artísticas na medida em que vigem na e pela Linguagem, embora se manifestem como linguagens.
O prefixo latino “inter” traduz muitas vezes um dos significados do prefixo grego dia-, ou seja, através de, entre, pondo em evidência um diá-logo. O diálogo de conhecimentos ou inter-disciplinaridade se faz no sentido de que o diá- diz de uma ambigüidade inerente a todo conhecimento enquanto Logos (Linguagem). Sendo a disciplina uma expressão do Logos, a Poética, vista através da inter-disciplinaridade, só encontra o seu lugar de atuação na medida em que remete para a questão da Linguagem. Mas como temos diversas manifestações artísticas teríamos então as diferentes linguagens, a que corresponderiam as pesquisas em torno das poéticas das linguagens. Ocorre, porém, que a di-versidade necessita de uma identidade, ou seja, não podemos falar de linguagens sem pensar a Linguagem. Pensar a tensão Linguagem/linguagens como tensão de identidade e diferenças é que define a questão que propriamente de-limita o âmbito da Área de Poética.
Mas para encaminharmos a reflexão em torno desta tensão é necessário retomarmos o título da Poética de Aristóteles em toda a sua amplitude. Embora seja conhecida como Poética, na realidade, o seu entendimento gira só em torno da techne, como já afirmamos antes. Traduzida para o latim como ars, gera as palavras portuguesas arte e artesanato. Fala-se de Poética e pensa-se sempre em arte. Aí ficou esquecida propriamente a dimensão poética, embora esta esteja re-ferenciada à arte.
Não podemos esquecer que o tratado de Aristóteles ainda não se inscrevia no modo como hoje encaramos as disciplinas. De modo algum estava pensando numa disciplina, de-limitada por um método e seu ob-jeto, quando concebeu o tratado. Pelo contrário, ele resultou de uma reflexão provocada pela questão filosófica. Assim sendo, é à luz dessa questão que deve ser lido o título do seu tratado. Isso significa que a Poética, para ser entendida adequadamente, deve ser pensada a partir da questão que movia a reflexão aristotélica. Essa questão está contida no próprio título, mas foi esquecida e absorvida por um dos termos, a techne. Nesse sentido, tradicionalmente, a Poética só diz respeito à arte. E esta diz respeito a um conhecimento artístico enquanto conhecimento técnico. O estudo desse conhecimento e das formas que daí resultam acabaram de-finindo o âmbito da Poética, em que a Linguagem propriamente dita ficou esquecida, sendo apenas entendida como procedimentos technicos ou linguagens. Embora esta dimensão seja verdadeira, não é todo o âmbito da Poética nem a sua questão fundamental: a Linguagem ou Logos, em sua tensão com as linguagens, ou seja, a tensão poietikes/technes. Desta maneira, para melhor caracterizarmos a Área de Poética, faz-se necessário retomar o título do tratado de Aristóteles em toda a sua envergadura de questionamento.
. A Poética, reflexão filosófica, parte das obras poéticas já existentes e constitui uma determinada visão da poesia e do poeta na qual a verdade filosófica se contrapõe à verdade poética. A contraposição desta dupla verdade surge do diferente entendimento que se dá ao verbo poiein, do qual se originam os três substantivos: poesia, poeta e poética.
No verbo poiein devemos considerar uma dupla dimensão: a) o seu significado essencial: pro-duzir, agir; b) a essência do agir. Geralmente só se pensa o produzir enquanto estabelece uma relação com a techne, ou seja, o desenvolvimento e aplicação de um determinado conhecimento. Foi o entendimento mais geral e tradicional, esquecendo-se a reflexão sobre a essência do agir, que determina, na questão epistemológica platônica e aristotélica, todas os demais desdobramentos. Quando Platão e Aristóteles pensam a essência do agir, o fazem dentro da questão fundamental do questionamento do lugar do agir do homem frente ao agir da Physis. Assim sendo, a questão da techne, da arte, tem, necessariamente, que ser pensada a partir dessa questão mais fundamental: é o taumadzein (admirar-se) filosófico diante da Physis. Esta produz muitas coisas, muitos entes, e entre esses entes está o próprio homem. No entanto, ao lado da pro-dução da Physis, há a produção do homem: o homem não produz a árvore, mas dela, através do seu agir, produz a cama, a mesa, a cadeira etc. Como se dá a relação entre esse duplo agir? Normalmente esquecemos que somos entes naturais e que em última instância é a Physis que age. Só temos olhos para o agir humano enquanto produção de um efeito, cuja realidade se avalia pelas transformações que acarreta e por sua utilidade (ob-jetos, utensílios), e nisto consiste a essência do conhecimento da techne. Outro é o pensar de Heidegger, quando nos diz: “A essência do agir, no entanto, está em con-sumar. Consumar quer dizer: conduzir ao sumo, à plenitude de sua Essência... Por isso, em sentido próprio, só pode ser con-sumado o que já é. Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser”( Heidegger, 1967, 23).
Ser e Physis aí se equivalem. Mas como se dá a relação Physis/homem, como o agir humano se relaciona com o agir do Ser, da Physis? É o que Heidegger continua a explicitar: “O pensamento (e a poesia) consuma (m) a referência do Ser à Essência do homem. Não a produz (em) nem efetua (m)...apenas a restitui (em) ao Ser (Physis), como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser (Physis). Essa restituição consiste em que, no pensamento (e na poesia) o Ser (Physis) se torna Linguagem. A Linguagem é a casa do Ser (Physis). Em sua habitação mora o homem. Os poetas e pensadores lhe servem de vigias.” (Heidegger, 1976, 24). (As palavras e letras entre parênteses foram acrescentadas por mim.)
O re-ferir diz do receber e do tornar a devolver à sua origem. A mediação do homem (enquanto lugar da re-ferência) recebe a sua medida da tensão Physis/Logos. No agir da re-ferência o homem se manifesta como homem enquanto a Physis se oferta como Logos no homem. O Logos manifesta a Physis como verdade e sentido no pensamento dos pensadores e na poesia dos poetas. Se bem observamos o homem propriamente não pro-duz nada, apenas dá sentido ao que a Physis lhe oferece: a madeira, a pedra, a tinta, o som etc. O homem apenas manifesta o sentido e verdade dessa “coisa” oferecida pela Physis. Dar sentido é manifestar o que cada coisa é, ou seja, manifestar a referencia tensional (Ser/Logos) Physis/Logos enquanto sentido e verdade. Só no sentido e verdade da Linguagem a pedra se torna pedra, o som, música, a tinta, cor etc..
Não esqueçamos que o termo Logos foi traduzido para o latim como linguagem e a Physis, como natureza. Estamos, pois, tratando das palavras correntes natureza e linguagem, mas a tradução latina as empobreceu dentro de um empobrecimento já determinado pelo entendimento metafísico. O Logos é o sentido, ou seja, a Linguagem através da qual a Physis/Ser eclode no que é. Dar sentido a algo, agir é deixar que a Physis advenha, se manifeste enquanto Logos no homem. O homem se define e se manfesta como homem na medida em que habita (de habere, ter e ser) o Logos, a Linguagem. Esta habitação não é ele que a constrói, mas lhe é ofertada pelo Ser/Physis.
Quando Aristóteles introduz no título (e disso trata na Poética) o termo poietikes, está pensando na essência do agir enquanto re-ferência Ser-Physis/Logos-Linguagem. Nesse sentido, a questão fundamental nunca é tão somente a Physis mas a referência Physis/Logos, o sentido, verdade e conhecimento da Physis. Esta, em si, não é propriamente questão, mas o Logos que eclode no homem enquanto sentido, verdade e conhecimento. Este não se pode pensar sem a Physis nem a esta sem o Logos. Aristóteles vai pensar a referência Physis/Logos como energeia. Tal procura já se inscreve na tarefa que se propôs seu mestre Platão, buscar o princípio (arché) que em todo processo de mudança permanece (a essência). Este fundamento é o princípio que possibilita estabelecer uma verdade como enunciação do ente. Ou seja, trata-se da questão, para Platão, de responder aos sofistas que afirmavam que não havia naturalmente uma reunião da coisa e da sua expressão (Logos), era resultado de um nomos (convenção política, da e na Pólis). Se não há esta ligação, então toda expressão da verdade em relação às coisas (entes) torna-se simples opinião (doxa). O princípio que Platão busca procura expressar esta ligação ou relação da coisa e do Logos, para o estabelecimento da verdade que seja essencial e não simples opinião. Podemos notar que a questão para Platão passa pelo entendimento do Logos, ou seja, pela essência da Linguagem. A questão da Linguagem está pois, na origem, da oposição entre a verdade filosófica e a verdade poética. Neste sentido, a crítica de Platão aos poetas passa pela crítica do Logos (Linguagem) e do seu uso pelos sofistas, enquanto mero instrumento de persuasão, seja na formação das opiniões, seja no envolvimento da vontade dos leitores/ouvintes através da sensibilidade. A formação dos cidadãos (paideia) não pode ser conivente com o amolecimento do seu caráter (arete), o que produziria homens fracos e, automaticamente, uma Pólis vulnerável. Nessa dimensão, a busca de Platão de um princípio essencial mantém a separação entre sensível e inteligível (Logos, razão), originando a dicotomia metafísica entre mundo sensível e inteligível, fonte da oposição significante/significado (hoje predominante no entendimento da Linguagem). O saber, o conhecimento dos sofistas passa necessariamente pela questão da Linguagem. Conhecimento e Linguagem passam, pois, a ser a questão fundamental e não mais a tensão Physis/Logos, como era para os pensadores originários. Ao conhecimento/linguagem (sofia/Logos), que gera a doxa, opõe Platão o conhecimento/linguagem (sofia/Logos), que gera a episteme. Esta é a identidade do mundo inteligível (Logos como idéia). A nova verdade filosófica (episteme) se torna a representação da identidade ideal: é a homo-logia. À ontologia originária sucede a epistemologia metafísica. Assim sendo, a idéia é o principio (identidade) enquanto expressão do entendimento do Logos/Linguagem. Tanto que Platão vai chamar às diferentes idéias logoi. E sua apreensão se dá através do dia-logos. O importante a perceber é que o Logos/Linguagem está no centro da questão desde o estabelecimento da verdade filosófica, ou seja, o fundamento da verdade filosófica radica numa interpretação da referência Physis/Logos como idéia, a partir da relação Logos/episteme enquanto logoi. Em seguida, seu discípulo Aristóteles, partindo da mesma questão, interpreta a referência Physis/Logos como energeia, e a relação Logos/episteme como pro-posição. A questão da poietike e da techne será lida nesta perspectiva. É essa interpretação do Logos que se tornou paradigma, padrão, medida, cânone no ocidente. Depois o Cristianismo interpreta o Logos como Deus/Ser (Santo Tomás de Aquino define Deus como actus purus). Com a retomada do pensamento grego no Renascimento, o Logos sofre uma nova interpretação, mas que nada mais é que uma variação da interpretação platônica, ou seja, é interpretado como Razão (novo princípio de identidade), de onde provém o fundamento da ciência. Nesta nova perspectiva, o que muda é o acento da questão, a coisa (ente) é determinado pelo conhecimento/episteme (ob-jeto científico). A verdade filosófica torna-se a verdade científica. Esta gerou as disciplinas como um todo, entre as quais aquelas que dizem respeito às artes, entendendo-as como pesquisa e estudo das linguagens enquanto ob-jeto material (de que as diferentes realizações artísticas são as formas). Não só se fala em linguagens artísticas mas em linguagem social, psicológica etc.
Dentro dessa diversidade de conceituações disciplinares da Linguagem/linguagens, a Poética perde, evidentemente, o seu vigor, e passa a ser substituída pelas disciplinas mais enquadradas nos respectivos conceitos de Linguagem. Porém, o poético, propriamente, se perdeu, isto é, ficou esquecido. No entanto, as obras continuam aí diante de nós a nos solicitar como intérpretes para que, como seus vigias, as salvaguardemos no que têm de essencial: o Logos enquanto Linguagem. Esta é o campo específico e tarefa da Área de Poética. Para tanto é necessário voltar à questão do Logos, ou seja, como o Logos era entendido antes dos sofistas e antes de Platão. Pois não podemos esquecer que a tensão Physis/Logos era a grande questão dos pensadores originários, muitas vezes denominados pré-socráticos. Então a verdade poética (aletheia) ainda não tinha sido substituída pela verdade filosófica (adequação, homologia) e ela, enquanto manifestação da Physis/Logos, se destinava nos poetas e pensadores.
A vigência do Logos poético abre muitas e necessárias possibilidades de investigação e pesquisa, pois não podemos esquecer o caminho e per-curso que a verdade filosófica determinou no entendimento, leitura e interpretação das realizações poéticas, ao longo dos últimos dois mil e quinhentos anos. É toda uma nomenclatura de origem metafísica que mais que manifestar encobre o vigor e presença da poiesis nas obras dos poetas.
É no vigor desse embate que se constróem os diferentes estudos e pesquisas da Área de Poética. São estudos que conjugam uma faceta filosófica e, ao mesmo tempo, uma outra poética, mas sem que o filosófico sobredetermine o poético. Nesta perspectiva, abrem-se três segmentações questionantes: 1ª As diferentes Poéticas enquanto construções filosóficas. 2ª As obras poéticas como poéticas em si e não como campo de aplicação das poéticas filosóficas, preservando assim a especificidade da verdade poética. 3ª Uma tensão entre as poéticas das obras em si e os demais saberes. Por poéticas das obras entendemos todo e qualquer fazer artístico: poesia, música, pintura, escultura etc.
Partindo destes pressupostos, abrem-se diversas investigações novas em torno da Poética das diferentes artes e de todos os tempos. Em linhas gerais, poderíamos apresentar quatro grandes formulações do que sejam os diversos princípios dos estudos poéticos das diferentes manifestações artísticas.

1ª A Poética do pensamento mítico. A tradução de mythos por ficção e fábula são infiéis ao vigor de pensamento do termo grego mito.

2ª As Poéticas oriundas da concepção orgânico-morfológica do ente e da obra, tendo como fundamento os princípios das filosofias de Platão e Aristóteles.

3ª As Poéticas que concebem as obras nos seus aspectos retórico-formais. É nesta linha de pensamento que atuam a Retórica, a Filologia e a Gramática.
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4º A Poética Hermenêutica. Um novo modo de pensar a Poética, tomando como núcleo a questão da obra, como lugar do Logos/Linguagem, na medida em que ela mesma, no processo de se constituir, vai manifestando a sua identidade e diferença como Poética. Nesta atitude, há uma reflexão sobre o fazer poético que é co-natural ao próprio emergir da poiesis enquanto operar da Linguagem (obra).

A Poética Mítica
O mito é, como palavra, tempo e memória, uma das dimensões mais importantes de toda obra artística. O mito se faz presente nas diversas expressões artísticas e constituiu, inicialmente, a memória histórica dos mais diferentes povos. O mito sempre congregou as muitas facetas do saber humano. Alijado em sua verdade pela verdade filosófica na Antigüidade, pela teológica na Idade Média e pela verdade científica na Modernidade, resistiu através das obras poéticas, portadoras estas de uma verdade considerada marginal pelos paradigmas dominantes. Os mitos, como em todas as épocas, continuam a se fazer presentes em nossa sociedade. Com novas roupagens, ou retomados em novas dimensões, tornam-se a matéria mais constante das grandes obras de arte. Na era da comunicação, as grandes figuras da cultura de entretenimento assumem nítidas características dos heróis míticos. Por isso, o mito nunca perdeu o seu vigor originário. O mito não só manifesta o vigor do saber humano, também expressa as diferentes facetas do fazer poético. São as figuras míticas das Musas, da Memória (Mnemosyne), das Graças, de Hermes, de Orfeu etc. Estas figuras míticas de alguma maneira nos levam a uma reflexão sobre o fazer poético enquanto manifestação do real através da palavra. Nesse sentido, não podemos esquecer que mythos se origina do verbo grego mytheomai, que significa: desocultar pela palavra. Por todos esses aspectos é que podemos falar de uma Poética Mítica.

As Poéticas orgânicas e morfológicas
A reflexão mítica, que é conatural ao próprio fazer poético, tornou-se objeto de uma outra reflexão, quando surgiu um novo saber humano, configurado pela indagação dos pensadores originários e, na sua trilha, pelos filósofos. Neste novo encaminhamento, destaca-se Platão, ao contrapor a verdade poética à verdade filosófica. Esta surge da percepção do real através de uma dicotomia que opõe ao mundo sensível (diversidade) o mundo inteligível (identidade). Platão expõe suas idéias através de diálogos, nos quais se configura a nova concepção da Poética, que podemos, de uma maneira abrangente, denominar meta-física. Esta palavra manifesta a percepção do real em duas dimensões separadas: o sensível e o inteligível, o significante e o significado, a expressão e a idéia subjacente. Desta separação surgiu o problema que desde então acompanha todo fazer poético: o novo conceito de verdade como adequação da expressão à idéia, do qual resultou a questão da mímesis como representação, característica fundamental de metafísica, decorrente da Idéia como identidade e medida (Jardim, 2000). A adequação dá origem à questão do método, que passa, desde então, a ocupar um lugar central em todas as formulações da Poética. Em Platão, o método dialógico se concretiza no exercício crítico, e a expressão e a idéia dão origem ao conceito de obra como organismo vivo, atingindo o Bem e o Belo na harmonia das partes em relação ao todo. Uma poética não orgânica será a tensão entre o orgânico e o aórgico. Na concepção platônica, uma obra só se realiza em sua plenitude quando atinge e, ao mesmo tempo, tem seu princípio de realização na Idéia do Bem. Estas formulações foram ampliadas por seu mais famoso discípulo: Aristóteles, que concebe cada ente, ou coisa, ou obra como a reunião harmônica de quatro causas: material, formal (morfe), eficiente, final. O exercício crítico-interpretativo consiste na demonstração (apodigma) lógica (de Logos) da organicidade morfológica da obra em sua estrutura causal-final. A perfeita realização morfológica da obra se dá enquanto encadeamento causal, na proporção em que se realiza o gênero/idéia subjacente a toda obra, tendo como princípio a energeia. E o exercício crítico consiste na análise e demonstração dessa causalidade. A perfeição da obra se dá numa tensão entre a matéria e a forma, na medida em que estas se realizam plenamente em sua finalidade (en-teléquia). Aristóteles formula uma concepção filosófica da obra de arte, partindo de um modelo ideal consubstanciado num gênero, e busca os exemplos nas obras que os poetas como Homero, Sófocles e outros já tinham realizado. De tais formulações resultou a primeira Poética propriamente dita. Desde então, diferentes posições teóricas, desenvolvidas ao longo do percurso da cultura ocidental, tomam a Poética (de Aristóteles) como ponto de referência obrigatória. É necessário, porém, fazer quatro observações importantes. 1ª. Quando surge a Poética de Aristóteles, já existiam as criações artísticas desde tempos imemoriais, tendo inclusive passagens que refletem sobre o fazer poético. 2ª. Os fundamentos da Poética se baseiam nas idéias filosóficas de Aristóteles. Tais fundamentos filosóficos são externos ao fazer poético e se opõem à verdade do real percebida e manifestada poeticamente. 3ª. A elaboração da Poética parte de uma concepção morfológica e funcional do ente e da obra, na qual predomina uma visão linear e causal-final. Desta concepção orgânica surgiu o método análitico: descritivo, morfológico, funcional, consolidado pela Filologia e tão caro aos formalistas russos. Nesta visão, não há propriamente interpretação, mas análise (racional) da relação e consecução das partes no todo (mereologia). 4ª. A toda descrição subjaz uma idéia única da obra (identidade), com a qual é comparada enquanto representação. Cada obra participa da energeia que é seu princípio de realização. Esta idéia única, com o Cristianismo, tornou-se transcendente, vindo a ser identificada com Deus. A obra de arte, como obra orgânica e morfológica, recebe novas formulações, dentro do mesmos princípios, na Modernidade. Mas em lugar da idéia única transcendente concebe-se a obra como objeto transcendental. Este é constituído pela razão imanente enquanto ob-jeto de conhecimento. De onde se originam as diferentes disciplinas. E o seu conhecimento ocorre através do métodos científicos. A obra como organismo se configura em duas disciplinas básicas: na sociologia e na psicologia. Para a primeira, a obra é um reflexo da organização social e das relações das partes com o todo. É o organismo social, e a linguagem é o resultado convencional desse organismo e suas relações. Na segunda, a obra é o resultado das relações psíquicas em seus diversos níveis de consciente, subconsciente e inconsciente. A linguagem da obra é determinado pelo conhecimento que se sabe, que se recalca e sublima e que se metamorfoseia nos mecanismos epistemológicos inconscientes. Tanto na concepção da obra como organismo social como na da obra como organismo psíquico, a Linguagem perde o seu vigor poético e passa a ser simples meio de representação de algo que não é ela mesma. A poiesis, enquanto medida, deixa de ser a Physis/Logos.

A Poética retórica e formal
O surgimento da filosofia de Platão ocorreu dentro de um quadro bem definido: a crise da Polis. Tal crise tem duas vertentes interdependentes: a questão do conhecimento verdadeiro e do fundamento da ética. Não se pode pensar a Polis grega sem a sua razão de ser: a consecução da arete. Contudo, esta passou a segundo plano no jogo intrincado da posse do poder. Na disputa pública, os seus aspirantes lançavam mão do poder da palavra (logos) através dos recursos retóricos e dos argumentos dos sofistas. Platão, nos seus diálogos, procura modificar esta realidade e fundar uma nova paideia, como ideal de arete. De um lado, vai opor ao conhecimento dos sofistas, baseado na doxa, a episteme, que tem como fundamento último a idéia de Bem (princípio de identidade). A arete, segundo Platão, se realiza enquanto episteme e ethos, na medida em que ambos se concretizam na idéia de Bem (medida) . Por outro, o mesmo deve ocorrer com o poder da palavra. Submete os recursos retóricos ao vigor da idéia de Bem na constituição e elaboração da obra (discursos), concebendo esta como um organismo vivo. Nesta perspectiva, não há separação entre o Belo e o Bem, e os recursos retóricos ficam submetidos ao Bem, enquanto uma paideia da arete. O mesmo acontece com seu mais famoso discípulo, Aristóteles. Mas este já dedica um tratado específico à construção das obras poéticas e outro à retórica. A epistemologia aristotélica em nada difere da platônica na concepção da obra: busca um fundamento universal, que tem como princípio a realização ética. Tal princípio não é tratado na Poética, mas na Ética a Nicômaco. O mesmo ocorre com o fundamento epistemológico. Este deve ser procurado em outros tratados. Aristóteles concebe o ente a partir de quatro causas: material, formal (morfe), eficiente e final. As escolas posteriores, tanto aristotélicas como platônicas não conservam esta unidade, sobretudo a Filologia e a Gramática. Preocupados com a preservação e interpretação das obras que eram o repositário da identidade grega, passaram a considerar as obras nos seus aspectos morfológicos e retóricos (formais). Isso fica bem claro num tratado que chegou até nós, o Peri hypsous ( Sobre o sublime). Ali a questão do Bem é substituída pela do Belo, operando já numa dicotomia que será permanente na tradição ocidental. É nessa tradição que se inscreve o estudo da arte através dos Estilos de Época. Tal estudo é, nas mais variadas formas modernas, uma derivação da Filologia e da Gramática clássica, que retiram seus conceitos fundamentos da metafísica platônica e aristotélica, mas sem considerarem a questão das causas eficiente e final ( a não ser a consecução do belo). É uma tradição que mistura as idéias retóricas e sofísticas com as formulações metafísicas, sem levar, porém, em conta a questão ética. Esta, ao longo do percurso ocidental, também foi sendo descarecterizada e transformou-se, já entre os romanos, no problema do útil e do agradável. De um lado, no início da Idade Moderna, dá origem à classificação dos gêneros segundo uma leitura da estruturação das classes sociais. Mais tarde, com a retomada da leitura das obras de arte dentro de um projeto de transformação das relações sociais, tornou-se o problema da obra engajada. De outro, vai dar início ao estudo das obras de arte como Estética.
Quando Platão e Aristóteles lançaram os princípios da Poética metafísica, elaboraram ao mesmo tempo os fundamentos da percepção da obra nos seus aspectos retórico-formais. Na realidade, ao proporem e desenvolverem o conceito de obra orgânica, este não se limitava à tensão das causas material e formal. O fundo do pensamento tanto platônico como aristotélico se move na ampla questão da Ética, ou seja, da causa final (o sentido do agir humano em relação ao Bem e à Beleza). Mas a Filologia, preocupada com a preservação e estudo das obras, enquanto identidade cultural e ideal de formação humana, acaba por se desenvolver em torno das formas e sua harmonia. O conceito de harmonia, enquanto forma e organismo, acaba por destacar a Beleza por oposição ao Bem, já aí lido como fim utilitário e não ontológico (ético e político). A Filologia, nas suas mais diversas fases, acabou por fundamentar e estabelecer o cânone ocidental. A separação efetuada pela Filologia entre o Bem e a Beleza está hoje em questão. E com razão denunciam que tal separação já é uma decisão que se baseia em valores morais e ideológicos. Com tal crítica retorna a questão ética.

A Poética Hermenêutica
Contudo, desde Platão e Aristóteles, havia a questão do lugar especial do homem em todo agir. O gregos já tinham denominado este lugar especial do homem através do verbo poiein, que significa um agir diferente daquele realizado pela Physis (natureza). Dentro do movimento iluminista e romântico alemão vai retornar a questão, vista, contudo, através da problemática em torno da subjetividade moderna. Schleiermacher se pergunta pela condição de possibilidade, não do objeto e do conhecimento, mas da condição de possibilidade do sentido em toda interpretação.
É neste horizonte de questionamento que surge a hermenêutica como interpretação, contrapondo-se à análise de cunho científico, embora ambas se movam ainda dentro de um questionamento epistemológico. A hermenêutica fora entendida até então como a interpretação específica tanto dos textos jurídicos como dos religiosos, tendo neste caso o nome de exegese. A preocupação epistemológica se faz presente nas próprias obras poéticas, ou seja, os poetas se perguntavam pela possibilidade e alcance de sua expressão poética. Foi o que a crítica depois, impropriamente, denominou metapoesia ou metalinguagem, como se fosse possível haver Linguagem além da Linguagem. Confundem Linguagem com código lingüístico, com linguagens.
Como fica desde então a questão da obra? Podemos perceber que todas as Poéticas giram em torno desta questão. O que a hermenêutica traz de novo é a reflexão em torno do lugar do intérprete, ainda dentro de uma problemática metafísico-epistemológica. Mas depois esta hermenêutica se torna ontológica. Ultrapassando a concepção objetiva da obra, acessível pela descrição e análise científica, retoma-se a concepção de obra como processo, do qual o intérprete é parte essencial (mas não é o sub-jectum ou sujeito), nem é a relação inter-subjetiva. Nesta perspectiva, a Poética se torna hermenêutica ontológica, revigorada pelo pensamento originário e não mais epistemológico. Dela surge a Poética Hermenêutica. Na palavra hermenêutica ressoa a sua origem de palavra enquanto medida (Hermes), fundadora e manifestadora da verdade e sentido do real, enquanto mundo. Os limites do mundo são os limites da palavra enquanto Linguagem. Isto não significa uma exclusão das reflexões anteriores, mas uma tensão dia-lógica entre obra e intérprete. Como intérprete, o homem é a ação que está em obra de manifestação. Aristóteles já intuíra isto ao incluir na Poética a questão da catarse. Esta supõe o homem na ação de se interpretar. Por agir e se interpretar é que o homem chega a ser homem, chega a ser o que é. Nesta dimensão, toda obra e interpretação remetem para a questão ética. Esta não é entendida como algo subjetivo ou fazendo parte de uma moral nem de um paradigma ideal e identitário. Está ligada à própria condição de possibilidade de abertura para a poiesis e de poder interpretar. A Poética Hermenêutica se volta para a origem da obra de arte como fundamento tanto do artista como da obra de arte e do intérprete.
Hoje, o pensamento que se inscreve na desconstrução da metafísica procura ultrapassar a dicotomia entre inteligível e sensível. Com isso, se repensa o lugar da verdade poética, um lugar que sempre lhe coube, mas que era negado, desde Platão.
A reflexão em torno da metafísica traz para cena o lugar do homem como poeta e intérprete. Desconstruí-la não é refazê-la em qualquer inversão, mas pensar a obra enquanto um operar a escuta originária da verdade e sentido do real enquanto Linguagem. Nesta escuta originária, encontram-se tensionalmente os pensadores e os poetas. A Poética hermenêutica não se constitui em um sistema nem em um conjunto de normas ou leis genéricas. A escuta (abertura) é sempre a escuta da verdade que se opera nas obras. É uma Poética que é co-natural a toda obra cujo vigor provém da poiesis. Tal obra não se deixa analisar cientificamente na relação causal das partes no todo nem enquanto sistema de relações intramundanas (relações ideológicas e morais). Como Poética faz eclodir novas percepções do real e como tal é sempre única e não passível de classificação por qualquer cânone. Os poetas nunca se referem a suas obras enquadrando-as em Correntes Críticas, mas referem-se simplesmente a suas Poéticas. Nesta perspectiva, abrem-se possibilidades inovadoras de estudo dessas Poéticas das Obras.
Nesta abertura crítica se inscrevem os Estudos Culturais. E, aparentemente, a Ciência da Literatura perde o seu “ob-jeto” de estudos. O equívoco decorre da identificação da Poética metafísica com as Obras Poéticas, sem considerarem as diferentes Poéticas possíveis, conforme assinalamos acima. E mais: os próprios Estudos Culturais não podem abrir mão dos “textos” (obras), sem os quais também perderão sua razão de ser. O que é necessário é retomar e ultrapassar de uma maneira crítica os princípios metafísicos, onde se funda o conceito de obra (texto) orgânica e morfológica. Pois uma coisa é certa, assim como no tempo de Platão e Aristóteles, as obras poéticas já existiam antes do estabelecimento da Poética, igualmente hoje elas continuam a existir, sendo, sem dúvida, a parte mais rica de todo e qualquer acervo cultural identitário. Só não podemos confundir as próprias obras com seus diferentes conceitos. O que é obra é a grande questão poética. As obras poéticas, como sempre, estão aí e nos desafiam qual esfinge. Esta continua a engolir as teorias que querem decifrar o seu enigma. Mas a obra de arte mostra o seu vigor ao sempre dar origem a novas interpretações. Este é o desafio de toda interpretação hermenêutica: dizer sempre o mesmo, sem dizer as mesmas coisas. É nessa tensão interpretativa de identidade e diferença que o homem se mostra como homem, na medida em que retoma permanentemente o enigma do sentido e verdade da Physis/Logos.
É no âmbito deste enigma como desafio que se move a Área de Poética, daí o seu vigor, atualidade e importância. Ela, sendo a mais antiga, torna-se, igualmente, a de mais profunda e ampla renovação de estudo das realizações artísticas em nossos dias, porque se volta para a Linguagem como possibilidade não só de toda realização artística bem como de toda interpretação. O que podemos notar é que as diferentes formulações das diferentes poéticas se pautam por duas visões diferentes da Linguagem. A concepção metafísica da Linguagem: causal e instrumental ou funcional, e a Linguagem da poiesis (poética). Estas duas visões resultaram dos dois modos de conceber e interpretar a relação/re-ferência Physis/Logos..

1º A Linguagem instrumental
a) A interpretação do Logos como Linguagem instrumental se iniciou com os sofistas ao separarem a Physis do Logos. Para eles a linguagem é uma convenção (nomos) política (da Polis). Sendo convenção, o que define a linguagem é o seu fim (telos) e este muda de acordo com os interesses não só de quem a usa como também em favor de quem se usa. Ela deixa de ser o vigor de manifestação da verdade como era para os poetas e pensadores e passa a ser meramente funcional, não sendo portadora de nenhuma verdade. Torna-se apenas um meio de exercer a persuasão e fica dependente do jogo da doxa.
b) Essa interpretação do Logos pelos sofistas gerou uma crise ética no jogo de poder da Polis, pois não mais havia um princípio de verdade e tudo ficava ao sabor do poder de persuasão através da linguagem, tornada instrumento de poder e barganha. Em reação a esta situação, surgiu o ensinamento de Sócrates que afirma a correlação da Linguagem com a verdade, através da pro-cura da sua essência (identidade) (Jardim, 2000). A partir destes ensinamentos, Platão, seu mais famoso discípulo, interpretou o Logos como Idéia, ou fundamento essencial. O importante a destacar são duas coisas: 1 – Mantém a separação de Physis e Logos, aprofundando a cisão, ao estabelecer que a Physis se constitui de um mundo sensível e um mundo inteligível (visão metafísica); 2 – Continua com a visão funcional e instrumental da Linguagem, ao interpretá-la como Idéia. Ao estender a divisão à Linguagem, esta se constitui de significante e significado. Todo significante está em função do significado, ou da idéia. A idéia se torna conhecimento da Physis, ou seja, a Physis é a idéia e o seu conhecimento (representação) é o Logos. A Linguagem perde o seu caráter ontológico e passa a ter uma natureza e função epistemológica. Na mesma perspectiva epistemológica, o Logos torna-se em Aristóteles Lógica, enquanto nesta se manifesta a verdade. Ele é interpretado como discurso ou pro-posição de-monstrativa.
c) Do encontro do Cristianismo com a cultura grega vai gerar-se uma nova visão do Logos, mantendo as mesmas características de Linguagem instrumental. Em Platão a Idéia foi identificada com o Bem. Este é identificado, no Cristianismo, com Deus. Como Cristo é filho de Deus e trouxe a Palavra de redenção e anunciação da Boa Nova, ele foi identificado com o Logos no início do Evangelho de São João. Esta nova visão mantém a separação metafísica e o caráter instrumental e funcional. Agora a Linguagem está em função de um sistema religioso, que visa à persuasão das pessoas através da con-versão, dividindo o real em material e espiritual. A Linguagem é um meio de passar de um estágio a outro.
d) A interpretação do Logos como Linguagem instrumental se torna mais clara no decorrer e eclosão da Modernidade. Com a predominância do conhecimento sobre o ser, todos os ob-jetos do conhecimento para a Ciência passam a ser construções da Linguagem, através das pro-posições. A Linguagem instrumental encontra na Ciência a sua plenitude, pois a palavra instrumental provém do verbo latino struere que significa organizar e instituir os elementos num todo. Este todo surge como ob-jeto, na medida em que é lançado (jeto) diante do sujeito através da pro-posição. O ob-jeto é a o-posição gerada pela pro-posição como ex-posição do conhecimento do su-jeito. O objeto é uma construção do sujeito através da Linguagem, ou seja, o conjunto dos objetos ou real são o resultado instrumental do exercício da Linguagem enquanto expressão do conhecimento racional (Logos). Falta à Razão (Logos) dar conta da dis-posição.

Hoje, este caráter instrumental e científico-racional de interpretação do Logos acabou por se impor a todas as percepções do real, contaminando toda a vida cultural nas suas mais diversas e diferenciadas versões do real. A Linguagem instrumental é de tal maneira pregnante que, em geral, nada se faz que não se pergunte de antemão para que serve. Nem sempre nos damos conta de que o querer achar utilidade em tudo provém da interpretação instrumental do Logos. O mais interessante de tudo isso é que a própria instrumentalidade acabou por penetrar na essência da conhecimento como um desdobrar natural, pois fruto de de-cisão onde se cindiu o Ser e o Logos, a Physis e o Logos. Disso resultou em nossos dias que os meios de comunicação são o grande poder de controle da sociedade. A produção e circulação de bens de informação são mais importantes que as produções industriais. O conhecimento torna-se informação e esta não gera uma sabedoria, mas um produto de consumo banal e descartável (experimente ler um jornal de uma semana atrás). A informação torna-se uma mercadoria e como tal é determinado seu preço. O valor/preço é o de mercado. Mas este valor, determinado pelo mercado, é mascarado pelo valor de conhecimento ou valor cultural. A linguagem instrumental, enquanto informação, leva a uma aparente socialização dos conhecimentos. A informação é quantitativa e não qualitativa. A linguagem instrumental tornou-se um código, um sistema de relacionamento das partes no todo, reduzindo cada pessoa à sua função. Não mais se pergunta o que cada um é, o que cada coisa é, mas para que serve. Não é o que nos diz a poesia:
A rosa
A rosa é sem por quê
Floresce por florescer
Não quer saber de si
Nem se alguém a vê

(Angelus Silesius)

No poema podemos falar de um outro telos, que consiste em desabrochar na plenitude de sua verdade. Nisto consiste o seu fim (telos). Ele se confunde com a verdade enquanto eclosão e manifestação. Ao contrário, na linguagem instrumental, a finalidade não é a verdade, mas a persuasão. Esta não liberta, oprime. A persuasão leva ao consumo, à insatisfação, à mitificação, às opiniões, às crenças ideológicas. Isso ocorre quando a pessoa não escolhe livremente, mas opta por alguma dessas de-cisões, motivada por algo que lhe é externo. A formação consiste na aquisição de conhecimento enquanto instrumento funcional. Na sociedade de consumo ser é só ter algo: conhecimentos (informações), emprego, profissão, dinheiro, bens, função etc. A linguagem instrumental está sempre em função de alguma coisa que lhe é externa. A Sociedade de consumo ignora e esquece a sua origem: a Linguagem poética. Tal esquecimento faz do homem pós-moderno um desenraizado, porque sem memória.

2º A Linguagem poética.
O Logos poético ressoa nos poetas, no pensamento de Heráclito. Neste, o Logos aparece em tensão com a Physis, tensão (polemos) de contrários complementares (harmonia). Ele é entendido como Linguagem poética, pois o agir consiste na re-ferência de Physis e Logos destinada no pensamento dos pensadores e na poesia dos poetas. A Linguagem poética nunca se dissocia nem das coisas nem das pessoas. Por isso diferencia-se da instrumental. Ela sempre implica uma verdade que não é a opinião, mas a eclosão do que cada um é, do que é uma comunidade histórica. A Linguagem poética dá um sentido. O sentido é o caminho tanto pessoal como da comunidade histórica enquanto sentido do agir. Pelo agir gera-se um caminho que é o sentido da verdade. A verdade se torna verdade na medida em que a ação eclode como Linguagem poética. Esta manifesta, pois, a verdade e sentido de cada um inserido numa comunidade, à medida que produz as obras (de arte). São elas que se tornam a memória de um povo, pois não indicam um passado que passou, mas um passado que dá o sentido e verdade do futuro no presente, através das interpretações, enquanto novos e possíveis caminhos. Ao contrário do informar, o conhecer é o desenvolver a capacidade de interpretar, interpretando-se cada um enquanto fazendo parte de uma comunidade histórica que tem seu vigor na memória da Linguagem poética. O intérprete não é um consumidor mas um agente que se liberta enquanto se abre para a Linguagem poética. Com esta não se conhece algo. Nada lhe é externo nem interno. Nela nunca há persuasão nem objetivos externos, pois não é uma medição ou instrumento funcional. As coisas, as pessoas chegam a ser o que são na medida e na proporção em que se manifestam como Linguagem. Por isso a Linguagem poética não gera crenças ideológicas, opiniões. Não gera consumidores. Deixa cada um acontecer. O livre acontecer é a essência da Linguagem poética. Ser, enquanto Linguagem poética, significa articular os três significados fundamentais que aparecem nas etimologias que formam o verbo ser: 1°.surgir; 2º. viver; 3º. permanecer. Ser significa lançar-se no círculo do vigor de surgir, viver e permanecer para se con-sumar. Con-sumar é levar ao sumo, à plenitude. A Linguagem poética funda a comunidade, enquanto comunidade de diferencas. Nesta vigora a memória poética, que dá a cada um a sua identidade, na medida em que faz eclodir cada um poeticamente como diferença. A Linguagem poética é o vigor da comunidade histórica, enquanto memória do Ser. Ser e Linguagem poética se co-pertencem e se auto re-ferenciam. A memória poética não diz de um recordar o passado, mas do vigorar do passado no presente como possibilidade de futuro. O futuro será o que desde sempre já se é. A memória do Ser é o tempo se plenificando, pois nada há fora do tempo. Por sermos temporais, o tempo não pode nos ser externo, como se fosse possível viver fora do tempo. O tempo, a história e a memória só podem eclodir como Linguagem poética. Ela é o tempo, a história e a memória eclodindo como sentido e verdade do Ser. Ser não é verbo de ligação, em que se liga um sujeito a um predicado. Ser também não é algum ente especial localizado fora do tempo e do espaço, a-temporal. Viver é ser enquanto puro livre eclodir. A Linguagem poética manifesta o mundo enquanto mundo. Mundo é o eclodir do Ser (surgir, viver, permanecer) enquanto Linguagem poética. Mundo como Linguagem poética é o instituir o real como verdade e sentido. Linguagem poética e mundo são o Ser (surgir, viver, permanecer) enquanto sentido e verdade do real. O real que se realiza como mundo é o livre jogo de manifestação da Linguagem poética como sentido e verdade.
As diferentes interpretações do Logos no percurso da cultura ocidental sinalizam os caminhos possíveis da Poética. Mas devemos estar sempre atentos ao pensamento poético, enigmático, provocativo de Heráclito, que nos diz:


“Com o Logos, porém, que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter ouvido. Com efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo com este Logos e, não obstante, eles parecem sem experiência nas experiências com palavras e obras, iguais às que levo a cabo, discernindo e dilucidando, segundo o vigor, o modo em que se conduz cada coisa. Aos outros homens, porém, lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono.” (fragmento 1), p.58.

“Não sabendo auscultar, não sabem falar.” (fragmento 19), p. 63.

“Auscultando não a mim, mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um.” (fragmento 50), p. 71.
( Os pensadores originários, 1991).


Nota

(1) A ÁREA DE POÉTICA faz parte do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ.


BIBLIOGRAFIA

Fica evidente que para cada Poética deveria haver uma bibliografia. No entanto, o presente ensaio se limita a indicar os autores citados.

HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967.

JARDIM, Antônio. A mosca e o vidro – a poética musical contemporânea. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, mimeo, 2000. Publicado no presente número desta revista.

Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Org. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis, Vozes

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