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A ciência trabalha com o conhecimento e tanto mais quanto se torna um sistema. Esta relação do conhecimento com o real também é ambígua, porque o conhecimento não dá conta de toda envergadura do real. Nesses interstícios entra a arte, não como conhecimento, mas como experiência do real ao lado de outras experiências do real como o pensamento, o mito, a vida e a morte etc. Eis alguns trechos que indiciam essa experiência do real e não um sistema de conhecimento ou apontam para os limites de um conhecimento meramente científico. Isso não nega esses conhecimentos, mas apenas os seus limites, abrindo para possibilidades de pensar o real em sua complexidade, onde a verdade convive com a não-verdade ambiguamente.O poema de Manoel de Barros, do Livro sobre nada, p. 53.A ciência pode classificar e nomear os órgãos de umsabiámas não pode medir seus encantos.A ciência não pode calcular quantos cavalos de forçaexistemnos encantos de um sabiá.Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare.Os sabiás divinam.Eis uma reflexão de Emmanuel Carneiro Leão, na introdução a Ser e tempo, parte I, p.19, Vozes.Quando, de manhã cedo, um físico sai de casa para ir pesquisar no laboratório o efeito de Compton e sente brilhar nos olhos os raios de sol, a luz não lhe fala, em primeiro lugar, como fenômeno de uma mecânica quântica ondulatória. Fala como fenômeno de um mundo carregado de sentido para o homem, como integrante de um cosmos, na acepção grega da palavra, isto é, de um universo cheio de coisas a perceber, de caminhos a percorrer, de trabalhos a cumprir, de obras a realizar. A luz fala, sobretudo, de um mundo em que ele nasce e cresce, ama e odeia, vive e morre a todo instante. Sem este mundo originário, o físico não poderia empreender suas pesquisas, pois não lhe seria possível nem mesmo existir. E, ao atingir-lhe os olhos, a luz não somente fala, a luz é tudo isto. Nós só podemos usar a mesma palavra para dizer tanto um fenômeno externo, a luz do sol, como um fenômeno interno, a luz da razão, porque nem o sol está somente fora de nós nem a razão está exclusivamente dentro de nós, e sim porque sempre e necessariamente realizamos nossa existência na estrutura de ser-no-mundo.Eis uma passagem de Carta sobre o humanismo, de Martin Heidegger, onde se faz o apelo a pensar a escuta do que somos e não simplesmente a conhecer algo racionalmente.Na interpretação técnica do pensamento, se abandona o Ser como o elemento do pensar. A partir da Sofística e de Platão, a "lógica" é a sanção dessa interpretação. Julga-se o pensar com uma medida que lhe é inadequada. Um tal julgamento equivale ao processo que procura avaliar a natureza e as possibilidades do peixe pela capacidade de viver no seco. Será que se pode chamar "irracionalismo" o esforço de repor o pensamento em seu elemento?Fazer a anatomia do peixe e estabelecer um conhecimento científico de seu organismo, certamente é verdadeiro, mas não é o peixe vivo, em seu elemento vital que afinal conhecemos. Qual peixe queremos conhecer?Agora uma observação do poeta inglês T. S. Eliot a propósito do conhecimento científico e formal da métrica em poesia. Ensaios de doutrina crítica, p. 74. Lisboa, Guimarães, 1997.Mas quando se tratava de aplicar as regras da escansão ao verso inglês, com as suas diferenças de acento silábicas variáveis, eu queria certamente saber por que é que um verso era bom ou mau - e isto não mo podia dizer a escansão... Isto não quer dizer que eu considere simples perda de tempo o estudo analítico da métrica, das formas abstratas que soam de modo tão diferente conforme os poetas que delas se servem. Mas a verdade é que o estudo da anatomia não ensina a fazer com que uma galinha ponha ovos.Diz também Jorge Luis Borges de uma maneira mais explícita a propósito da leitura e "aprendizagem" da arte, no ensaio "Poesia", do livro Sete noites, Obras completas. Buenos Aires, Emecé, 1974, p. 288:Fui professor de literatura inglesa na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e tentei prescindir na medida do possível da história da literatura. Quando meus alunos me pediam bibliografia, eu lhe dizia: "A bibliografia não importa; afinal Shakespeare não soube nada de bibliografia shakespeariana" ..."Por que não estudam diretamente aos textos? Se estes textos lhes agradam, muito que bem; e se não lhes agradam, abandonem a leitura, já que a idéia de leitura obrigatória é uma idéia absurda: seria o mesmo que falar em felicidade obrigatória ... O fato estético é algo tão evidente, tão imediato, tão indefinível quanto o amor, o sabor da fruta, a água. Sentimos a poesia como sentimos a proximidade de uma mulher, ou como sentimos uma montanha ou uma baía. A percepção do real como um sistema científico pode nos encobrir de escamas os olhos de tal maneira que não temos mais vistas e nem ouvidos para a riqueza do real. As leis funcionais que a ciência descobre e tecnicamente aplica continuam a existir até que sejam substituídas por outras ou não. Não podem é substituir nem anular a afirmação de nossas diferenças frente ao sistema e nossa experienciação do real em sua dimensão poética e ética. Só assim realizamos nossa vida como possibilidade de travessia e afirmação livre do que somos. Em toda obra de arte há uma fala, compete a nós nos abrimos para a sua escuta, que será tanto mais rica quanto nos apropriarmos do que nos é próprio, e o que nos é próprio é o que somos. Disso nos fala toda Poética da poiesis. Mas não é isso que nos diz a Poética filosófica, onde tudo se baseia no direcionamento da leitura através de leis e modelos previamente dados, fazendo da obra um sistema de conhecimento que mais encobre que manifesta a poesia.
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