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Na perspectiva da língua, todo pensamento é um texto. Um texto é um sistema de signos em que alguns sempre de novo recorrem numa cadência regular. P. 190
De texto de um língua, o pensamento se faz viagem da Linguagem de ser e não ser no tempo. P. 191
Emmanuel Carneiro Leão. Aprendendo a pensar II.
Texto vem do verbo tecer. Cada texto se tece com a linha discursiva da linguagem. Nesse sentido, o texto é como uma rede, onde as linhas do discurso se entrelaçam tendo como fundo os buracos do vazio da linguagem. Sem vazio não há possibilidade de linhas nem de texto. A linguagem é o vazio dos textos. O vazio é o que se vela em todo desvelamento. Os textos irão variar de acordo com o modo como se faz presente a linguagem e a sua manifestação nos discursos, que poderão ser orais ou escritos. Há, por isso, uma variedade muito grande de textos. Daí surge a questão básica: Quando um texto, um discurso é artístico? Não há uma resposta pronta, definitiva, mas podemos estabelecer diferenças entre os textos e assim encaminhar uma compreensão mais adequada da ambigüidade em que toda obra de arte se dá.
1.1 - O texto informativo. Vivemos hoje numa sociedade onde predominam os meios de comunicação. Nesta, todo esforço consiste na conquista do leitor através de uma variação quase infindável de publicações e de assuntos, usando textos informativos, feitos num discurso objetivo, direto, claro, em geral pobre, que esteja de acordo com o universo vocabular médio dos consumidores aos quais se destina. A busca desenfreada de leitores ou espectadores tem um motivo claro e um preço: fazer dele um consumidor. Por sua vez, o leitor busca as informações que preencham o seu cotidiano e possibilitem acompanhar o mundo em que está inserido, seja local, seja internacional, e conhecimentos gerais sobre os mais diversos assuntos. A informação é uma mercadoria determinada pelo possível preço de venda. Em geral as publicações e seus textos são redigidos tendo já bem definidos os seus públicos alvos (os compradores e leitores potenciais). Os assuntos, o vocabulário, as ilustrações se dirigem a um público já socialmente determinado (nível econômico e cultural). A leitura deve ser fácil e a publicação deve dar a impressão de que passa informações (em geral, em nível superficial e generalizante) que elevam o nível cultural de seus leitores. Há uma enorme variedade de assuntos, que se fazem presentes nos jornais diários ou até em revistas especializadas, passando pela política, a moda, o esporte, a programação cultural etc. Enumerá-los todos é impossível e também desnecessário. Um bom modo de medir o valor e importância destas publicações e o saber que elas divulgam se consegue através da sua duração: todas elas depois de um certo tempo perdem a atualidade e só lhes resta o desinteresse e o abandono. Mas essas publicações têm o seu atrativo, porque mantêm o público leitor em dia com o que está acontecendo, infelizmente um acontecer circunstancial e passageiro, impossibilitando, em geral, aos leitores estabelecerem uma visão mais crítica do que acontece e da realidade. É claro que algumas publicações têm os cadernos especiais. Mas até estes têm como parâmetro fundamental o serem acima de tudo comunicativos e informativos. Como a realidade é muito dinâmica perdem logo a atualidade. Nesta leitura predomina a informação digerível e não exige do leitor nenhum esforço significativo que o faça refletir, crescer. O leitor está sempre voltado para algo externo, para uma realidade que o atrai, que lhe é oferecida como um contínuo espetáculo, alegre ou triste, porém que não é a dele, mas que, no íntimo, gostaria (talvez) que fosse. Isto o leva, em geral, a querer viver uma outra realidade que não a dele, gerando diferentes formas de alienação (alienus, do latim, outro). Nestes textos procura-se eliminar o mais possível toda ambigüidade das palavras, não restando senão aquela inerente a toda e qualquer linguagem, pois, no fundo, em toda palavra sempre resta algum dado equívoco. As leituras tendem a serem uniformizadas, embora provoquem reações diferentes em cada pessoa, mas em geral sem maiores conseqüências.
1.2 - O texto publicitário. Nessas publicações destaca-se um outro tipo de texto: o publicitário. Constituídos de textos e imagens (estas têm um impacto muito forte), estes são mais sutis e bem mais elaborados, embora não exijam do leitor um grande esforço de compreensão. Dirigem-se preferencialmente à parte emotiva e pessoal do leitor. De alguma maneira procuram sensibilizá-los e, em última instância, persuadi-los a se tornarem consumidores. Para poderem atingir melhor as emoções (paixões, auto-afirmação, ideais, sonhos, diferenciação), são textos em que de um modo ou deoutro se faz sempre presente uma ambigüidade (que a opção por um determinado produto desfaz). Por trabalharem diversos recursos retóricos, eles exigem dos leitores um maior esforço, mas que não visa ao seu crescimento, mas ao envolvimento para levá-lo, em última instância, ao consumo. Ressalte-se que estes textos também são informativos, mas suas informações se tornam um meio de convencimento e persuasão. Junto com a emoção, o leitor exerce uma certa reflexão, mas que está de antemão direcionada ao objeto de consumo e não contribui para a libertação e auto-afirmação do leitor. É, pois, uma leitura mais sutil e rica do que a anterior, mas que ainda faz do leitor predominantemente um objeto, um número na multidão de consumidores. Embora surjam diferentes leituras, na medida em que cada um interpreta o texto a partir de sua realidade, a persuasão que leva à aquisição do produto objeto da publicidade acaba por desfazer a ambigüidade.
1.3 - O texto científico. Há um outro texto, bem mais complexo e importante. É aquele usado na instituição escolar. O leitor sai do seu universo aparentemente singular e independente e fica submetido a um sistema, onde a leitura pressupõe um diá-logo. Ele se dá na relação professor/aluno. No lugar da informação passa a predominar o conhecimento. O que o distingue da informação, em geral, é que este é portador de um valor que irá ter influência direta na vida do leitor. Neste caso, o ato de ler sai do âmbito do consumidor e se centraliza no próprio conteúdo da leitura, que irá determinar o modo de ser social e profissional do leitor. Este texto é portador de conhecimentos que independem tanto do professor (emissor) quanto do aluno (receptor). De um lado têm um estatuto de verdade que lhe vem da ciência e, de outro, possibilitam àqueles que deles se apropriam o exercício de uma profissão, daí a leitura estar em função do conhecimento. Aqui, de novo, entra a duração, e o que agora vai acontecer é que estes conhecimentos resistem ao tempo (daí se dizerem científicos). O que caracteriza, pois, estes conhecimentos é uma “certa” permanência. Baseiam-se num estatuto de verdade que lhe advém dos métodos objetivos de sua produção, tendo como características uma certa permanência e universalidade, pois os conhecimentos se são fundados em princípios universais. Isto quer dizer que, aparentemente, independem de tempo e conjuntura. Hoje em dia sabe-se que estes conhecimentos também mudam e algumas vezes até com bastante rapidez, mas nem por isso ainda deixaram de serem considerados verdadeiros e científicos. O que no fundo caracteriza estes textos é que o centro não é nem o emissor nem o receptor, mas o próprio conhecimento. Isto faz da relação leitor/conhecimento uma relação impessoal, ou seja, uma tal leitura leva cada um à aquisição de conhecimentos ditos objetivos, que caracterizam uma profissão. Nesta, o mais importante é o profundo conhecimento do assunto e não o que cada um é. Se alguém está doente, não vai escolher o médico pela sua beleza, pela idade, pela cor, pelas convicções políticas ou coisa semelhante, mas pela confiança na sua capacidade e na solidez e amplitude de seus conhecimentos profissionais (embora de um bom profissional se exija mais do que conhecimentos objeivos). Neste tipo de texto, a linguagem discursiva está totalmente a serviço do conhecimento, procurando desfazer e evitar todo e qualquer tipo de ambigüidade ou equívoco através de definições prévias dos termos, num jogo conceitual o mais preciso possível. Daí a proximidade da linguagem científica com a matemática. No entanto, é impossível evitar a ambigüidade total, porque a realidade, toda realidade é sempre de alguma maneira ambígua. Isto fica cada vez mais comprovado pela física quântica, onde o conhecimento da natureza se baseia em probabilidades e na complementaridade dual de partículas e ondas. O sonho de um conhecimento objetivo absoluto se desfez, ainda que expresso matematicamente. Hoje se sabe que somos todos espectadores e atores do grande drama da vida.
Contudo, o modelo de conhecimento e verdade inaugurados pela ciência no século XIX ainda continua vigente e se tornou o parâmetro predominante na determinação do que é real e verdadeiro. É um modelo tão forte historicamente que extrapolou as ciências naturais e passou a determinar os conhecimentos históricos, ou como se dizia então, as ciências do espírito. A antropologia, a etnografia, a arqueologia, a sociologia, a história, as diferentes histórias (da música, da literatura, da arte etc.), a teoria literária etc. foram sendo constituídas e realizadas tendo como modelo metodológico o conhecimento objetivo e universal das ciências da natureza. Não compreenderam que estes são fenômenos vivos que exigem uma outra postura mais aberta e dinâmica para darem conta das suas transformações no tempo. Em tais fenômenos não há apenas conhecimentos, mas também o sentido como verdade da realidade. Não basta ter conhecimentos racionais, é necessário partir da compreensão. O sentido e a compreensão extrapolam o conhecimento objetivo analítico. Como dizem respeito a diferentes culturas no tempo e no espaço, acabaram por submeter todas as diferenças culturais ao modelo científico ocidental, oriundo da leitura metafísica da realidade. Hoje se tomou consciência de que um tal conhecimento e análise se baseiam numa identidade generalizante abstrata e ideológica, fundada tão somente na razão (consciência) sem a compreensão. O modelo ocidental se impõe em detrimento das diferenças culturais. Por isso o conhecimento analítico científico, ainda que persistente, tende a entrar em crise e a dar lugar e vez às diferenças e a uma metodologia que substitua a análise pela interpretação, pela hermenêutica. O grande problema é estabelecer uma hermenêutica de base epistemológica, ou seja, científica, onde convivam os conceitos científicos e o sentido e compreensão dos fenômenos, fazendo-se sempre presente uma certa ambigüidade. É o grande drama da vida em sua riqueza e mutação constante. Embora toda leitura se queira científica, surgem muitas vezes não só leituras diferentes de um mesmo fenômeno ou “acontecimento”, mas até mesmo contraditórias.
1.4 - O texto mítico. Os mitos se perdem no fundo da memória e são inerentes a todos os povos. Por diversas circunstâncias histórias foram sendo relegados a um segundo plano, mas jamais deixaram e deixarão de existir. O processo de afirmação da Modernidade consistiu na negação e superação do pensamento e poesia míticos, tornando-se, contraditoriamente, a razão um novo mito. Há uma memória mítica que persiste em todas as culturas e em todo ser humano. Os mitos, hoje em dia, na sua maioria nos chegam através da escrita. Com isso algo da sua dinâmica constitutiva já se perde. É que os mitos tinham como contraface os ritos. Os ritos eram a concretização dos mitos enquanto manifestação e interpretação da realidade, na medida em que os ritos eram o real se manifestando como linguagem. Nesse sentido, o mito é a realidade se manifestando como linguagem. Nada mais estranho ao mito do que lhe atribuir uma explicação causal de fenômenos naturais ou psíquicos. Isso já é uma interpretação cientificista e metafísica do mito, pois constituem o conhecimento na medida em que estabelecem causas e conseqüências. O mito realiza um conhecimento manifestativo e não causal. O seu tempo é circular e dinâmico, e não linear como no conhecimento racional. A verdade do mito não pode, pois, ser avaliada a partir do modelo científico de verdade. O mito enquanto rito sempre expressou e manifestou as vicissitudes históricas de cada povo, de cada cultura, ou seja, é a força instaladora de uma ordem. Isso provocava diferentes versões do mesmo mito, que nos chegaram muitas vezes através da escrita. Elas já são sinal da profunda riqueza e ambigüidade da realidade. Uma tal ambigüidade ocasionou sempre múltiplas interpretações. O texto mítico é um texto ambíguo. Em suas transformações históricas, os mitos dão origem às religiões e às artes. Por isso é que os objetos do culto e dos ritos se constituíram nas mais genuínas obras de arte, incluindo os textos discursivos orais ou escritos, as artes visuais e a arte musical. Toda verdadeira arte nunca perde as raízes míticas. O mito em sua essência se funda no sagrado e é este o que estabelece a relação profunda entre as religiões e as artes. O mito se presta a múltiplas leituras não só religiosas e artísticas mas também de diferentes disciplinas ditas científicas. Um exemplo marcante na cultura ocidental é o mito de Édipo.
1.5 - O texto religioso. Hoje conhecemos diferentes religiões, sejam monoteístas, sejam ainda politeístas. Em geral as grandes religiões se fundam em torno de textos sagrados. Eles são frutos de revelações e como tais constituiriam a própria palavra de Deus ditada aos homens ou a seus seguidores através de homens eleitos. O que caracteriza as religiões é se constituírem em torno de um sistema de normas e princípios com forte propensão para a regulamentação da vida das pessoas através de princípios morais. As religiões apresentam sempre uma interpretação do que seja a realidade imanente em relação como uma outra realidade transcendente. Os textos sagrados, apesar de seu caráter de revelação divina, apresentam dados históricos bem nítidos, resultantes não só do uso da língua mas também das circunstâncias e do momento em que foram escritos. Isso levou à necessidade de se proceder a uma interpretação simbólica ou alegórica desses dados, posto que novas povos e novas realidades históricas e até lingüísticas tinham em tais textos as suas referências religiosas. Os textos religiosos são em si essencialmente ambíguos. Ocorre que tal ambigüidade tende a ser interpretada levando em conta a coerência do sistema que constitui a religião. Isso é compreensível, pois uma dispersão das interpretações tenderia a anular o sistema religioso ou a questioná-lo. Isso muitas vezes acontece. Outras se constituem em tendências dentro de um mesmo sistema religioso. O que podemos notar em todos esses multifacetados sistemas religiosos é que os textos religiosos radicam numa ampla ambigüidade. Isso apenas acentua a múltipla riqueza da realidade e do ser humano. O divino em última instância é uma manifestação da linguagem, não fosse a linguagem nessa perspectiva a própria divindade. A leitura, embora ambígua, tende a ser parametrada pelo sistema religioso. A hermenêutica religiosa é muito antiga e recebeu o nome de exegese.
1.6 - O texto jurídico. A idéia de justiça tem também um fundo mítico-religioso. A aplicação da justiça bem como o fundamento das próprias normas jurídicas tinham como origem os próprios deuses ou seus representantes divinos, os reis e/ou sacerdotes. A norma jurídica tem um caráter geral e abstrato, mas a sua aplicação é singular e concreta. E esta realidade singular e concreta varia muito e apresenta aspectos muito diferentes de caso para caso. A passagem da norma para a aplicação concreta exige sempre uma interpretação. Além desta relação interpretativa há também o fato de que a formulação das leis se dá através de um discurso e este, como toda linguagem, é fonte de permanentes e diversificados equívocos e ambigüidades. A leitura e aplicação da lei dá por isso mesmo origem a diferentes interpretações. A ambigüidade propriamente termina quando a lei é aplicada. Uma tal aplicação varia muito de acordo com o fundamento que se toma como parâmetro. Há casos famosos na história, mas o mais duradouro e pertinente nos vem da área artística através da famosa tragédia de Sófocles: Antígona. A aplicação por isso termina um determinado processo ou caso, mas não desfaz o horizonte da ambigüidade do texto jurídico. A hermenêutica jurídica tem raízes muito antigas e é já muito tradicional. A passagem de um fundamento religioso para um fundamento secular racional lhe trouxe muitos desafios. Hoje se debate no redimensionamento de uma postura epistemológica para uma postura ontológica.
1.6 - O texto filosófico. O texto filosófico tende, como o religioso, a dar origem a um sistema. E aí surge uma inversão: o texto que deu origem ao sistema passa a ser interpretado a partir das linhas gerais desse mesmo sistema. É um círculo vicioso dentro do qual se anula todo o vigor de pensamento das obras dos grandes pensadores. Isso ocorre muito nas histórias da filosofia, que falam da obras em linhas gerais ou acentuam traços marcantes, onde as nuances e ambigüidades se perdem. No entanto, as grandes obras quando lidas por um outro grande pensador, motivado por um impulso criativo de pensamento e atendendo ao impulso histórico de novos desafios, dão origem a novas interpretações e novas formulações. Um exemplo famoso seria Aristóteles e S. Tomás de Aquino. Outro seria Heidegger e os Pensadores Originários Heráclito e Parmênides. O pensamento se move, portanto, numa ambigüidade que radica na própria ambigüidade do real. O texto filosófico, nesse sentido, é tanto mais filosófico quanto mais move os leitores a se empenharem na aventura do pensamento e a empreenderem uma caminhada de descoberta e invenção da realidade. A leitura dos textos filosóficos, quando não manietada pelas normas dos sistemas e as suas verdades pré-fabricadas, se mostra rica de ambigüidade e fonte de uma experienciação muito radical da realidade. Ao longo dos séculos se foi estabelecendo uma postura epistemológica que se formalizou em procedimentos científicos. Mas uma outra tradição foi sendo desenvolvida que manteve acesa a chama da filosofia como aventura do pensamento, aproximando-se muito da poesia. É a famosa proximidade de pensamento e poesia. Unindo-os a ambigüidade da realidade, de ser e não ser.
1.7 - O texto poético.
Cada palavra é, segundo sua essência, um poema.
Guimarães Rosa (Entrevista a Günter Lorenz).
A caracterização do texto poético é muito complexa. Já começa pelas diferentes denominações. Podemos falar em texto poético, artístico, literário, ficcional, sem nos referirmos à possibilidade de denominar como texto as diferentes manifestações artísticas. Por que não falar em texto musical, pictórico etc.? Outra distinção necessária e corrente seria entre texto e obra. Texto tem muitos conceitos e não pode simplesmente ser confundido com a escrita. Obra é certamente mais ampla que texto, pois uma obra pode ser constituída de diferentes textos. Obra além disso, tem um sentido específico, ou seja, uma determinada obra, ou genérico, o conjunto de obras de um autor. O problema aumenta em densidade se pensarmos tanto a etimologia de texto como de obra. A caracterização do texto poético, enquanto obra, pode abarcar as demais denominações, quando se compreendem a partir do que lhe é essencial. Mas há uma denominação que precisa de uma distinção: texto ficcional. Esta denominação inclui obras artísticas e não artísticas. O termo ficção vem do particípio latino fictum, do verbo fingere, que tem quatro significados básicos: fingir, mentir; formar; educar; imaginar. A etimologia de fingere mostra um sentido mais profundo. Indica o ato pelo qual se molda, dá aparecimento e estabelece um limite de algo diante do vazio. A esta tensão de manifestação de algo, de um ente, a partir do que se vela e oculta é que diz o texto/tecido poético-ficcional. Há, pois, uma dinâmica de desvelamento e velamento. O vigor dessa dinâmica é o agir. Esse agir essencial foi denominado pelos gregos como poiesis.
Ficção foi usada para traduzir o termo grego mythos, mas já dentro de uma visão metafísica do real (real vem do termo latino res, usado para traduzir o termo grego on, o ente, tudo que é). Do ponto de vista teológico, o mito era algo não verdadeiro, produto da fantasia humana, daí a acepção predominante da ficção como algo fingido, fabuloso. Já do ponto de vista da ciência, a ficção corresponde a mundos possíveis mas não reais, ou seja, aparentes, ilusórios. Note-se que o real é agora defindo a partir da determinação científica do ente como objeto de representação. O que não pode ser objeto não seria real. Isso é insustentável, embora se use o termo real para os fatos. Na realidade não sabemos o que é o real, porque não sabemos o que é o ser, a physis.
Seja como for, o texto poético é ficcional no sentido etimológico. Poderíamos, contudo, distinguir uma ficção poética, onde predomina a tensão desvelamento e velamento como poiesis, e uma ficção-ilusão. O imaginar se funda no velar e é o contraponto do figurar. O contraponto indica a presença da tensão do limite e do ilimitado, do discurso e da linguagem. Quando tal acontece teríamos o texto poético. Já na ficção-ilusão teríamos, por parte do leitor os valores já estabelecidos e onde a linguagem é agenciada como fazendo parte de um discurso-código decodificável a partir de um sistema de significados já estabelecidos. Não há invenção/manifestação de sentidos. Em tais obras, a linguagem é trabalhada ao nível da ambigüidade semântica, que se faz portadora do aparente jogo dos valores ideológicos. Estes acabam por substituir a ambigüidade manifestativa da obra poética por um jogo de oposições binárias necessárias ao funcionamento do sistema, onde uma faceta exclui e se opõe à outra: sensível e inteligível, emocional e racional, imaginação e realidade, verdadeiro e falso, matéria e espírito, exterior e interior, indivíduo e sociedade, existência e essência, vida e morte etc. Tal separação binária tende também a opor realidade vigente a realidade imaginária, envolvendo o leitor num jogo no qual ele se torna espectador passivo. E hoje ainda temos a realidade virtual. Ela pressupõe um sistema. A realidade poética é a que está sempre além de qualquer sistema, na medida em que faz do discurso (sistema) algo ambíguo ontologicamente.
O envolvimento da ficção-ilusão causa prazer ao leitor porque o retira de sua realidade e o projeta numa outra, onde os seus problemas não se fazem presentes. Esta suspensão temporária alivia o leitor porque o liberta aparentemente da pressão da realidade da vida e não o pressiona a experienciar a sua vida. Há aí uma aparente catarse. Na realidade, houve uma suspensão e esta, pelo alívio, traz a sensação de prazer, de uma vivência estética. Na ficção poética não temos vivência, mas experienciação, ou seja, vivemos em estado de liminaridade, pela qual já nos movemos no real se manifestando como verdade e sentido ao mesmo tempo que se vela. Mas retomado o fio da vida cotidiana, depois da leitura da ficção ilusão, não se faz nenhuma ligação com as experiências vividas pela obra lida, não tendo, por isso mesmo, conseqüências naquilo que cada um é. Ao fim da experiência da leitura o mundo se desenha dentro do mesmo horizonte, porque, na realidade, este horizonte não entrou em tensão ambígua, apenas foi suspenso. Daí o caráter de di-versão de uma tal literatura. No di-vertimento, a realidade se verte, se realiza dicotomicamente em realidade imediata e ilusória. O prazer surge dessa sensação narcótica. Passado o envolvimento e o efeito, recai o leitor na realidade cotidiana, que acaba por lhe provocar ainda um maior desencanto e vazio.
A ilusão atua em detrimento do imaginário poético como poiesis. Esta só o texto poético pode ativar. O ilusório não impulsiona a consciência, mas expõe e impõe um discurso e uma ordem de valores que se justificam por si, ratificando o sistema ideológico vigente, não instigando a crítica da ordem dominadora imposta pelo sistema, nem acirrando as contradições das ideologias. Ao fim da leitura não há questões, instigamentos, dúvidas, esperanças, possibilidades futuras, mas um certo vazio, uma estrada sem horizontes, sem novos desafios. O ilusório não é o possível como no texto poético, mas a sensação de irrealidade e desligamento. No texto poético, pelo contrário, a realidade comparece em toda sua densidade e plenitude, onde não há externo e interno, mas em que cada um se percebe sendo, se realizando, e uma verdadeira sensação de liberdade toma aquele que é envolvido pelo poder manifestativo da poiesis.
No texto poético a palavra comparece em todo o seu poder e densidade de ambigüidade, e a separação entre língua e realidade é artificial e abstrata, pois a língua é a realidade se manifestando concretamente, de tal maneira que não é possível falar em significante e significado. O significado, a idéia, é o significante se fazendo realidade como linguagem, ou seja, sentido e verdade, é o som se fazendo música do silêncio. Desta concretude surge o fato de que no texto poético cada palavra é única e insubstituível, dando origem às dificuldades da tradução e à necessidade de uma verdadeira re-criação. O ritmo, a melodia, enfim, a musicalidade se tornam uma dimensão fundamental da linguagem poética, pela qual a realidade se manifesta em sua plenitude de velamento. Na e pela palavra poética, o som se faz linguagem. O discurso poético não se apresenta como a mediação de um emissor e um receptor nem as palavras têm qualquer função: não há mensagem na poiesis, apenas a realidade se processando e presentificando como Linguagem numa ambigüidade radical. Toda grande obra é portadora de um ritmo e melodia único e inimitável e nos lança nas grandes questões do ente e real/ser. É nisto que o texto poético se distingue de todos os outros textos. Mas para apreender melhor a extensão da presença e do vigor do texto poético, é necessário abordar outros aspectos, que serão vistos e tratados nesta poética da poiesis: leitura.
A palavra
Já não quero dicionários
Cosultados em vão.
Quero só a palavra
Que nunca estará neles
Nem se pode inventar.
Mais Sol do que o Sol,
Dentro da qual vivêssemos
Todos em comunhão,
Mudos, saboreando-a.
Carlos Drummond de Andrade
Um comentário:
Manuel, estive durante horas lendo seus textos, reservei vários para postar em Blocos, inclusive seu poema O Pensador. Já tinha estado antes aqui, mas anonimamente. Hoje resolvi escrever meu comentário sobre seu blog: um espaço excelente de reflexão, de pouso e re-pouso. Abraços, Leila
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