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Para a amiga: Edione Trindade Azevedo
Estamos aqui reunidos pela Linguagem. Vocês foram convidados para me escutarem, porque vou proferir a Aula Inaugural. Isso pressupõe que vou falar. Porém, esta minha fala é motivo de muitas preocupações. Por quê?, perguntarão vocês. Muito simples: Porque uma voz das mais sábias, das que mais teve, tem e terá para ensinar, disse há dois mil e seiscentos anos : “Escutando não a mim, mas ao Logos, é sábio dizer-com: tudo é um”. Eis aí uma palavra de pensamento, eis aí uma palavra sábia. Ela é de Heráclito, no fragmento 50. Se vocês notarem, há nessa palavra de pensamento duas falas e duas escutas. Há referência a dois Logos, há um falar e um falar com. Vou repetir: “Escutando não a mim, mas ao Logos, é sábio dizer-com: tudo é um”.
Vocês foram convidados para me escutarem, mas o sábio nos adverte: Não escutem a mim, mas ao Logos. Aí surge uma questão, se quiserem escutar a fala do Logos e não a minha. E vocês certamente devem fazer isso, porque vocês foram convidados para uma Aula. Não qualquer Aula, porém, uma Aula Inaugural. Vocês já sabem há muito tempo: numa aula se ensina. O quê? Tanta coisa numa sociedade do conhecimento e da informática como a nossa: muitas informações e conhecimentos. Mas pergunto: Em tanto ensino se ensina o saber, o sabor e a graça da sabedoria? Creio que não. Informações e conhecimentos vocês têm nos livros, na internete nos cursos que fazem aqui e em outros lugares, nos meios de comunicação. Para isso não é necessário haver uma Aula Inaugural. Tudo já está aí à disposição de vocês. Então do que deve falar uma Aula Inaugural? Sem dúvida nenhuma, do que é Inaugural. Esta palavra tem muitos significados. Contudo, o que inaugural inaugura deve ser a questão desta Aula. Escolhi uma questão: a linguagem como nosso maior bem. Mas é disso que justamente Heráclito trata: nosso maior bem é a sabedoria e ela é a linguagem. Mas ela não se pode ensinar, só se pode apreender e compreender como escuta. Por isso, não me escutem, mas auscultem e escutem o Logos. É o que Heráclito nos diz: “Escutando não a mim, mas ao Logos, é sábio dizer-com: tudo é um”. Ele nos assinala o que sempre é inaugural: “... é sábio dizer-com: tudo é um”. O inaugural é “...tudo é um”, porque nele e a partir dele se inaugura como aprendizado de escuta: o “sábio dizer-com (homolegein)”, a sabedoria. A Aula se for Inaugural tem de falar de Linguagem. E isso significa falar de sabedoria como escuta, escuta do Logos. Pressupõe-se, portanto, que falarei de sabedoria. Contudo, parece que estou entrando em contradição ou mudando de questão em relação ao enunciado e anunciado, que diz: Linguagem: nosso maior Bem. Que o Bem, se é Bem, seja sabedoria ainda se pode aceitar, mas o que tem a ver sabedoria com Linguagem? Vocês têm muitas aulas de lingüística, de línguas, de gramática, de literatura, de teoria literária, onde se fala sempre de e a partir da linguagem. E vocês jamais ouvem a palavra sabedoria, muito menos o enigmático dizer de Heráclito: “tudo é um”, em que consiste a sabedoria, o sábio dizer-com (homolegein). Como isso é possível? O que houve?
Chegamos a um primeiro impasse: o que nos diz o sábio Heráclito não coincide com o que se ensina na Faculdade de Letras. O que houve? O que há? Por que o ensino das Letras não ensina a sabedoria, o sábio dizer-com, e, portanto, não tematiza, não trata da única coisa que é sempre inaugural e importante para o ser humano? Ser feliz. Porque ser feliz é ser sábio. Mas ser sábio é escutar o Logos. O que é o Logos? Não está na hora de o ensino da Faculdade de Letras se perguntar com humildade e sabedoria: Qual é o penhor para nós e para os alunos em nosso empenho de ensinar Letras? Que real, que ser humano queremos construir? O que queremos que nossos alunos sejam? Mas isso é muito fácil de se responder. Aqui se ensinam Letras e não filosofia. Filosofia é que trata do ser e da sabedoria. Não é o que a palavra diz? Philos, amigo, e sophia, sabedoria.
Essa dicotomia do jargão metafísico está saturada e não serve mais. E as transformações por que passa a humanidade com um número crescente de excluídos e marginalizados, com um sistema educacional que prepara recursos humanos, mas não educa, exigem de nós uma parada para reflexão. Digo triste, mas convicto: estamos fracassando e fracassaremos mais se insistirmos neste modelo. Mas o refletir pressupõe e impõe uma escuta mais do que falas salvadoras. E com isto voltamos ao sábio Heráclito. Por quê? Porque ele, nesse fragmento, nos fala fundamentalmente de reflexão e escuta, pois diz, repito: “Auscultando e escutando não a mim, mas ao Logos, é sábio dizer com: tudo é um”. E o que ele nos propõe como escuta? Não a mim ... Vocês não devem escutar a mim, não devem escutar qualquer outra pessoa, não devem escutar qualquer outra fala. Eu, vocês, todos nós seres humanos devemos escutar o Logos.
Que é o Logos? Quem é o Logos, para que o escutemos como nos recomenda Heráclito, para que aprendamos e apreendamos o sábio e enigmático “dizer-com: tudo é um”? Logos é uma palavra grega que se originou do verbo legein. O tempo e as traduções tão diferentes e opostas mostam que é uma palavra intraduzível. Isso não significa inefável, abstrata, ideal, distante, inacessível. Não. Muito pelo contrário. Ela é próxima, tão próxima de nós que diz ser. Logos é dizer, é linguagem, é ser. O ser se diz: logos, linguagem. E pode haver algo mais próximo, mais vivo, mais concreto, mais radical do que o que cada um de nós é? E o que é, antes de tudo, é o ser. Muitos são os verbos que proferimos em toda língua, mas só um é o verbo dos verbos: ser. Porque nele e por ele dizemos o que somos, dizemos nossa identidade. Quando cada um de nós diz e sempre diz: sou, aí o ser se diz. O ser se dizendo é a linguagem. E há maior bem do que sermos o que somos? Por isso, nosso maior bem é a linguagem. Quando a gramática reduz o ser a um verbo de ligação, comete aí sem dúvida nenhuma a maior das infidelidades, não ao ser, porque nem por isso ele deixará de ser, mas a nós, a cada um de vocês. Será que a gramática escutou e escuta o Logos? Será que a gramática é sábia? Será que a gramática ama a linguagem? Ela fala, fala sem escutar. Por quê? Há aí uma questão ontológica, e ligada a ela uma questão histórica: o surgimento da gramática como filha próxima e legítima da metafísica. Comecemos pela questão metafísica.
Quando eu, cada um de nós, diz: eu sou, e isso é o mais próximo, o mais íntimo, o mais profundo em cada um de nós, aí o ser se diz. O ser se dizendo é a Linguagem. Ocorre que só somos sendo. E se somos sendo, somos e não somos. Portanto, o ser que não somos é um mistério, queiramos ou não, e não depende de nós. Porque o ser que somos é uma doação, um presente do ser. E ele se presentifica como escuta. O sujeito gramatical e o sujeito da subjetividade é um simulacro. Se o ser se diz, e diz, o sendo é o dizendo. Logo, o dizendo diz e não diz. Porque o sendo não é o ser, o dizendo não é a linguagem. Sendo é o ente. Mas o ser não é, pois se fosse seria ente e não ser. A fala, a língua é que é ente, não a linguagem. Porém, o que somos, somos a partir de e pelo ser. O que dizemos, dizemos a partir de e pela linguagem, pelo logos. Portanto, o ente não é o ser; a fala, a língua não é a linguagem. Como entes não sabemos o que é o ser. Como fala não sabemos o que é a linguagem. Embora, claro, não possamos ser entes e nem fala a não ser como linguagem/ser. Talvez agora já possamos melhor mergulhar no que Heráclito nos diz: a ausculta do Logos é a escuta da linguagem/ser. A fala dele e minha é de ente e de língua. Contudo, só podemos falar se auscultamos. Só podemos ser este e aquele ente, que é, e só pode ser a partir do ser, porque o que antes de tudo é, é o ser. Porque o que antes de tudo fala, é a linguagem. “A linguagem fala, não o ser humano. O ser humano só fala quando diz-com e a partir de linguagem” (Heidegger). O ser é, não o ente. O ente só é com e a partir do ser. Por isso podemos repetir: o ser se diz: linguagem. A nós cabe a ausculta do Logos, do Ser, como nos ensinou e ensina há dois mil e seiscentos anos Heráclito, o sábio.
Estamos aqui reunidos. Vocês me escutam. Mas só falo para que escutem o Logos, a Linguagem, o Ser, não a mim. Só então a Aula será Inaugural. Uma aula para os estudantes de letras, onde se supõe que se trata, cultiva e ama como ausculta a linguagem. Nisso e só nisso consiste a fidelidade à linguagem, isto é, sermos fiéis ao que somos. Mas o ser, a linguagem, a sabedoria não diz respeito apenas a nós e, sim, a todos os seres humanos. Se a sabedoria é um aprendizado de vida e uma vida de aprendizado e escuta, todos deveriam aprender letras e levar a boa-nova como escuta da linguagem, do Logos a todo ser humano, para que cada um se auscultando no e pelo Logos seja o que é. Mas notem, se a boa-nova consiste no anúncio da verdade inerente a toda sabedoria e linguagem, e consiste, então se a boa-nova consiste no anúncio da escuta e não do que cada um fala, cada fala só pode ser a verdade da não-verdade: a escuta da linguagem, nosso maior bem. Por que as disciplinas ensinadas não tocam na questão da linguagem como nosso maior bem, da sabedoria, do dizer com: tudo é um? É porque a linguagem virou refém da metafísica. A metafísica da linguagem é a gramática. É uma questão para ser pensada e não uma verdade. Mas o que é uma questão onde o pensamento e a reflexão possam ocorrer? Façamos algumas distinções mínimas e rápidas.
A tensão entre sabedoria, conhecimentos e informações ocorre em algumas dimensões básicas com as quais lidamos e nas quais todos nós nos movemos. Existem as imagens-questões, as questões, os conceitos, os sistemas, os clichês e os jargões. A imagem-questão se dá no mito e na poiesis. É uma imagem que nos propõe questões. Por exemplo: Existe a deusa grega Mnemósine, cuja tradução é memória. Como deusa é uma imagem que propõe a questão da memória. A afirmação de Fernando Pessoa: O poeta é um fingidor, constitui-se numa imagem-questão da poiesis. O fingidor é tomado aí como imagem-questão. A questão do fazer poético como fingir. Capitu, Dom Quixote, Édipo etc. são imagens-questões. A questão-imagem se propõe como diálogo-poético para o leitor. Neste, se escuta para falar e se fala a partir de escuta. Já a questão é algo que, no se colocar como pergunta, ela se dá como saber e não saber, ser e não-ser. O que é ser feliz? O que é ser? Só pergunto porque não sei, mas ao mesmo tempo só posso perguntar porque de alguma maneira já sei, senão nem poderia perguntar. Sucede que a resposta só em parte resolve a questão. Por quê? Porque se pergunta a partir do ser: O que é? E se responde sempre como ente: é isto, é aquilo. E aí tudo começa de novo, porque a resposta não dá conta da pergunta, da questão. A physis/ser, a Linguagem, o Tempo são questões. Não há resposta que diga o que é o ser, a linguagem, o tempo. Por isso, só temos questões na medida em que elas nos têm. Os conceitos partem de perguntas também, mas procurando uma resposta que se dê num conhecimento que delimite o ser/ente. O conceito consiste num de-finir, num representar, como conhecimento, o ser como este ou aquele ente delimitado no conhecimento. A metafísica trabalha com conceitos, definições, conhecimentos representacionais como verdades. Por isso a metafísica fala, não escuta, se empenha na enunciação dos enunciados. A metafísica originou a gramática e todas as ciências. Estas trabalham com conceitos como conhecimentos representacionais dos entes. Neles o ser, a linguagem e a sabedoria ficam esquecidas e silenciadas. A verdade floresce, se cultiva e grassa nos conceitos. A verdade da não-verdade eclode, se desvela e vela na questão. Por quê? Toda questão, na e a partir de linguagem, sabe e não-sabe, vê e não-vê, quer e não-quer, pode e não-pode, diz e não-diz, é e não-é. Por isso, a maior de todas as questões é o que em cada um de nós é, porque cada um é e não-é. Se é a maior questão é o maior bem: o ser. Mas o ser se dá: linguagem.
A questão metafísica é complexa. Mas depois das observações precedentes podemos já apontar o fundo de onde ela surge e como ela procede. Na realidade não há separação entre questão e conceito, porque eles vivem numa tensão. Mas esta surge de uma tripla tensão fundamental que, embora com nomes diferentes, é a mesma: ente/ser, fala/linguagem, tempo finito/tempo infinito. Nessa tensão se decide o que somos e não somos. Por isso Heráclito fala de polemós (a luta). A metafísica tenta solucionar a tensão criando a abstração. Os conceitos são abstrações. E como ela procede para implantar os conceitos como abstrações? Principalmente silenciando e esquecendo o agir, isto é, a poiesis. Ao esquecer a poiesis centraliza-se no conhecimento como techné e não pode mais falar de sabedoria, pois esta implica um agir, uma poiesis como começo e como fim. Mas é um processo complexo e isso é demonstrado por três diferentes vocábulos gregos que se referem a limite: horidzo, limitar no ilimitado; peras, limite do ente surgindo; e telos, limite do ente desvelando-se na plenitude de seu ser. Lidas na leitura metafísica da physis/ser como on/ente, estas palavras tiveram um empobrecimento e geraram uma enorme confusão na tradução para o latim, na tentativa de operacionalizar a abstração metafísica. Por isso, a gramática só trabalha com abstrações. Retomaremos estas questões para tentar torná-las mais claras, dentro do possível. Sobretudo porque o bem e a linguagem se tornaram idéias abstratas, a que não corresponde mais nada de ontológico.
Letras diz respeito à linguagem, ao Logos. Mas como fala ou escuta? Para responder temos que indagar: Como se originou a palavra Letras? O que a palavra Letras tem a ver com o Logos? Antes de prosseguirmos com a resposta, voltemos ao fragmento de Heráclito e pensemos algo lá assinalado, extremamente complexo, e ainda não pensado, mas que só receberá um aceno agora e será tratado mais à frente: é uma questão que tem uma dupla formulação, mas que é a mesma. Em grego diz Heráclito: “Ouk émou allá tou logou akousantas homolegein sophon estin: hen panta einai”. Aí se fala de “tou logou”, do Logos, e de “homolegein”. “Homo”, significa semelhante, legein, dizer. O dizer semelhante é o dizer-com do diálogo, porque o semelhante não é o mesmo, no sentido da mesma coisa. Notem: O fragmento começa dizendo: “Auscultando não a mim, mas ao Logos, é sábio dizer ...” . Há aí duas falas, dois Logos. O Logos que vige e vigora na fala de Heráclito e um outro Logos que devemos auscultar. O logos de Heráclito é a fala da fala da linguagem que é o Logos como tal, aquele que devemos auscultar. Na medida em que o ser se diz: linguagem, o ente se diz: fala. Fala/linguagem é o mesmo que ente/ser. E por dedução: há o bem da fala/ente e o Bem da linguagem/ser/physis. Fala/linguagem e ente/ser é a questão fundamental. Porém, para apreender essa questão, teremos que saber como se originou a palavra Letras e o que ela tem a ver com o Logos, melhor, com os dois logos.
A questão do Logos precede a questão da letra, da escrita. O que houve com o Logos para que ele se tornasse objeto de estudo na Faculdade de Letras como letra? A palavra letra provém do latim littera. Daí se formou literatura. Porém, littera é a tradução da palavra grega gramma, letra, escrita, formada do verbo grego graphein. Portanto, na tradição metafísica, gramática e literatura tem a mesma origem e são regidas pelas mesmas abstrações metafísicas. Daí que a formação do aluno de letras em dois grandes núcleos: a gramática, filologia e lingüística de um lado: e literaturas e teoria literária de outro, só aparentemente é diferente. Ambos se fundam nos conceitos abstratos metafísicos, pelos quais esqueceram e obliteraram o que é poiesis, linguagem, ser/physis. Nestes e só nestes consiste a ausculta do logos de que nos fala Heráclito, e, portanto, da possibilidade da linguagem como sabedoria e Bem.
Ao estudarem letras, estudam a escrita ou o logos? Se o Logos, qual dos dois de que Heráclito fala? E os estudam a partir da metafísica do ente ou como poiesis, physis/ser?
Não podemos dissociar a escrita do logos nem da metafísica. Proceder ao estudo tanto da gramática como da literatura pressupõe mover-se e relacionar-se de um modo crítico com esses âmbitos. Por quê? É nesse âmbito que se dá a opção pela linguagem como nosso maior bem ou, simplesmente, como um meio instrumental, um meio de comunicação e objeto de pesquisas determinadas apenas pelo saber lógico-científico. E aí seremos infiéis à linguagem como nosso maior bem, porque falaremos a língua conceitual da ciência, sem nos voltarmos ao mesmo tempo para a ausculta do Logos, como nos recomenda Heráclito, se nos quisermos mover no sábio dizer-com...
Escrita, gramática, lógica, sofística, filosofia, metafísica: como numa aula falar disto tudo pensando-as na dimensão maior da poiesis e do pensamento originário? Impossível. Façamos algumas opções.
No final do diálogo Fedro, Platão nos relata o mito de Thoth, relativo à invenção da escrita. O que o preocupa? A relação entre escrita e idéia. O modo de conceber esta relação será decisivo para a concepção da gramática e da teoria das idéias em sua relação com a physis/ser, interpretado por Platão como on/onta, ou seja, a totalidade dos entes. É uma passagem muito rica e que tem como pano de fundo a retórica do sofista e a do sábio, entenda-se, do filósofo. Que críticas faz Platão à escrita? Três: 1ª. A escrita é um remédio não para a memória, mas para a rememoração; 2ª. Os alunos com a escrita e a internete e os meios de comunicação receberão uma grande soma de informações, tornando-se o ensino uma transmissão, mas não a educação como sabedoria em si mesma. A gramática, como estudo da escrita, não faz da linguagem um instrumento de comunicação, dando uma aparência de sabedoria, como diz Platão? Na sua palavra: “... transmites aos teus alunos não a sabedoria em si mesma, mas apenas uma aparência de sabedoria, pois passarão a receber uma grande soma de informações sem a respectiva educação!” (Fedro, 275, b). Certamente, nesse sentido, a linguagem não é o nosso maior Bem. E, diga-se de passagem, esse é o grande tema de Platão no diálogo: a retórica como enunciado e enunciação do Bem e do Belo: o Amor. Mas há a terceira observação: “O maior inconveniente da escrita parece-se , caro Fedro, se bem julgo, com a pintura. As figuras pintadas têm atitudes de seres vivos, mas, se alguém as interroga, manter-se-ão silenciosas ...” (Fedro, 275 d). Só entenderemos a segunda observação em relação à primeira e terceira se partirmos da teoria platônica das idéias. A verdadeira sabedoria e educação para Platão está na conversão metafísica de toda a alma à teoria das idéias. Esta idéia da pintura está repetida no livro dez do diálogo A república, quando condena a arte por estar três graus afastado do on/ser. Dá como exemplo a cama: A primeira e real e verdadeira é a idéia de cama; a segunda, como imitação, é a cama que o marceneiro faz com a techné; a terceira, imitação do real em terceiro grau e, portanto, afastado três instâncias da verdade, é a pintura da cama que o pintor faz. Platão acusa a pintura e escrita de abstração, e com isso a própria arte, mas por outro lado, funda com os sofistas a gramática: a abstração das abstrações. O que houve?
Para Platão e a metafísica, a letra (e o fonema) é a abstração do som. Porém, o som é sempre concreto, no sentido de que é sempre fala do silêncio. Por isso, nenhum som é sem o ser. O som e a letra são som e letra do ser/physis mostrando-se e desvelando-se no velar-se. Daí que nenhum som é sem a linguagem, como nenhuma linguagem é sem a memória, porque a memória não é o que se lembra, mas o que foi, é e será, ou seja, o tempo não-finito: ser/physis. A escrita pode ser da memória e não apenas da rememoração. A letra na gramática é sempre a abstração do som, do ente, do ser, do tempo, da linguagem, da memória. Letra e som então são representações, idéias. Ensinar gramática pode-se tornar o perigo real de estar ensinando abstrações e representações. Portanto, a abstração não está na letra enquanto escrita como a cama “verdadeira” não está no quadro por oposição à cama do marceneiro. O abstrato está no que a gramática metafísica faz com o ente, ou seja, o abstrato gramatical está na leitura metafísica do ente da physis. A representação não está na letra nem no quadro do pintor, mas na “leitura” gramático-metafísica da letra e do quadro ou pode estar com o que se faz com a letra ou com um quadro. Até porque a letra nada diz em si se não estiver já inscrita no manifestar-se da linguagem da physis. A letra como escrita tem a mesma dimensão do ente em tensão com o ser: a tensão entre limite e não-limite, manifestada em toda possibilidade de experienciação. Tanto a letra como o fonema manifestam o que se lhe oferece como manifestação enquanto poiesis desvelante e velante da physis.
A relação da gramática com a linguagem é muito complexa, porque ela nasce junto com a escrita, a sofística e a metafísica. Sofista designa o sábio. Como diferenciar o sábio de que Heráclito fala do sofista? O sofista fala e ensina o que sabe como fala do seu logos e a sabedoria de Heráclito se dá pela escuta do Logos, pela qual surge a sabedoria em torno do ser/physis, o “tudo é um”. O sofista é um comunicador. Para ele a linguagem é um instrumento. Hoje a gramática e seu ensino reproduz o ensino dos sofistas. Como e por que a linguagem foi reduzida a um instrumento? Eis aí algo complexo. Seja como for, foi um modo como o ser se destinou e destina como linguagem, porque sempre e em última instância quem fala é a linguagem. A complexidade surge também da própria riqueza vocabular e de pensamento dos gregos. O legein que origina o logos é o dizer enquanto reunir do propor e por adiante. Mas já para o dizer ligado aos deuses, o dizer sagrado, os gregos têm duas palavras que se originam da mesma raiz indo-européia wer ou wre. São elas: Hermes e eiro. Hermes é a imagem-questão mítica da fala do sagrado aos mortais. Ele é o mensageiro dos deuses, mas ao mesmo tempo o deus dos caminhos e das encruzilhadas. É, portanto, uma fala de linguagem como sentido, que dirige as ações de caminhar. Caminho é o encaminhar-se do mortal como sentido do agir da vida. Como caminhante hermenêutico é o que escuta as mensagens dos deuses. O mortal caminha de volta para onde já desde sempre está, no ser. Nisso consistem as encruzilhadas do mortal. Contudo, a gramática grega nomeia a ação do dizer não com Hermes, mas com eiro. Diz P. Chantraine, a raiz deste verbo tem um sentido jurídico, religioso e solene. Implica, portanto, um dizer ligado à força e ação divinas, um proclamar o que é próprio dos deuses. Estes, como tais, indicam forças da vida, em grego, dzoé. De eiro se forma rhema, que diz: palavra de ordem, fórmula, frase ou proposição. Por isso para os gramáticos vai indicar a ação, o “verbo”, por oposição à simples palavra ou “onoma”. Dele se formou rheter, o apto a falar e rhetor, o que fala em público, o orador. O ensino dos sofistas consistia no ensino da retórica, ou seja, do bem falar em público, servindo-se para tanto da gramática que estava sendo formulada. Na retórica já se perdeu o caráter sagrado de eiro. De qualquer maneira, indica a ação de dizer enquanto ligado ao vigor da palavra divina, à poiesis da physis/ser. Este agir se dá no Rhema, ou seja, no verbo, como foi denominado pelos gramáticos.
Da mesma raiz wer ou wre se formou a palavra latina verbum e sermo. Agora vejamos como a metafísica vai influenciar a escolha das palavras gramaticais a partir da sua interpretação do on/ente. Os sofistas, para fins políticos, financeiros e práticos, desenvolveram a retórica, a gramática e a erística. Tinham como finalidade o bom uso do logos para convencer (peitó), implicando, portanto, o uso da linguagem como raciocínio e clareza de idéias. Por conseguinte, logos/linguagem nunca teve nem implica nenhum sentido de agir. Pois o agir da physis está relacionado à poiesis e esta, enquanto vigor da palavra, a eiro. Logos e Rhema indicam realidades distintas. Os latinos tinham as palavras ligadas à mesma raiz: verbum e sermo. Sermo seria a que melhor, parece, diz o discursar da retórica. Mas não foi isso que aconteceu. Traduziram Rhema por verbum, verbo em português. O verbo indica a ação ligada à physis/ser, pois tem a mesma raiz de Hermes e eiro. Contudo, na interpretação metafísica de Platão do on/ente, este tem como essência o hypokeimenon, traduzido para o latim por sub-jectum, ou seja, sujeito. E o fundamento do on/ente é o logos. Sujeito, pela gramática, é quem pratica a ação. Mas o logos não tem sentido de agir, logo, como fundamento do on/ente nunca poderia indicar o sujeito como aquele que pratica a ação. A ação vem do ser do ente, a physis/ser. E esta expressa seu agir como poiesis no Hermes, Rhema, ou em latim, verbum, ou seja, o verbo. Há, pois, na gramática e na metafísica uma contradição entre Rhema e logos, e no latim, entre sub-jectum (logos, ratio) e verbum. Daí surge o grande absurdo metafísico e gramatical. Poiesis/rhema/verbum indicam a ação da physis/ser. Como a metafísica separou o on/ente do ser, separa e esquece também a essência do agir do ser, expresso pela poiesis e verbum. Notemos que todo ente só pode ser ente verbal em virtude e no vigor do ser/physis. Na gramática e na metafísica, um tal agir passa para o sujeito, para o ente. E o que ocorre com o Ser/physis? Torna-se, gramaticalmente, verbo de ligação. E a linguagem não diz e manifesta mais o ser/physis, pois se tornou mero instrumento de enunciado e enunciação. Fique bem claro que no grego o agir da linguagem ligado aos deuses é eiro e hermes, mas a linguagem como tal, no sentido de propor, pôr estendido e reunir é o logos de legein, como nos diz explicitamente Heráclito no fragmento que nos serve de reflexão sobre a linguagem. E ele jamais indica ação. A metafísica e a gramática invertem tudo. O logos passa a ser o verbo, o sujeito e o ser (platônico) e o ser/physis se torna simples, banal verbo de ligação, ou seja, tornou-se o verbo ser da gramática que nada mais tem de ontológico. Tanto isso é verdade que, em grego, o início do evangelho de São João fala do logos. Como foi traduzido para o latim? Como verbum. E este verbum é Deus. Logo, nele se dá todo o agir como Criador. É uma tradução inapropriada. Então não há mais lugar para a poiesis. Mas como se escrevem poesias, elas se tornaram expressão lingüística e retórico-formal da imaginação dos poetas. A linguagem/logos se torna uma faculdade do homem, entre outras. O que se perdeu com a metafísica e a gramática? Esqueceu-se e silenciou-se a poiesis como essência do agir, agora atribuída ao sujeito metafísico e gramatical. O ser/physis se tornou verbo de ligação e o on/ente como Idéia e logos se torna o ser. O logos heraclítico se torna o logos da razão humana como sujeito e expressão da idéia como fala verdadeira do ente. A linguagem/logos como ausculta não existe mais e nem mais existe sabedoria fundada no “tudo é um”. Existe, sim, saber e um ser geral, universal abstrato, o ser dos entes. Na modernidade, o saber se torna ciência, a linguagem, língua e expressão instrumental. Funda-se a lingüística como ciência lógica da linguagem. E o ser? Este é uma realidade metafísica a que nada mais cientificamente pode corresponder, porque não pode ser objeto de uma representação científica nem de uma experiência. O real e o verdadeiro passam a ser determinados pela ciência representativa e experimental. O homem como sujeito racional constrói o real e o homem, onde só há lugar para conhecimentos científicos e a sabedoria se torna algo muito raro. Por quê? Numa tal paisagem e realidade, a linguagem ainda pode ser o nosso maior Bem, isto é, ser o que somos? O sujeito racional é a tradução latina de quê? Do on do ser e do logos. E, contudo, Heráclito já nos advertia: “Auscultando não a mim, mas ao logos, é sábio dizer-com: tudo é um”. Essa é a questão que não nos abandona, pois sempre se faz presente.
Já vimos como se constitui a gramática e como transforma a linguagem em língua instrumental de expressão comunicativa. Nela e por ela o logos diz a essência do que é. E ela é o ser abstrato do on/ente. Esse ser abstrato da metafísica se tornou de tal maneira abstrato que, deformados e manipulados pelo ensino da gramática, o ser virou para nós um verbo sem a menor importância a que nada mais de real corresponde, pois ele nem ação expressa. Não expressa nada: é de mera, simples e banal ligação. Há até gramáticos apressados que dizem que existem línguas que não têm verbo ser. Quando o ser se torna um problema gramatical dá nisso. Como se o ser não fosse a physis, a linguagem. O que fazer? Não podemos jogar a criança fora junto com a água. É preciso aprender gramática para ultrapassá-la e ficar sempre atento às obras inovadoras. A linguagem pressupõe o domínio da língua viva e não abstrata. É necessário inaugurar com Heráclito a questão ontológica do ser, onde voltar ao passado é sinalizar o futuro. Este ato inaugural se dá em duas instâncias correlatas: A questão da tensão ente/ser e a questão da tensão tempo/memória/identidade.
Como se dá a referência tensional ente/ser, ou em grego: on/physis? A physis não é só a natureza, mas a totalidade dos entes. E no fragmento 123, Heráclito assinala: O desvelar-se ama velar-se. Como o ente se referencia ao Ser? Como se dá em cada um de nós a referência ente e ser? Cada um de nós é uma gota de água que com a morte se dissolve no mar do ser? E como fica então aí o ser que se dá: linguagem, como sendo o nosso maior Bem? Isto nenhum saber científico nos dá, porque não é um problema epistemológico. É a questão que mais radicalmente nos diz respeito, porque é a questão ontológica, onde ser significa ser sábio e feliz. Então o ser será nosso maior Bem. Dá certamente um calafrio só em pensar que não passamos de uma gota de água que caminha, age, pensa, cria e ama para ser, e acaba por se dissolver metafisicamente no imenso oceano do niilismo. Por isso façamos algumas distinções que nos conduzam do mero saber, do ter e acumular conhecimentos para a sabedoria do ser.
Na realidade, a gramática está estreitamente ligada à retórica e esta se guiava por interesses econômicos e formais, fazendo do logos humano o seu fundamento e interpretando a linguagem como língua, tornando-se esta um instrumento político de tomada do poder e de convencimento das mentes dos cidadãos. É a publicidade de hoje. Platão, diante dessa prática, escreve o diálogo Fedro, onde ataca o formalismo retórico e propõe, em seu lugar, a dialética. Nesta, a linguagem e seu uso são determinados pela idéia de Bem, fazendo do discurso algo de Belo. Na metafísica, a linguagem não é só nosso maior Bem como idéia, mas também a realização do Belo ideal. Seria muito bom que o ensino da gramática e da teoria literária começasse pelo estudo profundo e apurado deste diálogo. Para quê? Para sairmos definitivamente do formalismo vazio em que se transformou o seu estudo. Mas isso seria só o início, porque a proposta de Platão não é o caminho para sair da metafísica, pois nesse diálogo ele a aprofunda, embora conclua o diálogo mostrando que o estudo e uso da retórica/língua só se realiza quando tem por objetivo o Bem e o Belo. Se pararmos aí não saímos da metafísica. Por quê? Porque o ente e o ser da metafísica, como Bem e Belo, são universais abstratos. E o que seria o ente e o ser não abstratos? O ente e ser concretos. Pela concretude não se chega nem ao niilismo nem à dissolução do ente como gota de água no mar indefinido.
Como? Qual é a questão em questão? Sempre a mesma: A tensão e referência ente/ser. A resposta de Platão se dá no esquecimento do ser/physis e na construção de um ser dos entes por abstração do sensível e baseado apenas no inteligível. É essa dicotomia que em primeiro lugar temos de abandonar. Tanto o sensível como o inteligível é. Tanto o corpo como o espírito é. Onde queremos chegar? Onde já sempre estamos e para onde já sempre caminhamos: para o que Heráclito já nos assinalou no seu fragmento: “Auscultando não a mim, mas ao Logos, é sábio dizer com: tudo é um”. Em que consiste este “tudo é um”? Auscultemos e pensemos.
1º. Existe o ente; 2º. Existe o ser do ente; 3º. Existe o ser dos seres dos entes. Existe o ente e existem os entes. Mas os entes não são todos abstratamente idênticos. Cada ente é um ente. Falar dos entes pode ser em dois sentidos: a) os entes só são entes enquanto diferenças concretas; b) os entes enquanto denominação geral é uma abstração metafísica. Na medida em que cada ente é singular e diferente, pressupõe o ser do ente. Contudo, tanto o ser como o ente não podem aí ser tomados em sentido substantivo, mas verbal, porque o ente é o particípio presente do verbo ser, o que está sendo. Por aqui podemos notar facilmente que se o ente é ente sendo, como tal é e não é. E não é porque não é o ser, pois o ser não é. Mas por outro lado devemos também afirmar que no ente o que é, antes de tudo, é o ser. Segundo a gramática, o ser, enquanto infinitivo, implica: o passado como presentificado, o presente presentificante e o futuro como presentificável. Portanto, o ser no infinitivo implica os três tempos, onde o presentificante e o presentificável vigem e vigoram como o velado desvelante e velado do ser. O ente, enquanto sendo, ainda não é o velado, senão nem poderia estar sendo, já teria sido. O “não” indica claramente aí o velado de toda physis/ser. É o que nos lembra Heráclito no fragmento 123: physis kryprestai philei: a physis ama velar-se.
Contudo, cada ente-sendo tende (philei) ao ser, ou seja, ao desvelamento total do que nele ente/sendo está velado, consumando o presentificante e o presentificável como presentificado. Assim sendo, podemos considerar o ente só como passado, o já presentificado. Ocorre que isso não é possível, por um motivo muito simples: o ente implica limite e não limite. Consideremos o ser do ponto de vista do tempo: há o infinitivo, ou seja, o que coincide com o tempo como tal sem limites, sem marcações temporais de passado, presente e futuro. Porém, fique claro, o tempo como infinitivo não é algo gramatical. A gramática já é uma interpretação do tempo, porque cada língua já é e só pode ser língua da linguagem. Por isso, a apreensão gramatical do tempo varia de língua para língua. O tempo é o próprio ser, ele precede todo ente. Só somos entes porque já nos movemos e somos no tempo/ser. Santo Agostinho disse no livro XI de As confissões: Se não me perguntarem sei o que é o tempo. Se quiser explicar não sei. As formas finitas mostram modalidades do tempo infinito, na medida em que há uma correspondência, o homolegein de Heráclito, entre os “limites” (finis/limite) do tempo e do verbo (o ser em ação e manifestação como linguagem: eiro/rhema, conforme já vimos). Mas o que caracteriza o ser infinito-verbal é não ter limites, e, por isso, ser, ao passo que o ente surge quando se dá o tempo e seu ser como modalidades finitas: este ente, aquele ente, eu, cada um de vocês. A apreensão do ente, tanto verbal como ontológica, se dá na eclosão do ser nos limites. Porém, estes limites só são diferenciados tanto pelo tempo como pelo ser e não a partir do ente como tal. De tal maneira que os limites instituem a diferença do ente em referência ao ser e em referência aos outros entes. Neste caso, a diferença configura o ente como diferença tanto do ponto de vista ontológico – o ente não é o ser – como do ponto de vista dos limites: este ente não é aquele ente, eu não sou vocês. Por isso, devemos dizer que o limite só diz o que é na medida em que de-limita o que não é. Mas este não-é tem um duplo sentido: não é o ser e não é o outro ente. Por outro lado, o limite é ambíguo, porque, na realidade, nós não vemos primeiro o limite para depois “ver” o ser e o “outro ente”. Só vemos o limite a partir do que cada ente é. Mas como cada ente não é clone um do outro, porém, eles, concretamente, se diferenciam, devemos dizer que a diferença em que consiste cada ente lhe advém da diferença como diferença, que é sempre, queiramos ou não, o ser. Este ser-ente, aquele ser-ente e mais aquele ser-ente são diferentes como entes e como ser. Mas para que cada ser-ente seja diferente é necessário que o ser dos seres-entes seja também diferente concretamente e não apenas abstratamente, porque este por ser justamente abstrato nunca pode fundar diferenças concretas, só idéias e conceitos universais abstratos.
Por isso, quando o ente-sendo se presentifica como passado e só como passado, ele deixa de ser ente, pois não está mais sendo, ou seja, surgiu a morte, a impossibilidade de todas as possibilidades como posse de limites.. E a partir dela, por outro lado, não se pode mais falar de passado nem de presente nem de futuro, porque passado é o que passou. Esta é a visão metafísica do tempo e do ser. Por quê? Do ponto de vista do ser não podemos dizer que passou, porque o ente vige como presentificado, como memória. O passado gramatical não indica, pois, aí a verdade ontológica, o presentificado como o desvelado. Não se percebeu que houve aí uma inversão metafísica. Falar do tempo como passado, presente e futuro só é possível a partir do infinito/ser/physis. Quando se cumpre o ciclo, não passou. Pelo contrário, volta ao infinitivo/ser. Pois se não fosse isso nem se poderia identificar (identidade) o passado com o presentificado. E nem haveria memória. E aí acontece algo interessante. Quando se cumpre o ciclo, a volta para o que desde sempre já somos como ser, e o ente/sendo reingressa no infinito/ser, ele, como tal, se presentificou como este e aquele ente. Mas como não é mais ente, porque não está sendo, ele se presentificou como este e aquele ser no infinitivo/ser. E aí nossa tendência é achar que se dá uma dissolução no infinito/ser, a gota se perdendo no mar. Pois não é mais possível de-limitar o ser de cada ente, porque deixou de ser ente-sendo-limites. Contudo, pensemos com desvelo o que se desvela e vela, mas não desaparece: se eu como ente, cada um de vocês, se diferencia do ser e se diferencia de cada outro ente-ser, significa que cada ser-ente só pode ser cada ente-ser porque se funda na diferença, tanto em referência ao ser como em referência aos outros entes-ser. Por que então achar que a consumação do que cada ente é telos, em grego, deve consistir numa dissolução indiferenciante, num ser indiferenciado, se o que cada um é não lhe é dado pelos limites, mas pelo tempo-ontológico como doação do ser, que, para simplesmente ser, só pode ser a diferença das diferenças, embora se faça presente no presente com que presenteia cada ente-ser. Como se daria então a referência ser (não-mais-ente) / diferença como referência ao ser e como referência aos outros seres-não-mais-entes? Uma coisa fica clara. Cada ser-ente e cada ser-não-mais-ente é sempre uma doação do ser. Daí que o ser que doa só pode doar a partir da sua riqueza e não e jamais a partir do niilismo ou do ser como uma abstração generalizante. Não é esse o ser que Heráclito nos convida sempre a pensar, quando diz: “tudo é um”, indicando esse “tudo” riqueza de doação e plenitude?
O mito pensou este ser das diferenças como diferença na palavra “genos”. Dela se originou hoje a palavra genética. Esta pensa o “genos” como código, na linha metafísica, e não como linguagem de ausculta e identidade de diferenças. E se coloca a questão do clone. Clones nós já somos desse código comunicativo que teima em anular as diferenças. Mas há diferença no clone? Clones sem diferenças só aqueles de Matrix, mãe não originária, onde há sujeitos-virtuais aparentemente diferentes. Mas a tais “entes virtuais” faltam cinco dimensões fundamentais indissociáveis: memória, tempo, poiesis, ethos e sophia.
O que normalmente chamamos de memória ou lembrança é identificado com o passado. Mas se é memória não é passado. Pelo contrário, vige como memória e a qualquer momento se pode tornar presente. “Momento” e “presente” mostram a vigência do ser do ente e não algo passado. A denominação aí de passado é um equívoco gramatical que não leva em conta o aparente passado como ente-ser ontológico. Por outro lado, quando se olha o passado do ponto de vista do infinitivo – a memória do ser – pode-se perceber perfeitamente que o passado integra o presente e o futuro. Por isso o ser/infinitivo como memória ontológica é o que foi, o que é e o que será. Daí podermos dizer que a linguagem – e eis aí o equívoco gramatical ao ler linguagem do ponto de vista da gramática e não do ser – é a memória como logos. Ao ser a memória como logos é que ela e ele podem, no plano ontológico, reunir o que se vela e desvela no depor e propor como reunião no que se diz e cala. O que se diz, sempre referido ao passado, ao presente e ao futuro, pressupõe o infinitivo, o ser, a physis, a poiesis, na medida em que é linguagem e não língua, porque o infinitivo vigora ao mesmo tempo na língua e na linguagem. Podemos notar que, no infinitivo, tempo e linguagem coincidem e são manifestações da poiesis da physis/ser. É necessário começar a pensar a gramática do ponto de vista da linguagem/tempo e não o tempo/linguagem do ponto de vista da gramática.
Por outro lado, a tensão entre infinitivo e finitos, o presentificado, o presentificante, o presentificável, é que é o horizonte de nossa identidade. E esta se dá como diá-logo, na medida em que este implica tanto o plano do ente como o plano do ser. Porém, de novo, não é porque falamos que construímos o diálogo, mas porque já somos diálogo é que podemos falar. Uma fala que não pressupõe ouvinte, nem que seja como ausente, é impossível. Por isso, o diálogo como identidade perpassa todas as tensões do que é inerente ao ente, ao ente-ser e ao ser. Porque o ser como infinitivo é que é a fonte originária das diversas falas, na medida em que é a fonte como verbo, no infinitivo, das diversas possibilidades dos entes, pois estes e só estes se dão nos tempos finitos. Daí a aparente facilidade de definir o que é identidade. Mas ela é ambígua, porque se move ao mesmo tempo e necessariamente no plano do ser e no plano dos entes, assim como o verbo se move no tempo infinitivo e nos tempos finitos.
Disto decorre que a questão do finito só aparece como finito, essencial e inapelavelmente, como sendo ente e ser, ou seja, finito e infinito. Disto resulta que, fundamentalmente, o que somos, somos sempre como língua e linguagem, somos sempre como eu e outro, somos sempre como co-letividade originária, somos sempre como proximidade, onde esta é a memória infinita vigorando. E, como tal, diz respeito a cada um, ao outro, ao presentificado, ao presentificável, a todos os povos. Queiramos ou não, a linguagem é o nosso maior bem. Em que sentido? No da identidade e diferença em relação ao que cada um é, ao ser de cada um, ao ser dos seres. A linguagem é o nosso maior bem, porque é ethos. Ethos é morada, Casa do Ser: nosso maior bem.
Conjugar um verbo é, pois, conjugar identidades e diferenças. Até porque o verbo é o dizer da physis/ser enquanto tempo. E isso é poiesis, porque poiesis é a essência do agir como tempo da physis/ser.
Só porque a linguagem é tempo e ser é que ela pode ser estudada e usado como conhecimento e informação, ou seja, instrumentalmente. Mas aí já se esqueceu o que ela é essencialmente. E na medida em que a linguagem é ser e somos a linguagem, se a usamos apenas como comunicação instrumental e não ontológica, estamos fazendo de nós instrumentos, transformando nossas relações, nossas ações, nosso ser, nossa identidade em instrumentos-objetos, acentuando o seu caráter técnico, objetivo, formal, dentro do conjunto de objetos disponíveis em que se transformou nossa realidade virtual-representacional. Escutar e obedecer à linguagem ontológica é a condição para construirmos um real e um ser humano poéticos.
Na memória da physis/ser como poiesis não há dissolução, não há aniquilamento. Há o mistério sempre desafiante da diferença como diferença, ou seja, da identidade não formal nem gnosiológica das diferenças, mas concreta e ontológica. Devemos proclamar concretamente a riqueza do desvelar velante cotidiano das diferenças, mas sem negar, porque velante, a identidade originária das diferenças. Parmênides o pensou como “o mesmo” de einai e noein. Heráclito como o “polemos!” de todo Logos. Heidegger como a “proximidade” do acontecer (Ereignis).
O ser, portanto, é doação, presentificação. O que é esta doação nós a experienciamos em nós mesmos. E só cada um se pode experienciar e dizer-se linguagem/ser, nosso maior bem como escuta. Mas o ser humano, porque é dizer-com – no dizer de Heráclito, homolegein –, pro-cura sempre compreender e dizer o que é essa plenitude de doação. É realmente o único penhor de todas as nossas ações, pelas quais, sendo, poderemos ser o que somos: felizes.
Dou quatro exemplos dessa pro-cura. O primeiro é do próprio Heráclito, no fragmento que serviu de questão para esta Aula Inaugural. Ele só nos pode convocar à escuta do Logos e não dele, porque ele já experienciou essa escuta – não sabemos como, porque ele não o diz. E como ele a assinala? Neste fragmento misterioso, que venho repetindo desde o início desta aula, como o que nos convoca a pensarmos o a-ser-pensado: “Auscultando não a mim, mas ao Logos, é sábio dizer-com: tudo é um”. Como nós entes, sendo necessariamente isto e aquilo, podemos enunciar senão por ausculta do extraordinário o “um é tudo”?
O segundo exemplo nos vem de Platão no “epos” da caverna. O homem acorrentado às sombras da caverna se desprende. E por que se desprende? Porque pro-cura o que já é. Caminha o caminho do ser, nosso maior bem. Ultrapassa o mundo das sombras e adentra a clareira e começa a ver o que cada um é na e pela luz do sol. Nessa luz pode até ver a noite estrelada. E aí vem a experienciação do extraordinário: ele só não pode olhar o que não pode ser olhado, fonte de todo ver e luz: o sol. E aqui temos o drama da metafísica e de Platão. Este volta à caverna para anunciar a verdade que ele viu: o eidos dos entes por debaixo e além do sensível e aparente como sombras. Ele vem anunciar a boa-nova: o eidos/idéia como verdade do ente. Mas o que devia, de fato e realmente enunciar e proclamar, ele cala, oculta e esquece: a não-verdade dessa verdade. Qual? O que ele não viu e só experienciou porque não pode ser visto, nem conhecido, nem dito: o Sol. Por isso a verdade da metafísica, da gramática e da teoria literária silencia e oculta o sol, o que não pode ser visto nem dito: a linguagem.
O terceiro exemplo nos vem de Guimarães Rosa, quando poeticamente tematiza o ser humano no conto “Nada e a nossa condição”. Para o personagem Man’Antônio, ao final de seu trânsito de volta para a Casa da Linguagem, o ser, deu-se a morte. E então de noite, a Casa-linguagem, onde era velado, se incendeia por si. E ele e a Casa e tudo em redor e a montanha queimam num fogo misterioso. A importância deste exemplo está em que a morte, morada do Nada, se transfigura nesse fogo misterioso.
O quarto exemplo vem de Drummond. Trata-se do poema “A máquina do mundo”, do livro Claro enigma. Ele faz a experienciação do extraordinário como claro enigma. E só o pode fazer porque já se move nele e a partir dele. No fim da tarde ,caminha para a noite até entrar na “escuridão maior vinda dos montes e de meu próprio ser desenganado”. Este entrar nele como escuridão maior interna e externa se dá como pro-cura do extraordinário, uma procura intensa e persistente, tanto que diz: “ ... para quem de a romper já se esquivava / e só de o ter pensado se carpia”. Mas de repente, da mais profunda escuridão, “ a máquina do mundo se entreabriu”.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
Sem emitir um som que fosse impuro
Nem um clarão maior do que o tolerável.
.................................................................
E o Logos lhe fala:
“O que procuraste em ti ou fora de ti
...........................................................
Olha, repara, ausculta...”
O extraordinário se desvela e ele ausculta o logos. Qual é a reação, como ente, diante de toda essa doação?
Mas como eu relutasse em responder
A tal apelo assim maravilhoso,
..................................................
Baixei os olhos, incuriosos, lasso,
Desdenhando colher a coisa oferta
Que se abria gratuita a meu engenho.
..........................................................
E a máquina do mundo, repelida,
Se foi miudamente recompondo,
Enquanto eu, avaliando o que perdera,
Seguia vagaroso, de mãos pensas.
Fica a indagação: Perdeu ou ganhou? A experienciação da linguagem como nosso maior bem não pode ser ensinada nem transmitida, porque é ethos. O que cada um é só pode ser experienciação a partir do que cada um é. E nem é decisão de cada um. É uma doação para a qual somos convocados pela ausculta. Mas a ausculta também nos é dada. Diz Hölderlin:
O mais perigoso de todos os bens foi dado ao homem: a linguagem...
Para que ele testemunhe o que ele é...
A linguagem é nosso maior bem, mas também o mais perigoso. Por quê? Porque podemos viver em errância em meio aos entes, à posse disto e daquilo cada vez maior, querendo ter conhecimentos sem ser o que se conhece, em meio às vivências estéticas, ao uso desse bem maior como simples e mero instrumento de comunicação. Nisto consiste o perigo. Perigo tem o mesmo radical de “peras” grego que significa “limite”. Que limite? O do ente, o das relações intramundanas dos entes, o afã em torno dos entes e da posse deles e não do ser. E então a voz de Hölderlin se une à de Heráclito, quando nos convoca à ausculta do logos. Porque podemos escutar só o outro logos, o dos entes, o da fala da língua. Então, nessa redução e esquecimento, ela se torna o mais perigoso dos bens, porque só há um bem, um penhor em nossas ações, o ser que se dá: linguagem. Nesse bem maior e com esse bem maior só nos podemos comunicar se na e em toda comunicação formos mais: testemunharmos o que somos: linguagem/ser, poiesis/ethos.
A poiesis tem um estranho caminho no ocidente, porque ela foi esquecida e silenciada pela metafísica. Por isso a teoria literária e a estética bem como a poética aristotélica não falam de e a partir da poiesis. Falam a fala da metafísica e, por isso, é uma fala da ciência sobre a poiesis. Onde está o estranho e contraditório? É que poiesis nunca, jamais significou expressão lingüística, não é uma expressão da língua. Isso a música prova largamente, como outras artes. Por que então se identifica o poeta como aquele que escreve poemas numa língua, se expressa a partir da língua, tem o trato com a língua? Isso é um equívoco desastroso. Poiesis diz essência do agir como ethos ligado à physis/ser, é o pro-duzir e desvelar da physis/ser enquanto se vela. Quem nos diz isso? Platão, e no diálogo O banquete, cuja temática é o amor. “Todo deixar-viger o que passa e procede do não-vigente para a vigência é poiesis, é pro-dução” (205 b). Por isso afirma Heidegger: “Também a physis, o surgir e elevar-se por si mesmo, é uma pro-dução, é poiesis. A physis é até a máxima poiesis” (Heidegger, 2002: 16). Esse equívoco desastroso é devido à tradição metafísica da gramática, da retórica e da poética aristotélica, na tradução para o latim. Mas o fundo é sempre o mesmo: a interpretação metafísica do ser/physis como on/ente e a partir do ente. Platão o interpreta como “eidos”, Aristóteles o configura em três causas, na Idade Média em quatro: material, formal, eficiente, final. Ao traduzirem para o latim o tratado de Aristóteles sobre as obras poéticas: Peri poietikés technés, ocorreu o seguinte: esqueceram que o principal e decisivo, conforme Platão já o afirmara em O banquete, é a poiesis. E optaram pela techné, pelo conhecimento, ao traduzirem-na como ars, artis. Vejam a ironia, o ocidente estuda a arte, num tratado de poética, como techné e não como poiesis. Por quê? A physis/ser se diz: logos/linguagem. A essência do ente, o ser se diz: logos/linguagem. É o enunciado. E a sua fala, a sua manifestação como verdade se diz: logos, fala, enunciação. Portanto, o ente é um enunciado/logos/idéia/essência e sua expressão, a enunciação/logos/língua/proposição. Já vimos, na proposição gramatical e retórica o verbo/ação/poiesis foi esquecido e silenciado, porque a ação como tal vinha do sujeito-on-essência e não mais da physis/ser/logos/poiesis. Mas o sujeito-on-essência se funda no logos como enunciado e enunciação. Na tradução, deu-se a junção de Platão e Aristóteles. As obras poéticas são entes. Mas cada ente se compõe de matéria e forma. Matéria é o tema, a idéia, o enunciado, e forma é a enunciação, o estilo, a expressão, o gênero. A obra poética ou agora artística é vista como techné ou conhecimento da composição artística, na manipulação da linguagem como matéria e forma, enunciado e enunciação. Por isso se fala de arte e não de poiesis. E o que se denomina poesia – metafisicamente – nada mais tem a ver com a essência do agir, como essência de Hermes/eiro/verbum, enquanto vigor do sagrado, que é a physis/ser. A poiesis como o máximo do agir da physis/ser, em desvelamento e velamento, é lida metafisicamente, como causa eficiente aristotélica-medieval e moderna, que é o sujeito-poeta. O esquecimento e silenciamento procede de abstração em abstração. Não se fala da poiesis das obras. Falam-se e ensinam-se abstrações. Os conceitos da teoria literária e da estética são abstrações que nada mais têm a ver com o vigor da poiesis em cada obra poética, só com a techné sem ethos. Mas para que techné sem poiesis e ethos? Para que conhecimento sem sabedoria? Para que fala sem linguagem e ausculta, como há dois mil e seiscentos anos nos fala o apelo de Heráclito?
Estamos aqui reunidos. Reunir se diz em grego legein. Também significa dizer. Em latim, dizer é legere. Legein e legere dizem o mesmo. Dizer o mesmo ou com, ou em união, Heráclito, no fragmento que nos serviu de pensamento, reflexão e ausculta, o nomeia: homolegein. O legere latino formou em português as palavras: ler, colher, escolher, acolher e recolher. O homolegein de Heráclito é, pois, um estar junto na escuta para ler, colher, acolher e recolher no recolher-se na escuta do que somos, da linguagem, de nosso maior bem. Isso só será possível se não escutarem a mim, mas ao Logos. Porém, o verbo legere ainda forma uma outra palavra em português que assinala a linguagem pela qual e a partir da qual estamos aqui reunidos. E a Faculdade de Letras, o curso de Letras pode e deve se tornar não só um curso, mas a acolhida e colheita de recursos nos diferentes discursos ao longo do curso, como percurso não só de conhecimento, mas sobretudo e fundamentalmente de poiesis da sabedoria, para sermos linguagem/ethos, logos, nosso maior bem. Que palavra é essa? Co-letividade, do latim, cum-legere, em grego, homo-legein. Uma co-letividade não pode ser um simples aglomerado de pessoas sem sentido em seu agir, em sua poiesis. A coletividade só vai existir quando a reunião se fizer como homolegein: o estarmos reunidos e juntos e em comunidade, em coletividade para a escuta do logos: a linguagem/ethos, o nosso maior bem.
A physis/ser é o maior de todos os mistérios. Ao se destinar e doar na riqueza impensável dos entes sendo como linguagem e poiesis, ela se faz mundo. O mundo é da physis/linguagem/poiesis não do homem. Quando o ser humano produz algo, ele o faz a partir da physis, que lhe dá a possibilidade de agir e de produzir isto e aquilo, em que um tal agir se efetiva, realiza, e assim se constitui mundo como linguagem/ethos. O mundo é uma doação da linguagem. Porém, agora, aqui, faço uma pergunta. De todos os entes em que a physis se destina como linguagem e poiesis, em qual ela se dá em seu grau máximo? Na árvore, na montanha, na luz, na casa, no homem? Em qual? Nele, a physis deve, em sua poiesis máxima, não apenas originar mais um ente, mas originar o próprio mundo como linguagem/ethos. Em qual? Mas cabe esta pergunta? Para mim cabe, e me ocorreu numa passagem de Grande sertão: veredas, desde que o li pela primeira vez. Faz muitos anos. Eu a trago para vocês. Narra:
“Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me despedir: - “Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar!...” (Rosa, 1968: 353).
A linguagem é a mãe de todas as línguas. A mulher é a mãe originária de todos os seres humanos. Physis/ser/poiesis: linguagem/mulher.
Mulher/linguagem, onde o extraordinário da physis/ser se destina como mundo em poiesis originária, sua plenitude de mistério. Mulher/mãe, ente/ser: linguagem/ethos.
Estamos aqui reunidos pela linguagem. Evoquei a palavra de Heráclito como palavra de ausculta da sabedoria, da linguagem, do logos, nosso maior Bem, porque ethos do ser. Ele é um pensador. Auscultemos agora o poeta, pois ele também nos convida à escuta do silêncio, para que nesta Faculdade de Letras se unam pensamento e poesia, na demanda de nosso maior bem: a linguagem. Para que “todos em comunhão, / mudos, saboreando-a”, sejamos inaugural e co-letivamente: a linguagem. Só em co-letividade e como co-letividade a linguagem é nosso maior bem, porque somos, essencialmente, uma dia-logo de e pela Palavra. É o que nos diz como poiesis, Carlos Drummond de Andrade:
A palavra
Já não quero dicionários
Consultados em vão.
Quero só a palavra
Que nunca estará neles
Nem se pode inventar.
Mais Sol do que Sol,
Dentro da qual vivêssemos
Todos em comunhão,
Mudos, saboreando-a.
Gratos pela presença e paciência.
Manuel Antônio de Castro.
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