15 junho 2006

Ação e função



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O silêncio proposital dá a maior possibilidade de música.
Se viemos do nada é claro que vamos para o tudo.
O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber.
(ROSA, João Guimarães. Tutameia. Rio, José Olympio, 1967, p. 12)


Talvez a melhor maneira de chegar a entender o que é função, sistema e estrutura seja pensar o mito. Não que neste não haja isso, mas entram algumas questões que mudam completamente o seu entendimento.
Há uma ligação circular entre sistema, função e estrutura. Aqui a ordem poderia ser inversa: estrutura, função e sistema. Mas como ocorre aí a relação entre esses três vocábulos. E seriam apenas vocábulos? Seriam palavras ou antes proposições que se estruturam em torno de conceitos? Onde o conceito leva à proposição e a proposição leva ao conceito. E pode haver proposição e conceito sem palavra e sem questão? Nestas perguntas já nos estamos movendo na questão do método. Mas que o próprio decorrer do ensaio mostre como se o método.
Tanto a ação como a função podem ser entendidas em três sentidos, mas não serão sistematicamente desenvolvidos aqui. Eles estão relacionados aos três telos. Porém , o que interessa agora é fazer logo a distinção entre relação e re-ferência. Esta distinção é que nos permite ver mais claramente a di-ferença entre as di-ferentes ações e funções. VER DEPOIS.
A melhor maneira de notar e entender as diferenças entre sistema, função e estrutura é pensar o mito e suas questões. Para tanto é necessário que nos abramos para o sentido do mito sem o pré-julgar dentro desses mesmos sistemas, funções e estruturas, pois, em geral o mito já está classificado dentro dos conceitos e não se olha nem se vê o mito como questão, ou seja, no que ele é.
Olhemos o mito sob a ótica do tempo, mas encarando a este como questão. Em geral, de acordo com o sistema de conceitos, o mito não se encaixa no conceito de tempo cronológico. Isto se virmos o mito em quatro instâncias correlatas: tempo, ação, linguagem e memória.
Para entender o tempo do mito não podemos lançar mão do tempo cronológico, mas temos de entender o mito no que se diz normalmente como tempo circular. Mas o que seria o tempo circular? Do ponto de vista crono-lógico, linear, proposicional e conceitual, é impossível entender o tempo circular, pois ele não é lógico, seria no máximo, um círculo vicioso, pois não dá para entender um tempo sem causalidade que possa explicar de antemão o que virá depois etc.
No tempo cronológico há causalidade, linearidade, fundamento, explicação, análise e um fim para onde o tempo, linearmente, caminha, se desdobra, se ex-plica. Hà um sistema interligado dentro do qual as partes entram num funcionamento, o do sistema. É nesse sentido que podemos entender as partes, o todo, a função, a causalidade. Algo causa algo. E este algo que causa algo é o fundamento. Ao mesmo tempo vemos que para haver causa, linearidade e finalidade para o qual o sistema funcionando caminha e tenta realizar, movido pelas causas ou pela causa, esta se torna o fundamento. O fundamento, a estrutura e o sistema agem na medida das funções ou as funções são funções agindo tendo em vista o fundamento? Este fundamento vai ser interpretado dentro de uma perspectiva essencialista, ou seja, o fundamento que é a matriz do agir. Este agir é ao mesmo tempo funcional e tende a um fim. Perceber e compreender o funcionamento do sistema enquanto estrutura é apreender e compreender como agem as causas, ou seja, a estrutura dentro do telos.
Vejamos o mito. No mito não há um tempo cronológico em que se busque um fim inerente a uma essência. Não há essência. Há um princípio, mas não causal, onde o fim é o princípio atuando, por isso o tempo é circular, pois há ação. Tempo é aí a própria ação agindo. Como diz Aristóteles: Pasa praksis agathou tinos ephiesthai dokei: em toda ação vive um empenho por algum bem. Este bem é o telos. Mas qual é o telos no mito? É aí que entram as outras questões. Já vimos que tempo é o próprio agir, mas não é um tempo cronológico que seria portador de um sentido a partir do fundamento enquanto causa, o fundamento causa o agir. Então de onde vem o sentido no mito uma vez que não há fundamento nem causa? O sentido deve estar no próprio tempo, no tempo circular. Mas o tempo só é tempo na medida em que dês-dobra algo, manifesta algo, senão como ver e perceber e compreender o tempo? Mas perguntar pelo sentido é perguntar pela linguagem. E o que é então a linguagem? É a ação com sentido, ou seja, a póiesis. Na medida em que a ação age é póiesis e esta é póiesis na medida em que se faz linguagem. Para ter sentido deve na multiplicidade do agir não se dispersar, não ser caótico, na ser disperso, mas ter unidade. Unidade é o sentido do agir enquanto linguagem. Se bem notarmos a unidade de alguma maneira diz o permanente, o que na dispersão do manifestar-se, póiesis, já traz em si a permanência como unidade que faz permanecer o que se manifesta. A linguagem em si não é a ação, mas a permanência de alguma maneira que foge ao impulso do agir, da póiesis. Há, pois uma disputa entre póiesis e linguagem, mas uma não vigora sem a outra. A unidade e permanência da linguagem se mostra facilmente pelo fato de que ela percorre a realidade não só em extensão (a linguagem é válida para diferentes espaços, estes são abarcados por ela) mas também em diferentes tempos (a linguagem é valida para diferentes tempos na medida em que posso ser e compreender o que foi realizado há muitos anos e até a há milênios, como é o caso de todas as criações de povos que se perdem na bruma dos tempos ou, por exemplo, as obras de Sófocles). Porém, essa permanência pode ser entendida de duas maneiras: ou conceitual ou como questão. O conceitual vai ser a linguagem instrumental, ou seja, onde a linguagem entra dentro de um sistema causal e funcional. Entender aí a linguagem é entender o sistema, a função e a estrutura (essencialista ou lógico-funcional-proposicional-fundamental, ver aqui os três conceitos de coisa).
Porém, pode ser entendida de outra maneira. Basta ligar a linguagem com a memória. O que é a memória? Esta é o cuidado da unidade, mas ela como cuidado não se reduz a conceitos nem a causas. Ela é o tempo como sentido, ou seja, póiesis. Por isso no mito, a memória vai ser a que foi, é e será. No entanto, esta é a própria realidade enquanto real das realizações. O fim aí é o princípio, na medida em que o princípio já é o fim, ou seja, o tempo circular. Na realidade, princípio e fim, e fim e princípio são o mesmo, mas não são a mesma coisa.
A tensão entre póiesis e linguagem se dá concretamente na estrutura. Aí podemos entender estrutura de duas maneiras: como organização e como corpo. É nesta distinção que se decide essencialmente a di-ferença e re-ferência entre função e referência. Na relação, o corpo está em função da organização, do sistema enquanto faz estes funcionarem tendo em vista o próprio sistema, sem levar em conta o corpo. Corpo é a com-figuração de algo tendo em vista o que é enquanto identidade e não mera organização, ou seja, não se reduz a ter uma função dentro da organização. Por outro lado, o corpo não é algo isolado dentro de um sistema, de uma organização e de funções na rede, na teia da vida, ou seja, do segundo telos. Não. O corpo vive a re-ferência de póiesis e linguagem, de tempo e memória. A estrutura diz aí não o sistema de sustenção das funções que, circularmente, compõem o sistema. Há aqui um agir cujo telos está fora e longe e alienado do primeiro telos e, automaticamente, do terceiro, porque está separado e isolado mero funcionamento da organização, do sistema. Tudo aí se determina pela função e não pelo primeiro e terceiro telos.
No mito, não há essas funções, porque o agir da póiesis está em vista do princípio, ou seja, do primeiro telos e tende a atingir o terceiro telos, ou seja, a plenitude do agir do princípio no fim. Podemos notar que este agir da póiesis como linguagem enquanto princípio e fim se dá no ritual.
O que é o ritual? Se bem notarmos é o que é no como é, mas em que este tem por fim, por telos, realizar o princípio enquanto comemoração. O rito não representa nada, não lembra nada, não encena nada, não busca nenhuma explicação, nenhuma causa, nenhuma fundamento. É puro comemorar, é total realizar. Também não há separação entre os três telos, nem separação entre figura (estrutura como função, mas em vista do terceiro telos, onde o funcionar é “o como “ de “o que é”, mas tanto da figura como da configuração em que cada povo acontece. Num tal acontecer acontece tudo e nada, pois o circular do tempo, póiesis, linguagem e memória nasce de nada e volta ao nada. Mas neste percurso e discurso do tempo enquanto póiesis e linguagem em que se dá a memória se presentifica ao mesmo tempo o presentificado e o presentificável, onde não causalidade e nem há fundamento, mas o acontecer acontecendo no seu tornar-se presentificante e em seu retrair-se nulificante, ou seja, no kryptestai de que nos fala Heráclito no framento: 123: physis kryptestai philei.
Mas o que é este philei?
Philei diz o próprio e enquanto o próprio é aquilo que sendo apropriado nos afeta, pois somos afeiçoados pelo poder e vigor do que é próprio. Ser afeiçoada é apropriar-se do que é próprio. Amar é apropriar-se do que é próprio. Mas o que é o próprio para que por ele sejamos apropriados? Ser e apropriar-se nos projetam para a essência do tempo.
Diz-se que no mito o tempo se dá essencialmente como círculo. Que círculo é este? E por que o mito e a poiesis se movem no tempo circular? Só pode haver um circular se há tempo. Que tempo é este que se dá como círculo? Devemos ter consciência de que o tempo – como questão que é – não se esgota na sua experienciação como círculo. É que o tempo como e enquanto círculo acontece poieticamente e por mais que o poiético nos lance no ser jamais este se esgota em todo agir poiético, simplemente porque sendo a fonte nada pode esgotar ou ser mais fonte do que a fonte. É que só o Nada pode ser fonte. Por ser Nada é que tudo nela e nele principia e se plenifica.
Numa primeira instância chama-se apropriadamente um tal círculo de círculo hermenêutico, mas jamais pode ser confundido com o círculo da consciência e da razão, não é e jamais pode ser epistemológico. Como pode a consciência ser consciência de algo que previamente não se tenha mostrado e dado como possibilidade de dele termos consciência? Se a consciência começa o Nada principia, pois por poder estar sempre principiando é que ele se pode dar na e como consciência. É nesse sentido que se há póiesis e há e só pode haver, por outro lado toda póiesis se funda no Nada, onde este Nada não pode ser apreendido e compreendido a partir do que já se poietiza ou poietizou e em relação ao qual podemos julgar que houve algo ou não e aí falarmos de niilismo. O que se poietiza ou poietizou só é possível porque não cessa de principiar e o que não cessa de principiar é o Nada, de onde se conclui que o Nada não é e não sendo é a possibilidade de todo é sendo como fonte e princípio de todo ser, ou seja, de toda póiesis e tempo. O tempo em sua essência essencial é Nada, é não-poiesis. É este o âmbito do acontecer no qual só acontece na medida em que sendo Nada é nada do Nada embora devamos também dizer que enquanto é é o Nada sendo, mas enquanto é não pode ser o Nada, pois senão deixaria o Nada de ser Nada do é. A aparente contradição em que nos movemos não é contradição é o círculo em que se circula no entre é e Nada. Esse entre é o vigor do círculo circulando pelo qual tanto mais quer ser ser e tanto mais não podendo ser o Nada quer ser Nada e por isso mesmo quer não-querer, quer não-agir, quer não-poiesis, quer Nada.
Quando se fala em “entre” não é uma escolha, é uma necessidade dupla, a duplicidade que ele nos solicita assim como toda afeição, todo amar. Podemos e devemos amar o é, mas ao que nos afeiçoamos, isto é, o que nos solicita, atrai e projeta na afeição não vem de nosso querer, mas do que em todo querer queremos. O que no querer queremos é o que na afeição afeiçoa. E o que nos afeiçoa não pode ser o ser que sempre é, só pode ser o que principia, o que na afeição afeiçoa, o princípio.E o principiar de todo princípio é o Nada, a não-ação, o não-ser. O “entre” circula e é o círculo no qual o afeiçoar e a afeição nos lançam no que nos é próprio: o Nada e o Ser enquanto o Ser e o Nada, daí o tempo circular ser ao mesmo tempo tempo e não-tempo, ser e não-ser, é o Nada. Se não fosse o “entre” esse “e” “seria” um ou outro. E aqui aparece o enigma desse “entre”, pois se não nos movêssemos nele como ainda experienciar o Nada? Não esqueçamos que ex-perienciar só é possível porque nos movemos “entre” o limite e o não-limite. Seria como sendo algo e esse algo, como por exemplo, uma gota de água, quisesse falar do Mar sem lhe pertencer e pudesse subsistir sem o Mar. Ela até pode se destacar (pois é ente) do Mar para ser uma gota, ser um é. Porém, ela sendo um é, uma gota, só in-sistindo e per-sistindo no seu elemento – o Mar – pode continuar sendo que é: uma gota do e a partir do Mar, pois o Mar como seu elemento é o seu Princípio – evidentemente não causal, pois aí o Mar não é causa de nada, mas o Princípio no sentido da sua com-sistência e per-sistência, ou seja, o Nada é e não-é a gota. Mas a gota sendo neste sendo remete para a sua proveniência: o Mar, o Nada. Claro que aqui Mar é uma imagem-questão. O que a gota pode dizer do Mar se não for já se movendo e provindo do Mar? Como a gota pode ser sem o Mar? E levando ao extremo só nos resta o abismo diante do qual nada podemos dizer, porque ainda Nada podemos dizer. Nesse sentido o próprio dizer é um “entre”. Quando perguntamos: O que a gota pode ser sem o Mar? Devemos também compreender que esse dizer (seria em alemão dichten) só pode ou não-dizer na medida em que esse dizer (dichten) já co-pertence ao Elemento, ao Mar, ao Nada. Tanto a fala, a proposição como a consciência que ela opera não fundam o Mar, assim como o “entre” não funda o Mar, mas por ser e estar “entre” é que pode se abrir ou fechar, se alienar ou reintegrar no que é Princípio: o Mar. O círculo é círculo do Mar. O tempo é tempo do Mar. A póiesis é póiesis do Mar. O rito é rito do Mar. O mito é mito do Mar. Quando Heráclito assinala que o Ser ama Não-ser, que o que se manifesta e eclode e se presentifica ama e se afeiçoa e é afetado em seu afeto no e a partir do retrair-se, um tal amar tanto mais nos atrai quanto mais se retrai – para sorte e riqueza nossa -, tanto mais é quanto mais não-é. Lançar-se nesse verbo ambíguo e mover-se no principiar enquanto entre é pensar, é poietizar. Persistir e insistir nesse entre é pensar porque “Amar é pensar” (Caeiro, poema ...). O pensar une, aproxima, restaura criando e manifestando. Amar é pensar porque no pensar a realidade acontece como Festa. “É que a festa do pensamento é criar. O pensamento só pensa quando cria diferenças a partir da igualdade no seio e no movimento da identidade” (LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar II. Petrópolis, Vozes, 1992, p. 124). Por isso, há uma referência profunda entre pensar, criar, aproximar e amar.
O hermenêutico diz que ele acontece no vigorar da figura-questão Hermes, ou seja, enquanto e como Verbo. E aí já temos o que o tempo e Hermes são essencialmente: verbo, ação, póiesis, poietizar. A physis acontecendo como poietizar e este como tempo e o tempo como círculo que circula e só pode circular enquanto verbo enquanto verbo é mito, pois mytheomai, verbo de onde provém o substantivo mythos, diz o acontecer do sagrado como verbo (dichten em alemão), ou seja, o narrar. O sagrado que acontece como mito-verbo é o tempo enquanto e como poietizar do sagrado. Eis o círculo hermenêutico. Neste círculo o mito se apropria como mito, o tempo como tempo, o verbo como verbo (Hermes) e o poietizar como poietizar e o próprio “entre” como “entre”. Neste acontecer apropriante consiste o fundar enquanto e como doar, fundamentar e principiar da arte. O doar como e enquanto presente é o ser presentificante (no duplo sentido de que se faz presente e se tornar presente como o que se doa. Presentificar-se e doar-se são um e o mesmo, pois no doar não há um transferir de algo para algo nem de alguém para alguém. O amar em que consiste o doar não doa algo, presentifica a proximidade que aproxima e diferencia, pois é no diferenciar que o amar se torna amar enquanto este realiza a presentificação do que como proximidade de diferenças nos foi doado. Amar é essencialmente dialogar pelo qual não nos comunicamos em primeiro lugar e nisso nos igualamos ou nos tornamos uniformes, mas o dialogar faz eclodir a proximidade que nos aproxima tanto do que somos como do que não somos, isto é, amar é aproximar enquanto a realização do mesmo de apropriar e diferenciar. Este só acontece quando o criar irrompe e nisso consiste essencialmente o amar). O principiar diz do poietizar como um figurar algo que se, por um lado, começa e termina, por outro, a essência do principiar não consiste nisso, mas, enquanto e como póiesis consiste no presentificar do fim a plenitude do principiar, onde não há término (daí o círculo), porque a essência do principiar é estar sempre principiando (e não e jamais começando, porque começar implica já uma concepção de tempo linear, causal, corno-lógica). Eis aí o fundar inerente ao circular do círculo poético-onto-fenomenológico, onde este “lógico” diz a presença do logos que ex-põe reunindo. Nesse horizonte, o fim jamais indica um término linear historiográfico, mas fundamentalmente o vigor do principiar em sua plenitude (o fim como término pode se perceber no rito, mas é um fim que tem seu sentido não decorrer do tempo cronológico, mas do tempo mítico e, portanto, reinstala o mito em seu vigor. Assim como um jogo, por exemplo, de futebol, não termina o jogar futebol, mas, na verdade desvelou o jogar futebol em sua verdade de poder ser jogado futebol, daí que a derrota é aparente. O que na realidade aconteceu foi uma disputa e esta só “termina” no sentido de um resultado tanto de reultados como de percurso de um tempo possível em que ele pode e deve ser “realizado”, daí que o resultado não indica um término definitivo, mas um resultado que é uma realização de uma real que sempre pode continuar a acontecer e onde os resultados como realização podem ser diferentes. E que, por ser circular, nenhuma realização esgota. Mas cada jogo é pleno em si como realização).
A plenitude enquanto realização e fim não finaliza nada, no sentido de meta e término, só a realização do jogo e seu resultado que como resultado e realização, diante da realidade é sempre provisório. Contudo, aí o fim é o sentido, enquanto o sentido implica o princípio de desenvolvimento e transformação, de plenitude e ritualização, enquanto esta configura a questão-mito enquanto e como figura. Assim o fim (telos), o sentido de toda poiesis-poietizar é consumar a atitude, no que esta implica telos e ação, para o sumo desvelamento de sua e em sua plenitude.
Então o princípio só acontece como limite de possibilidades de um mito-questão enquanto e como ritualização do rito do mito. O fim é consumar o princípio. O rito é consumar o mito. Mas este consumar jamais é terminar, porém, é consumar as possibilidades do vigor da póiesis enquanto e como princípio. O fim é o princípio e nisto consiste o círculo poético. Isto acontece como toda obra de arte.
Se bem observarmos, toda a questão para nós seres-do-entre se centraliza e acontece no “entre” mito e rito. Pensemos o mito, pensemos o rito. Quando se ritualiza um mito (quando se lê ou vê ou ouve experienciando uma obra de arte), isto é, quando o mito/obra acontece qual a atitude, isto é, nosso ritualizar visa a qual fim? É acabar, terminar, esgotar o mito? Notemos logo que o ritualizar nada mais é do que o como é do que é o mito (a não ser que seja uma di-versão estético-consumista). Mas é um como onde ele não quer dar algo fora do que o mito é e, muito menos, acabar, findar, esgotar o mito/obra. Não. Esse ritualizar, ao ritualizar o mito, ao projetar o mito no rito tem em vista num tal “como” não um acabar nem algo como o exercício de uma vontade dos “sujeitos” ritualizantes. Pelo contrário, o ritualizar enquanto “como” tem como atitude e sentido e fim o próprio mito em vigor de realidade e poder ser. Ele visa ao acontecer do mito na plenitude de suas possibilidades (que não cessa nunca de poder ser). O ritualizar principia no mito, acontece no mito e tende ao próprio mito enquanto e como o próprio do mito. O ritualizar (o ordenar poético em sua etimologia) enquanto rito figura o mito e configura no figurar o sentido do mito, ou seja, tanto o acontecer/poietizar do mito quanto o sentido e consumar do sentido e este tanto o sentido do mito quanto o do ritualizar, pois este tem sua vigência no vigor do mito enquanto seu sentido poético e, por isso, é impossível separar epistêmica ou estrutural ou logicamente um do outro. Pelo contrário tal co-pertencer-se vigora no pensar, pois este enquanto póiesis e linguagem deixa a poiesis ser poiesis, a linguagem ser linguagem, ou seja, a realidade ser realidade.
O mito não termina porque não começa. Está sempre principiando e na espera de desvelo dos que o ritualizem, dos que leiam, ouçam e vejam as obras de arte enquanto operar da verdade que as faz obras da verdade da realidade. O mito se consuma porque no ritualizar só se ritualiza porque está sempre principiando, isto é, principia o principiar do princípio, ou seja, é o verbo em seu vigor originário. Principiar é sempre poietizar na medida em que todo poietizar é sempre principiar e não e jamais começar, porque não é e jamais poderá ser reduzido ao tempo cronológico da metafísica funcional, estrutural e sistêmica. Por isso, para tal principiar não fundamento a ser procurado, nem explicação porque não há paradigma com o qual possa ser comparado ou ao qual se queira chegar, também não pode ser ensinado porque não é conceitual. Ele nos lança numa aprendizagem, a das questões em que se move sempre todo pensar. Há claro o aparente jogo da retórica, mas que se esgota em si mesmo e no seu formalismo. A retórica só se torna poética se fizer o jogo do principiar, mas então todo o que a retórica retoriciza tem seu fundamento no principiar, isto é, no mover-ser do vigor e a partir do vigor do poietizar. Toda retórica remete para horizontes que ela própria não pode plenificar a não ser que se abebere da fonte, do principiar.
Só o rito começa e termina, mas como ser começar e terminar não provém dele mas do mito, todo começar e terminar - enquanto rito – nos lançam no principiar e consumar. E é nesse “entre” que o sagrado enquanto poietizar e temporalizar nos aparece como circular. O rito enquanto figura do configurar o mito é que nos lança também na radicalidade de nossa liminaridade, de nosso “entre”, pelo qual a ritualização acontece como o limite de começo e término na ritualização acontecente no mito. Mas é um limite que não se sustenta em si, pois ele tanto diz término de um começo quanto plenitude de um principiar. Toda plenitude só é plenitude do principiar do princípio, assim como todo rio traz em sua corrente a presença da fonte.
Esta ambigüidade poiética é que é o tempo circular. Ele fica evidente em qualquer festa onde haja celebração do mito enquanto sagrado. Ele acontece em qualquer “concerto” onde haja celebração da música do enquanto fala poética do sagrado. Ele acontece em qualquer fala/escrita onde haja o celebrar do narrar (dichten em alemão) inaugural enquanto fala do sagrado. Ele acontece em toda obra que opere a partir e pela vigência da verdade da realidade.
Mas por que o rito é tão importante? O que diz em sua etimologia o rito? Ordem. Mas o que é ordem? Eis o que diz Aristóteles: taksis dè paza logos: Toda ordem, porém, é uma força de reunião.
E o que tem a função a ver com tudo isto? Nada. O Nada não pode nunca exercer função nenhuma, porque não é tributário de um fundamento, de uma causa, seja ela divina, de uma finalidade que não seja ele mesmo, de um sistema que tem finalidade funcionar e nem de uma estrutura que tem por estruturar a funcionalização do sistema. Não podemos jamais pensar o Nada a partir da sua não-funcionalização, mas, sim, ao contrário, pensar a função a partir da ação do Nada, que por ser Nada de ação é a possibilidade da plenitude e de todo agir. Tal agir é a póiesis.
O temor e a angústia do Nada é como o sentir o abismo e sua proximidade a nossos pés, faltando-nos não só o chão como o próprio respirar. No entanto, é nele que estamos plantados. Dis-traídos pelos movimentos nos fios da rede como teia da vida nem notamos que sempre estamos pendurados no abismo dos vazios da rede. Nem notamos pela ocupação nas e com as funções que só funcionamos porque o sistema parece configurar tudo, inclusive, os vazios em que ele não só se estende e perdura como também se expande. Mas não é verdade. E de repente somos assaltados pela gratuidade e presença dos vazios não só da rede como também da possibilidade de a rede ser rede e ser rede em funcionamento e expansão, porque a rede é uma doação do vazio, do silêncio, do Nada. A rede só se constrói como rede porque o Nada que a doa se retrai e deixa a rede e as funções e o sistema se presentificar em seu funcionar. O Nada não niilifica, estrutura, doa, presentifica.
Por isso, a voz do mito, em seu circular cíclico ressoa qual eco de Narciso nos abismos tanto do infinitamente grande como do infinitamente pequeno, porque por mais que estes sejam infinitos, sempre têm a seus pés e se instalam no vazio, no silêncio, no Nada.
Mas por que temos medo? Seres da morte e da vida preferimos olhar a vida e voltar as costas para a morte como se o horizonte não terminasse justamente em nossa nuca. Para olhá-la só experienciando a vida com o terceiro olho, aquele que nos olha e aguarda como possibilidade de plenitude de sentido da vida: a morte. Pois querendo e não querendo somos mortais. Essa é a experienciação máxima de pensamento e póiesis. Mas para esta não há função nem agitação. Só ação.

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