15 junho 2006

Poiesis e linguagem



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Podemos e devemos entender a póiesis como a essência do agir. Mas esta está estreitamente ligada à essência da linguagem. Em alemão diz-se póiesis Dichtung, poesia. Porém há também a palavra Poesie. Heidegger distingue as duas nas suas interpretações ou esclarecimentos da poesia de Hölderlin ou escrevendo sobre arte.
No parágrafo 207 de A origem da obra de arte, diz Heidegger em alemão:
Die hier waltende Fragwürdigkeit sammelt sich dann an den eigentlichen Ort der Erörterung, dorthin, wo das Wesen der Sprache und der Dichtung gestreift warden, alles dies wiederum nur im Himblick auf die Zusammengehörigkeit von Sein und Sage.
Traduzimos assim:
O que aqui vigora como digno de ser posto em questão se concentra, a partir deste momento, no lugar próprio da discussão, para lá, onde a essência da Linguagem e da Póiesis se tocam levemente, tudo isto, uma vez mais, na perspectiva de co-pertença de ser e dizer inaugural.
Como podemos observar, Heidegger é bem explícito aí em não confundir Linguagem e Póiesis. Também não os separa, pois se “tocam levemente” na medida em que há uma co-pertença de ser e dizer inaugural. Vejamos bem que toda a discussão do originário da obra de arte é remetida para essa questão essencial. Logo, a questão da Póiesis não pode ficar subserviente da questão da Linguagem. Mas isso é o que mais frequentemente acontece. Ao longo da trejetória ocidental a predominância do Logos e o uso de seis palavras para tentar (inutilmente) traduzi-lo, tudo isso acabou por deixar em segundo plano a questão da Póiesis. Isso ainda se deve ao fato de que, desde Platão e Aristóteles, todas as teorias da arte provêm do pensamento filosófico. Por isso, fica se debatendo essas teorias e sua superação e se esquece que a matriz própria da arte provém da Póiesis. Repita-se: não se trata de opor e esquecer a Linguagem. Trata-se de re-por a discussão e a questão no seu devido lugar: na Póiesis, sem abandonar a Linguagem. Mas jamais abandonando a Póiesis, como tem sido feito até aqui.
O que é a essência do agir? Como ela se dá na constituição do próprio Ser e do ser-humano? São as seguintes as traduções para Logos na tradição ocidental: verbo, palavra, discurso, sermão, causa, fundamento, razão. Se bem notarmos, não podemos confundir nunca Linguagem com razão ou todas as outras palavras usadas para traduzir o Logos, pois não podemos afirmar de maneira alguma que raciocinar ou racionalizar são a mesma coisa que pensar, refletir, especular. Para entendermos essa diferença temos que apelar, necessariamente, para a Póiesis.
Se, por exemplo, na música a análise material dos sons e da sua estruturação formal se faz bem através do Logos entendido como razão e raciocínio, de maneira alguma podemos entender o sentido da música através do emprego do Logos no sentido da razão ou mesmo das outras palavras com que se traduz o Logos. Afirmo com toda a certeza que aí, como diz Heidegger no parágrafo 207, o diálogo com a obra de arte, no caso a música, necessita da abertura para a essência da Póiesis. Por quê? Simplesmente porque a música (como a dança) eclode em seu sentido na tensão com o silêncio e na dis-puta entre mundo e terra em meio à clareira. Tudo isso pressupõe o agir, não qualquer movimento, mas o agir em que o Ser eclode como Ser em seu Sentido, ou seja, em seu Ethos. O Ethos se instituindo é a Linguagem acontecendo apropriadamente (Ereignis). E isso é o Ser. Devemos ter bem presente que o Logos, em qualquer das sete traduções, não diz o ethos enquanto valor ético, isto é, sentido de Ser, porque este só acontece como Póiesis, isto é, Ação de Sentido. Podemos notar que o esquecimento da Póiesis e o abarcamento pelo Logos de todo o agir acaba por levar ao entendimento do ethos racionalmente como conjunto de normas racionais de comportamento, ou seja, à moral. O agir implícito ao pensamento é o agir explícito da Póiesis, isto é, se entendermos o agir como ação e não-ação, ou seja, se entendermos a Póiesis em sua plenitude como o ergon, o operar da verdade, esse ergon, esse operar, esse agir tende para a enteléquia, para a plenitude do agir, isto é, o ser. Como então só pensar na Linguagem ao pensarmos a arte. Não podemos entender de maneira alguma o pensar como uma postura passiva, receptiva, contemplativa. Isso não é pensamento. O pensamento só pensa agindo, isto é, como e na e com a Póiesis.
No parágrafo 169 Heidegger leva tão longe esta questão da Póiesis que a deixa em aberto em relação a todas as manifestações artísticas. Será que já pensamos suficientemente este convite ao questionamento do que é digno de ser questionado? Ele não diz isso a respeito da Linguagem, mas da Póiesis:
§169 – A Póiesis é aqui pensada em um sentido tão amplo e, ao mesmo tempo, numa unidade essencial tão íntima com a Linguagem e a Palavra, que precisa ser deixada em aberto a questão se a arte, em verdade, em todos os seus modos – da arquitetura até a poesia – esgota a essência a Póiesis. (Os grifos são nossos)
Reparemos que Heidegger insiste na unidade essencial íntima com a Linguagem. Ao destacar esta unidade essencial íntima, tenho por finalidade chamar a atenção para a Póiesis, para o sentido do agir, para o sentido do ser, para o horizonte onde devemos pensar não só a Linguagem – isto é evidente e corriqueiro -, mas a Póiesis, o que não é corriqueiro e uma falha clamorosa para nós que nos que buscamos o diálogo com as obra de arte. Por insistirmos APENAS na Linguagem facilmente caímos na concepção lingüística e gramatical da Linguagem. Isso fica evidente nas análises, nas classificações formais, materiais-conteudísticas, nos gêneros e na insistência em tratar as obras de arte como objetos distantes de nós e de qualquer ouvinte ou leitor ou espectador. Este empobrecimento da Linguagem e esquecimento da Póiesis é facilitado pela predominância do complexo conceitual constituído a partir da teia de conceitos resultante dos três conceitos básicos em que se estrutura a metafísica ocidental. Pois se ficarmos fiéis ao vigor da Linguagem, necessariamente teremos que nos abrir para a presença e atuação e fundação da obra de arte tanto pela Linguagem como pela Póiesis. Ligando este § com o 207 podemos notar que Heidegger não só nos lança no Abgrund – o deixar em Aberto – da unidade essencial e íntima de Linguagem e Póiesis, mas ainda nos provoca mais ao concluir o parágrafo 207 com os novos horizontes trazidos pela “... co-pertença de SER E DIZER INAUGURAL”.
Estamos traduzindo o verbo alemão sagen por dizer inaugural. Se no parágrafo 169 a Linguagem ele acrescenta “ ... e a PALAVRA ...”, no parágrafo 207 ele diz que há uma “... co-pertença de Ser e dizer inaugural”. Na tradição ocidental traduziu-se o Logos como proposição e discurso. Mas estes são sub-produtos metafísicos e retóricos do Verbo (Wort/palavra) e do Sagen. Ao traduzirmos o sagen por narrar inaugural queremos reafirmar que não se trata de qualquer discurso narrativo, mas do próprio acontecer do real em sua manifestação poética, isto é, só pode haver narrar inaugural na medida em que o real é acontecer. E como pensar o acontecer sem a Póiesis. Por isso, as SAGAS de um povo constituem o seu acontecer inaugural e não qualquer conjunto de estórias de divertimento poético ou moral. A Póiesis percorre tanto o Verbo (palavra) como o narrar inaugural. Posteriormente, já dentro da retórica e da proposição metafísica o que vai predominar é de um lado a proposição racional, o método dialético que visa ao peithó, ao convencimento, ao estabelecimento de uma verdade racional e argumentativa. Não se faz mais aí a Póiesis que traz em si todo o sentido e poder e autoridade que tem força de lei, porque provém do sagrado. Não é fala dos homens, é fala do destino, dos deuses, da moira, do genos.
O esquecimento da Póiesis não se dá só porque a proposição (Logos/lógico), enquanto essência e fundamento causal substitui o Logos e a Póiesis originárias, enquanto Verbo e narrar inaugural, e se reduz a Linguagem a um instrumento argumentativo e lógico de verdade, bem na linha da conceituação do ser e da coisa pelas quatro causas instrumentais, em que o ser e a coisa são vistas a partir do instrumento, tornando-se a própria Linguagem instrumento. É bem mais complexo. A submissão e esquecimento do Verbo e do narrar inaugural à proposição veritativa e essencialista e ao conceito genérico e suas variantes em função dos predicativos traz embutido uma mudança do lugar da Póiesis e uma redução dramática. O que inicialmente foi, na linha do primeiro conceito de coisa, pensado como hypokeimenon, com as traduções para o latim e a predominância da proposição torna-se o sujeito da proposição e, automaticamente, o lugar da ação. Não se percebeu o deslocamento que houve da ligação do Verbo e do narrar inaugural, como sendo o próprio ser enquanto Linguagem e Póiesis, ou seja, o Ser, para o hypokeimenon lógico-proposicional, em que nesta se localiza agora a Póiesis, o Verbo, o narrar inaugural. Identificado o sujeito com o que pratica a ação, com o que “fala” como enunciado, o sujeito, que era o hypokeimenon, essa misteriosa essentia, ousia, isso é identificado ao Logos divino na Idade Média e, posteriormente, na Idade Moderna, ao sujeito do penso, logo existo, ou seja, ao sujeito racional e enunciador.
Numa mistura do primeiro conceito com o terceiro, a obra passa a objeto de uma análise como busca das causas explicativas, primeiro conceito, e, ao mesmo tempo, tais causas apontam também para o sujeito formal, terceiro conceito de coisa, ou seja, um sujeito narrador, enunciador, gramática da narrativa, assumidor de múltiplas perspectivas, modos de narrar, mediador especulativo e consciência especuladora conceitual. Como um tal sujeito não pode fundar o real, funda e é a única coisa a que temos acesso, a representação do real. Esta duplicidade não vê de fato no abismo em que transita. A Póiesis a esta altura está totalmente esquecida nos labirintos das classificações rácio-conceituais, entregue ao poder e despoder de um sujeito e sua imaginação que a tudo podem imaginar e sustentar enquanto sujeito.
Mas será que esse sujeito é, de fato, o sujeito da Póiesis? Por que não? Com seu agir ele a tudo transforma em objetos e instrumentos. Seu agir causa efeitos, efetua o real e o real se torna real na medida em que é o real efetevo, real verdadeiro. E o mairo de todos os instrumentos é a linguagem. Uma linguagem rácio-conceitual-insturmental. Esta incorpora como instrumento a própria Póiesis, daí não ser mais necessário falar em Póiesis em nenhuma instância, sobretudo nas artes, pois estas, na conjugação do complexo conceitual instrumental do primeiro conceito e do terceiro resolvem todos os problemas – do narrador às formas narrativas, das teorias às vanguardas, das modas aos modos, posturas e atitudes, dos ismos às classificações, das ideologias às funções da arte, das histórias das artes aos museus e coleções particulares. Tudo em nome do sujeito.
Onde a força da palavra e do narrar inaugural? Onde o Mundo e a Terra? Onde a Linguagem e a Póiesis? Onde a memória e o tempo? Onde o acontecer apropriante e o destino? Será que adianta querer reinventar sempre conceitualmente o sujeito quando não se pensa a sua origem conceitual? Por que será que na Moderniidade se passou a falar cada vez mais em sujeito pessoal, histórico, social, cultural, de gênero, identitário, globalizado, ocidental, oriental, técnico etc.? Mas jamais se pensa a Linguagem e a Póiesis em sua essência íntima e na co-pertença de Ser e narrar inaugural. Por que será? Por que se pensa o corpo como sujeito e não se pensa o ser-corpo como Linguagem e Póiesis? Por que tememos pensar a essência do agir como essência da própria arte, pois não é a arte o próprio apropriar-se do que é próprio tanto ao ser como ao destinar-se do ser, pois o próprio de ser e destino do ser é o mesmo e este só se dá como acontecer. Acontecer apropriante e essência íntima de Linguagem e Póiesis são um e o mesmo.
No famoso ensaios intitulado Carta sobre o humanismo, assim o começa Heidegger:
De há muito que ainda não se pensa com bastante decisão a Essência do agir. Só se conhece o agir como a produção de um efeito, cuja efetividade se avalia por sua utilidade.
(Podemos notar aqui como o agir de que Heidegger fala está subordinado ao terceiro conceito de coisa, ou seja, aquele que se baseia na coisa como instrumento e dependente do agir do ser humano enquanto causa eficiente. Este agir, que ainda se ligava no pensamento de Aristóteles ao ergon e, portanto, à physis como tensão de dynamis e energeia, deslocou-se para a causa eficiente localizada no ser-humano somente e que nada mais tem a ver com a Póiesis da physis e muito menos dos mitos enquanto palavra do sagrado, do inaugural. Por isso, em nota à tradução do texto de Heidegger para o português, Emmanuel Carneiro Leão diz: “Efetividade=Wirklichkeit: nessa segunda frase Heidegger caracteriza o modo em que se tem interpretado o agir, jogando com o radical wirk, em seu tríplice emprego: como verbo, wirken, causar efeito, desensvolver a força de uma eficiência no sistema de causa e efeito; como substantivo concreto, Wirkung diz o efeito, o resultado da eficiência causal; e como substantivo abstrato, Wirklichkeit é a realidade do efeito. Com isso se visa a exprimir que as três modalidades pertencem à mesma interpretação. Pode-se traduzir essa sistemática da causalidade do seguinte modo: “só se conhece o agir como efetuação de um efeito, cuja efetividade se avalia por sua utilidade” “).
A Essência do agir, no entanto, está em con-sumar.
(Nota do tradutor: Con-sumar é em alemão vollbringen. Essa palavra é composta do verbo bringen, levar, conduzir, e do adjetivo voll, completo, pleno, cheio).
Con-sumar quer dizer: conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude de sua Essência. Levá-la a essa plenitude, producere.
(Nota do tradutor: Composta do verbo ducere, levar, e da preposição pro-, diante de, em frente de, pro-dução é a instauração de vigor que leva o modo de ser de algum ente para a frente da presença histórica).
Por isso, em sentido próprio, só pode ser com-sumado o que já é. Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser. O pensamento con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não a produz nem a efetua. O pensamento apenas a restitui ao Ser como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser.
(Nota do tradutor: Re-ferência é em alemão Bezug. Esta não diz simplesmente relação, Beziehung, isto é, um nexo entre duas coisas coordenadas. É o suporte da Verdade do Ser na existência que faz com que o homem existindo possa reportar-se ao Ser).
Essa restituição consiste em que no pensamento o Ser se torna Linguagem. A linguagem é a Casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e os poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é con-sumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem”.
O pensamento não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. O pensamento age enquanto pensa. Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado, por afetar a re-ferência do Ser ao homem. Toda produção se funda no Ser e se dirige ao ente. O pensamento ao contrário se deixa requisitar pelo Ser a fim de lhe proferir a Verdade. O pensamento con-suma esse deixar-se (Carta sobre o humanismo. Rio, Tempo Brasileiro, 1967, p. 23/24)
Heidegger diz que os pensadores e os poetas servem de vigia ao Ser. Então os dois se movem na essência do agir. Tentemos, seguindo a indicação do pensador, substituir o pensamento pela póiesis e veremos que a tensão pensador e poieta, e linguagem e póesis se equivalem, se tocam levemente.
A Póiesis con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não a produz nem a efetua. A Póiesis apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser. Essa restituição consiste em que, na Póiesis, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a Casa do Ser. Em sua habitação mora o homem. Os pensadores e os poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é con-sumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem”.
A Póiesis não se transforma em ação por dela emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. A Póiesis age enquanto age. Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado, por afetar a re-ferência do Ser ao homem. Toda produção se funda no Ser e se dirige ao ente. A Póiesis, ao contrário, se deixa requisitar pelo Ser a fim de lhe proferir a Verdade. A Póiesis con-suma esse deixar-se (Carta sobre o humanismo. Rio, Tempo Brasileiro, 1967, p. 23/24).
Se lermos o mesmo texto de Heidegger com a modificação proposta, creio que fiquem mais claras duas coisas: 1ª. A profunda ligação de pensamento e Póiesis; 2ª. A tensão evidente entre Linguagem e Póiesis. Se bem notarmos, ao tentarmos substituir linguagem por póiesis nota-se imediatamente algo estranho. Esta estranheza fica um pouco compreensível se ligarmos a póiesis ao tempo e a linguagem à memória. Por isso a proximidade de pensamento e póiesis não é a mesma da linguagem e póiesis. Tanto pensamento como póiesis são duas modalidades do agir do Ser em sua manifestação como Verdade. Isso não acontece com linguagem e póiesis, pois estas se fazem tanto presentes no pensamento como na póiesis. A recorrência de póiesis se explica por um fato muito simples. Como essência do agir nunca pode faltar, mas também não pode faltar a linguagem. Porém, isto é evidente. O que se tem em vista é que no percurso do ocidente a póiesis foi silenciada e isso implicou em silenciar e esquecer o sentido do ser enquanto arte. Se não se pode aproximar da arte sem levar em consideração a linguagem, devemos igualmente dizer e com a mesma propriedade que não nos podemos aproximar dela sem levar em consideração a póiesis.
Isto tem uma grande importância para as artes onde não se faz presente a possibilidade de transformá-las em linguagem instrumental, como ocorre com a maioria das artes. A essência de tais artes é acessível se nos voltarmos para a póiesis, para a essência do agir como o Sentido do Ser. Isto significa que devemos nos voltar essencialmente para a essência do agir no diálogo com as obras de arte. É a essência do agir que nelas age. Por isso devemos nos deixar atrair pelo agir que nelas e com elas se faz presente.
Nesse sentido, podemos fazer uma paralelismo interessante. Diz Heidegger do pensamento: “O pensamento age enquanto pensa” (idem, p. 25). Podemos dizer:
A póiesis age enquanto poietiza.
As obras de arte agem enquanto operam.
Ora è a este operar que deve visar todo diálogo com as obras de arte.
Porém, não podemos esquecer que toda obra é um “isto” que opera enquanto se estrutura. Seria um grande engano achar que a estrutura consiste na forma e que o que opera consiste na matéria da forma. Analisando a forma/estrutura acharemos a matéria. O operar não vem da estrutura nem da matéria. Simplesmente porque a visão da obra nesse conceito não parte da obra, mas do instrumento e das causas que a explicam. Todo “isto” precisa, necessariamente, de uma figura, de uma estrutura, tendo em vista que a physis é numa primeira instância ta onta, a totalidade dos entes. Esta totalidade é própria physis como póiesis. Sem esta não há multiplicidade. Mas ela, nessa multiplidade (panta) ama retrair-se (kryptestai) e nisso consiste a sua unidade, ou seja, a memória como linguagem. Por isso a linguagem é o cuidado da unidade, o que foi, é e será.
A confusão provém de um fato muito simples. Há duas modalidades de agir como Heidegger explica no início do ensaio. Isto está dito por Heidegger da seguinte forma: O primeiro agir causal produtor de efeitos, o real efetivo: “Toda produção se funda no Ser e se dirige ao ente”. É o mundo dos entes enquanto “objetos”; o segundo agir não-causal: “O pensamento [e as artes], ao contrário, se deixa requisitar pelo Ser a fim de proferir-lhe a Verdade”. É o mundo enquanto abertura e clareira do Ser na sua Verdade. Ainda há um terceiro agir de que trataremos mais tarde, mas que é a fonte e funda estes dois.
Aos “dois” agires correspondem também “duas” linguagens (dois e duas entre aspas porque na verdade só são “agires” na vigência do terceiro). A linguagem instrumental e a linguagem poética ou das artes e do pensamento. De novo podemos perceber que não é possível falar da linguagem em sua duplicidade sem falar no agir, isto é, na póiesis. Mas aqui se manifesta algo estranho. O agir que se dirige aos entes é o agir instrumental. Porém, este agir não existe independentemente do agir poético, ou seja, da póiesis como tal nem da linguagem como tal. Então como se dá a referência entre os dois?
Heidegger ao falar da interpretação da coisa como quatro causas, onde predomina e se torna visível a causa material e a formal dando origem ao instrumento que se cumpre como ente em sua serventia para algo, dia que há algo de misterioso no instrumento em relação tanto à Terra como ao Mundo. É que na referência ser-humano e Ser o instrumento é portador de uma “confiabilidade”. De onde vem e o que quer dizer então essa “confiabilidade”? Heidegger não o diz. Mas pensemos. Hoje a physis não aparece apenas como ta onta, mas também como o “mundo dos objetos”, a que Heidegger se refere dizendo-os Gestell: o conjunto de tudo que está dis-posto. Na ordem da physis esse Gestell é de algum modo ainda uma doação do próprio ser, um dos modos como o ser se vem destinando. Nesse destino, de onde vem a “confiabilidade”?
Olhemos o ser-humano em sua facticidade. Ele é um ser-do-entre: entre limite e não-limite; entre vida e morte; entre ser e não-ser. Não podemos dizer de maneira nenhuma que o agir causal se funda a si mesmo, mas é o próprio agir do Ser enquanto póiesis e linguagem, só que voltado para os entes. De um lado estes entes dão na facticidade uma convivência e uma integração com os demais entes e até aí há sem dúvida uma “confiabilidade”, além do fato que nesse agir de algum modo, como decorrente do outro agir, o ser-humano se realiza numa “profissão”, ou seja, num conhecimento técnico-conceitual, na instrumentalidade. Mas no fundo, essa confiabilidade e o próprio sentido da instrumentalidade não pode vir dela mesma, pois aí seria a physis reduzida a matérias e formas, embora esta seja uma dimensão possível da physis. Ocorre que a physis além de se doar como ente, como matéria e formas, ama retrair-se. Mas este é o terceiro agir que está em tensão com o os dois primeiros. De onde vem a confiabilidade? Não pode ser deste terceiro, embora deva se fundar nele, mas então de onde vem no sentido de termos na confiabilidade uma confiança que como tal permanece não só em meio à multiplicidade mas também em meio às mudanças. Então a confiabilidade tem um duplo aspecto: em relação aos entes como tais, os instrumentos, os objetos; em relação ao fato de que o instrumento aponta para uma certa constância, uma certa disponibilidade. Esta provém da physis na constância da mudança. Ela é constante na mudança. Ela é póiesis. Ela traz sempre sentido, pois não é um agir cego. Na medida em que há dois agires e duas linguagens, o sentido do agir e a unidade da linguagem também se fazem presentes nos instrumentos. Mas a physis interpretada e compreendida e apreendida nessa dimensão só me remete para o ente como ser e para o ser como ser dos entes, ou seja, o ente enquanto ente. A confiabilidade se funda neste ser. Pois devemos dizer com Heidegger: “Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser.” (idem, p. 24).
Como fica a confiabilidade dos “objetos” – instrumentos em relação à Terra e ao Mundo? É a mesma dos conceitos. Estes se movem nos e nutrem dos conhecimentos e das informações. Os conceitos são por isso mesmo sempre instrumentais. Na medida em que tais conceitos predominam no agir do ser humano e como agir na sua realização, toda a sua realização parece ser realizada no domínio dos conceitos e da produção dos instrumentos seja como linguagem seja como póiesis. Mas os conceitos e instrumentos visam aos entes e à realização do ser-humano como ente. Mas será que isso basta?
A redução das artes aos conceitos é a conseqüência da interpretação da coisa tanto como proposicional quanto como causal. Tais interpretações trazem em si uma certa “confiabilidade”, pois nelas se chega ao ente enquanto ente, na medida em que o que é, antes de tudo, é o Ser. Neste horizonte, a distinção das obras de arte dos objetos se mantém na fina e tênue linha da confiabilidade. Mas isso não basta, porque ainda se vive e pensa e realiza no plano dos entes. É necessário mais do que uma confiabilidade. É necessário o quê? O sentido esquecido do Ser. O ser da metafísica nos enche de confiabilidade, de confiança em muitas coisas, sobretudo, na confiança de sermos felizes, do futuro céu, da justiça social, da segurança, do vencimento da morte, da proximidade sem distância, do diálogo sem diferenças. Sem notarmos, a “confiabilidade” da confiança se funda, porque não há fundamento, na fé. Só que esta está cada vez mais sem confiança, está desconfiada. Vê o abismo da destruição da mãe-Terra muito próximo, do perigo da própria extinção da vida-humana. Mas cada dia vê mais que a mãe-physis é imprevisível e sem controle. Ela ama retrair-se. A confiabilidade dos objetos e do agir humano cada vez mais perde a confiabilidade. Quer dizer, tal confiabilidade perde o que ela não pode dar, pois ela tem um limite. Qual? O da ação, do sentido do agir, da póiesis em que ela se funda, do ente enquanto ente, ou seja, dos dois primeiros agires. Seja este ser Deus, seja o ser-humano-sujeito-racional.
É que há um terceiro, que é o que funda os outros dois. Como ele nos advém? Como a própria póiesis, e como a própria linguagem: como pensamento e como arte. Mas não e jamais como obras de arte instrumentais, ou seja, lidas e explicadas proposicionalmente ou como matéria e forma. E de onde ele nos advém? Heráclito já o disse: Physis kryptestai philei. Nossos olhos só vêm a póiesis e a linguagem da physis em seu manifestar-se excessivo. Porém, o fragmento é bem claro e explícito: Ela ama retrair-se. Só se manifesta porque se retrai ou só se retrai porque se manifesta? O enigma não está no ama? Como physis ela tanto ama manifestar-se como ama retrair-se. Que amor é esse? O que quer dizer aqui amar? Não implica esta pergunta: O que é póiesis? O que é linguagem? A physis como manifestação, a physis como retração, eis o amar. Logo o amar é ao mesmo tempo a póiesis da multiplicidade, pois “o que é, antes de tudo, é o ser” (idem, p.24), e a póiesis da unidade, o que não-é, pois “o ser não pode Ser. Se fosse ser não mais permaneceria ser, mas seria ente” (Heidegger, Martin. A tese de Kant sobre o ser. São Paulo, Duas Cidades, 1970, p. 95). Logo, o amor é ao mesmo tempo a linguagem da multiplicidade, pois “o que é, antes de tudo, é o ser” (idem, p.24), e a linguagem da unidade, o que não-é, pois “o ser não pode Ser. Se fosse ser não mais permaneceria ser, mas seria ente” (Heidegger, Martin. A tese de Kant sobre o ser. São Paulo, Duas Cidades, 1970, p. 95). Então devemos dizer que o amar é a póiesis e a não-póiesis, a linguagem e a não-linguagem. O amar é ação e não-ação, linguagem e silêncio, verdade e não-verdade.
Verdade não diz apenas o que se desvela e vela (aletheia), mas também e ao mesmo tempo a ação e a não-ação, a fala e o silêncio.
Se Heidegger procurou repensar o Ocidente a partir do esquecimento do Ser e demonstrou a construção deste mesmo Ocidente dentro de uma essência essencialista e metafísica, onde se pensou o ente enquanto ente, e não se pensou o Ser em seu sentido, sua tarefa exige que a esse novo Ocidente que surgirá do pensamento, se venha juntar o Ocidente que também foi esquecido, pelo predomínio do Logos, linguagem enquanto razão-proposiconal-língua, o da póiesis. É o Ocidente esquecido do mito e das obras de arte, não lidas nem analisadas a partir do ente enquanto ente, do ser instrumental das formas e matérias, mas o Ocidente da arte da póiesis e da não-póiesis, da linguagem e da não-linguagem, da verdade e da não-verdade.
É um Ocidente novo, inaugural, mítico, artístico. Mas se até o instrumental e sua confiabilidade acabou por destruir a fé no ente enquanto ente, no ser dos entes, no Deus enquanto fundamento, no sujeito enquanto fundamento, pois hoje vivemos na mãe-Terra como a paisagem dos instrumentos-objetos, que com-põem todo o real efetivo, como ainda esperar por um novo Ocidente, o do Ser esquecido?
Se não se espera, não se encontra o inesperado, sendo sem cominho de
encontro nem vias de acesso” ( Heráclito, frag. 18. Trad. Emmanuel Carneiro
Leão).

Ação e função



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O silêncio proposital dá a maior possibilidade de música.
Se viemos do nada é claro que vamos para o tudo.
O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber.
(ROSA, João Guimarães. Tutameia. Rio, José Olympio, 1967, p. 12)


Talvez a melhor maneira de chegar a entender o que é função, sistema e estrutura seja pensar o mito. Não que neste não haja isso, mas entram algumas questões que mudam completamente o seu entendimento.
Há uma ligação circular entre sistema, função e estrutura. Aqui a ordem poderia ser inversa: estrutura, função e sistema. Mas como ocorre aí a relação entre esses três vocábulos. E seriam apenas vocábulos? Seriam palavras ou antes proposições que se estruturam em torno de conceitos? Onde o conceito leva à proposição e a proposição leva ao conceito. E pode haver proposição e conceito sem palavra e sem questão? Nestas perguntas já nos estamos movendo na questão do método. Mas que o próprio decorrer do ensaio mostre como se o método.
Tanto a ação como a função podem ser entendidas em três sentidos, mas não serão sistematicamente desenvolvidos aqui. Eles estão relacionados aos três telos. Porém , o que interessa agora é fazer logo a distinção entre relação e re-ferência. Esta distinção é que nos permite ver mais claramente a di-ferença entre as di-ferentes ações e funções. VER DEPOIS.
A melhor maneira de notar e entender as diferenças entre sistema, função e estrutura é pensar o mito e suas questões. Para tanto é necessário que nos abramos para o sentido do mito sem o pré-julgar dentro desses mesmos sistemas, funções e estruturas, pois, em geral o mito já está classificado dentro dos conceitos e não se olha nem se vê o mito como questão, ou seja, no que ele é.
Olhemos o mito sob a ótica do tempo, mas encarando a este como questão. Em geral, de acordo com o sistema de conceitos, o mito não se encaixa no conceito de tempo cronológico. Isto se virmos o mito em quatro instâncias correlatas: tempo, ação, linguagem e memória.
Para entender o tempo do mito não podemos lançar mão do tempo cronológico, mas temos de entender o mito no que se diz normalmente como tempo circular. Mas o que seria o tempo circular? Do ponto de vista crono-lógico, linear, proposicional e conceitual, é impossível entender o tempo circular, pois ele não é lógico, seria no máximo, um círculo vicioso, pois não dá para entender um tempo sem causalidade que possa explicar de antemão o que virá depois etc.
No tempo cronológico há causalidade, linearidade, fundamento, explicação, análise e um fim para onde o tempo, linearmente, caminha, se desdobra, se ex-plica. Hà um sistema interligado dentro do qual as partes entram num funcionamento, o do sistema. É nesse sentido que podemos entender as partes, o todo, a função, a causalidade. Algo causa algo. E este algo que causa algo é o fundamento. Ao mesmo tempo vemos que para haver causa, linearidade e finalidade para o qual o sistema funcionando caminha e tenta realizar, movido pelas causas ou pela causa, esta se torna o fundamento. O fundamento, a estrutura e o sistema agem na medida das funções ou as funções são funções agindo tendo em vista o fundamento? Este fundamento vai ser interpretado dentro de uma perspectiva essencialista, ou seja, o fundamento que é a matriz do agir. Este agir é ao mesmo tempo funcional e tende a um fim. Perceber e compreender o funcionamento do sistema enquanto estrutura é apreender e compreender como agem as causas, ou seja, a estrutura dentro do telos.
Vejamos o mito. No mito não há um tempo cronológico em que se busque um fim inerente a uma essência. Não há essência. Há um princípio, mas não causal, onde o fim é o princípio atuando, por isso o tempo é circular, pois há ação. Tempo é aí a própria ação agindo. Como diz Aristóteles: Pasa praksis agathou tinos ephiesthai dokei: em toda ação vive um empenho por algum bem. Este bem é o telos. Mas qual é o telos no mito? É aí que entram as outras questões. Já vimos que tempo é o próprio agir, mas não é um tempo cronológico que seria portador de um sentido a partir do fundamento enquanto causa, o fundamento causa o agir. Então de onde vem o sentido no mito uma vez que não há fundamento nem causa? O sentido deve estar no próprio tempo, no tempo circular. Mas o tempo só é tempo na medida em que dês-dobra algo, manifesta algo, senão como ver e perceber e compreender o tempo? Mas perguntar pelo sentido é perguntar pela linguagem. E o que é então a linguagem? É a ação com sentido, ou seja, a póiesis. Na medida em que a ação age é póiesis e esta é póiesis na medida em que se faz linguagem. Para ter sentido deve na multiplicidade do agir não se dispersar, não ser caótico, na ser disperso, mas ter unidade. Unidade é o sentido do agir enquanto linguagem. Se bem notarmos a unidade de alguma maneira diz o permanente, o que na dispersão do manifestar-se, póiesis, já traz em si a permanência como unidade que faz permanecer o que se manifesta. A linguagem em si não é a ação, mas a permanência de alguma maneira que foge ao impulso do agir, da póiesis. Há, pois uma disputa entre póiesis e linguagem, mas uma não vigora sem a outra. A unidade e permanência da linguagem se mostra facilmente pelo fato de que ela percorre a realidade não só em extensão (a linguagem é válida para diferentes espaços, estes são abarcados por ela) mas também em diferentes tempos (a linguagem é valida para diferentes tempos na medida em que posso ser e compreender o que foi realizado há muitos anos e até a há milênios, como é o caso de todas as criações de povos que se perdem na bruma dos tempos ou, por exemplo, as obras de Sófocles). Porém, essa permanência pode ser entendida de duas maneiras: ou conceitual ou como questão. O conceitual vai ser a linguagem instrumental, ou seja, onde a linguagem entra dentro de um sistema causal e funcional. Entender aí a linguagem é entender o sistema, a função e a estrutura (essencialista ou lógico-funcional-proposicional-fundamental, ver aqui os três conceitos de coisa).
Porém, pode ser entendida de outra maneira. Basta ligar a linguagem com a memória. O que é a memória? Esta é o cuidado da unidade, mas ela como cuidado não se reduz a conceitos nem a causas. Ela é o tempo como sentido, ou seja, póiesis. Por isso no mito, a memória vai ser a que foi, é e será. No entanto, esta é a própria realidade enquanto real das realizações. O fim aí é o princípio, na medida em que o princípio já é o fim, ou seja, o tempo circular. Na realidade, princípio e fim, e fim e princípio são o mesmo, mas não são a mesma coisa.
A tensão entre póiesis e linguagem se dá concretamente na estrutura. Aí podemos entender estrutura de duas maneiras: como organização e como corpo. É nesta distinção que se decide essencialmente a di-ferença e re-ferência entre função e referência. Na relação, o corpo está em função da organização, do sistema enquanto faz estes funcionarem tendo em vista o próprio sistema, sem levar em conta o corpo. Corpo é a com-figuração de algo tendo em vista o que é enquanto identidade e não mera organização, ou seja, não se reduz a ter uma função dentro da organização. Por outro lado, o corpo não é algo isolado dentro de um sistema, de uma organização e de funções na rede, na teia da vida, ou seja, do segundo telos. Não. O corpo vive a re-ferência de póiesis e linguagem, de tempo e memória. A estrutura diz aí não o sistema de sustenção das funções que, circularmente, compõem o sistema. Há aqui um agir cujo telos está fora e longe e alienado do primeiro telos e, automaticamente, do terceiro, porque está separado e isolado mero funcionamento da organização, do sistema. Tudo aí se determina pela função e não pelo primeiro e terceiro telos.
No mito, não há essas funções, porque o agir da póiesis está em vista do princípio, ou seja, do primeiro telos e tende a atingir o terceiro telos, ou seja, a plenitude do agir do princípio no fim. Podemos notar que este agir da póiesis como linguagem enquanto princípio e fim se dá no ritual.
O que é o ritual? Se bem notarmos é o que é no como é, mas em que este tem por fim, por telos, realizar o princípio enquanto comemoração. O rito não representa nada, não lembra nada, não encena nada, não busca nenhuma explicação, nenhuma causa, nenhuma fundamento. É puro comemorar, é total realizar. Também não há separação entre os três telos, nem separação entre figura (estrutura como função, mas em vista do terceiro telos, onde o funcionar é “o como “ de “o que é”, mas tanto da figura como da configuração em que cada povo acontece. Num tal acontecer acontece tudo e nada, pois o circular do tempo, póiesis, linguagem e memória nasce de nada e volta ao nada. Mas neste percurso e discurso do tempo enquanto póiesis e linguagem em que se dá a memória se presentifica ao mesmo tempo o presentificado e o presentificável, onde não causalidade e nem há fundamento, mas o acontecer acontecendo no seu tornar-se presentificante e em seu retrair-se nulificante, ou seja, no kryptestai de que nos fala Heráclito no framento: 123: physis kryptestai philei.
Mas o que é este philei?
Philei diz o próprio e enquanto o próprio é aquilo que sendo apropriado nos afeta, pois somos afeiçoados pelo poder e vigor do que é próprio. Ser afeiçoada é apropriar-se do que é próprio. Amar é apropriar-se do que é próprio. Mas o que é o próprio para que por ele sejamos apropriados? Ser e apropriar-se nos projetam para a essência do tempo.
Diz-se que no mito o tempo se dá essencialmente como círculo. Que círculo é este? E por que o mito e a poiesis se movem no tempo circular? Só pode haver um circular se há tempo. Que tempo é este que se dá como círculo? Devemos ter consciência de que o tempo – como questão que é – não se esgota na sua experienciação como círculo. É que o tempo como e enquanto círculo acontece poieticamente e por mais que o poiético nos lance no ser jamais este se esgota em todo agir poiético, simplemente porque sendo a fonte nada pode esgotar ou ser mais fonte do que a fonte. É que só o Nada pode ser fonte. Por ser Nada é que tudo nela e nele principia e se plenifica.
Numa primeira instância chama-se apropriadamente um tal círculo de círculo hermenêutico, mas jamais pode ser confundido com o círculo da consciência e da razão, não é e jamais pode ser epistemológico. Como pode a consciência ser consciência de algo que previamente não se tenha mostrado e dado como possibilidade de dele termos consciência? Se a consciência começa o Nada principia, pois por poder estar sempre principiando é que ele se pode dar na e como consciência. É nesse sentido que se há póiesis e há e só pode haver, por outro lado toda póiesis se funda no Nada, onde este Nada não pode ser apreendido e compreendido a partir do que já se poietiza ou poietizou e em relação ao qual podemos julgar que houve algo ou não e aí falarmos de niilismo. O que se poietiza ou poietizou só é possível porque não cessa de principiar e o que não cessa de principiar é o Nada, de onde se conclui que o Nada não é e não sendo é a possibilidade de todo é sendo como fonte e princípio de todo ser, ou seja, de toda póiesis e tempo. O tempo em sua essência essencial é Nada, é não-poiesis. É este o âmbito do acontecer no qual só acontece na medida em que sendo Nada é nada do Nada embora devamos também dizer que enquanto é é o Nada sendo, mas enquanto é não pode ser o Nada, pois senão deixaria o Nada de ser Nada do é. A aparente contradição em que nos movemos não é contradição é o círculo em que se circula no entre é e Nada. Esse entre é o vigor do círculo circulando pelo qual tanto mais quer ser ser e tanto mais não podendo ser o Nada quer ser Nada e por isso mesmo quer não-querer, quer não-agir, quer não-poiesis, quer Nada.
Quando se fala em “entre” não é uma escolha, é uma necessidade dupla, a duplicidade que ele nos solicita assim como toda afeição, todo amar. Podemos e devemos amar o é, mas ao que nos afeiçoamos, isto é, o que nos solicita, atrai e projeta na afeição não vem de nosso querer, mas do que em todo querer queremos. O que no querer queremos é o que na afeição afeiçoa. E o que nos afeiçoa não pode ser o ser que sempre é, só pode ser o que principia, o que na afeição afeiçoa, o princípio.E o principiar de todo princípio é o Nada, a não-ação, o não-ser. O “entre” circula e é o círculo no qual o afeiçoar e a afeição nos lançam no que nos é próprio: o Nada e o Ser enquanto o Ser e o Nada, daí o tempo circular ser ao mesmo tempo tempo e não-tempo, ser e não-ser, é o Nada. Se não fosse o “entre” esse “e” “seria” um ou outro. E aqui aparece o enigma desse “entre”, pois se não nos movêssemos nele como ainda experienciar o Nada? Não esqueçamos que ex-perienciar só é possível porque nos movemos “entre” o limite e o não-limite. Seria como sendo algo e esse algo, como por exemplo, uma gota de água, quisesse falar do Mar sem lhe pertencer e pudesse subsistir sem o Mar. Ela até pode se destacar (pois é ente) do Mar para ser uma gota, ser um é. Porém, ela sendo um é, uma gota, só in-sistindo e per-sistindo no seu elemento – o Mar – pode continuar sendo que é: uma gota do e a partir do Mar, pois o Mar como seu elemento é o seu Princípio – evidentemente não causal, pois aí o Mar não é causa de nada, mas o Princípio no sentido da sua com-sistência e per-sistência, ou seja, o Nada é e não-é a gota. Mas a gota sendo neste sendo remete para a sua proveniência: o Mar, o Nada. Claro que aqui Mar é uma imagem-questão. O que a gota pode dizer do Mar se não for já se movendo e provindo do Mar? Como a gota pode ser sem o Mar? E levando ao extremo só nos resta o abismo diante do qual nada podemos dizer, porque ainda Nada podemos dizer. Nesse sentido o próprio dizer é um “entre”. Quando perguntamos: O que a gota pode ser sem o Mar? Devemos também compreender que esse dizer (seria em alemão dichten) só pode ou não-dizer na medida em que esse dizer (dichten) já co-pertence ao Elemento, ao Mar, ao Nada. Tanto a fala, a proposição como a consciência que ela opera não fundam o Mar, assim como o “entre” não funda o Mar, mas por ser e estar “entre” é que pode se abrir ou fechar, se alienar ou reintegrar no que é Princípio: o Mar. O círculo é círculo do Mar. O tempo é tempo do Mar. A póiesis é póiesis do Mar. O rito é rito do Mar. O mito é mito do Mar. Quando Heráclito assinala que o Ser ama Não-ser, que o que se manifesta e eclode e se presentifica ama e se afeiçoa e é afetado em seu afeto no e a partir do retrair-se, um tal amar tanto mais nos atrai quanto mais se retrai – para sorte e riqueza nossa -, tanto mais é quanto mais não-é. Lançar-se nesse verbo ambíguo e mover-se no principiar enquanto entre é pensar, é poietizar. Persistir e insistir nesse entre é pensar porque “Amar é pensar” (Caeiro, poema ...). O pensar une, aproxima, restaura criando e manifestando. Amar é pensar porque no pensar a realidade acontece como Festa. “É que a festa do pensamento é criar. O pensamento só pensa quando cria diferenças a partir da igualdade no seio e no movimento da identidade” (LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar II. Petrópolis, Vozes, 1992, p. 124). Por isso, há uma referência profunda entre pensar, criar, aproximar e amar.
O hermenêutico diz que ele acontece no vigorar da figura-questão Hermes, ou seja, enquanto e como Verbo. E aí já temos o que o tempo e Hermes são essencialmente: verbo, ação, póiesis, poietizar. A physis acontecendo como poietizar e este como tempo e o tempo como círculo que circula e só pode circular enquanto verbo enquanto verbo é mito, pois mytheomai, verbo de onde provém o substantivo mythos, diz o acontecer do sagrado como verbo (dichten em alemão), ou seja, o narrar. O sagrado que acontece como mito-verbo é o tempo enquanto e como poietizar do sagrado. Eis o círculo hermenêutico. Neste círculo o mito se apropria como mito, o tempo como tempo, o verbo como verbo (Hermes) e o poietizar como poietizar e o próprio “entre” como “entre”. Neste acontecer apropriante consiste o fundar enquanto e como doar, fundamentar e principiar da arte. O doar como e enquanto presente é o ser presentificante (no duplo sentido de que se faz presente e se tornar presente como o que se doa. Presentificar-se e doar-se são um e o mesmo, pois no doar não há um transferir de algo para algo nem de alguém para alguém. O amar em que consiste o doar não doa algo, presentifica a proximidade que aproxima e diferencia, pois é no diferenciar que o amar se torna amar enquanto este realiza a presentificação do que como proximidade de diferenças nos foi doado. Amar é essencialmente dialogar pelo qual não nos comunicamos em primeiro lugar e nisso nos igualamos ou nos tornamos uniformes, mas o dialogar faz eclodir a proximidade que nos aproxima tanto do que somos como do que não somos, isto é, amar é aproximar enquanto a realização do mesmo de apropriar e diferenciar. Este só acontece quando o criar irrompe e nisso consiste essencialmente o amar). O principiar diz do poietizar como um figurar algo que se, por um lado, começa e termina, por outro, a essência do principiar não consiste nisso, mas, enquanto e como póiesis consiste no presentificar do fim a plenitude do principiar, onde não há término (daí o círculo), porque a essência do principiar é estar sempre principiando (e não e jamais começando, porque começar implica já uma concepção de tempo linear, causal, corno-lógica). Eis aí o fundar inerente ao circular do círculo poético-onto-fenomenológico, onde este “lógico” diz a presença do logos que ex-põe reunindo. Nesse horizonte, o fim jamais indica um término linear historiográfico, mas fundamentalmente o vigor do principiar em sua plenitude (o fim como término pode se perceber no rito, mas é um fim que tem seu sentido não decorrer do tempo cronológico, mas do tempo mítico e, portanto, reinstala o mito em seu vigor. Assim como um jogo, por exemplo, de futebol, não termina o jogar futebol, mas, na verdade desvelou o jogar futebol em sua verdade de poder ser jogado futebol, daí que a derrota é aparente. O que na realidade aconteceu foi uma disputa e esta só “termina” no sentido de um resultado tanto de reultados como de percurso de um tempo possível em que ele pode e deve ser “realizado”, daí que o resultado não indica um término definitivo, mas um resultado que é uma realização de uma real que sempre pode continuar a acontecer e onde os resultados como realização podem ser diferentes. E que, por ser circular, nenhuma realização esgota. Mas cada jogo é pleno em si como realização).
A plenitude enquanto realização e fim não finaliza nada, no sentido de meta e término, só a realização do jogo e seu resultado que como resultado e realização, diante da realidade é sempre provisório. Contudo, aí o fim é o sentido, enquanto o sentido implica o princípio de desenvolvimento e transformação, de plenitude e ritualização, enquanto esta configura a questão-mito enquanto e como figura. Assim o fim (telos), o sentido de toda poiesis-poietizar é consumar a atitude, no que esta implica telos e ação, para o sumo desvelamento de sua e em sua plenitude.
Então o princípio só acontece como limite de possibilidades de um mito-questão enquanto e como ritualização do rito do mito. O fim é consumar o princípio. O rito é consumar o mito. Mas este consumar jamais é terminar, porém, é consumar as possibilidades do vigor da póiesis enquanto e como princípio. O fim é o princípio e nisto consiste o círculo poético. Isto acontece como toda obra de arte.
Se bem observarmos, toda a questão para nós seres-do-entre se centraliza e acontece no “entre” mito e rito. Pensemos o mito, pensemos o rito. Quando se ritualiza um mito (quando se lê ou vê ou ouve experienciando uma obra de arte), isto é, quando o mito/obra acontece qual a atitude, isto é, nosso ritualizar visa a qual fim? É acabar, terminar, esgotar o mito? Notemos logo que o ritualizar nada mais é do que o como é do que é o mito (a não ser que seja uma di-versão estético-consumista). Mas é um como onde ele não quer dar algo fora do que o mito é e, muito menos, acabar, findar, esgotar o mito/obra. Não. Esse ritualizar, ao ritualizar o mito, ao projetar o mito no rito tem em vista num tal “como” não um acabar nem algo como o exercício de uma vontade dos “sujeitos” ritualizantes. Pelo contrário, o ritualizar enquanto “como” tem como atitude e sentido e fim o próprio mito em vigor de realidade e poder ser. Ele visa ao acontecer do mito na plenitude de suas possibilidades (que não cessa nunca de poder ser). O ritualizar principia no mito, acontece no mito e tende ao próprio mito enquanto e como o próprio do mito. O ritualizar (o ordenar poético em sua etimologia) enquanto rito figura o mito e configura no figurar o sentido do mito, ou seja, tanto o acontecer/poietizar do mito quanto o sentido e consumar do sentido e este tanto o sentido do mito quanto o do ritualizar, pois este tem sua vigência no vigor do mito enquanto seu sentido poético e, por isso, é impossível separar epistêmica ou estrutural ou logicamente um do outro. Pelo contrário tal co-pertencer-se vigora no pensar, pois este enquanto póiesis e linguagem deixa a poiesis ser poiesis, a linguagem ser linguagem, ou seja, a realidade ser realidade.
O mito não termina porque não começa. Está sempre principiando e na espera de desvelo dos que o ritualizem, dos que leiam, ouçam e vejam as obras de arte enquanto operar da verdade que as faz obras da verdade da realidade. O mito se consuma porque no ritualizar só se ritualiza porque está sempre principiando, isto é, principia o principiar do princípio, ou seja, é o verbo em seu vigor originário. Principiar é sempre poietizar na medida em que todo poietizar é sempre principiar e não e jamais começar, porque não é e jamais poderá ser reduzido ao tempo cronológico da metafísica funcional, estrutural e sistêmica. Por isso, para tal principiar não fundamento a ser procurado, nem explicação porque não há paradigma com o qual possa ser comparado ou ao qual se queira chegar, também não pode ser ensinado porque não é conceitual. Ele nos lança numa aprendizagem, a das questões em que se move sempre todo pensar. Há claro o aparente jogo da retórica, mas que se esgota em si mesmo e no seu formalismo. A retórica só se torna poética se fizer o jogo do principiar, mas então todo o que a retórica retoriciza tem seu fundamento no principiar, isto é, no mover-ser do vigor e a partir do vigor do poietizar. Toda retórica remete para horizontes que ela própria não pode plenificar a não ser que se abebere da fonte, do principiar.
Só o rito começa e termina, mas como ser começar e terminar não provém dele mas do mito, todo começar e terminar - enquanto rito – nos lançam no principiar e consumar. E é nesse “entre” que o sagrado enquanto poietizar e temporalizar nos aparece como circular. O rito enquanto figura do configurar o mito é que nos lança também na radicalidade de nossa liminaridade, de nosso “entre”, pelo qual a ritualização acontece como o limite de começo e término na ritualização acontecente no mito. Mas é um limite que não se sustenta em si, pois ele tanto diz término de um começo quanto plenitude de um principiar. Toda plenitude só é plenitude do principiar do princípio, assim como todo rio traz em sua corrente a presença da fonte.
Esta ambigüidade poiética é que é o tempo circular. Ele fica evidente em qualquer festa onde haja celebração do mito enquanto sagrado. Ele acontece em qualquer “concerto” onde haja celebração da música do enquanto fala poética do sagrado. Ele acontece em qualquer fala/escrita onde haja o celebrar do narrar (dichten em alemão) inaugural enquanto fala do sagrado. Ele acontece em toda obra que opere a partir e pela vigência da verdade da realidade.
Mas por que o rito é tão importante? O que diz em sua etimologia o rito? Ordem. Mas o que é ordem? Eis o que diz Aristóteles: taksis dè paza logos: Toda ordem, porém, é uma força de reunião.
E o que tem a função a ver com tudo isto? Nada. O Nada não pode nunca exercer função nenhuma, porque não é tributário de um fundamento, de uma causa, seja ela divina, de uma finalidade que não seja ele mesmo, de um sistema que tem finalidade funcionar e nem de uma estrutura que tem por estruturar a funcionalização do sistema. Não podemos jamais pensar o Nada a partir da sua não-funcionalização, mas, sim, ao contrário, pensar a função a partir da ação do Nada, que por ser Nada de ação é a possibilidade da plenitude e de todo agir. Tal agir é a póiesis.
O temor e a angústia do Nada é como o sentir o abismo e sua proximidade a nossos pés, faltando-nos não só o chão como o próprio respirar. No entanto, é nele que estamos plantados. Dis-traídos pelos movimentos nos fios da rede como teia da vida nem notamos que sempre estamos pendurados no abismo dos vazios da rede. Nem notamos pela ocupação nas e com as funções que só funcionamos porque o sistema parece configurar tudo, inclusive, os vazios em que ele não só se estende e perdura como também se expande. Mas não é verdade. E de repente somos assaltados pela gratuidade e presença dos vazios não só da rede como também da possibilidade de a rede ser rede e ser rede em funcionamento e expansão, porque a rede é uma doação do vazio, do silêncio, do Nada. A rede só se constrói como rede porque o Nada que a doa se retrai e deixa a rede e as funções e o sistema se presentificar em seu funcionar. O Nada não niilifica, estrutura, doa, presentifica.
Por isso, a voz do mito, em seu circular cíclico ressoa qual eco de Narciso nos abismos tanto do infinitamente grande como do infinitamente pequeno, porque por mais que estes sejam infinitos, sempre têm a seus pés e se instalam no vazio, no silêncio, no Nada.
Mas por que temos medo? Seres da morte e da vida preferimos olhar a vida e voltar as costas para a morte como se o horizonte não terminasse justamente em nossa nuca. Para olhá-la só experienciando a vida com o terceiro olho, aquele que nos olha e aguarda como possibilidade de plenitude de sentido da vida: a morte. Pois querendo e não querendo somos mortais. Essa é a experienciação máxima de pensamento e póiesis. Mas para esta não há função nem agitação. Só ação.