A procura pela dança
Para iniciar minha proposta de diálogo poético com vocês, tendo como tema a dança, vou partir de duas constatações surpreendentes e que fazem pensar. A primeira diz respeito a uma notícia divulgada no jornal Folha de São Paulo, na semana passada. Relata o jornal que foi feita uma pesquisa no Brasil sobre dança, onde se procede a um raio-x do seu desenvolvimento, realizada por 13 pesquisadores em cem cidades. É a Cartografia 2009-2010. E afirma a coordenadora do programa, Sônia Sobral: “Cresceu muito o número de faculdades de dança nos últimos três anos”. No final declara: “A Cartografia será enviada só para instituições culturais e educacionais...”. Sem dúvida nenhuma, eis aí uma excelente notícia. Espero e faço votos de que continue crescendo o interesse pela dança. Contudo, o final da notícia me levou a uma questão que julgo fundamental: O que a dança tem a ver com educação? Em que sentido a dança é educativa? Numa sociedade do conhecimento e da informação, dominada pela razão instrumental, onde tudo deve ser útil e reduzir-se a uma finalidade prática, objetiva, funcional, fico me perguntando: Qual a utilidade da dança? Com a dança não fazemos nada a não ser o nada. Como a dança faz o nada? Aqui me lembro de uma passagem do conto “O espelho” de Guimarães Rosa, onde diz: “Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo” (Rosa: 1967, 71). Para mim, a dança é o nada acontecendo. Portanto, a dança é um milagre. Que estes milagres aconteçam cada vez mais é o que todos desejamos, almejamos e temos cada vez mais que fazer acontecer. Entendamos por milagre a presença do extraordinário, do insólito, do poético, como princípio de realização da realidade e do ser humano nessa mesma realidade. E, naturalmente, devemos nos perguntar o que isso tem a ver com educação. O que é, então, educação para que a dança poética possa e deva ser educativa? Aqui devemos fugir de um grande perigo: a dança tornar-se mais uma disciplina para formatar o educando num conjunto de conhecimentos operativos e úteis dentro de um sistema de relações causais, onde o principal é o sistema e não o humano e poético de todo ser humano. A dança jamais pode se por a serviço de qualquer sistema, caso contrário perderá sua identidade, seu próprio. E qual é o próprio da dança, a sua identidade? Esta identidade não pode ser diferente da identidade de todo ser humano. O próprio é a medida de cada um. À realização dessa medida corresponde a história de cada um, que é sempre singular e irrepetível. Ou ao menos deveria ser. A medida é o destino. O genos, palavra grega que diz a nossa proveniência, é o princípio e medida que doa a cada um o seu destino. Não tem cada um o seu código genético e dentro deste a sua história, a sua travessia? A medida de nosso destino, de nosso próprio, de nossa identidade, é o princípio, ou seja, o vigorar da dobra de caos e cosmo.
Por isso, em sua essência, a dança não se reduz a nenhuma identidade cultural ou histórica. Ela atrai e distrai a todos, em todos os lugares, na justa medida de sua retração. Seja onde e em qualquer tempo que aconteça, só precisa ser dança. Qualquer atributo para dança já é uma diminuição do que em toda dança é dança. E o que em toda dança é dança é a essência do humano, daí o encanto de todas as platéias e a atração pela dança em todos os tempos e lugares. A dança não pode ficar submetida a disciplinas que a determinem, mas é ela que deve constituir sempre o alcance das disciplinas. Quem diz disciplina diz conhecimento. O que o conhecimento tem a ver com a dança? Fazendo parte da essência do humano, toda dança é conhecimento na medida do conhecimento da essência humana. A essência do ser humano é a sua referência ao ser. Daí não poder ficar determinada pelo instrumental ditado seja lá por qual sistema for. Neste sentido de disciplina e sistema, a dança é o não-conhecimento porque é o não-sistema, porque é o livre dar-se e manifestar-se do que cada um já desde sempre é. Dança é sempre travessia, história, obra. E obra é o que opera. Opera o quê? A educação do humano pelo deixar vigorar o seu principio constitutivo. Aqui está a questão. O princípio constitutivo do humano é o estético ou o poético? Dança não pode ficar reduzida a vivências estético-sentimentais, a um espetáculo para os olhos. Ver dança é ver-se enquanto sendo dança. Para as vivências dos sentidos, entre outros meios, uma confeitaria cumpre bem essa finalidade. Dança não é meio. É. E é na medida de seu poder de diálogo poético.
Já notaram que tenho levantado diferentes questões através de perguntas, em que uma resposta se desdobra em novas perguntas? Isso é a dança. Não há modelo conceitual que dê conta da dança em sua essência, em sua constituição fundadora. Mas deve haver um fio que nos conduza neste labirinto de perguntas e respostas e perguntas, lembrando o fio de Ariadne. O fio é o princípio. A realidade é o labirinto que exige de nós uma caminhada de sentido, um motivo que nos mova em nossa existência. É para esse sentido que a dança nos conduz, se a deixarmos operar, se tivermos a coragem de nos entregarmos a ela em sua vigência. Na dança poética somos tomados pelo que somos, pois ser é sempre uma tarefa poética, onde quem vigora é o princípio: o não cessar do estar sendo.
Dança: mito, rito e ritmo
Ser e princípio eis a questão.
É neste momento de pensar o princípio enquanto questão que trago o outro fato surpreendente e que me caiu nos olhos de uma maneira estranha. Tinha lido no livro A outra voz, do excelente ensaísta e poeta mexicano, Octávio Paz, uma afirmação importante. A modernidade só aconteceu no Ocidente, em nenhuma outra cultura do mundo inteiro. Isso tem implicações cada vez maiores. Todas as culturas e suas produções passaram a ser vistas e lidas e compreendidas e determinadas pelos conceitos modernos ocidentais. É uma fatalidade. Para o bem ou para o mal? Devemos abandonar de vez as falsas e restritivas alternativas metafísicas que a modernidade institucionalizou. A mais deletéria no caso de nosso tema é: a dança é técnica ou não técnica, é útil ou não útil? A realidade fica reduzida a dicotomias, a uma visão excludente de duplos criados pelos conceitos. O ser humano é corpo ou é alma? Para além das dicotomias há as dobras. Se o conceito gera o duplo, a questão gera a dobra. E pergunto: Ao dia não sucede a noite e à noite não sucede o dia, sem dicotomias? E presidindo o dia e a noite não vigora o sol? Na unidade que é a linguagem da luz do Sol, há a dobra nunca o duplo dicotômico. Somos dobras poéticas de identidades e diferenças. Onde fica, pois, a dicotomia excludente? Não fica, é uma aberração. Sendo o sol o vigorar poético, é natural que na dança não aconteça nenhuma dicotomia. Não é ela um milagre do nada acontecendo?
Pois bem, procurando eu a afirmação do Octávio Paz, para citá-la corretamente, me deparei com uma outra afirmação ainda mais admirável e surpreendente:
A poesia como palavra fundadora de um povo é um traço que aparece em todas as civilizações, do poema de Gilgamesh, fonte provável de nossa tradição épica, ao do Cid. Em outras culturas, a poesia não só estava intimamente associada à religião e à mitologia como às outras artes. Sabemos, por exemplo, que os astecas recitavam, cantavam e, o mais admirável, dançavam seus poemas (Paz: 2001, 96).
Vejam, até o próprio ensaísta se surpreende com a presença da dança na poesia. Não é estranha essa estranheza? Dança, em sua essência, não deveria ser o princípio de todas as artes na medida de sua musicalidade? Se lermos com atenção a passagem, essa constatação ainda é mais estranha, pois diz que “a poesia não só estava intimamente associada à religião e à mitologia como às outras artes”. Todos sabemos e devemos cada vez mais proclamar que dança é arte. Por que então a dança aparece como algo que deixou de ser normalmente incluída nas artes em que acontece a poesia? Aqui vamos ter uma questão histórica que merece um estudo profundo e esclarecedor. Não é o momento oportuno para tratá-la. Por que a dança, que é poética e co-originária às outras artes, foi sendo deixada de lado? Com isso quem perdeu: as disciplinas que constituem o elenco de conhecimentos tendo em vista a educação do ser humano ou a educação integral do ser humano? Para haver uma educação integral do ser humano a dança tem que tornar a conquistar o lugar que é dela e só dela e não pode ser substituída por nenhum outro conhecimento. E mais: a poesia enquanto poética congrega e deve congregar – com pleno direito – todas as artes. Portanto, a dança. Não se pode compreender a poesia sem a dança nem a dança sem poesia. A poesia sem a dança é uma fala sem corpo, porque a dança é a corporeidade de todo ser humano. Eu afirmei: de todo ser humano e não apenas dos que freqüentam academias, escolas e faculdades de dança. Neste momento, faço uma pequena mas essencial distinção: é necessário educar não só para a dança, é ainda mais necessário educar com a dança. Como assim? Todo educar é um ensinar e aprender. Mas o que é ensinar e aprender?
Para melhor encaminhar meu questionamento, voltemos à declaração do excelente e poético ensaísta Octávio Paz.
Em outras culturas, a poesia não só estava intimamente associada à religião e à mitologia como às outras artes. Sabemos, por exemplo, que os astecas recitavam, cantavam e, o mais admirável, dançavam seus poemas (Paz: 2001, 96).
No lugar de “outras culturas” eu afirmaria, com grande certeza, em todas as culturas a poesia estava associada à religião e à mitologia. Para mim, as artes, historicamente, não são algo que vem se acrescentar à religião e à mitologia. Aliás não há religião e mitologia. Religião, qualquer religião, é mitologia e mitologia é religião. Faço apenas uma distinção de fundo. Não podemos nem devemos confundir religião com sistema religioso de crenças. Para evitar confusões, no lugar de religião prefiro usar o termo sagrado. O sagrado é mitologia e a mitologia é narração do sagrado nos ritos. Por isso todas as artes são manifestação do sagrado, todas elas são narrativas e rituais. Como? Em primeiro lugar devemos pensar as artes ligadas ao sagrado dos mitos e ele sendo muito mais do que o âmbito das religiões e seus sistemas. O sagrado diz respeito ao mistério da realidade, isto é, de caos e cosmo, tendo como princípio a luz irradiante, fundadora, criadora. Luz é energia luminosa que se dá na dobra de luz e sombras. Todos os mitos fundadores pensam a manifestação e vigência da realidade na dobra de caos e cosmo. Cosmo é o caos enquanto mundo. Neste sentido, as artes são a manifestação do mistério do caos e do cosmo. E se há algo que é radicalmente dança é o caos e cosmo. O cosmo é em verdade a dança do caos. E aqui chegamos ao que afirmei acima: dança é princípio de realidade. O que é princípio? Vocês algum dia já pensaram a dança como princípio poético?
O princípio – o cosmo enquanto dança do caos – vigora em todos os povos, em todas as culturas de todos os tempos. Princípio é o tempo se manifestando, abrindo-se na clareira da verdade. Verdade não é o que é correto e adequado, é o que se dá a ver. Todo princípio – como toda dança - é um acontecer do tempo e no tempo, é um acontecer do nada. Acontecer é a manifestação, o vir ao aberto da realização. Como a semente que brota da terra e se abre para o aberto do céu. Como a criança que cresce no ventre da mãe e desabrocha na natividade do vir à luz, ao livre aberto do acontecer da realidade como mundo. Guimarães Rosa, em Grande ser-tão: veredas, narra, depois que Riobaldo ajuda uma pobre mulher do ser-tão a dar à luz: “Minha Senhora Dona: um menino nasceu - o mundo tornou a começar!...” (Rosa: 1968, 353). Eu mudaria esta afirmação para: “Minha senhora dona, uma menina nasceu: o mundo tornou a dançar”. Examinemos o nascer para vermos alguns elementos esquecidos. O nascer sempre foi um fato fundamental em todos os povos, daí as festas da fertilidade. Claro, sem nascimento só restará a morte, o fim. Vejam que toda a narrativa, toda a saga do cristianismo começa com a festa da natividade, do Natal. É quando a mãe-mulher-terra está pronta para dar à luz, fecundada pela luz celeste, pelo espírito. Examinemos essa festa. O que a constitui? Em primeiro lugar um mito. Mas não há mito sem rito. A tensão de mito e rito acontece na dobra do ritmo do acontecer da realidade, do nada tornando-se milagre. No ritmo de mito e rito acontece a dança musal de todas as artes. Não é a dança e as demais artes que criam o ritmo de mito e rito. É a própria realidade, o próprio caos se desdobrando e manifestando em cosmo. Isso são as artes, todas as artes. E são artes na medida desse dar-se a conhecer enquanto ver inaugural. Todas as artes são um dar-se a ver do caos em cosmo. É um ver que poucos veem, porque o essencial não está na visão, na perspectiva, mas no que na luminosidade do horizonte sempre se vela. Do que vemos do que se dá a ver, vemos muito pouco, porque é muito mais o que se vela. Esse dar-se a ver, acontecendo, é o que se denomina Poética. Já Platão no diálogo Banquete disse: “Toda poiesis é o passar do não-ser ao ser”. Isso é dança, porque a dança é o movimento do repouso para o repouso, assim como toda fala é fala do silêncio da linguagem. Mas isso acontece conosco e com toda a realidade incessantemente. Por isso disse Rosa no conto “O espelho”: “Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes” (Rosa, 1967: 71). A diferença dos retratos só é possível porque a realidade é essencialmente uma dança musical de mudanças. Um corporificar-se do que somos no estar sendo. Não se pode dar dança sem esse dar-se a ver da realidade. Dar-se a ver é dar-se a conhecer.
Toda dança é essencialmente conhecimento poético. Quando vemos dança ou dançamos, não somos nós que dançamos ou vemos dança, é a realidade que se nos dá, no acontecer do nada, isto é, do conhecer do caos na dobra do cosmo. A dobra originária é de ver e não-ver, de conhecer e ser, na unidade do entre enquanto nada. E nos convoca a sermos dança. Como isto é possível? É porque a realidade é dança enquanto princípio. Devemos logo tirar de nossos conceitos o princípio como uma afirmação genérica, abstrata, que anula as diferenças. Estas são sempre concretas. Como? O grego pensava o princípio na palavra arché. Dessa palavra se formou o substantivo archonte, aquele que comanda, que está à frente, aquele que conduz. Nenhuma condução se dá em abstrato, como não há dança em abstrato. A pauta de uma coreografia ainda não é dança. O princípio vigora na obra e toda obra é obra na medida da sua vigência num telos. A palavra telos diz fim, não enquanto término de um percurso, mas enquanto consumar, levar à consumação, à plena realização. A mãe se realiza nos filhos, a flor nos frutos, o fruto na árvore, a árvore nas flores e assim permanentemente. Isso é telos. Não há, portanto, arché sem telos, mas também não há telos sem arché. Como acontece isso na dança? Na dobra de dança e obra de dança, na dobra de obra e bailarino, na dobra de dança e expectador. Mas então o expectador, como o bailarino, tem que deixar eclodir dentro de si a energia luminosa da dança que vigora como princípio na obra de dança. É o que a preposição portuguesa com quer dizer, daí a palavra concreto se opor a tudo que é abstrato, genérico, indiferente, aquilo que é inerente a todo gênero. Essa energia luminosa, que vigorar no com, é que constitui o próprio de cada um e não e jamais a sua imaginação ou sentimentos subjetivos, sensações estéticas, pois estas sem a energia luminosa da dança não podem nada. É esta energia luminosa como princípio que age e transfigura os que se deixam tomar pelo operar da obra de dança. Em verdade, em qualquer obra de arte, porque em todas as obras de arte sempre vigora o mesmo princípio poético.
Linguagem e matéria
Então todas as obras de arte são iguais? Claro que não. O poético é a linguagem enquanto unidade operando o princípio de criação que se chama matéria. É nas matérias que as obras de arte se diferenciam e não e jamais na linguagem.Nas obras de arte vigora sempre a linguagem como unidade, da qual as diferentes realizações materiais das obras de arte recebem o seu sentido. Nas obras de arte, as suas diferenças estão no princípio de criação: a matéria, não na linguagem que as reúne e lhes dá sentido. A linguagem vigorando é o caos eclodindo em cosmo enquanto mundo e sentido. É a linguagem de todas as artes. A linguagem é a unidade poética de todas as obras de arte. Linguagem diz-se em grego logos. E não há, é evidente, tantos logoi quantas são as artes. Não há linguagens artísticas. Há diferentes matérias fecundadas pela linguagem. Há artes quando nelas vigora o logos. Para o grego isto não oferecia a menor dificuldade. Para o grego, logos ou linguagem nada tem a ver com a palavra língua, que se diz em grego glossa. A palavra é o telos da arché, isto é, da linguagem ou logos. Assim como há arché e telos, há para ele duas palavras para vida: zoé, princípio vital, e bíos, o vivente. As diferenças acontecem nos bíoi. E sua identidade, enquanto princípio, é a zoé. Um bíos está sendo até chegar à plenitude e deixa de estar sendo para ser na sua plenitude. Reencontrar a zoé. Na morte deixa de estar. Só é. É a sua morte como plenitude ou telos. No telos enquanto plenitude não há mais estar, só ser.
Para apreender e compreender isso, enfim, para aprender isso é necessário agora nos voltarmos para a realidade enquanto princípio. Diante da afirmação do poeta Rosa, acima, da impossibilidade de duas fotos iguais, o pensar comum e repetitivo da banalização seria a conhecida afirmação da relatividade do tudo passa, tudo é passageiro, aparência, fatuidade, niilismo, ilusão, sem sentido. Isso não é dança. São sensações sem sentido. Dança não é estética, sucessão de sensações para deleite de uma subjetividade. Não que não seja isso, é isso também, mas é mais, muito mais. É princípio. Por quê? O princípio, segundo o pensador Aristóteles, não é estático, é dinâmico. Não é linear, é circular. Não é finito, é infinito. Não é de exclusão, é de inclusão. Deixando vigorar o princípio é que hoje podemos e devemos dizer e proclamar a dimensão mítica da dança. E só apreendemos a dimensão mítica da dança, enquanto princípio, se abandonarmos de vez a sua exclusão pela lógica que expulsou o sagrado das artes e as reduziu a aprimoramentos racionais e técnicos. Esta redução se deu em detrimento da própria dança, em seu sentido cósmico e mítico. E a redução se deu pela dicotomização da realidade, reduzida ao seu aspecto causal, funcional e técnico. Expulso o mito em nome da razão científica, foi expulsa a dança. É necessário deixar a dança voltar à casa da linguagem. Como? Reconhecendo o fundo mítico-caótico da realidade na dobra das manifestações artísticas, realizando o sentido da realidade enquanto mundo. Artes não são técnicas, mecanismos apenas. São mais. São sentido, são mundo. São vigorar do princípio, isto é, são ritmo no dar-se, no acontecer dos ritos e mitos.
Dança e física quântica
E o mais interessante é que essa necessidade de a dança voltar às suas origens não é apenas um postulado da Poética. Também é de uma ciência nova: a física quântica ou mecânica quântica. Descoberta pelo físico alemão Max Planck no início do século XX, trouxe mudanças que só hoje estão operando em toda a realidade. Não haveria toda a ciência da computação e a realidade digital sem a mecânica quântica. Será que um dia um programa digital vai substituir a dança? Não. E sabem por quê? O operar da dança não é programável. É sempre inaugural. Nunca se dança a mesma dança duas vezes. Nunca vemos a mesma dança duas vezes. Sem a essência da dança não há dança. E essência é o acontecer do nada, esse milagre insólito.
Fritjof Capra, no livro O tão da física (Capra: 1995), nos dá indicações da essência da dança, como a estamos encaminhando aqui. Todos sabem que para a física quântica tudo na realidade se reduz a partículas e ondas. Nós mesmos somos partículas e ondas. Porém, o que não cabe nessa teoria é algo que nenhum cientista pensa: a linguagem, as artes. Os cientistas teorizam a realidade mas não teorizam a linguagem a partir da qual podem teorizar a realidade, até porque não podem reduzir toda a ciência às meras fórmulas matemáticas. Para enunciá-las já precisam do quê? Do vigorar da linguagem. A própria matemática, em seu sentido profundo, já vigora na linguagem. Nesse livro, o autor faz uma aproximação com a antiqüíssima sabedoria do Oriente. Procura trazê-la para os conceitos ocidentais. É um esforço louvável. A questão é que a sabedoria do Oriente não cabe em conceitos que possam ser ensinados. Só experienciados num exaustivo aprender. É o que chamo aprender com a dança. Nesse livro, há dois tópicos extremamente importantes para nosso tema: “Vazio e Forma” e “A Dança Cósmica” (Capra: 1995, 7).
Não é meu intento tratar desta temática agora, mas não posso deixar de assinalar que a dança é um fenômeno cósmico, como venho mostrando. O interessante é como surgiu essa percepção da dança para o autor. Ele narra no prefácio:
Há cinco anos experimentei algo de muito belo, que me levou a percorrer o caminho que acabaria por resultar neste livro. Eu estava sentado na praia, ao cair de uma tarde de verão, e observava o movimento das ondas, sentindo ao mesmo tempo o ritmo de minha própria respiração. Nesse momento, subitamente, apercebi-me intensamente do ambiente que me cercava: este se me afigurava como se participasse de uma gigantesca dança cósmica (Capra: 1995, 13).
Nossa visão das coisas dá-nos a impressão de que a realidade é feita de coisas materiais, estáticas. É um grande engano e essa concepção está totalmente ultrapassada. Sabe muito bem qualquer praticante da dança que se deixe tomar pelo livre entregar-se ao ritmo erótico de estar sendo que a realidade é bem outra. E isso não cria uma oposição ao espiritual. É uma realidade só, única, transfigurada. O que a física do século XX descobriu com as experiências a dança já sabia de um saber só de experiência feito: “Todo o universo está, pois, empenhado em movimento e atividade incessantes, numa permanente dança cósmica de energia” (Capra: 1995, 170). O que o Ocidente levou séculos para descobrir pelo viés da ciência, a arte já o sabia há muito. Porém, a crítica moderna, de cunho racional e funcional, nas mais diferentes variantes, obstruiu esta experienciação da arte, mais especificamente da dança. E a ciência da física quântica vai encontrar eco de suas descobertas nos místicos orientais, uma vez que os ocidentais foram classificados como míticos e metafísicos e, portanto, não passíveis de crédito. Alexandra David-Néel, física, em visita ao Oriente, relata que encontrou um lama que se referia a si mesmo como um “mestre de som” e que lhe assegurou o seguinte:
Todas as coisas [...] são agregados de átomos que dançam e que, por meio de seus movimentos, produzem sons. Quando o ritmo da dança se modifica, o som que produz também se modifica. [...]. Cada átomo canta incessantemente sua canção e o som, a cada momento, cria formas densas e sutis (In: Capra: 1995, 183).
Como podemos ver, a dança é algo muito profundo e misterioso e que jamais pode ser restringida a uma disciplina entre outras disciplinas. Ela diz respeito a três instâncias interligadas e indissociáveis: A realidade, o ser humano e a linguagem enquanto saber da arte. No entre realidade e linguagem é que o ser humano faz sua travessia e chega a realizar o seu destino. Como?
Aprender a, sobre, com a dança
Brevemente, esta é a última parte que quero desenvolver neste pequeno ensaio. E retomo agora o início quando li no jornal a notícia a respeito do crescimento do interesse pela dança e da criação de muitas faculdades ou escolas de dança. Uma faculdade se estrutura em dois pólos interdependentes: os alunos e os professores. E qual o objetivo da instituição? Os professores ensinarem e os alunos aprenderem a dança. Como podemos ensinar dança se não soubermos bem e claramente duas condições prévias: O que é dança? O que é ensinar e aprender? Mas tanto uma como outra estão presas a uma terceira que as configura: O que é conhecimento, pois supõe-se que ambas se dão enquanto conhecimento. Podemos dizer que o conhecimento é o que distingue o ser humano na ordem da realidade, não lhe dando superioridade nenhuma em relação aos outros entes, mas a própria realidade realizando-se neles enquanto conhecimento, que de outra maneira a própria realidade não realiza. Toda a realidade é dança e música, mas só no ser humano ela se realiza como obras de música e dança. É o conhecimento, é o sentido grego de techné. Esta, portanto, não significa em primeiro lugar procedimentos e meios de fazer. Nesse sentido a techné já foi esquecida em sua essência e reduzida a mecanismos de aprendizado e de execução. Estes são importantes, mas não são toda a techné.
Se o conhecimento distingue o ser humano, ele pode ser considerado em duas instâncias. Há o conhecimento dos conceitos, universal e abstrato, passível de uma transmissão e de aprendizado, expresso em normas ou leis causais. Ele é baseado numa concepção da realidade como fundamento causal e tem uma aplicação funcional com vistas às finalidades do sistema em que se dispõe, institui e constitui. É o campo das disciplinas e visa assegurar a transmissão dos conhecimentos elaborados pelas pesquisas, a partir de teorias racionais. Eles permitem a intervenção e o controle da realidade. Tudo que é se constitui do que é e do como é. O conhecimento causal é o como é e o como se conhece a realidade. Nele, o que é é deixado de lado e esquecido. Se agora nos voltamos para a dança, constataremos que tal conhecimento é o que predomina nas disciplinas do currículo. E tem dois objetivos: o ensinar a dança aos alunos e estes aprenderem-na enquanto mecanismos técnicos. É o aprender a dança. Há um outro aprender através dos conceitos, mas onde estes dependem de uma atividade que na modernidade se tornou determinante: o conhecimento crítico-conceitual. É o aprender sobre a dança. É um conhecimento estranho, mas muito praticado e respeitado. Porém, sua autoridade tem algo de mágico, pois o crítico se arvora ter um conhecimento que lhe dá uma autoridade sem legitimação a não ser da própria crítica. O conhecimento crítico se legitima a partir da crítica. É uma estranha tautologia. Claro que não podemos esquecer o fundo em que ela se baseia: a Crítica da razão pura, do pensador Kant. Tal leitura da obra é a que interessa ao sistema, não ao pensamento das questões. Mas por que a realidade deve ser determinada e submetida tanto à crítica quanto à razão? E isso em termos da arte é contraditório, pois as artes se afirmam e supõem como opostas às atividades racionais e críticas. Porém, esse conhecimento faz a fortuna de muitas disciplinas. E dos alunos e professores sempre se está exigindo um conhecimento crítico. Só não se pergunta se tal conhecimento ainda é artístico e o que o funda.
E o que será isto – o conhecimento artístico? É um outro conhecimento, o não-conceitual e não-causal, o conhecimento poético. É o conhecimento inerente às questões. As questões são os interstícios dos conceitos, aquele conhecimento que não resulta da atividade racional. As questões não são algo que o ser humano possa ter ou não ter. Elas são prévias ao próprio ser humano. E são elas que têm o ser humano. Este é e só é sendo enquanto questão. Morte é questão. Vida é questão. Tempo é questão. Eros é questão, etc. Enfim, ser é a questão. Se os conhecimentos conceituais advêm por dedução e experimentação, os conhecimentos das questões só nos advêm por experienciação. São os conhecimentos que constituem sempre uma aprendizagem e não são jamais, apenas, o resultado de um aprendizado. Este é importante, mas não decisivo. Em que faculdade Cartola aprendeu música?
A aprendizagem da dança não acontece com o conhecimento da dança, sobre a dança. Só é possível quando se dá com a dança. Para compreendermos a especificidade e propriedades desse com, temos de nos perguntar o que é aprender. Este verbo forma-se do verbo latino prehendere, que significa prender, agarrar, afetar. Aprender é tudo que nos afeta. É o vigorar de eros. O que desde que nascemos nos prende, agarra e afeta é o princípio, é o ser. Desde que nascemos já nascemos com um destino, o a ser realizado. Viver é existir em desempenhos para tomarmos posse do penhor pelo qual nos empenhamos. Porém, esse penhor – esse telos - já desde sempre temos: é o que somos, nosso próprio. E que, de fora, ninguém ou nenhum conhecimento nos pode dar ou tirar. É nesse sentido que o grande poeta-pensador grego Píndaro, no século V, antes de Cristo, disse poeticamente concentrado apenas num verso: Torna-te o que és, aprendendo. Se o que somos é o ser que nos foi dado para chegar a ser, isso só é possível na medida em que nossa existência tende para o que já desde sempre somos. É o que nos move, nossa tendência dançante. Tender para, ir para junto de, diz-se em latim: ad. Ou seja: a-prender é ad-prehendere. Tender para, ir para junto do princípio. O com diz o movimento de se deixar tomar pelo princípio, ser com o que já somos, em reunião e na unidade do que somos, de nosso destino, nosso dote, nosso próprio, nossa identidade. Se a realidade é originariamente dança cósmica, aprender com a dança é deixar-se possuir pela dança. Pois deixar-se possuir é realizar a possibilidade de para possibilidade. Isto é libertar-se, ser com a dança.
Na dança advém o conhecimento enquanto questão. Todo conhecimento se dá numa dobra: é o que é no como é. O como é é o conhecimento do que se é. Num tal conhecimento do como se é se realiza o que é, isto é, o que somos. Quando nos deixamos tomar pela dança, faz-se dança o que somos no como conhecemos. Nesse sentido, o conhecer é chegar a ser o que se é. Um tal chegar a ser é o que se denomina acontecer poético. No âmbito da poética, não basta conhecer, é necessário ser o que se conhece. Não é algo já pronto. Muito pelo contrário. É uma conquista que exige de nós muita dedicação, disciplina e, sobretudo, renúncia. A dança sendo energia e nós sendo energia, a unidade advém sempre em fluxos contínuos, ininterruptos pelo e no diálogo com as diferentes manifestações artísticas, mas sobretudo no diálogo. Porém, devemos distinguir, discernir, três diálogos: o diálogo com o outro que se me opõe, o diálogo com o outro que ainda não sou e devo chegar a ser, e me é dado em composição. E, enfim, o diálogo com o logos, a linguagem que vigora na auto-escuta e que me dá a unidade do que sou com tudo que está sendo e é. É a dança cósmica do desvelar-se do universo no velar-se do mistério do caos. Em toda arte, em toda dança, o caos só se faz presente de modo oblíquo, velado. É a poética enquanto fluxos e diálogos da, na e com a dança. Fluxo não é mera sucessão de algo. Em dança, o fluxo é o acontecer do nada, fazendo-se dança, sentido corporal. É a corporeidade da dança, a linguagem fazendo-se corpo, encorpando o que somos por estarmos sendo.
Inconclusão
A grande dificuldade de a ciência e a técnica se abrirem para o acontecer das artes está em que elas reduzem tudo a leis causais. E lei causal só se pode comprovar funcionalmente porque é regida pela medida. O que não for passível de medida não é científico, já afirmou o pai da física quântica: Max Planck. Mas será que o silêncio, o vazio, o repouso, de onde vem e para onde tende toda a dança pode ser medido? Não. E também não precisa, porque o eros que move todas as artes não precisa nem é passível de medida. Só de paixão de ser. As artes são não-causais nem funcionais. São, portanto, sem fundamento. É nessa dobra de gesto e repouso que acontece o operar da techné da dança e de todas as artes. Nossa dificuldade de compreendermos a techné é que queremos reduzi-la à técnica moderna. Esta é regida pela quantidade e não pela qualidade. Quando a quantidade explode em qualidade, nesse entre deixou de ser técnica e passou a ser poética. O que aconteceu? Reinstalou-se o seu sentido grego originário. Não há, portanto, poética sem techné, mas não há técnica que faça eclodir o poético por si e em si. Simplesmente porque a técnica é regida pela causalidade, onde o fazer é mais importante do que o acontecer do nada, para que se veja o milagre. Ora ver o milagre, como nos diz Rosa, é a techné. Esta palavra grega diz o conhecer que advém no e pelo ver do ter visto. Ter visto o quê? O que é e está sendo. Como isso se dá? Esse é o sentido de aprender, aprender com a arte, aprender com a dança.
Bibliografia
CAPRA, Fritjof. O tao da física. São Paulo: Cultrix, 1995.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 3. e. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
-----------------------------. Grande sertão: veredas. 6. e. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 2001.