26 outubro 2011

A história do sentido das artes: narrativas e mito



Próprio é o que foi doado a cada um para ser. O próprio são possibilidades de e para possibilidades. O próprio, por isso mesmo, acontece como existir.
Não se pode separar o próprio da essência e esta da verdade, pois a essência da verdade é a verdade da essência. Portanto, vai aparecer o próprio enquanto possibilidades, as da essência, ou seja, da verdade. Verdade é sempre possibilidades de e para possibilidades. Disso se conclui que o aprender com essencial deve sempre ser um aprender com a verdade da essência. Ele é sempre o se deixar tomar pela essência, isto é, pela verdade. Só a verdade nos liberta. Quando não nos deixamos tomar pela essência? Quando em nosso viver vivemos em meio aos entes e nos pautamos pelos entes em suas relações e funções, pois então dá-se a entificação do ser. Essa força entificadora é tão dominante em nós e nos sistemas que o próprio Deus, na maioria das vezes e pela maioria das pessoas, reduz-se a uma entificação. A entificação nos torna surdos e cegos para a voz e a luminosidade irradiante do ser, energia vigorante em tudo que é. Entificação é o limite no limite e pelo limite. Todo código é o limite pelo limite. O alcance de todo código limita-se aos significados, à semântica. Onde há semântica do código não fala a voz do silêncio.
O lugar da essência e da verdade aparece na medida em que somos continuamente um agir, um estar empenhado em alguma ação e em termos e procurarmos sempre como penhor de todas as ações um bem. Sem essência e verdade não se pode manifestar o bem de todo empenho e como o penhor. Ora, um tal agir é o que se denomina o aprender com.
Mas o que nos leva a agir como seres humanos não é essencialmente o viver como viver, mas o viver com sentido. Este é o motivo poético do existir. Aprender com é o viver na experienciação deste sentido. Ele já nos tem e nos impulsiona na medida em que o humano consiste nas questões. Só o humano é tido pelas questões. Viver não é questão. O sentido do viver, sim, é questão. E o sentido implica essência e verdade. Eis o âmbito poético de toda manifestação artístico-poética. É por isso que nenhum outro ser vivo é tomado pela techne, nos diferentes sentidos gregos. É nesse mesmo horizonte que o sentido do viver que implicam as questões é desvelado em toda atividade poético-artística. Porém, não se pode nunca reduzir o poético-artístico ao estético ou a classificações formais e epocais, a gêneros ou a modalidades narrativas. O sentido eclode nas obras de arte e o sentido nos adentra na medida em que são as questões que constituem as obras de arte. Questões dizem aí a essência e verdade do que somos.
Questões nunca são algo e muito menos algo cultural. Daí que questão nunca é definida por e em nenhuma língua. Onde houver definição, estará ausente o vigorar da questão, isto é, a essência e a verdade. A questão não tem definição. Mas todas as culturas serão sempre experienciações originais das questões. Eis o nosso temor da perda das identidades culturais pela generalização e uniformização promovida pela globalização. Serão as questões que deixarão de se manifestar em percursos e tentativas históricas de respostas, isto é, de experienciações poético-culturais. Elas são o exercício existencial de cada um em suas possibilidades, ou seja, em sua essência e verdade.
Se a experienciação é sempre de cada um, a vigência das questões é sempre, como respostas, epocal, isto é, coletiva. É impossível reduzir as questões a algo subjetivo ou pessoal. São elas que inseminam epocalmente as possibilidades de cada próprio, porque seremos sempre uma ventura e aventura coletiva e política, não no sentido partidário, mas no da pólis grega, onde ela significa o pólo de reunião e afirmação das diferenças. Essa aventura coletiva é que se denominou, desde que ser humano é ser humano, mito, ou seja, uma narração. Mas são então narrações das questões. Por isso, os mitos serão sempre coletivos, culturais. Jamais se pensou ou se tentou reduzir um mito a uma propriedade pessoal. Da mesma maneira o próprio só se apropria na dimensão e percurso dessa aventura e ventura em que cada um pode chegar a se experienciar como fazendo parte da aventura em que os mitos, isto é, as narrativas, nos lançam. Essas narrativas nunca são conceitos ou invenções aleatórias e exteriorizantes de situações pessoais ou interesses subjetivos e fatos historiográficos, porque estes reduzem tudo à representação. Nossa vida vivida e experienciada como narração jamais se pode reduzir a uma representação. Toda narração de questões tem de ser concreta. Nenhuma questão pode ser experienciada como representação. Quandod tal acontece, questão tornou-se conceito. Nenhum conceito é concreto, pois sua essência é a generalização. À representação e à conceituação falta o tempo ontológico. Este é o próprio da narração mítica. Quando as vidas narradas se tornam representações o mítico se ausenta e tudo se torna uma triste e alienante ilusão. Ilusão é toda realidade reduzida à representação. Representação é toda vida sem questões. Para se viver poeticamente as questões é necessária a coragem originária.
As narrações das questões serão sempre experienciações vivas e reais de vida, de procura do sentido, verdade e mundo. Mundo é o sentido se dando em verdade. E a verdade é a essência vigorando, se manifestando, aparecendo, fundando tempo e espaço, numa aventura de posições e deposições, isto é, manifestações linguísticas, no operar da posição enquanto sentido, isto é, da linguagem. A linguagem é sempre linguagem do ser se dando em estados, em posições. Ao ordenamento das posições em sentido e morada é o que denominamos disposição e reunião: mundo, morada, sede. Sem sentido não há reunião. Seria algo caótico. E só podemos falar em caótico porque já podemos ver e saber o que não é caótico. Ou seja, somos originariamente sentido, reunião. À reunião de posições em sentido e com sentido é o que denominamos narrativa. Assim como há um conjunto de posições, elas sempre advêm numa conjuntura. O sentido da conjuntura advém na reunião das posições em proposições. É por isso que uma narrativa é feita sempre de proposições. Essas proposições não serão nunca somente linguísticas, pois estas apenas indicam sempre posições circunstanciais, advindas do sentido inerente a toda posição e deposição na disposição das proposições. Ou seja, é o sentido da linguagem que funda as proposições das línguas. Então dizemos que a linguagem é. Mas ela não é, vigora, porque não é e jamais será ente. Só o ente é. Por isso o ser não é, pois se fosse seria ente. Porém, sem ser não há ente, como sem linguagem não há língua. Esta é e só pode ser porque a linguagem é sua origem e é sua origem porque é o ser vigorando e doando sentido às posições para que estas sejam posições no mundo. Sem mundo não há posições e nem proposições. E são constituídas pelo mundo porque este é o nada criativo acolhendo o humano como mundo. Todo acolher é um fundar uma morada, a linguagem, a casa do ser. E é casa porque recolhe e acolhe o humano de todo ser humano na sua procura de sentido, de verdade, música e morada do silêncio.
E como pode a verdade vigorar como sentido? Porque a verdade é a essência se tornando manifestação. Isto é, deixando o ser do próprio, ser, na vigência do que lhe é próprio. Ora, o próprio de cada sendo é sua essência. E a essência é sempre doação do ser. Todo sendo para chegar a ser tem de fazer a caminhada da manifestação da sua verdade, caminhando do nada para o nada, do vazio para o vazio, mas onde a travessia dessa caminhada se torna a eclosão das possibilidades doadas a cada sendo. Por isso estamos sempre a caminho da linguagem, casa do ser. Sem essência não há sendo. Cada sendo, por ser, já está sendo. Sendo é toda fala do silêncio, é toda posição do vazio, é todo passo da narração, é todo ato à procura do bem. Por isso mesmo é que a morada era denominada entre os gregos: ethos. Desta palavra nos advém o ético. Portanto, todo ético é o poético acontecendo. Ao acontecer do ético no poético é que se denominou narrativa ou mito.
Onde houver uma narrativa que não manifeste as questões que constituem a essência do humano, só teremos representações rituais externas e sem essência. Nelas e por elas jamais poderá haver aprender, muito menos a aprendizagem do ético. Podemos aprender sobre narrativas, podemos aprender os mecanismos técninos das narrativas, podemos reproduzir esses mecanismo técnicos, esses procedimentos, mas jamais chegaremos, nessas performances circunstanciais, a adentrar as questões que movem todo aprender com. Só as questões são sempre essenciais e éticas. Quando há um aprender com as questões? Quando no aprender somos movidos pelo e com aquilo que em nós é essencial, e fazemos de nosso agir um empenho e desempenho cujo penhor não se pode reduzir a algum bem entitativo e circunstancial. É que no empenho ético, que é sempre poético, o penhor é sempre o bem. É este que essencializa o ético. E essencializa porque nele o que acontece é a verdade, não qualquer verdade externa e circunstancial. Mas a verdade da essência, porque esta é essência da verdade. E elas, a essência e a verdade, são as questões vigorando. A essência do vigorar funda as narrativas, isto é, os mitos. Somente pode haver educação pelos e nos mitos. É que a narração não se pode restringir aos fatos como se estes já dissessem tudo que somos e não somos. Pelo contrário, é o que somos que pode dar sentido aos fatos, mas que então deixarão de ser fatos para serem, de fato, o que somos. E jamais podemos ser fora do vigorar das questões. Pois estas são o ser vigorando em cada um de nós, em cada época, em cada cultura.
É nesse sentido que todas as artes são narrativas, pois todas elas manifestam o que somos, a nossa essência, o nosso sentido, o nosso mundo, a nossa verdade, que não é pessoal, mas sempre o que na proveniência do que somos nos acolhe, recolhe e plenifica. As narrativas não serão poéticas quando lhes faltarem as questões, isto é, o ético-poético: sentido, mundo, verdade, essência, mito. Sem obra de arte não há sentido, verdade, mundo e linguagem acontecendo. É por isso que somente haverá história das artes quando houver a história do sentido das artes.

12 julho 2011

Passado

Manuel Antônio de Castro
www.dicpoetica.letras.ufrj.br
www.travessiapoetica.letras.ufrj.br

Entendemos por passado o que passou, o que deixou de ser e se desvaneceu no passageiro, na inconsistência do aparente. Para nós, em nosso viver superficial e circunstancial, o passado é o que se retirou e adentrou uma noite onde tudo deixa de ser. O passado é, enfim, uma grande noite, onde, parece, todos os gatos são pardos. A noite nos traz o silêncio absoluto e a ausência de vozes, cores, luzes, vida. É a morada dos mortos para a alma. É a grande noite eterna e enigmática, de onde não se volta e todos e tudo, as vivências e tudo que elas produzem e marcam nossa vida com todos as suas conseqüências e marcas circunstanciais, se reduzem a lembranças em processo contínuo de esquecimento. O passado é o que passou e não volta mais. Vive tudo da e na saudade. A noite é o grande abismo da anulação das diferenças.
Tudo isto é muito repetido e proclamado. E o que damos e acreditamos como verdadeiro é uma grande e banal falsidade. Basta dizer que por detrás de tudo há sempre um destino, tendo como fonte inesgotável um genos originário. A lei do genos é o destino: certo, justo e livre, dando-se como o próprio de cada um. Nela nada é esquecido ou omitido, impossibilitando qualquer acaso. Vigora. Acaso é o que a limitada razão não pode explicar causalmente. Às certezas inconsistentes da consciência desmascara o inconsciente, o genos acontecendo. Ao esquecimento da lei da morte corresponde a lei da memória e da vida, eros vigorando.
Só aparentemente a noite é o reino da morte e do passado, aquilo que não volta nunca mais. Se não volta e por isso se tornou passado nem por isso quer dizer que o passado é o que passou e deixou de ser. Nada deixa de ser. Sempre é por ter sido. Só sendo porque está sendo deixa de estar para passar a ser. O passado é o estar que se tornou ser, é o estar que ficou sendo, sendo o que ficou. Por isso mesmo o passado não passou, tanto não passou que ele e só ele é a luz do futuro. Todo futuro vive do passado, do qual é o que no passado está velado e possibilita todo vir a ser futuro.
O passado não é o silêncio sepulcral que se julga e divulga ser. O passado só é silêncio sem voz para os que só escutam os falatórios das circun-stâncias e do que não passa de brilhos aparentes e do aqui e agora transitórios. O passado é o vigorar do que não cessa de ser e nunca passa, pois é o permanecer de tudo que muda. Em nossa vida nunca nos guiamos pelo futuro que não conhecemos. Em nosso presente se fazem presentes e nos guiam as vozes que se tornaram passado e vigoram como voz ativa em nossa vida presente. Essa é a memória vigorante de tudo que é humano em todas as culturas, em todos os lugares. O futuro, já sabiam os antigos povos míticos, pseudamente primitivos, está no passado. O presente é a escuta do passado nas sonoridades e realizações do que se presentifica, de um agora que não cessa de permanecer mudando. Todo agora é a transitoriedade do aqui, possibilitado pelo instante já, vigência do que no passado se velou. Isso é o instante como acontecer. Isso é época, um passado destinado que ainda acontece. Sem o vigorar do instante, que não muda nem permanece, acontece, não há agora. O instante tem a urgência do próprio nas inconstâncias do agora e aqui. Um instante que não muda nem permanece não pode ser nem presente nem futuro. Ele é o presente como passado, pois o futuro é o velado vigorando no passado. Não podemos comparar o presente com o futuro, só com o passado, que é o que vigora e nos orienta e se faz presente em todo presente como possibilidade de futuro. A comparação é a possibilidade de o instante, acontecendo, ficar sendo. Sem passado todo progresso é uma falsa promessa do presente racionalizador, projetando um futuro. O ser não progride, vigora, porque tudo e todos já são. Vigorar é deixar o Ser acontecer em seu sentido: vigência da linguagem.
A noite não é o silêncio mortal e insonoro, pois o silêncio é a luz da energia irradiante da musicalidade originária. É o passado sonoro como possibilidade de escuta do presente, porque sempre escutamos o presente como as possibilidades realizadas e não realizadas do passado. Presente é a presença dessas realizações. A escuta que se escuta no presente é a voz velada no passado. Tanto é assim que tal voz desvelada não cessa de se tornar passado, a ausência de um presente, não a sua negação. Saudade. Sem presente não há ausência e sem as possibilidades do que se faz passado, sendo, não há presente. Só o acontecer do silêncio possibilita como presente o passado sendo no futuro que não é, mas passa a ser. Passa a ser a vigência do passado, no vigorar da unidade realizadora da memória.
A noite não é o silêncio apático. Nela a vida latente tem todas as vozes da realidade se realizando em silêncio. A noite é o silêncio em sua concentração máxima de fala. É tanta fala que não temos ouvidos para a ouvir. Só a loucura ou desrazão calma e acolhedora abre nossos ouvidos para a musicalidade da noite. A musicalidade da noite é o passado vigorando e se presenteando em futuro no presente.
Quando faremos do passado a noite de todos os dias? Quem sucede ao dia? Quem sucede à noite? Como haver sucessão se não houver a noite no dia e o dia na noite? Por que então opomos um à outra e a outra ao um? Neste circular incessante e infinito não há exclusão, só inclusão do futuro no passado, possibilidade do presente, instante acontecendo.
Dia e noite são uma questão de posição, ou seja, presente e passado são uma questão de posição. Toda posição é o ser estando. Sem ser não há estar, porque o estar é o ser sendo. Todo sendo é o ser se dando em posições. Nisso e só nisso consiste o estar. Todos almejamos ficar sendo. Por quê? Se estamos na noite almejamos o dia, mas se estamos no dia almejamos a noite. Entre-seres. O ser não é dia nem noite. Não é. Vigora. Acontece. O ser vigorando é o dia e a noite em seu estar se diferenciando. O permanecer da noite é a possibilidade do mudar do dia. O mudar do dia é a possibilidade do permanecer da noite, porque esta não pode permanecer sem o dia ser mudança. A mudança do dia é a permanência da noite. A permanência da noite é a mudança do dia. Não podemos nunca apreender e aprender a permanência como o que se tornou estático. A permanência não é estática nem dinâmica, porque não é. Vigora. Acontece. O acontecer é o vigorar que se presenteou em sentido. O vigorar jamais se pode tornar só ser devir. Ser devir é estar sendo. O ser nunca está sendo, só sendo no estar. Apenas o sendo pode e deve estar sendo. O sendo é o estar que vigora no permanecer e mudar. Só o sendo permanece e muda, se torna, é devir, aparecer e desaparecer, parecendo no estar. O silêncio da noite vigora em toda fala, assim como se torna o devir e parecer de todo sendo aparecendo. O mudar é o vigorar do estar sendo. O permanecer é o vigorar do ter sido: passado. O parecer é o aparecer do que se vela em tudo que está sendo.
A noite é o passado do que se dando se retraiu. O presente é o desvelamento do que se velou. O passado é o desvelado do que se velou. Por isso o futuro é sempre o desvelamento do que no passado se velou e torna possível o presente, sem o qual não pode haver futuro.

Destino


Ponho na altiva mente o fixo esforço
Da altura, e à sorte deixo
E às suas leis, o verso;
Que, quando é alto e régio o pensamento,
Súbidta a frase o busca
E o escravo ritmo o serve.

Fernando Pessoa/Ricardo Reis

19 abril 2011

A história, a arte e os atributos

Convido os leitores deste blog, que se interessam por arte e por história, a dividirem comigo estas dúvidas e a estabelecermos um diálogo para uma caminhada de renovação poética. Se mandarem email, não esqueçam de colocar o seu para que possa responder. O meu é: profmanuel@gmail.com. Peço que façam uma leitura circular e poética, de tal modo que o tópico que trata do passado, no final do texto, se torne o motivo que conduz todas as considerações anteriores.


A história, a arte e os atributos – para debater o ensino da literatura e das artes nas escolas e faculdades.


Manuel Antônio de Castro

São as obras de arte que recebem os atributos e daí passam a ser a arte e as épocas ou se dá o contrário? São as épocas que geram os atributos e daí passam para a classificação atributiva das obras de arte? Pode haver uma atribuição sem a outra, isto é, da obra sem a época ou da época sem a obra? São as obras e as épocas atributivas em si, como maneira de diferenciá-las ou são artifícios conceituais para organizá-las cientificamente? As coisas são atributivas em si ou não passa esse expediente de uma forma de diferenciá-las formalmente? Se são as coisas atributivas em si, em que se baseiam os atributos? Dizem respeito às diferenças das coisas ou são expedientes propositivos para apreendê-las formalmente nas suas diferenças? Se for um expediente conceitual e expressivo pode-se aplicá-lo indiferentemente às coisas e às obras? As diferenças das coisas são o mesmo das diferenças das obras de arte? Mas será que o atributo apreende as diferenças, seja das coisas, seja das obras de arte? Qual o estatuto conceitual do atributo? Como o seu conteúdo genérico e abstrato, como é próprio de todo conceito, pode apreender a dinâmica diferencial das coisas e das obras de arte? Qual a diferença entre a coisa e a obra de arte? Podem-se igualar as diferenças das coisas e das obras de arte? Não haverá na proposição um limite conceitual que não corresponde à dinâmica de diferenciação contínua das coisas? Como se diferencia o vigorar das coisas e das obras de arte? É a mesma coisa o conceito genérico e epistêmico com que se conhecem e classificam as obras de arte e o pulsar vivo das coisas? Não haveria pulsar vivo nas obras de arte?
Quando se passa das coisas e das obras de arte para a história qual o lugar dos atributos nas classificações históricas? Só as obras de arte têm história, as coisas não? Como pode haver história sem coisas, uma vez que não há coisas sem physis? E não há techne sem physis? A techne é a physis vigorando enquanto conhecimento. Qual a diferença do vigorar da physis nas coisas e nas obras de arte? Não estará aí a diferença que funda e possibilita a história? Mas então a história é um princípio da própria physis? Tudo isto é importante para que se possa apreender o vigorar da época? O que é então época? Não é a própria physis em seu acontecer? Acontecer é o vigorar desvelante em retrair-se e velar-se. Poderia ser vista esta dobra do entre na imagem do farol infinito que se acende e apaga, tanto em vigorar na luz desvelante quanto no vigorar da escuridão velante. O que nunca se ... (ver aqui a sentença de Heráclito que Heidegger comenta no livro Heráclito) põe. Como nenhum giro se repete, cria a linearidade. Mas como todo iluminar e todo velar-se é total também acontece o vigorar da physis em plenitude, circularmente. E sempre o mesmo. O que o iluminar ilumina quando a physis se ilumina? Ela ilumina algo diferente dela mesma? Não há aí o vigorar da dobra, que é o entre? Sem entre não há possibilidade de diferenciação. A physis é originariamente um entre, um polemos. O entre fundando as diferenças faz delas um fenômeno coletivo. A inteligência é epocal e coletiva. Não há uma época de uma obra só. Do ponto de vista da história o entre é o diálogo vigorando. E como se dá esse diálogo epocal, porque em toda época não há só desvelado, há igualmente o velado? O velado não é falta, mas o que nas obras é seu vigorar. Como as obras são fruto desse entre, elas só vigoram no e como diálogo. Sem diálogo não há época nem obras. A época são as obras dialogando. Todo diálogo se dá não só entre os dialogantes, mas mais essencialmente no entre desvelar-se e velar-se, porque estes vigoram no princípio da physis. Este princípio não é estático é dinâmico. Não é linear, é circular. Não é finito, é infinito. Não se gera por exclusão, mas sempre e continuamente como inclusão. É na e pela vigência da inclusão que as épocas são ao mesmo tempo lineares e circulares, estáticas e dinâmicas, finitas e infinitas. A finitude das épocas não está nas formas, mas estas só se constituem na medida em que as épocas se diferenciam na tensão de finito e infinito e estática e linear do princípio. Tanto o finito quanto o estático só o são para quem não vê e não compreende o que nas épocas sempre vigora e as torna desvelamentos do velamento. Por isso o princípio do acontecer poético é o diálogo. Sem princípio da physis não há acontecer. E sem acontecer não há diálogo. Este é o princípio vigorando e fundando as diferenças. O diálogo é a voz do entre como princípio constitutivo de tudo que é e aparece e de tudo que não é e se vela. Sendo tanto os leitores quanto as obras históricas seu ensino e aprendizado é uma questão de diálogo. A diferença do diálogo é tanto de fala e escuta quanto de posição e oposição. A physis enquanto história é o próprio dispor da realidade em sua história e diferenças. Neste dispor a physis se dá enquanto sentido. O sentido e não os limites são o próprio das épocas. Sem sentido não há épocas em suas diferenças. A impressão de limites advém do vigorar do sentido das diferenças em que a physis acontece. As diferenças não são de conteúdo de conceitos e conhecimentos, mas de verdade e não-verdade, de desvelamento e não-desvelamento, de posição e oposição. É este acontecer das obras de arte como acontecer da physis que constituem o que se denomina formas ou limites. Estes são decorrentes do vigorar da physis no e como entre.
Pode-se reduzir a história e seus períodos ou épocas a atributos diferenciadores? Como se dá então a relação genérica dos atributos com o acontecer da história? Pode-se reduzir o tempo, núcleo essencial de todo acontecer histórico, a classificações genéricas ou atributivas? Qual o real poder do atributo em apreender e manifestar as diferenças? Pode o tempo ficar tributário e dependente do atributo? Até onde o atributo se fundamenta na realidade, seja das coisas, seja das obras de arte, ou nas teorias sobre a realidade, seja das coisas, seja das obras de arte? Pode-se reduzir a arte a uma teoria e esta a posições epistemológicas? Qual a relação efetiva e a referência real do atributo com a epistemologia e com a teoria do conhecimento? Pode a realidade e as coisas e as obras de arte e arte serem todas igualadas e reduzidas a teorias do conhecimento?
Os atributos são definidos em seu alcance pela lógica. Mas de onde vem a lógica para poder reduzir toda a realidade ao lógico, ou seja, a um atributo? Pensar a realidade já significa pensar a realidade lógica ou a lógica da realidade? E o que fazer com o que na realidade não é lógico nem se reduz à lógica? Por exemplo, o silêncio é lógico ou ilógico? E se não for um nem outro? O silêncio é real e nem por isso pode ser reduzido a qualquer classificação atributiva, melhor, nenhuma classificação lógica pode apreender toda a densidade real do silêncio. Ou pode? O silêncio também não é uma questão de ponto de vista, seja subjetivo, seja epistêmico, seja lógico, seja científico, seja epocal, seja cultural, seja religioso. O mesmo se pode dizer de toda e qualquer questão. Outro exemplo, a vida. E outro, a morte. E outro, o tempo. E outro, o amor.
Qual a relação e a referência da questão com o conceito e os seus atributos? Pode uma questão ser reduzida a uma teoria? Pode a realidade ser reduzida a uma teoria? Os atributos são jogos das línguas ou qualidades efetivas da realidade na realização das coisas, do real? Pode-se reduzir a diferença das coisas e das obras de arte ao seu jogo lingüístico, representado pelos adjetivos? Não há como negar na realidade as diferenças, como não há como negar as identidades. Não reduziriam os atributos as diferenças reais das coisas e das obras de arte a uma identidade genérica atributiva, de tal modo que os tributos manifestariam muito mais identidades abstratas das coisas e das obras de arte do que a sua realização real?
E pode o ensino da arte e a própria criação de uma história das artes serem reduzidas a épocas diferentes pela atribuição diferente? E como pode um atributo de uma época apreender e manifestar as diferenças concretas das obras de arte e das coisas? Seriam inferiores as línguas por não derem conta da dinâmica da realidade e das diferenças das coisas e das obras de arte através dos atributos? Mas pode haver língua que não se funde na linguagem? Pode haver separação entre língua e linguagem? Pode haver separação entre linguagem e realidade? Por que temos a nítida sensação de que nunca conseguimos dizer aquilo que está acontecendo ou que nos está acontecendo? Qual a relação e a referência entre estar e ser e dizer e silenciar? O que não conseguimos dizer no que acontece ou no que nos acontece é uma questão de silêncio ou de riqueza e transbordamento da realidade em relação à sua manifestação na língua? Toda língua concreta é surgimento de posições. Só a linguagem é fonte de todo vigorar da realidade. A linguagem é a realidade vigorando em seu acontecer.
Sendo os atributos tão genéricos e tão pobres em relação à realidade e ao que acontece como se pode ensinar a arte através de atributos classificatórios? O que tem o atributo a ver com as formas? O atributo diz a forma de algo no seu limite ou a sua classificação genérica dentro da proposição? Sendo a realidade e as obras de arte essencialmente dinâmicas, um acontecer sempre inaugural, como podem os atributos darem conta delas? Qual a real relação do atributo com as formas, seja da realidade, seja das obras de arte, seja da arte, seja do tempo, seja das épocas? Só temos o atributo proposicional como único recurso para dizer e manifestar as diferenças? Mas será que podemos reduzir as diferenças às formas? O que entender por formas quando se trata do acontecer da realidade, das coisas, das obras de arte, da arte? Qual a real relação entre limite e diferença? Qual a real diferença entre diferença, limite e forma? Qual o real lugar da obra de arte nesta dinâmica, neste acontecer? O que então pode querer dizer a palavra “obra”, uma vez que vem do verbo operar? Como Aristóteles apreende com as palavras gregas “energeia” “ergon” essa tensão da realidade se realizando em obras? O que quer dizer então “entelekheia”, onde aparece como palavra-chave o “telos”? Qual o lugar do “telos” na determinação dos atributos e das classificações atributivas? Pode o “telos” da realidade e das obras de arte ficar reduzido aos conceitos epistêmicos e às teorias do conhecimento e às teorias científicas, sempre entitativas e finalistas?
Até onde podemos tentar uma via, dentro deste cipoal amazônico de questões e perguntas, apelando para a crítica? Até onde a crítica fica dependente das teorias críticas e da razão crítica? Pode a razão crítica dar conta da crítica da razão? Como sair deste paradoxo? Não destrói ele justamente o impasse, seja da crítica, seja da razão, na determinação da realidade e da arte, seja das coisas, seja das obras de arte, na sua classificação crítico-atributiva, isto é, não se manifesta já aí o impasse e o impossível poder de se fundarem os atributos na crítica racional? O que seria uma crítica não-racional? Pode existir? Até onde a crítica dá conta das diferenças acontecendo, isto é, das coisas sendo realizações da realidade, das obras de arte sendo realizações da arte?
Pode a Poética trazer novas dimensões para encarar de uma maneira criativa e não excludente todos esses impasses e complexidade, seja das coisas da realidade em sua realização, seja das obras de arte em sua realização? Como pode a Poética redimensionar todo o ensino e estudo das coisas da realidade, das obras de arte da arte, sem cair nas generalizações classificatórias dos atributos? Partir de onde? Da realidade ou da linguagem? Da lógica ou da realidade? Não estaremos com esse “ou” reintroduzindo as fraquezas e limites reais dos atributos, das dicotomias destruidoras do sentido do ser e da memória viva? Não haverá em relação aos atributos a necessidade de um encaminhamento novo em relação á lógica tradicional, fonte dos atributos? Mas para isso não seria necessário reestudar a lógica na sua referência à linguagem e na sua referência à verdade? Não seria necessário reestudar a referência da língua à proposição e de ambas à linguagem? E não seria necessário reestudar a referência entre linguagem e verdade e verdade e acontecer da realidade, que se denomina tradicionalmente história? Não seria necessário reestudar a referência do ser humano e linguagem e verdade? E seria isso possível sem reconduzir a questão ser humano à sua referência à realidade? E não implica esta essencialmente a referência tanto do ser humano quanto da realidade à linguagem, à verdade e ao acontecer em que todos eles e elas vigoram?
E qual seria o ponto de partida? Não teria que ser o estudo essencial e revisão fundamental do que seja o acontecer? Pode haver lógica sem acontecer da realidade e do ser humano, o que significa, da realidade enquanto linguagem e verdade? E qual o lugar da arte nesse âmbito fundante e essencial? E como o atributo “essencial” pode dar algo novo e não ficar reduzido a mais um “atributo”? Pode-se reduzir o essencial a um atributo? Ou o essencial é o próprio acontecer da realidade na medida em que é um acontecer da arte nas obras de arte? Mas então não poderemos partir da classificação e caracterização das obras de arte e da arte sem questionar tudo o que aí está sendo proposto, porque tudo gira em torno dessas questões. Uma questão que parece tão simples, a questão dos atributos nos leva assim a abismos antes jamais pensados. E será que conseguimos achar caminhos conceituais e atributivos que façam as pontes e estabeleçam as ligações comunicativas? Não cairemos nos mesmos impasses? Não exigirá todo este questionamento a humildade da escuta e de espera do inesperado como caminhos plausíveis do pensar? Não será então o pensar senão um sempre estar a caminho para ser o que somos na e como realidade? Não serão as obras de arte e a própria arte o pensar caminhos, um sempre por-se de todos a caminho da linguagem como caminho do pensar? Isso afastará de nós a pretensão das generalizações dos atributos e das classificações para se abrirem caminhos de pensamento em cada um que quer se abrir para o próprio. Não há próprio sem arte porque não há realidade sem próprio, porque não há próprio sem realidade. E não há realidade sem acontecer da realidade enquanto linguagem e verdade. As diferenças serão necessariamente diferenças do que em cada um dinamicamente em seu acontecer se dá como diferente e identidade inaugural, seja do próprio, seja da realidade enquanto lugar do acontecer o próprio. No lugar dos atributos conceituais, teremos que deixar acontecer a realidade, isto é, a arte enquanto obras de arte, pois cada próprio será uma obra de arte. E como pode cada próprio ser obra de arte? Sendo o que é, aprendendo a ser o que já desde sempre é. Esse aprender é o aprender com. Ser obra de arte não é algo que se faça. Essa é a pretensão moderna, inviável. A arte nunca depende de um fazer. Só se é obra de arte sendo o que já se é. Como? Isso já nos foi dito pelo poeta-pensador Píndaro: “Torna-te o que és, aprendendo”. E com este imperativo categórico chegamos ao questionar inicial, estampado no título. A arte e os atributos. Atributo diz agora simplesmente o próprio. Mas este não depende de um fazer, mas de um manifestar o que já se está sendo desde que somos o que somos, pois o recebemos para realizar e não depende de um fazer para ser. O realizar, e não o fazer, diz respeito e sempre dirá respeito ao estar sendo, mas este só pode estar sendo na medida em que o estar é o sendo sendo o que já é e deve, no estar sendo, sendo o que já é. O ser funda o fazer no estar sendo. E é nesse estar sendo como fazer que cada um se torna necessariamente obra de arte. Mas então o fazer é propriamente realizar. Claro que uma tal obra de arte que cada um é está a uma distância-luz dos atributos conceituais. No estar sendo no vigorar do ser é que os atributos deixam de ser atributos para se tornarem o que vigorando no ser em todo estar são: diferenças. Mas então não serão mais nem diferenças genéricas nem identidades genéricas: serão diferenças e identidades poéticas.

O atributo surge quando a proposição em vez de se centrar no verbo como vigorar da linguagem em tudo que é e acontece se deslocou para o sujeito, tornando-se o predicado o como do sujeito. Desse modo a proposição passou a ser o enunciado sobre a coisa e não mais a própria coisa vigorando em seu sentido, ou seja, na linguagem. A predominância do sobre como tarefa principal do aprender e ensinar resultou da opção moderna pela correlação de sujeito e objeto que determina todo conhecimento como único verdadeiro e acabou por se impor também às artes e a todas as histórias, pois o saber da correlação de sujeito e objeto funda-se na demonstração objetiva e racional científica. Desse modo todas as histórias, das artes ou não, resultaram de pesquisas objetivas sobre os temas de que tratam. Tais conhecimentos sobre pressupõem a objetividade pela qual tudo fica reduzido ao como se conhece, não importando mais o que cada coisa é em sua essência. Daí todas as histórias tratarem das circunstâncias e jamais do que acontece enquanto realização essencial da realidade. A mudança dos focos diz respeito unicamente a determinadas circunstâncias em detrimento ou em negação de outras. A correlação racional sujeito/objeto a tudo fundamenta, porque a razão é o fundamento. Tudo isso em detrimento do acontecer da realidade. Este não tem o menor valor em tal perspectiva e fundamento, porque na modernidade só é o que for feito pela ação racional e objetiva do ser humano. Parte-se do pressuposto de que a correlação sujeito/objeto pode determinar no como se conhece o que é e o como é. Por isso todo fazer moderno é um fazer essencialmente racional, entitativo, funcional, finalista. É o império da realidade em seu acontecer reduzido aos sistemas. Desse modo a correlação sujeito/objeto sempre constrói a realidade como sistema. Só há realidade quando ela é conhecida dentro de um determinado sistema. Tudo o que estiver fora desta possibilidade será julgado acaso, irracional, acrítico, fantasioso, ficcional, imaginário, individual, transcendente, crença, dogma, crendice, senso-comum, superstições etc. etc. Seja para afirmar a sua realidade, seja para negar a realidade, o moderno parte sempre e termina sempre nos atributos. Enfim, tudo se reduz a atributos. Numa sociedade do conhecimento e da sua determinação pela comunicação, porque a linguagem foi reduzida ao meio e ao comunicável, o silêncio e o acontecer da realidade não têm mais vez. E diante de catástrofes, sejam naturais, sejam sociais, sejam familiares, sejam pessoais, que não cabem nessa racionalidade da correlação sujeito/objeto, são debitadas na conta do acaso. Acaso é tudo que não é sistema nem previsível dentro de suas leis, isto é, tudo que não cabe na realidade determinada pela correlação sujeito/objeto, isto é, pela racionalidade.
As histórias das artes variam segundo a escolha das circunstâncias determinadas objetivamente e constituindo um sistema. Só não tem vez a obra de arte no que ela como obra opera. A obra nunca pode operar fora do sistema da correlação sujeito/objeto. Mas tais correlações variam de acordo com as circunstâncias escolhidas. Daí decorrem as diferentes posições críticas. Entende-se por posição crítica duas coisas. Por crítica entende-se o conhecimento realizado e fundamentado na posição crítica em que se fundamenta a correlação sujeito/objeto, isto é, essa correlação tem que ser racional e crítica ou crítico-racional. Já a posição diz respeito à circunstância escolhida para exercer a teoria crítica. Teoria diz respeito à posição que fundamenta o objeto do exercício crítico. Mas tanto a teoria como o objeto já são determinadas a priori pela correlação sujeito/objeto, na qual está contida e determinada toda a realidade nos mais diferentes modos de realização.
São essas reduções que geram hoje diferentes modalidades de violência. É uma violência essencial, que atinge o cerne do que cada um é em seu próprio e lhe tira a liberdade, não de exercer a sua vontade subjetiva, mas de poder ser as possibilidades de seu próprio. Próprio é o que os gregos denominam, apropriadamente, Moira, isto é, dentro do Genos, proveniência de tudo que é, a sorte, o dote que foi dado a cada um. Pela escuta da proveniência, temos de levar à consumação este dote. Isso é libertar-se para ser o que já se recebeu para ser. E somos essencialmente “familiares” na medida em que todos temos nossa genética (genos) em cadeia de referências, dentro de um sentido dado pelo vigora igualmente do logos, linguagem, proveniência de toda memória e sentido do ser. Linguagem não tem gênero, porque é o gênero vigorando, mas aí sem atributos. Silêncio não tem gênero, porque é o gênero vigorando enquanto sentido. Os atributos e suas classificações são a maior fonte de violência contra todos os gêneros e não só das mulheres nem das demais pessoas postas à margem pelos sistemas classificatórios segundo gêneros atributivos. Libertemos não apenas o “feminino”, libertemos todos dos atributos, para que todos cheguem a ser obra de arte. A história de cada próprio não é separada da história de todos que estão sendo enquanto tempo e então tempo será ser. E o tempo sendo será sempre enquanto acontecer a nossa época. Mas a nossa época não se separa nunca do passado, porque é a divisão atributiva do tempo em passado, presente e futuro, é uma falsa separação atributiva. Por isso, o que é o passado? Eis porque corpo não é organismo formal, porque não há corpo que não seja presença. E o presente é o vigorar do passado em suas possibilidades de futuro.

O passado

Entendemos por passado o que passou, o que deixou de ser e se desvaneceu no passageiro, na inconsistência do aparente. Para nós, em nosso viver superficial e circunstancial, o passado é o que se retirou e adentrou uma noite onde tudo deixa de ser. O passado é, enfim, uma grande noite, onde, parece, todos os gatos são pardos. A noite nos traz o silêncio absoluto e a ausência de vozes, cores, luzes, vida. É a morada dos mortos para a alma. É a grande noite eterna e enigmática, de onde não se volta e todos e tudo, as vivências e tudo que elas produzem e marcam nossa vida com todos as suas conseqüências e marcas circunstanciais, se reduzem a lembranças em processo contínuo de esquecimento.
O passado é o que passou e não volta mais. Vive tudo da e na saudade. A noite é o grande abismo da anulação das diferenças.
Tudo isto é muito repetido e proclamado. E o que damos e acreditamos como verdadeiro é uma grande falsidade. Basta dizer que por detrás de tudo há sempre um destino, tendo como fonte inesgotável um genos. A lei do genos é terrível e implacável. Nela nada é esquecido ou omitido. Vigora. Às certezas inconsistentes da consciência desmascara o inconsciente. Ao esquecimento da lei da morte corresponde a lei da memória e da realidade.
Só aparentemente a noite é o reino da morte e do passado, aquilo que não volta nunca mais. Se não volta e por isso se tornou passado nem por isso quer dizer que o passado é o que passou e deixou de ser. Nada deixa de ser. Sempre é por ter sido. Só sendo porque está sendo deixa de estar para passar a ser. O passado é o estar que se tornou ser, é o estar que ficou sendo, sendo o que ficou. Por isso mesmo o passado não passou, tanto não passou que ele e só ele é a luz do futuro. Todo futuro vive do passado, do qual é o que no passado está velado e possibilita todo vir a ser futuro.
O passado não é o silêncio sepulcral que se julga ser. O passado só é silêncio sem voz para os que só escutam os falatórios das circunstâncias e do que não passa de brilhos aparentes. O passado é o vigorar do que não cessa de ser e nunca passa, pois é o permanecer de tudo que muda. Em nossa vida nunca nos guiamos pelo futuro que não conhecemos nem é. Em nosso presente se fazem presentes e nos guiam as vozes que se tornaram passado e vigoram como voz ativa em nossa vida presente. Essa é a memória vigorante de tudo que é humano em todas as culturas, em todos os lugares. O presente é a escuta do passado nas sonoridades e realizações do presente, de um agora que não cessa de permanecer mudando. Todo agora é o instante já, vigente do que no passado se velou. Isso é acontecer. Isso é época. Um agora que não muda nem permanece não é agora nem presente, muito menos futuro. Este é o presente como passado, pois o futuro é o velado vigorando no passado. Só aparentemente comparamos o presente com o futuro, só podemos comparara o presente com o passado, que é o que vigora e nos orienta e se faz presente em todo presente como possibilidade de futuro.
A noite não é o silêncio mortal e insonoro. É o passado sonoro como possibilidade de escuta do presente, porque sempre escutamos o presente como as possibilidades realizadas e não realizadas do passado. A escuta que se escuta no presente é a voz velada no passado. Tanto é assim que tal voz não cessa de se tornar passado.
A noite não é o silêncio apático. Nela a vida latente tem todas as vozes da realidade se realizando em silêncio. A noite é o silêncio em sua concentração máxima de fala. É tanta fala que não temos ouvidos para a ouvir. Só a loucura abre nossos ouvidos para a musicalidade da noite. A musicalidade da noite é o passado vigorando e se presenteando em futuro no presente.
Quando faremos do passado a noite de todos os dias? Quem sucede ao dia? Quem sucede à noite? Como haver sucessão se não houver a noite no dia e o dia na noite? Por que então opomos um à outra e a outra ao um? Dia e noite é uma questão de posição, ou seja, presente e passado é uma questão de posição. Toda posição é o ser estando. Sem ser não há estar, porque o estar é o ser sendo. Todo sendo é o ser se dando em posições. Nisso e só nisso consiste o estar. Todos almejamos ficar sendo. Por quê? Se estamos na noite almejamos o dia, mas se estamos no dia almejamos a noite. O ser não é dia nem noite. Não é. Vigora. O ser vigorando é o dia e a noite em seu estar se diferenciando. O permanecer da noite é a possibilidade do mudar do dia. O mudar do dia é a possibilidade do permanecer da noite, porque esta não pode permanecer sem o dia ser mudança. A mudança do dia é a permanência da noite. A permanência da noite é a mudança do dia. Não podemos nunca apreender e aprender a permanência como o que se tornou estático. A permanência não é estática nem dinâmica, porque não é. Vigora. Acontece. O acontecer é o vigorar que se presenteou em sentido. O vigorar jamais se pode tornar, ser devir. Ser devir é estar sendo. O ser nunca está sendo, só o sendo pode e deve estar sendo. O sendo é o estar que vigora no permanecer e mudar. Só o sendo permanece e muda, se torna, é devir, aparecer e desaparecer. O silêncio da noite vigora em toda fala, assim como se torna o devir e parecer de todo sendo aparecendo. O mudar é o vigorar do estar sendo. O permanecer é o vigorar do ter sido. O parecer é o aparecer do que se vela em tudo que está sendo.
A noite é o passado do que se dando se retraiu. O presente é o desvelamento do que se velou. O passado é o desvelado do que se velou. Por isso o futuro é sempre o desvelamento do que no passado se velou e torna possível o presente, sem o qual não pode haver futuro.

14 janeiro 2011

A gota d'água e o mar

A sabedoria budista propõe um enigma: O que fazer para que uma gota d’água não evapore? Jogue-a no mar.

Vai-se falar da vida de um homem; de cuja morte, portanto.
(Rosa: 1967, 81)

Sempre nos perguntamos o que nos acontece depois da morte. Raramente nos preocupamos com o que nos acontece durante a vida, seja ela breve, duradoura ou longa e até longuíssima. E é esta, enfim, que conta, seja lá a duração que tiver. Mal nos damos conta de que desde que nascemos já temos um encontro inevitável com a morte. Esta é uma conseqüência natural de estar vivendo. Estar vivendo eis aí a expressão exata. Estamos na vida e só por estarmos vivendo é que viver implica um estado transitório, uma viagem, uma travessia. Estar ainda não quer dizer ser a vida. Nem o vivente é a vida. Esta é a medida do vivente, de quem constitui seu destino. Na viagem implícita outra pergunta: de onde para onde? Esta pergunta não leva em conta o mais importante: o estar vivendo na e a partir da vida. Então não há de onde para onde. Há a vida que cada vivente vive, mas nenhum vivente vive a vida toda, assim como nenhuma obra de arte esgota a arte nem nenhuma fala esgota a linguagem. E o importante é essa tensão permanente entre o estar vivendo e o ser vida. Só por sermos vida é que podemos estar vivendo.
Portanto, saímos da vida e voltamos para a vida. É isso o que a sabedoria budista expressa na imagem-questão da gota d’água, que só persiste, enquanto gota, se permanece no seu elemento: o mar. Mas o que é o mar? Não é a extensão territorial nem o volume d’água. Não. O mar é o elemento onde todas as gotas d’água encontram seu lugar e de onde se desprendem e para onde voltam. Mas para tal é necessário não deixar se evaporar. A vida é o elemento de todos os viventes. É nesse elemento que nos tornamos um pequeno e frágil navio que só pode continuar navio vivo e em atividade caso se mova naquilo que lhe permite se mover: a água, o mar, a vida.
Perguntar, portanto, o que nos acontece depois da morte, para essa pergunta, mal colocada, só é possível tentar uma resposta, caso nos voltemos para o pensar: a água e o mar. A morte é a natural reentrada em nosso elemento: o mar, a vida. Porém, o que a pergunta pergunta não é exatamente isso. Na pergunta se pergunta pela gota d’água que cada um é. Cada vivente é tão único quanto transiente. Mas assim como a gota d’água não subsiste sem o mar, do mesmo modo cada um, naquilo que é, não subsiste sem o ser. Como pensar, então, o ser?, pois pensá-lo é o caminho que nos conduz a uma possível resposta. Porém, não devemos superestimar o pensar, ou seja, o seu poder de formular perguntas e respostas, nem esquecê-lo. Em verdade, pensar é deixar-se tomar pela questão. E as respostas? São respostas, não são solução.
Como o pensar só é possível acontecer em quem está vivendo (os mortos não pensam), isso nos diz que tanto a pergunta como a resposta só pode ser dada, acontecer, tendo como horizonte o estar vivendo, no vivente. Ir mais além não é possível. Sim, é possível saber o que na pergunta e no pensar não se pode saber: o não-saber que se quer saber. É esse o horizonte do pensar e do perguntar, em outras palavras, do vivente que quer saber a vida. Ou ainda: o estar que quer ficar sendo, isto é, estar sendo, sendo o ser. Seria o mesmo que a gota d’água quisesse, como gota d’água, ser o mar. Essa é a nossa sede.
Querer é aí poder. Mas de quem? De quem vive ou da vida? Certamente é da vida, pois sem esta nem há vivente e muito menos o pensar e perguntar.
Vemos que podemos nos mover nesses dois extremos, mas falta pensar o mais importante: a vida que se vive, ou seja, a travessia de cada vivente, que só se dá num desdobrar do que já é. Pensar diz, portanto, não definir nem conceituar, mas o abrir-se para o aprender a pensar o que é digno de ser pensado. Isso é a travessia: dobra desdobrando-se, sempre inauguralmente.
Quando se pergunta, o que há para além da morte, nesta pergunta se esquece o essencial: todo além pressupõe um aquém. Seria mais importante pensar o além ou o aquém? Ou nenhum dos dois? Ou os dois e o meio, a travessia, pois não pode haver travessia que não faça parte do aquém e do além. Essas três dimensões dadas pelos advérbios recebem um nome muito comum e usado: tempo. Só por já estarmos e sermos no tempo e enquanto tempo é que podemos formular as perguntas em torno das três possíveis localizações. Portanto, perguntar pelo que há para além da morte é perguntar pelo que o tempo é enquanto ex-iste. Ou seja, o tempo só é tempo porque está e é. Ou será o inverso, o ser e estar só são e estão porque são tempo? Não será mais lógico dizer que não há essa alternativa: ou. E, sim, que um e outro são o mesmo. Qual a importância de se pensar o mesmo, não como conceito, mas como o elemento onde o tempo é e está sendo tempo? É que o mesmo dá unidade ao antes e ao depois e à travessia.
Portanto, só podemos tentar achar uma resposta à pergunta que nos orienta e nos deixa, diante da morte, sempre perplexos – o que há para além da morte – se pensarmos o mesmo. Sem este nem é possível a pergunta sobre o tempo. Ou melhor, o tempo só pode ser antes e depois e viagem por já estar vigorando no mesmo, que lhe dá unidade. O tempo é o mesmo que é a unidade das três marcações tradicionais do tempo: o passado, o presente e o futuro. O além é o futuro, assim como o passado é o que no presente não pode mais ser futuro nem presente. Portanto, quando fazemos a pergunta que nos angustia, ela só pode ser feita porque já houve o esquecimento do passado e não há mais possibilidade do presente. Isso implica que o esquecimento é que dá origem à pergunta, caso não houvesse tal, não haveria necessidade da pergunta. No próprio tempo, em sua unidade, a pergunta se destrói, deixa de ter sentido. Ter sentido, o que é isto? Para haver sentido o tempo não só é unidade, ele é também vida. O vivente só vive e sabe que vive e pensa a vida porque sua vida como vivente já vigora na vida como tempo e este como unidade. Portanto, a vida do vivente só é possível porque tempo é vida, que é unidade, que é o mesmo.
Quando (tempo), em nossa vida nos perguntamos diante dos nossos limites e sabendo-os como término de vida vivente, se há vida depois da morte, isso implica a vida como unidade de presente, passado e futuro. Vida é unidade, que é tempo, que é o que normalmente denominamos memória. Seria impossível perguntar pela vida depois da morte se já não fôssemos memória. Sabemos que nossa vida, no presente, remete para um passado e para um futuro. Se não houvesse memória seria impossível haver lembrança do passado e a possibilidade de futuro. Só há lembrança do passado porque a memória não é só o passado, mas a unidade que nos faz experienciar o tempo como unidade acontecendo, como o ser estando sendo. Será muito limitado restringir a memória a um processo de consciência, seja consciente, seja inconsciente. A memória radica em tudo, porque a realidade é memória. Em cada ente real lá está a memória do universo. Em cada vivente lá está a memória que é a vida. Será um engano muito grande igualmente reduzir a memória às determinações da genética. O que esta sabe e poderá saber é muito menor do que o que não saberá e nem poderá saber. Porém, isso não é negativo. É a sua fonte de poder saber cada vez mais. Em nossa vida de travessia, a cada escolha, a cada ação, a cada passo, não é um caminho que se abre, mas muitos. A possibilidade dos muitos caminhos não só pessoais, mas reais, porque igualmente epocais, é a realidade acontecendo enquanto memória. Esta é muito mais do que a cronologia e a causalidade. Ela é o acontecer poético, que é sem por quê.
A importância fundamental disso está em nos descobrirmos no futuro como a vigência permanente do passado, que, por ser memória, não passa. Vigora. O culto da memória foi o núcleo central de toda atividade em torno do sagrado. E nesse núcleo a família, entendida como genos, sempre congregou toda a casa. É nesse sentido que a casa é morada, pois nela se fazem presentes todos os que constituem a família. Isso é o genos. Justamente por isso, a casa, a morada, está ligada à linguagem, porque, enfim, a morada não são as quatro paredes, mas o vazio que acolhe a todos, na delimitação das quatro paredes e de quantos cômodos compõem cada casa. É nesse sentido que nosso corpo é nossa casa, porque nela habita o que somos. O vazio, o nada das paredes, é a memória, que não passa, mas acolhe a todos, isto é, lhes dá sentido porque o sentido é a linguagem vigorando. A linguagem é a casa do ser, porque o ser é a memória, o tempo, a vida.
A predominância do estar sobre o ser é que nos dá a impressão, muito viva, de que o tempo é linear e de que é dividido em três momentos. Se não houvesse o estar como posição, seria impossível o tempo nos advir como uma sucessão causal. O estar do ser é o ser enquanto posição. Sem a redução da memória à linearidade não há causalidade. Esta é uma possibilidade, mas não é todo tempo e, portanto, toda a memória, ser. Todo estar é ser, mas não há necessidade de o ser ser só estando. O ser vigora e só porque vigora é que se dá como estar, o horizonte da causalidade. Sem causalidade não há possibilidade de experienciação e ciência. É um conhecimento possível e útil, mas não é todo o conhecimento. Ainda bem, caso contrário seria tudo muito chato e mecânico, previsível. O mais belo da vida é sempre o imprevisível, o sem-causa, o sem-por quê. Ou como nos diz Rosa no conto “Reminisção”: “E há os súbitos, encobertos acontecimentos, dentro da gente” (Rosa: 1967, 81). O súbito de todo instante poético acontecendo eis a memória originária, poética. Sem esta não há cronologia e causalidade nem o real tem sentido.
Do mesmo modo o vivente é a vida estando, ou seja, o tempo estando, linear e causalmente. A vida mesma enquanto unidade é o mesmo que tempo e ser. Isso é memória. Só fazemos a pergunta pela vida além da morte porque partimos de uma posição, do estar e não do ser, do vivente e não da vida, do tempo linear e não do tempo enquanto tempo uno que, por ser e vigorar, se desdobra em sucessividade e unidade dos diferentes momentos sucessivos. É o tempo poético.
E só podemos falar em causalidade e sucessividade porque o tempo é memória, a unidade que dá sentido a todos os viventes e instantes da vida. O instante é o presente enquanto sentido do tempo, da vida, da memória. Só há instante para o vivente, não para o ser, a vida, o tempo, a memória. Por outro lado, sem estes não há vivente nem instante nem lembrança. Procurar trazer à memória a vida enquanto lembrança é procurar o sentido do que nos acontece como viventes. É a re-cordação das sensações sentidas como sentido da vida.
Mas não somos nós, com nosso pensar, que damos sentido. O sentido já nos é dado. Como? Como o tempo se dá em instantes. Não poderíamos experienciar nenhum instante como tempo se este não fosse sentido, ou seja, linguagem. A linguagem é o sentido do tempo na medida em que este é vida, é memória, é mar, é ser. A linguagem é a unidade da memória vigorando enquanto sentido. Cada palavra, cada oração, cada língua, cada possibilidade de discurso, é sempre possibilidade da linguagem em cada vivente, não interessa a língua, assim como cada vivente é possibilidade da vida e cada instante é possibilidade do tempo.
Na pergunta pelo que, angustiados pelo que está para além da morte, nos advém e não sabemos, esquece-se, ao se indagar isso, que a morte nada mais é do que o advento do não mais estar e passar a ser, não mais ser vivente para experienciar a vida, não mais ser instante para ser tempo e ser tempo para ser e deixar de estar. Das vivências pode-se perguntar o significado, mas da vida só se pode esperar sentido. Sentido é a linguagem sem significado, mas fonte de todos os possíveis significados e discursos. É o sentido ético da vida de cada vivente em seu destino.
Para perguntar pelo que nos advém depois da morte é necessário esquecer o que lembramos como vivente e lembrar o que esquecemos como vida, tempo, memória, linguagem, mar, ser. Mas aí não seremos mais viventes nem nos advirá nenhum instante nem frase ou palavra nem lembrança. Não estaremos mais, seremos. Só o ente está. O ser não é, porque não está. Se não é ente é Nada. O que necessariamente nos advém depois da morte é o nada. Nada não pode ser niilismo porque só pode advir ao niilismo o ente, o vivente, a oração, o discurso, o significado, o tempo linear, a lembrança, o instante, o ente, que está, sem referência.
O que nos advém depois da morte? Nada nos advém depois da morte. O nada não é porque nada e ser e tempo e mar e linguagem e memória e sentido são o mesmo. O mesmo é o elemento em que toda gota d’água encontra a sua realização e integração. Todos sabem que do mar se originou a vida porque é no mar que o sagrado faz vigorar a sua presença constante. A água não nos liberta de nossos limites porque representa algo externo a ela, que ela simboliza. Não. A água liberta purificando porque é água do mar, é energia irradiante. Purificar diz então iluminar. O sagrado é a energia que dá vida iluminando. O sagrado não é, vigora: tempo, memória, mar, linguagem, sentido, ser. Se o vivente faz a travessia do rio da vida, o que encontramos depois da vida é a fonte, onde o rio tem a sua origem. Todos os rios começam e terminam no mar. Todos os viventes começam e terminam no mar. E o que nos acontece no mar? Quem está fora do mar para perguntar isso é porque já secou. E se secou evaporou, não está porque não existe. Portanto, se não estivesse no mar não poderia perguntar. E para que quer saber se existe mar? O saber do mar é o sabor do mar, da vida. É um sabor silencioso e sem medida, porque é o próprio tempo em plenitude, como para a gota d’água é o mar, como para o vivente é a vida, como para o significado é o sentido, como para a fala é a linguagem. Pela linguagem não podemos perguntar, a não ser já vigorando nela. Vigorar nela é deixar advir toda coesão e coerência da linguagem do silêncio...
O que nos acontece depois da morte? A coesão e coerência do sentido da linguagem do silêncio. É o sabor do saber do não-saber. Mas então deixaremos de ser viventes e entes para experienciarmos, no vigorar do silêncio, a vida, o mar, o ser. Seremos gotas do mar. Não estaremos mais. Ficaremos sendo. Não mais poderemos nos angustiar com a pergunta que não quer calar: O que nos acontece depois da morte?

Bibliografia
ROSA, João Guimarães. Tutameia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

11 janeiro 2011

Aprender a pensar




Fica sempre difícil, dentro de todo percurso de pensamento já percorrido, deixar vivo e estar aberto ao próprio acontecer do pensamento. Assim como a vida que se vive e nunca se vive totalmente, também o pensamento nunca abarca tudo e sempre se dá a necessidade de estar aprendendo a pensar. Aprender a pensar é, em verdade, aprender a viver a vida que nos foi dada, mas ainda não foi vivida e de que não temos a menor idéia ou conhecimento do que seja e que se torna o motivo de viver. Aprender a pensar é aprender no que é o que não-é, que não cessa de nos solicitar em diuturna disciplina de abertura. Emmanuel trata disto bem no ensaio “Introdução ao Sofista de Platão”. Diz, em certa passagem: “Com sua ironia, Sócrates visa a provocar e testar o Estrangeiro que, assim, é forçado a confessar sua origem de pensamento. A naturalidade e filiação eleática não bastam para apresentá-lo. É indispensável mostrar ainda a sua atitude de pensamento. Pois pensar inclui sempre a coragem de colocar em questão a verdade das próprias posições e de abrir o espaço para acolher as diferenças de outras posições” (grifos meus). In: Filosofia grega – uma introdução, p. 227, Daimon, 2010. É de realçar aí o sentido profundo do questionar, uma atitude sempre aberta para o acontecer da realidade em suas diferenças. O dialogar como aceitação clara e inequívoca das diferenças. E o escutar como o estar atento e aberto ao acontecer das diferenças em outras posições e realizações. Essa abertura de escuta e diálogo se fazem permanentes e nos lançam de uma maneira radical e originária no acolhimento das diferença, não como mera deferência ou aceitação estratégica, mas como algo constitutivo da realidade, da dinâmica de ser e não-ser.

O não-ser se abre num leque de realizações e modos de se fazer presente, ainda que indique de uma maneira evidente para quem aprende a pensar algo sempre ausente, algo sempre velado. O aprender a pensar se abre como uma grande aventura em que se dá a experienciação do próprio viver. A vida de cada um se torna uma experienciação do viver e as vivências possíveis vias de presentificação e realização da riqueza do viver. Aprender a pensar é aprender a questionar incessantemente não só aos outros mas sobretudo a si mesmo. Porque aquilo que se aprende só se aprende quando se passa dentro de nós como algo que surge, cresce e se torna presente como uma riqueza que não pára de crescer. Aprender a pensar é aprender a ser o não-ser. Porém, o máximo da aprendizagem do aprender a pensar, o que sempre procuramos, o penhor que procuramos em todos os nossos empenhos, é a sabedoria, pois esta consiste simplesmente em saber que não-sabemos e que o que não-sabemos nos convida e impulsiona para a sabedoria do Nada. Mas só sabendo pelo aprender a pensar poderemos saborear o Nada. Pois este é a suprema vivência enquanto a necessidade da vivência das não-vivências. Estas não são algo que se dá e se apresenta como uma conquista. Não. Elas sempre já trazem em si numa presença dissimulada o velado, a não-verdade. Saber o não-ser é saber a não-verdade de toda verdade que sabemos. Nisto consiste o aprender a pensar. Só assim nos libertamos como necessidade não da vontade, mas de ser. É algo contínuo e exige uma disciplina rigorosa. É que em todo não-saber e não-ser sempre se faz presente o esquecimento do ser, do ser que somos e não-somos, sabemos e não-sabemos, queremos e não-queremos. Aprender a pensar é sempre e continuamente querendo no querer incessante o não-querer. Mas somente querendo podemos querer o não-querer. Aprender a pensar é, pois, a difícil renúncia a saber o pensar para saborear o a-se-pensar. Aprender a aprender a pensar é, portanto, uma renúncia que não tira, dá, sem termos vivências e bens e neles pensar que temos tudo, por só nos bastar o Bem. Nos bens temos o aparente preenchimento dos limites. Mas só o Bem nos dá, nos limites, o não-limite, ou seja, nos bens, o Bem.

Aprender a pensar é o contínuo estar aberto para o acontecer do Bem e do Belo. A beleza é sempre o bem que se nos oferece nas vivências, mas que lá não encontramos e, por isso, caminhamos de vivências em vivências sempre numa procura de desejo de chegar a realizar o que só nos advém no estar sempre aprendendo a pensar. Aprender a pensar é abrir-se para a não-verdade de toda verdade. Esta não passa a ser uma certeza, mas a permanente aventura do desvelamento e acontecer das diferenças, no dissimular-se e velar-se da identidade. Os outros deixam de ser os objetos de nossa persuasão para se tornarem a presença de mais um exercício do aprender a pensar, de sereno enfrentamento do desconhecido, do que é sempre mais do que aquilo que podemos chegar a conhecer. O outro será sempre um mistério. E isso é o difícil de aceitar, não porque ele se proponha como mistério, mas porque ele também nunca se sabe todo nem se mostra todo, nem chegar a ser todo, como acontece conosco mesmo.

Aprender a pensar é estar sendo o que nunca somos por não sermos o ser, que não é, mas dá-se em tudo que se faz presente, tanto mais quanto ele é a fonte que nos conduz pelo rio da vida, sem jamais atingirmos em nosso não-ser todo o Nada que ele é e não-é. Aprender a pensar é aprender a só ser o ser que não-somos, por ser o Nada. Aprender a pensar é estar sempre aberto para o acontecer do ser.

Aprender a pensar é deixar o saber (noein) e o dizer acontecerem. É nestas dimensões que o ser se dá. Pensar é apreender esse acontecer, onde apreender é deixar-se tomar pelo ser. Emmanuel convida a pensar: “Diante da possibilidade extraordinária do pensamento de pensar sempre a realidade de tudo, que pensa, o estrangeiro se revela pensador e não mero seguidor de escola. Pois pensar só se aprende com a coragem de renunciar a toda pretensão de já saber e ter esgotado a realidade”. Nesta Terra de ninguém, todos somos estrangeiros, onde qualquer identidade não passa de uma identificação enquanto mera representação ou conceito. Como estrangeiros, já nos experienciamos no insólito, no estranho, por sermos e não-sermos.

Pensar, originariamente, é experienciar a realidade no seu entre-acontecer. Deixar-se tomar por esse acontecer é propriamente pensar. Daí o pensar não ter nada a ver com o exercício da razão ou com qualquer outra atividade que tenha por causa o ser humano, porque este quando age, só age a partir do que a própria realidade já deu e entregou ao ser humano para ser realizado por ele. Pensar é levar a acontecer a essência da realidade que já desde sempre se destinou na essência do ser humano para ser realizada. Isso fica muito claro num verso de Pessoa, em Mensagem: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. O ser humano cai na errância e se afasta de sua essência quando resiste e insiste em não se entregar ao que lhe foi destinado e em não deixar acontecer o ser.

Embora nos realizemos no saber, o que em verdade nos atrai é o não-saber, pois nele se concentram todas as possibilidades de saber. O saber nos atrai e conquistá-lo é o penhor de todos os nossos empenhos, mas o saber já sabido nos deixa como que incompletos. A essência do ser humano é esse permanente impulso para o saber pela aventura de adentrar o não-saber. Então, em última instância, é este e só este que nos atrai. Podemos dizer que a morte é o silêncio sem fala e, por isso, ela sempre nos causa medo. É que no sem fala do silêncio não há mais ressonância do que somos e sem ressonância tudo se torna um abismo. O Nada nos angustia porque é o abismo sem fundamento. No entanto, é o silêncio que mais procuramos. Aprender a pensar é estar sempre aberto para esse acontecer da realidade que se dá como silêncio. Falamos para provar que o silêncio existe, ek-siste, vigora. Quem fala para se escutar não escuta a voz que lhe vem do silêncio, não aprende a pensar. Aprender a pensar é deixar-se tomar pelo silêncio. Pensamos para provar que existimos. Existir não é ser um sendo ao lado de outros sendos. É estar tomado pelo acontecer da realidade, num abrir-se do pleno vigorar da liberdade. Falamos para provar que o silêncio existe e para nos provarmos no vigorar do silêncio. Isso é aprender a pensar. Isso exige uma disciplina incessante, fundada na coragem da renúncia. “Esta coragem é dada a todos. E é por isso que, de uma maneira ou de outra, todos já estamos empenhados em aprender a pensar. Não adianta tomar posição na vida do pensamento, sem pensar as suposições em que a própria posição se planta. Cada esforço de pensar procura aprender a pensar toda esta coragem de pensar. É a modéstia de pensamento, nem sempre apanágio dos eruditos e filósofos” (p. 227).

Aprender a pensar é uma aprendizagem que se realiza quando a coragem é mais forte e funda do que nossa vontade e horizonte de atuação. Entre a vontade e a coragem de se entregar e deixar vigorar o pensar, o mais decisivo é deixar-se tomar pela coragem. Esta é a essência do ser humano. É a coragem e não a razão que constitui a essência do ser humano. Por isso, em Grande ser-tão: veredas, Riobalado, na travessia do rio São Francisco, quando era pequeno e estava sendo iniciado no aprender a pensar, por Diadorim, este lhe diz, diante do afrontar a incerta e perigosa travessia do rio, imagem-questão da vida: “Carece ter coragem!”. Não se aprende a ter coragem. Esta já se tem. Aprende-se a exercitar a coragem que já se tem. Aprender a pensar não é algo que nos venha como um saber que não temos. Como o saber da coragem ainda não é a coragem. Como o humano, em sua essência, não é algo que se aprenda de fora para dentro. Aprender a pensar é fazer a aprendizagem da coragem. Esta exige renúncia porque, como nos ensina Platão: o pensador, para ser pensador “... faz remontar tudo que diz e pensa à realidade, realizando-se nos fenômenos, sem se contentar apenas com calcular relações entre dados” (p. 228). Eidos, para o pensador Platão, é o vigorar da realidade. Achar relações e causas funcionais é próprio da razão. Mas quando se reduz o pensar ao raciocinar, já se reduziu a essência do ser humano ao desempenho de funções e relações. Não que isso também não seja possibilidade do pensar. É. Não é, contudo, sua essência. Como não é essência do humano o reduzi-lo ao agir produzindo efeitos, pelo poder de estabelecer relações e funções entre os entes de que se compõe o real. O real é a totalidade dos entes determinados pelas funções. A coisa é mais do que o ente funcional. A coisa é sempre a causa que diz respeito ao que é essencial em cada um e em sua manifestação. Esta abre o mundo onde todos se movem. Por isso há o pensar e há o raciocinar. Os dois têm sua proveniência na proveniência da essência do humano de todo ser humano. Proveniência se diz em grego genos.

Em sua essência, todo pensar é um deixar-se tomar pelo extraordinário. Este é o ordinário vigorando. Por isso, a proveniência do pensador é a mesma do extraordinário, ou seja, do divino. Não devemos entender aí divino como a essência de Deus. Ele não é referente ao divino nesse sentido. O extraordinário diz o próprio âmbito da essência do humano pela qual ele já originariamente nos remete à experienciação do extraordinário no ordinário, do estranho e fantástico no familiar e corriqueiro, do insólito no sabido e esperado. Fazer essa experienciação é aprender a pensar. É uma aprendizagem que nos lança na essência do saber, de onde provém a sabedoria, pois a essência do saber é o não-saber. Nesse sentido, sabedoria nunca pode ser um sistema ou regra ou receita de felicidade e realização. Sabedoria é o deixar-se tomar pelo aprender a pensar. Aprender a pensar é a difícil disciplina da aprendizagem da sabedoria, de não-saber o saber do não-saber.

Aprender a pensar é sempre estar a caminho. É a prendizagem do caminho, é a própria travessia. Fazer a travessia é aprender a pensar, pois toda travessia, todo aprender a pensar é mais, muito mais do que raciocinar, porque é um acontecer poético, onde se decide nossa vida enquanto caminhada. Todo aprender a pensar é já desde sempre um estar a caminho. Mais importante que os saberes dos conceitos, é a própria caminhada. E estar atento em todo elaborar conhecimentos ao caminho que não cessa de se abrir é o verdadeiro conhecimento, porque é o caminho de manifestação de nossa verdade corporal. Estar a caminho é, portanto, sempre um ato poético, onde fala, dança, musica, imagem, cor, volume, tempo, espaço, lugar, mundo e verdade constituem a corporeidade do que somos. Estar a caminho é sempre estar a caminho da corporeidade.
Não se pode pensar o pensar sem pensar o próprio caminhar. “O caminho acolhe tudo que vigora à sua volta e restitui o seu a todos que o percorrem. Os mesmos campos e as mesmas encostas dos prados escoltam o Caminho do Campo em cada estação do ano, mas com uma proximidade sempre nova” (1977, p. 47. Heid. “Caminho do campo”. Rev. Vozes).

06 janeiro 2011

Aprender com a dança


A procura pela dança
 
Para iniciar minha proposta de diálogo poético com vocês, tendo como tema a dança, vou partir de duas constatações surpreendentes e que fazem pensar. A primeira diz respeito a uma notícia divulgada no jornal Folha de São Paulo, na semana passada. Relata o jornal que foi feita uma pesquisa no Brasil sobre dança, onde se procede a um raio-x do seu desenvolvimento, realizada por 13 pesquisadores em cem cidades. É a Cartografia 2009-2010. E afirma a coordenadora do programa, Sônia Sobral: “Cresceu muito o número de faculdades de dança nos últimos três anos”. No final declara: “A Cartografia será enviada só para instituições culturais e educacionais...”. Sem dúvida nenhuma, eis aí uma excelente notícia. Espero e faço votos de que continue crescendo o interesse pela dança. Contudo, o final da notícia me levou a uma questão que julgo fundamental: O que a dança tem a ver com educação? Em que sentido a dança é educativa? Numa sociedade do conhecimento e da informação, dominada pela razão instrumental, onde tudo deve ser útil e reduzir-se a uma finalidade prática, objetiva, funcional, fico me perguntando: Qual a utilidade da dança? Com a dança não fazemos nada a não ser o nada. Como a dança faz o nada? Aqui me lembro de uma passagem do conto “O espelho” de Guimarães Rosa, onde diz: “Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo” (Rosa: 1967, 71). Para mim, a dança é o nada acontecendo. Portanto, a dança é um milagre. Que estes milagres aconteçam cada vez mais é o que todos desejamos, almejamos e temos cada vez mais que fazer acontecer. Entendamos por milagre a presença do extraordinário, do insólito, do poético, como princípio de realização da realidade e do ser humano nessa mesma realidade. E, naturalmente, devemos nos perguntar o que isso tem a ver com educação. O que é, então, educação para que a dança poética possa e deva ser educativa? Aqui devemos fugir de um grande perigo: a dança tornar-se mais uma disciplina para formatar o educando num conjunto de conhecimentos operativos e úteis dentro de um sistema de relações causais, onde o principal é o sistema e não o humano e poético de todo ser humano. A dança jamais pode se por a serviço de qualquer sistema, caso contrário perderá sua identidade, seu próprio. E qual é o próprio da dança, a sua identidade? Esta identidade não pode ser diferente da identidade de todo ser humano. O próprio é a medida de cada um. À realização dessa medida corresponde a história de cada um, que é sempre singular e irrepetível. Ou ao menos deveria ser. A medida é o destino. O genos, palavra grega que diz a nossa proveniência, é o princípio e medida que doa a cada um o seu destino. Não tem cada um o seu código genético e dentro deste a sua história, a sua travessia? A medida de nosso destino, de nosso próprio, de nossa identidade, é o princípio, ou seja, o vigorar da dobra de caos e cosmo.
Por isso, em sua essência, a dança não se reduz a nenhuma identidade cultural ou histórica. Ela atrai e distrai a todos, em todos os lugares, na justa medida de sua retração. Seja onde e em qualquer tempo que aconteça, só precisa ser dança. Qualquer atributo para dança já é uma diminuição do que em toda dança é dança. E o que em toda dança é dança é a essência do humano, daí o encanto de todas as platéias e a atração pela dança em todos os tempos e lugares. A dança não pode ficar submetida a disciplinas que a determinem, mas é ela que deve constituir sempre o alcance das disciplinas. Quem diz disciplina diz conhecimento. O que o conhecimento tem a ver com a dança? Fazendo parte da essência do humano, toda dança é conhecimento na medida do conhecimento da essência humana. A essência do ser humano é a sua referência ao ser. Daí não poder ficar determinada pelo instrumental ditado seja lá por qual sistema for. Neste sentido de disciplina e sistema, a dança é o não-conhecimento porque é o não-sistema, porque é o livre dar-se e manifestar-se do que cada um já desde sempre é. Dança é sempre travessia, história, obra. E obra é o que opera. Opera o quê? A educação do humano pelo deixar vigorar o seu principio constitutivo. Aqui está a questão. O princípio constitutivo do humano é o estético ou o poético? Dança não pode ficar reduzida a vivências estético-sentimentais, a um espetáculo para os olhos. Ver dança é ver-se enquanto sendo dança. Para as vivências dos sentidos, entre outros meios, uma confeitaria cumpre bem essa finalidade. Dança não é meio. É. E é na medida de seu poder de diálogo poético.
Já notaram que tenho levantado diferentes questões através de perguntas, em que uma resposta se desdobra em novas perguntas? Isso é a dança. Não há modelo conceitual que dê conta da dança em sua essência, em sua constituição fundadora. Mas deve haver um fio que nos conduza neste labirinto de perguntas e respostas e perguntas, lembrando o fio de Ariadne. O fio é o princípio. A realidade é o labirinto que exige de nós uma caminhada de sentido, um motivo que nos mova em nossa existência. É para esse sentido que a dança nos conduz, se a deixarmos operar, se tivermos a coragem de nos entregarmos a ela em sua vigência. Na dança poética somos tomados pelo que somos, pois ser é sempre uma tarefa poética, onde quem vigora é o princípio: o não cessar do estar sendo.

Dança: mito, rito e ritmo
Ser e princípio eis a questão.
É neste momento de pensar o princípio enquanto questão que trago o outro fato surpreendente e que me caiu nos olhos de uma maneira estranha. Tinha lido no livro A outra voz, do excelente ensaísta e poeta mexicano, Octávio Paz, uma afirmação importante. A modernidade só aconteceu no Ocidente, em nenhuma outra cultura do mundo inteiro. Isso tem implicações cada vez maiores. Todas as culturas e suas produções passaram a ser vistas e lidas e compreendidas e determinadas pelos conceitos modernos ocidentais. É uma fatalidade. Para o bem ou para o mal? Devemos abandonar de vez as falsas e restritivas alternativas metafísicas que a modernidade institucionalizou. A mais deletéria no caso de nosso tema é: a dança é técnica ou não técnica, é útil ou não útil? A realidade fica reduzida a dicotomias, a uma visão excludente de duplos criados pelos conceitos. O ser humano é corpo ou é alma? Para além das dicotomias há as dobras. Se o conceito gera o duplo, a questão gera a dobra. E pergunto: Ao dia não sucede a noite e à noite não sucede o dia, sem dicotomias? E presidindo o dia e a noite não vigora o sol? Na unidade que é a linguagem da luz do Sol, há a dobra nunca o duplo dicotômico. Somos dobras poéticas de identidades e diferenças. Onde fica, pois, a dicotomia excludente? Não fica, é uma aberração. Sendo o sol o vigorar poético, é natural que na dança não aconteça nenhuma dicotomia. Não é ela um milagre do nada acontecendo?
Pois bem, procurando eu a afirmação do Octávio Paz, para citá-la corretamente, me deparei com uma outra afirmação ainda mais admirável e surpreendente:
A poesia como palavra fundadora de um povo é um traço que aparece em todas as civilizações, do poema de Gilgamesh, fonte provável de nossa tradição épica, ao do Cid. Em outras culturas, a poesia não só estava intimamente associada à religião e à mitologia como às outras artes. Sabemos, por exemplo, que os astecas recitavam, cantavam e, o mais admirável, dançavam seus poemas (Paz: 2001, 96).
Vejam, até o próprio ensaísta se surpreende com a presença da dança na poesia. Não é estranha essa estranheza? Dança, em sua essência, não deveria ser o princípio de todas as artes na medida de sua musicalidade? Se lermos com atenção a passagem, essa constatação ainda é mais estranha, pois diz que “a poesia não só estava intimamente associada à religião e à mitologia como às outras artes”. Todos sabemos e devemos cada vez mais proclamar que dança é arte. Por que então a dança aparece como algo que deixou de ser normalmente incluída nas artes em que acontece a poesia? Aqui vamos ter uma questão histórica que merece um estudo profundo e esclarecedor. Não é o momento oportuno para tratá-la. Por que a dança, que é poética e co-originária às outras artes, foi sendo deixada de lado? Com isso quem perdeu: as disciplinas que constituem o elenco de conhecimentos tendo em vista a educação do ser humano ou a educação integral do ser humano? Para haver uma educação integral do ser humano a dança tem que tornar a conquistar o lugar que é dela e só dela e não pode ser substituída por nenhum outro conhecimento. E mais: a poesia enquanto poética congrega e deve congregar – com pleno direito – todas as artes. Portanto, a dança. Não se pode compreender a poesia sem a dança nem a dança sem poesia. A poesia sem a dança é uma fala sem corpo, porque a dança é a corporeidade de todo ser humano. Eu afirmei: de todo ser humano e não apenas dos que freqüentam academias, escolas e faculdades de dança. Neste momento, faço uma pequena mas essencial distinção: é necessário educar não só para a dança, é ainda mais necessário educar com a dança. Como assim? Todo educar é um ensinar e aprender. Mas o que é ensinar e aprender?
Para melhor encaminhar meu questionamento, voltemos à declaração do excelente e poético ensaísta Octávio Paz.
Em outras culturas, a poesia não só estava intimamente associada à religião e à mitologia como às outras artes. Sabemos, por exemplo, que os astecas recitavam, cantavam e, o mais admirável, dançavam seus poemas (Paz: 2001, 96).
No lugar de “outras culturas” eu afirmaria, com grande certeza, em todas as culturas a poesia estava associada à religião e à mitologia. Para mim, as artes, historicamente, não são algo que vem se acrescentar à religião e à mitologia. Aliás não há religião e mitologia. Religião, qualquer religião, é mitologia e mitologia é religião. Faço apenas uma distinção de fundo. Não podemos nem devemos confundir religião com sistema religioso de crenças. Para evitar confusões, no lugar de religião prefiro usar o termo sagrado. O sagrado é mitologia e a mitologia é narração do sagrado nos ritos. Por isso todas as artes são manifestação do sagrado, todas elas são narrativas e rituais. Como? Em primeiro lugar devemos pensar as artes ligadas ao sagrado dos mitos e ele sendo muito mais do que o âmbito das religiões e seus sistemas. O sagrado diz respeito ao mistério da realidade, isto é, de caos e cosmo, tendo como princípio a luz irradiante, fundadora, criadora. Luz é energia luminosa que se dá na dobra de luz e sombras. Todos os mitos fundadores pensam a manifestação e vigência da realidade na dobra de caos e cosmo. Cosmo é o caos enquanto mundo. Neste sentido, as artes são a manifestação do mistério do caos e do cosmo. E se há algo que é radicalmente dança é o caos e cosmo. O cosmo é em verdade a dança do caos. E aqui chegamos ao que afirmei acima: dança é princípio de realidade. O que é princípio? Vocês algum dia já pensaram a dança como princípio poético?
O princípio – o cosmo enquanto dança do caos – vigora em todos os povos, em todas as culturas de todos os tempos. Princípio é o tempo se manifestando, abrindo-se na clareira da verdade. Verdade não é o que é correto e adequado, é o que se dá a ver. Todo princípio – como toda dança - é um acontecer do tempo e no tempo, é um acontecer do nada. Acontecer é a manifestação, o vir ao aberto da realização. Como a semente que brota da terra e se abre para o aberto do céu. Como a criança que cresce no ventre da mãe e desabrocha na natividade do vir à luz, ao livre aberto do acontecer da realidade como mundo. Guimarães Rosa, em Grande ser-tão: veredas, narra, depois que Riobaldo ajuda uma pobre mulher do ser-tão a dar à luz: “Minha Senhora Dona: um menino nasceu - o mundo tornou a começar!...” (Rosa: 1968, 353). Eu mudaria esta afirmação para: “Minha senhora dona, uma menina nasceu: o mundo tornou a dançar”. Examinemos o nascer para vermos alguns elementos esquecidos. O nascer sempre foi um fato fundamental em todos os povos, daí as festas da fertilidade. Claro, sem nascimento só restará a morte, o fim. Vejam que toda a narrativa, toda a saga do cristianismo começa com a festa da natividade, do Natal. É quando a mãe-mulher-terra está pronta para dar à luz, fecundada pela luz celeste, pelo espírito. Examinemos essa festa. O que a constitui? Em primeiro lugar um mito. Mas não há mito sem rito. A tensão de mito e rito acontece na dobra do ritmo do acontecer da realidade, do nada tornando-se milagre. No ritmo de mito e rito acontece a dança musal de todas as artes. Não é a dança e as demais artes que criam o ritmo de mito e rito. É a própria realidade, o próprio caos se desdobrando e manifestando em cosmo. Isso são as artes, todas as artes. E são artes na medida desse dar-se a conhecer enquanto ver inaugural. Todas as artes são um dar-se a ver do caos em cosmo. É um ver que poucos veem, porque o essencial não está na visão, na perspectiva, mas no que na luminosidade do horizonte sempre se vela. Do que vemos do que se dá a ver, vemos muito pouco, porque é muito mais o que se vela. Esse dar-se a ver, acontecendo, é o que se denomina Poética. Já Platão no diálogo Banquete disse: “Toda poiesis é o passar do não-ser ao ser”. Isso é dança, porque a dança é o movimento do repouso para o repouso, assim como toda fala é fala do silêncio da linguagem. Mas isso acontece conosco e com toda a realidade incessantemente. Por isso disse Rosa no conto “O espelho”: “Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes” (Rosa, 1967: 71). A diferença dos retratos só é possível porque a realidade é essencialmente uma dança musical de mudanças. Um corporificar-se do que somos no estar sendo. Não se pode dar dança sem esse dar-se a ver da realidade. Dar-se a ver é dar-se a conhecer.
Toda dança é essencialmente conhecimento poético. Quando vemos dança ou dançamos, não somos nós que dançamos ou vemos dança, é a realidade que se nos dá, no acontecer do nada, isto é, do conhecer do caos na dobra do cosmo. A dobra originária é de ver e não-ver, de conhecer e ser, na unidade do entre enquanto nada. E nos convoca a sermos dança. Como isto é possível? É porque a realidade é dança enquanto princípio. Devemos logo tirar de nossos conceitos o princípio como uma afirmação genérica, abstrata, que anula as diferenças. Estas são sempre concretas. Como? O grego pensava o princípio na palavra arché. Dessa palavra se formou o substantivo archonte, aquele que comanda, que está à frente, aquele que conduz. Nenhuma condução se dá em abstrato, como não há dança em abstrato. A pauta de uma coreografia ainda não é dança. O princípio vigora na obra e toda obra é obra na medida da sua vigência num telos. A palavra telos diz fim, não enquanto término de um percurso, mas enquanto consumar, levar à consumação, à plena realização. A mãe se realiza nos filhos, a flor nos frutos, o fruto na árvore, a árvore nas flores e assim permanentemente. Isso é telos. Não há, portanto, arché sem telos, mas também não há telos sem arché. Como acontece isso na dança? Na dobra de dança e obra de dança, na dobra de obra e bailarino, na dobra de dança e expectador. Mas então o expectador, como o bailarino, tem que deixar eclodir dentro de si a energia luminosa da dança que vigora como princípio na obra de dança. É o que a preposição portuguesa com quer dizer, daí a palavra concreto se opor a tudo que é abstrato, genérico, indiferente, aquilo que é inerente a todo gênero. Essa energia luminosa, que vigorar no com, é que constitui o próprio de cada um e não e jamais a sua imaginação ou sentimentos subjetivos, sensações estéticas, pois estas sem a energia luminosa da dança não podem nada. É esta energia luminosa como princípio que age e transfigura os que se deixam tomar pelo operar da obra de dança. Em verdade, em qualquer obra de arte, porque em todas as obras de arte sempre vigora o mesmo princípio poético.

Linguagem e matéria
Então todas as obras de arte são iguais? Claro que não. O poético é a linguagem enquanto unidade operando o princípio de criação que se chama matéria. É nas matérias que as obras de arte se diferenciam e não e jamais na linguagem.Nas obras de arte vigora sempre a linguagem como unidade, da qual as diferentes realizações materiais das obras de arte recebem o seu sentido. Nas obras de arte, as suas diferenças estão no princípio de criação: a matéria, não na linguagem que as reúne e lhes dá sentido. A linguagem vigorando é o caos eclodindo em cosmo enquanto mundo e sentido. É a linguagem de todas as artes. A linguagem é a unidade poética de todas as obras de arte. Linguagem diz-se em grego logos. E não há, é evidente, tantos logoi quantas são as artes. Não há linguagens artísticas. Há diferentes matérias fecundadas pela linguagem. Há artes quando nelas vigora o logos. Para o grego isto não oferecia a menor dificuldade. Para o grego, logos ou linguagem nada tem a ver com a palavra língua, que se diz em grego glossa. A palavra é o telos da arché, isto é, da linguagem ou logos. Assim como há arché e telos, há para ele duas palavras para vida: zoé, princípio vital, e bíos, o vivente. As diferenças acontecem nos bíoi. E sua identidade, enquanto princípio, é a zoé. Um bíos está sendo até chegar à plenitude e deixa de estar sendo para ser na sua plenitude. Reencontrar a zoé. Na morte deixa de estar. Só é. É a sua morte como plenitude ou telos. No telos enquanto plenitude não há mais estar, ser.
Para apreender e compreender isso, enfim, para aprender isso é necessário agora nos voltarmos para a realidade enquanto princípio. Diante da afirmação do poeta Rosa, acima, da impossibilidade de duas fotos iguais, o pensar comum e repetitivo da banalização seria a conhecida afirmação da relatividade do tudo passa, tudo é passageiro, aparência, fatuidade, niilismo, ilusão, sem sentido. Isso não é dança. São sensações sem sentido. Dança não é estética, sucessão de sensações para deleite de uma subjetividade. Não que não seja isso, é isso também, mas é mais, muito mais. É princípio. Por quê? O princípio, segundo o pensador Aristóteles, não é estático, é dinâmico. Não é linear, é circular. Não é finito, é infinito. Não é de exclusão, é de inclusão. Deixando vigorar o princípio é que hoje podemos e devemos dizer e proclamar a dimensão mítica da dança. E só apreendemos a dimensão mítica da dança, enquanto princípio, se abandonarmos de vez a sua exclusão pela lógica que expulsou o sagrado das artes e as reduziu a aprimoramentos racionais e técnicos. Esta redução se deu em detrimento da própria dança, em seu sentido cósmico e mítico. E a redução se deu pela dicotomização da realidade, reduzida ao seu aspecto causal, funcional e técnico. Expulso o mito em nome da razão científica, foi expulsa a dança. É necessário deixar a dança voltar à casa da linguagem. Como? Reconhecendo o fundo mítico-caótico da realidade na dobra das manifestações artísticas, realizando o sentido da realidade enquanto mundo. Artes não são técnicas, mecanismos apenas. São mais. São sentido, são mundo. São vigorar do princípio, isto é, são ritmo no dar-se, no acontecer dos ritos e mitos.

Dança e física quântica
E o mais interessante é que essa necessidade de a dança voltar às suas origens não é apenas um postulado da Poética. Também é de uma ciência nova: a física quântica ou mecânica quântica. Descoberta pelo físico alemão Max Planck no início do século XX, trouxe mudanças que só hoje estão operando em toda a realidade. Não haveria toda a ciência da computação e a realidade digital sem a mecânica quântica. Será que um dia um programa digital vai substituir a dança? Não. E sabem por quê? O operar da dança não é programável. É sempre inaugural. Nunca se dança a mesma dança duas vezes. Nunca vemos a mesma dança duas vezes. Sem a essência da dança não há dança. E essência é o acontecer do nada, esse milagre insólito.
Fritjof Capra, no livro O tão da física (Capra: 1995), nos dá indicações da essência da dança, como a estamos encaminhando aqui. Todos sabem que para a física quântica tudo na realidade se reduz a partículas e ondas. Nós mesmos somos partículas e ondas. Porém, o que não cabe nessa teoria é algo que nenhum cientista pensa: a linguagem, as artes. Os cientistas teorizam a realidade mas não teorizam a linguagem a partir da qual podem teorizar a realidade, até porque não podem reduzir toda a ciência às meras fórmulas matemáticas. Para enunciá-las já precisam do quê? Do vigorar da linguagem. A própria matemática, em seu sentido profundo, já vigora na linguagem. Nesse livro, o autor faz uma aproximação com a antiqüíssima sabedoria do Oriente. Procura trazê-la para os conceitos ocidentais. É um esforço louvável. A questão é que a sabedoria do Oriente não cabe em conceitos que possam ser ensinados. Só experienciados num exaustivo aprender. É o que chamo aprender com a dança. Nesse livro, há dois tópicos extremamente importantes para nosso tema: “Vazio e Forma” e “A Dança Cósmica” (Capra: 1995, 7).
Não é meu intento tratar desta temática agora, mas não posso deixar de assinalar que a dança é um fenômeno cósmico, como venho mostrando. O interessante é como surgiu essa percepção da dança para o autor. Ele narra no prefácio:
Há cinco anos experimentei algo de muito belo, que me levou a percorrer o caminho que acabaria por resultar neste livro. Eu estava sentado na praia, ao cair de uma tarde de verão, e observava o movimento das ondas, sentindo ao mesmo tempo o ritmo de minha própria respiração. Nesse momento, subitamente, apercebi-me intensamente do ambiente que me cercava: este se me afigurava como se participasse de uma gigantesca dança cósmica (Capra: 1995, 13).
Nossa visão das coisas dá-nos a impressão de que a realidade é feita de coisas materiais, estáticas. É um grande engano e essa concepção está totalmente ultrapassada. Sabe muito bem qualquer praticante da dança que se deixe tomar pelo livre entregar-se ao ritmo erótico de estar sendo que a realidade é bem outra. E isso não cria uma oposição ao espiritual. É uma realidade só, única, transfigurada. O que a física do século XX descobriu com as experiências a dança já sabia de um saber só de experiência feito: “Todo o universo está, pois, empenhado em movimento e atividade incessantes, numa permanente dança cósmica de energia” (Capra: 1995, 170). O que o Ocidente levou séculos para descobrir pelo viés da ciência, a arte já o sabia há muito. Porém, a crítica moderna, de cunho racional e funcional, nas mais diferentes variantes, obstruiu esta experienciação da arte, mais especificamente da dança. E a ciência da física quântica vai encontrar eco de suas descobertas nos místicos orientais, uma vez que os ocidentais foram classificados como míticos e metafísicos e, portanto, não passíveis de crédito. Alexandra David-Néel, física, em visita ao Oriente, relata que encontrou um lama que se referia a si mesmo como um “mestre de som” e que lhe assegurou o seguinte:
Todas as coisas [...] são agregados de átomos que dançam e que, por meio de seus movimentos, produzem sons. Quando o ritmo da dança se modifica, o som que produz também se modifica. [...]. Cada átomo canta incessantemente sua canção e o som, a cada momento, cria formas densas e sutis (In: Capra: 1995, 183).
Como podemos ver, a dança é algo muito profundo e misterioso e que jamais pode ser restringida a uma disciplina entre outras disciplinas. Ela diz respeito a três instâncias interligadas e indissociáveis: A realidade, o ser humano e a linguagem enquanto saber da arte. No entre realidade e linguagem é que o ser humano faz sua travessia e chega a realizar o seu destino. Como?

Aprender a, sobre, com a dança
Brevemente, esta é a última parte que quero desenvolver neste pequeno ensaio. E retomo agora o início quando li no jornal a notícia a respeito do crescimento do interesse pela dança e da criação de muitas faculdades ou escolas de dança. Uma faculdade se estrutura em dois pólos interdependentes: os alunos e os professores. E qual o objetivo da instituição? Os professores ensinarem e os alunos aprenderem a dança. Como podemos ensinar dança se não soubermos bem e claramente duas condições prévias: O que é dança? O que é ensinar e aprender? Mas tanto uma como outra estão presas a uma terceira que as configura: O que é conhecimento, pois supõe-se que ambas se dão enquanto conhecimento. Podemos dizer que o conhecimento é o que distingue o ser humano na ordem da realidade, não lhe dando superioridade nenhuma em relação aos outros entes, mas a própria realidade realizando-se neles enquanto conhecimento, que de outra maneira a própria realidade não realiza. Toda a realidade é dança e música, mas só no ser humano ela se realiza como obras de música e dança. É o conhecimento, é o sentido grego de techné. Esta, portanto, não significa em primeiro lugar procedimentos e meios de fazer. Nesse sentido a techné já foi esquecida em sua essência e reduzida a mecanismos de aprendizado e de execução. Estes são importantes, mas não são toda a techné.
Se o conhecimento distingue o ser humano, ele pode ser considerado em duas instâncias. Há o conhecimento dos conceitos, universal e abstrato, passível de uma transmissão e de aprendizado, expresso em normas ou leis causais. Ele é baseado numa concepção da realidade como fundamento causal e tem uma aplicação funcional com vistas às finalidades do sistema em que se dispõe, institui e constitui. É o campo das disciplinas e visa assegurar a transmissão dos conhecimentos elaborados pelas pesquisas, a partir de teorias racionais. Eles permitem a intervenção e o controle da realidade. Tudo que é se constitui do que é e do como é. O conhecimento causal é o como é e o como se conhece a realidade. Nele, o que é é deixado de lado e esquecido. Se agora nos voltamos para a dança, constataremos que tal conhecimento é o que predomina nas disciplinas do currículo. E tem dois objetivos: o ensinar a dança aos alunos e estes aprenderem-na enquanto mecanismos técnicos. É o aprender a dança. Há um outro aprender através dos conceitos, mas onde estes dependem de uma atividade que na modernidade se tornou determinante: o conhecimento crítico-conceitual. É o aprender sobre a dança. É um conhecimento estranho, mas muito praticado e respeitado. Porém, sua autoridade tem algo de mágico, pois o crítico se arvora ter um conhecimento que lhe dá uma autoridade sem legitimação a não ser da própria crítica. O conhecimento crítico se legitima a partir da crítica. É uma estranha tautologia. Claro que não podemos esquecer o fundo em que ela se baseia: a Crítica da razão pura, do pensador Kant. Tal leitura da obra é a que interessa ao sistema, não ao pensamento das questões. Mas por que a realidade deve ser determinada e submetida tanto à crítica quanto à razão? E isso em termos da arte é contraditório, pois as artes se afirmam e supõem como opostas às atividades racionais e críticas. Porém, esse conhecimento faz a fortuna de muitas disciplinas. E dos alunos e professores sempre se está exigindo um conhecimento crítico. Só não se pergunta se tal conhecimento ainda é artístico e o que o funda.
E o que será isto – o conhecimento artístico? É um outro conhecimento, o não-conceitual e não-causal, o conhecimento poético. É o conhecimento inerente às questões. As questões são os interstícios dos conceitos, aquele conhecimento que não resulta da atividade racional. As questões não são algo que o ser humano possa ter ou não ter. Elas são prévias ao próprio ser humano. E são elas que têm o ser humano. Este é e só é sendo enquanto questão. Morte é questão. Vida é questão. Tempo é questão. Eros é questão, etc. Enfim, ser é a questão. Se os conhecimentos conceituais advêm por dedução e experimentação, os conhecimentos das questões só nos advêm por experienciação. São os conhecimentos que constituem sempre uma aprendizagem e não são jamais, apenas, o resultado de um aprendizado. Este é importante, mas não decisivo. Em que faculdade Cartola aprendeu música?
A aprendizagem da dança não acontece com o conhecimento da dança, sobre a dança. Só é possível quando se dá com a dança. Para compreendermos a especificidade e propriedades desse com, temos de nos perguntar o que é aprender. Este verbo forma-se do verbo latino prehendere, que significa prender, agarrar, afetar. Aprender é tudo que nos afeta. É o vigorar de eros. O que desde que nascemos nos prende, agarra e afeta é o princípio, é o ser. Desde que nascemos já nascemos com um destino, o a ser realizado. Viver é existir em desempenhos para tomarmos posse do penhor pelo qual nos empenhamos. Porém, esse penhor – esse telos - já desde sempre temos: é o que somos, nosso próprio. E que, de fora, ninguém ou nenhum conhecimento nos pode dar ou tirar. É nesse sentido que o grande poeta-pensador grego Píndaro, no século V, antes de Cristo, disse poeticamente concentrado apenas num verso: Torna-te o que és, aprendendo. Se o que somos é o ser que nos foi dado para chegar a ser, isso só é possível na medida em que nossa existência tende para o que já desde sempre somos. É o que nos move, nossa tendência dançante. Tender para, ir para junto de, diz-se em latim: ad. Ou seja: a-prender é ad-prehendere. Tender para, ir para junto do princípio. O com diz o movimento de se deixar tomar pelo princípio, ser com o que já somos, em reunião e na unidade do que somos, de nosso destino, nosso dote, nosso próprio, nossa identidade. Se a realidade é originariamente dança cósmica, aprender com a dança é deixar-se possuir pela dança. Pois deixar-se possuir é realizar a possibilidade de para possibilidade. Isto é libertar-se, ser com a dança.
Na dança advém o conhecimento enquanto questão. Todo conhecimento se dá numa dobra: é o que é no como é. O como é é o conhecimento do que se é. Num tal conhecimento do como se é se realiza o que é, isto é, o que somos. Quando nos deixamos tomar pela dança, faz-se dança o que somos no como conhecemos. Nesse sentido, o conhecer é chegar a ser o que se é. Um tal chegar a ser é o que se denomina acontecer poético. No âmbito da poética, não basta conhecer, é necessário ser o que se conhece. Não é algo já pronto. Muito pelo contrário. É uma conquista que exige de nós muita dedicação, disciplina e, sobretudo, renúncia. A dança sendo energia e nós sendo energia, a unidade advém sempre em fluxos contínuos, ininterruptos pelo e no diálogo com as diferentes manifestações artísticas, mas sobretudo no diálogo. Porém, devemos distinguir, discernir, três diálogos: o diálogo com o outro que se me opõe, o diálogo com o outro que ainda não sou e devo chegar a ser, e me é dado em composição. E, enfim, o diálogo com o logos, a linguagem que vigora na auto-escuta e que me dá a unidade do que sou com tudo que está sendo e é. É a dança cósmica do desvelar-se do universo no velar-se do mistério do caos. Em toda arte, em toda dança, o caos só se faz presente de modo oblíquo, velado. É a poética enquanto fluxos e diálogos da, na e com a dança. Fluxo não é mera sucessão de algo. Em dança, o fluxo é o acontecer do nada, fazendo-se dança, sentido corporal. É a corporeidade da dança, a linguagem fazendo-se corpo, encorpando o que somos por estarmos sendo.

Inconclusão
A grande dificuldade de a ciência e a técnica se abrirem para o acontecer das artes está em que elas reduzem tudo a leis causais. E lei causal só se pode comprovar funcionalmente porque é regida pela medida. O que não for passível de medida não é científico, já afirmou o pai da física quântica: Max Planck. Mas será que o silêncio, o vazio, o repouso, de onde vem e para onde tende toda a dança pode ser medido? Não. E também não precisa, porque o eros que move todas as artes não precisa nem é passível de medida. Só de paixão de ser. As artes são não-causais nem funcionais. São, portanto, sem fundamento. É nessa dobra de gesto e repouso que acontece o operar da techné da dança e de todas as artes. Nossa dificuldade de compreendermos a techné é que queremos reduzi-la à técnica moderna. Esta é regida pela quantidade e não pela qualidade. Quando a quantidade explode em qualidade, nesse entre deixou de ser técnica e passou a ser poética. O que aconteceu? Reinstalou-se o seu sentido grego originário. Não há, portanto, poética sem techné, mas não há técnica que faça eclodir o poético por si e em si. Simplesmente porque a técnica é regida pela causalidade, onde o fazer é mais importante do que o acontecer do nada, para que se veja o milagre. Ora ver o milagre, como nos diz Rosa, é a techné. Esta palavra grega diz o conhecer que advém no e pelo ver do ter visto. Ter visto o quê? O que é e está sendo. Como isso se dá? Esse é o sentido de aprender, aprender com a arte, aprender com a dança.

Bibliografia
CAPRA, Fritjof. O tao da física. São Paulo: Cultrix, 1995.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 3. e. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
-----------------------------. Grande sertão: veredas. 6. e. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 2001.