26 outubro 2011

A história do sentido das artes: narrativas e mito



Próprio é o que foi doado a cada um para ser. O próprio são possibilidades de e para possibilidades. O próprio, por isso mesmo, acontece como existir.
Não se pode separar o próprio da essência e esta da verdade, pois a essência da verdade é a verdade da essência. Portanto, vai aparecer o próprio enquanto possibilidades, as da essência, ou seja, da verdade. Verdade é sempre possibilidades de e para possibilidades. Disso se conclui que o aprender com essencial deve sempre ser um aprender com a verdade da essência. Ele é sempre o se deixar tomar pela essência, isto é, pela verdade. Só a verdade nos liberta. Quando não nos deixamos tomar pela essência? Quando em nosso viver vivemos em meio aos entes e nos pautamos pelos entes em suas relações e funções, pois então dá-se a entificação do ser. Essa força entificadora é tão dominante em nós e nos sistemas que o próprio Deus, na maioria das vezes e pela maioria das pessoas, reduz-se a uma entificação. A entificação nos torna surdos e cegos para a voz e a luminosidade irradiante do ser, energia vigorante em tudo que é. Entificação é o limite no limite e pelo limite. Todo código é o limite pelo limite. O alcance de todo código limita-se aos significados, à semântica. Onde há semântica do código não fala a voz do silêncio.
O lugar da essência e da verdade aparece na medida em que somos continuamente um agir, um estar empenhado em alguma ação e em termos e procurarmos sempre como penhor de todas as ações um bem. Sem essência e verdade não se pode manifestar o bem de todo empenho e como o penhor. Ora, um tal agir é o que se denomina o aprender com.
Mas o que nos leva a agir como seres humanos não é essencialmente o viver como viver, mas o viver com sentido. Este é o motivo poético do existir. Aprender com é o viver na experienciação deste sentido. Ele já nos tem e nos impulsiona na medida em que o humano consiste nas questões. Só o humano é tido pelas questões. Viver não é questão. O sentido do viver, sim, é questão. E o sentido implica essência e verdade. Eis o âmbito poético de toda manifestação artístico-poética. É por isso que nenhum outro ser vivo é tomado pela techne, nos diferentes sentidos gregos. É nesse mesmo horizonte que o sentido do viver que implicam as questões é desvelado em toda atividade poético-artística. Porém, não se pode nunca reduzir o poético-artístico ao estético ou a classificações formais e epocais, a gêneros ou a modalidades narrativas. O sentido eclode nas obras de arte e o sentido nos adentra na medida em que são as questões que constituem as obras de arte. Questões dizem aí a essência e verdade do que somos.
Questões nunca são algo e muito menos algo cultural. Daí que questão nunca é definida por e em nenhuma língua. Onde houver definição, estará ausente o vigorar da questão, isto é, a essência e a verdade. A questão não tem definição. Mas todas as culturas serão sempre experienciações originais das questões. Eis o nosso temor da perda das identidades culturais pela generalização e uniformização promovida pela globalização. Serão as questões que deixarão de se manifestar em percursos e tentativas históricas de respostas, isto é, de experienciações poético-culturais. Elas são o exercício existencial de cada um em suas possibilidades, ou seja, em sua essência e verdade.
Se a experienciação é sempre de cada um, a vigência das questões é sempre, como respostas, epocal, isto é, coletiva. É impossível reduzir as questões a algo subjetivo ou pessoal. São elas que inseminam epocalmente as possibilidades de cada próprio, porque seremos sempre uma ventura e aventura coletiva e política, não no sentido partidário, mas no da pólis grega, onde ela significa o pólo de reunião e afirmação das diferenças. Essa aventura coletiva é que se denominou, desde que ser humano é ser humano, mito, ou seja, uma narração. Mas são então narrações das questões. Por isso, os mitos serão sempre coletivos, culturais. Jamais se pensou ou se tentou reduzir um mito a uma propriedade pessoal. Da mesma maneira o próprio só se apropria na dimensão e percurso dessa aventura e ventura em que cada um pode chegar a se experienciar como fazendo parte da aventura em que os mitos, isto é, as narrativas, nos lançam. Essas narrativas nunca são conceitos ou invenções aleatórias e exteriorizantes de situações pessoais ou interesses subjetivos e fatos historiográficos, porque estes reduzem tudo à representação. Nossa vida vivida e experienciada como narração jamais se pode reduzir a uma representação. Toda narração de questões tem de ser concreta. Nenhuma questão pode ser experienciada como representação. Quandod tal acontece, questão tornou-se conceito. Nenhum conceito é concreto, pois sua essência é a generalização. À representação e à conceituação falta o tempo ontológico. Este é o próprio da narração mítica. Quando as vidas narradas se tornam representações o mítico se ausenta e tudo se torna uma triste e alienante ilusão. Ilusão é toda realidade reduzida à representação. Representação é toda vida sem questões. Para se viver poeticamente as questões é necessária a coragem originária.
As narrações das questões serão sempre experienciações vivas e reais de vida, de procura do sentido, verdade e mundo. Mundo é o sentido se dando em verdade. E a verdade é a essência vigorando, se manifestando, aparecendo, fundando tempo e espaço, numa aventura de posições e deposições, isto é, manifestações linguísticas, no operar da posição enquanto sentido, isto é, da linguagem. A linguagem é sempre linguagem do ser se dando em estados, em posições. Ao ordenamento das posições em sentido e morada é o que denominamos disposição e reunião: mundo, morada, sede. Sem sentido não há reunião. Seria algo caótico. E só podemos falar em caótico porque já podemos ver e saber o que não é caótico. Ou seja, somos originariamente sentido, reunião. À reunião de posições em sentido e com sentido é o que denominamos narrativa. Assim como há um conjunto de posições, elas sempre advêm numa conjuntura. O sentido da conjuntura advém na reunião das posições em proposições. É por isso que uma narrativa é feita sempre de proposições. Essas proposições não serão nunca somente linguísticas, pois estas apenas indicam sempre posições circunstanciais, advindas do sentido inerente a toda posição e deposição na disposição das proposições. Ou seja, é o sentido da linguagem que funda as proposições das línguas. Então dizemos que a linguagem é. Mas ela não é, vigora, porque não é e jamais será ente. Só o ente é. Por isso o ser não é, pois se fosse seria ente. Porém, sem ser não há ente, como sem linguagem não há língua. Esta é e só pode ser porque a linguagem é sua origem e é sua origem porque é o ser vigorando e doando sentido às posições para que estas sejam posições no mundo. Sem mundo não há posições e nem proposições. E são constituídas pelo mundo porque este é o nada criativo acolhendo o humano como mundo. Todo acolher é um fundar uma morada, a linguagem, a casa do ser. E é casa porque recolhe e acolhe o humano de todo ser humano na sua procura de sentido, de verdade, música e morada do silêncio.
E como pode a verdade vigorar como sentido? Porque a verdade é a essência se tornando manifestação. Isto é, deixando o ser do próprio, ser, na vigência do que lhe é próprio. Ora, o próprio de cada sendo é sua essência. E a essência é sempre doação do ser. Todo sendo para chegar a ser tem de fazer a caminhada da manifestação da sua verdade, caminhando do nada para o nada, do vazio para o vazio, mas onde a travessia dessa caminhada se torna a eclosão das possibilidades doadas a cada sendo. Por isso estamos sempre a caminho da linguagem, casa do ser. Sem essência não há sendo. Cada sendo, por ser, já está sendo. Sendo é toda fala do silêncio, é toda posição do vazio, é todo passo da narração, é todo ato à procura do bem. Por isso mesmo é que a morada era denominada entre os gregos: ethos. Desta palavra nos advém o ético. Portanto, todo ético é o poético acontecendo. Ao acontecer do ético no poético é que se denominou narrativa ou mito.
Onde houver uma narrativa que não manifeste as questões que constituem a essência do humano, só teremos representações rituais externas e sem essência. Nelas e por elas jamais poderá haver aprender, muito menos a aprendizagem do ético. Podemos aprender sobre narrativas, podemos aprender os mecanismos técninos das narrativas, podemos reproduzir esses mecanismo técnicos, esses procedimentos, mas jamais chegaremos, nessas performances circunstanciais, a adentrar as questões que movem todo aprender com. Só as questões são sempre essenciais e éticas. Quando há um aprender com as questões? Quando no aprender somos movidos pelo e com aquilo que em nós é essencial, e fazemos de nosso agir um empenho e desempenho cujo penhor não se pode reduzir a algum bem entitativo e circunstancial. É que no empenho ético, que é sempre poético, o penhor é sempre o bem. É este que essencializa o ético. E essencializa porque nele o que acontece é a verdade, não qualquer verdade externa e circunstancial. Mas a verdade da essência, porque esta é essência da verdade. E elas, a essência e a verdade, são as questões vigorando. A essência do vigorar funda as narrativas, isto é, os mitos. Somente pode haver educação pelos e nos mitos. É que a narração não se pode restringir aos fatos como se estes já dissessem tudo que somos e não somos. Pelo contrário, é o que somos que pode dar sentido aos fatos, mas que então deixarão de ser fatos para serem, de fato, o que somos. E jamais podemos ser fora do vigorar das questões. Pois estas são o ser vigorando em cada um de nós, em cada época, em cada cultura.
É nesse sentido que todas as artes são narrativas, pois todas elas manifestam o que somos, a nossa essência, o nosso sentido, o nosso mundo, a nossa verdade, que não é pessoal, mas sempre o que na proveniência do que somos nos acolhe, recolhe e plenifica. As narrativas não serão poéticas quando lhes faltarem as questões, isto é, o ético-poético: sentido, mundo, verdade, essência, mito. Sem obra de arte não há sentido, verdade, mundo e linguagem acontecendo. É por isso que somente haverá história das artes quando houver a história do sentido das artes.

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