14 janeiro 2011

A gota d'água e o mar

A sabedoria budista propõe um enigma: O que fazer para que uma gota d’água não evapore? Jogue-a no mar.

Vai-se falar da vida de um homem; de cuja morte, portanto.
(Rosa: 1967, 81)

Sempre nos perguntamos o que nos acontece depois da morte. Raramente nos preocupamos com o que nos acontece durante a vida, seja ela breve, duradoura ou longa e até longuíssima. E é esta, enfim, que conta, seja lá a duração que tiver. Mal nos damos conta de que desde que nascemos já temos um encontro inevitável com a morte. Esta é uma conseqüência natural de estar vivendo. Estar vivendo eis aí a expressão exata. Estamos na vida e só por estarmos vivendo é que viver implica um estado transitório, uma viagem, uma travessia. Estar ainda não quer dizer ser a vida. Nem o vivente é a vida. Esta é a medida do vivente, de quem constitui seu destino. Na viagem implícita outra pergunta: de onde para onde? Esta pergunta não leva em conta o mais importante: o estar vivendo na e a partir da vida. Então não há de onde para onde. Há a vida que cada vivente vive, mas nenhum vivente vive a vida toda, assim como nenhuma obra de arte esgota a arte nem nenhuma fala esgota a linguagem. E o importante é essa tensão permanente entre o estar vivendo e o ser vida. Só por sermos vida é que podemos estar vivendo.
Portanto, saímos da vida e voltamos para a vida. É isso o que a sabedoria budista expressa na imagem-questão da gota d’água, que só persiste, enquanto gota, se permanece no seu elemento: o mar. Mas o que é o mar? Não é a extensão territorial nem o volume d’água. Não. O mar é o elemento onde todas as gotas d’água encontram seu lugar e de onde se desprendem e para onde voltam. Mas para tal é necessário não deixar se evaporar. A vida é o elemento de todos os viventes. É nesse elemento que nos tornamos um pequeno e frágil navio que só pode continuar navio vivo e em atividade caso se mova naquilo que lhe permite se mover: a água, o mar, a vida.
Perguntar, portanto, o que nos acontece depois da morte, para essa pergunta, mal colocada, só é possível tentar uma resposta, caso nos voltemos para o pensar: a água e o mar. A morte é a natural reentrada em nosso elemento: o mar, a vida. Porém, o que a pergunta pergunta não é exatamente isso. Na pergunta se pergunta pela gota d’água que cada um é. Cada vivente é tão único quanto transiente. Mas assim como a gota d’água não subsiste sem o mar, do mesmo modo cada um, naquilo que é, não subsiste sem o ser. Como pensar, então, o ser?, pois pensá-lo é o caminho que nos conduz a uma possível resposta. Porém, não devemos superestimar o pensar, ou seja, o seu poder de formular perguntas e respostas, nem esquecê-lo. Em verdade, pensar é deixar-se tomar pela questão. E as respostas? São respostas, não são solução.
Como o pensar só é possível acontecer em quem está vivendo (os mortos não pensam), isso nos diz que tanto a pergunta como a resposta só pode ser dada, acontecer, tendo como horizonte o estar vivendo, no vivente. Ir mais além não é possível. Sim, é possível saber o que na pergunta e no pensar não se pode saber: o não-saber que se quer saber. É esse o horizonte do pensar e do perguntar, em outras palavras, do vivente que quer saber a vida. Ou ainda: o estar que quer ficar sendo, isto é, estar sendo, sendo o ser. Seria o mesmo que a gota d’água quisesse, como gota d’água, ser o mar. Essa é a nossa sede.
Querer é aí poder. Mas de quem? De quem vive ou da vida? Certamente é da vida, pois sem esta nem há vivente e muito menos o pensar e perguntar.
Vemos que podemos nos mover nesses dois extremos, mas falta pensar o mais importante: a vida que se vive, ou seja, a travessia de cada vivente, que só se dá num desdobrar do que já é. Pensar diz, portanto, não definir nem conceituar, mas o abrir-se para o aprender a pensar o que é digno de ser pensado. Isso é a travessia: dobra desdobrando-se, sempre inauguralmente.
Quando se pergunta, o que há para além da morte, nesta pergunta se esquece o essencial: todo além pressupõe um aquém. Seria mais importante pensar o além ou o aquém? Ou nenhum dos dois? Ou os dois e o meio, a travessia, pois não pode haver travessia que não faça parte do aquém e do além. Essas três dimensões dadas pelos advérbios recebem um nome muito comum e usado: tempo. Só por já estarmos e sermos no tempo e enquanto tempo é que podemos formular as perguntas em torno das três possíveis localizações. Portanto, perguntar pelo que há para além da morte é perguntar pelo que o tempo é enquanto ex-iste. Ou seja, o tempo só é tempo porque está e é. Ou será o inverso, o ser e estar só são e estão porque são tempo? Não será mais lógico dizer que não há essa alternativa: ou. E, sim, que um e outro são o mesmo. Qual a importância de se pensar o mesmo, não como conceito, mas como o elemento onde o tempo é e está sendo tempo? É que o mesmo dá unidade ao antes e ao depois e à travessia.
Portanto, só podemos tentar achar uma resposta à pergunta que nos orienta e nos deixa, diante da morte, sempre perplexos – o que há para além da morte – se pensarmos o mesmo. Sem este nem é possível a pergunta sobre o tempo. Ou melhor, o tempo só pode ser antes e depois e viagem por já estar vigorando no mesmo, que lhe dá unidade. O tempo é o mesmo que é a unidade das três marcações tradicionais do tempo: o passado, o presente e o futuro. O além é o futuro, assim como o passado é o que no presente não pode mais ser futuro nem presente. Portanto, quando fazemos a pergunta que nos angustia, ela só pode ser feita porque já houve o esquecimento do passado e não há mais possibilidade do presente. Isso implica que o esquecimento é que dá origem à pergunta, caso não houvesse tal, não haveria necessidade da pergunta. No próprio tempo, em sua unidade, a pergunta se destrói, deixa de ter sentido. Ter sentido, o que é isto? Para haver sentido o tempo não só é unidade, ele é também vida. O vivente só vive e sabe que vive e pensa a vida porque sua vida como vivente já vigora na vida como tempo e este como unidade. Portanto, a vida do vivente só é possível porque tempo é vida, que é unidade, que é o mesmo.
Quando (tempo), em nossa vida nos perguntamos diante dos nossos limites e sabendo-os como término de vida vivente, se há vida depois da morte, isso implica a vida como unidade de presente, passado e futuro. Vida é unidade, que é tempo, que é o que normalmente denominamos memória. Seria impossível perguntar pela vida depois da morte se já não fôssemos memória. Sabemos que nossa vida, no presente, remete para um passado e para um futuro. Se não houvesse memória seria impossível haver lembrança do passado e a possibilidade de futuro. Só há lembrança do passado porque a memória não é só o passado, mas a unidade que nos faz experienciar o tempo como unidade acontecendo, como o ser estando sendo. Será muito limitado restringir a memória a um processo de consciência, seja consciente, seja inconsciente. A memória radica em tudo, porque a realidade é memória. Em cada ente real lá está a memória do universo. Em cada vivente lá está a memória que é a vida. Será um engano muito grande igualmente reduzir a memória às determinações da genética. O que esta sabe e poderá saber é muito menor do que o que não saberá e nem poderá saber. Porém, isso não é negativo. É a sua fonte de poder saber cada vez mais. Em nossa vida de travessia, a cada escolha, a cada ação, a cada passo, não é um caminho que se abre, mas muitos. A possibilidade dos muitos caminhos não só pessoais, mas reais, porque igualmente epocais, é a realidade acontecendo enquanto memória. Esta é muito mais do que a cronologia e a causalidade. Ela é o acontecer poético, que é sem por quê.
A importância fundamental disso está em nos descobrirmos no futuro como a vigência permanente do passado, que, por ser memória, não passa. Vigora. O culto da memória foi o núcleo central de toda atividade em torno do sagrado. E nesse núcleo a família, entendida como genos, sempre congregou toda a casa. É nesse sentido que a casa é morada, pois nela se fazem presentes todos os que constituem a família. Isso é o genos. Justamente por isso, a casa, a morada, está ligada à linguagem, porque, enfim, a morada não são as quatro paredes, mas o vazio que acolhe a todos, na delimitação das quatro paredes e de quantos cômodos compõem cada casa. É nesse sentido que nosso corpo é nossa casa, porque nela habita o que somos. O vazio, o nada das paredes, é a memória, que não passa, mas acolhe a todos, isto é, lhes dá sentido porque o sentido é a linguagem vigorando. A linguagem é a casa do ser, porque o ser é a memória, o tempo, a vida.
A predominância do estar sobre o ser é que nos dá a impressão, muito viva, de que o tempo é linear e de que é dividido em três momentos. Se não houvesse o estar como posição, seria impossível o tempo nos advir como uma sucessão causal. O estar do ser é o ser enquanto posição. Sem a redução da memória à linearidade não há causalidade. Esta é uma possibilidade, mas não é todo tempo e, portanto, toda a memória, ser. Todo estar é ser, mas não há necessidade de o ser ser só estando. O ser vigora e só porque vigora é que se dá como estar, o horizonte da causalidade. Sem causalidade não há possibilidade de experienciação e ciência. É um conhecimento possível e útil, mas não é todo o conhecimento. Ainda bem, caso contrário seria tudo muito chato e mecânico, previsível. O mais belo da vida é sempre o imprevisível, o sem-causa, o sem-por quê. Ou como nos diz Rosa no conto “Reminisção”: “E há os súbitos, encobertos acontecimentos, dentro da gente” (Rosa: 1967, 81). O súbito de todo instante poético acontecendo eis a memória originária, poética. Sem esta não há cronologia e causalidade nem o real tem sentido.
Do mesmo modo o vivente é a vida estando, ou seja, o tempo estando, linear e causalmente. A vida mesma enquanto unidade é o mesmo que tempo e ser. Isso é memória. Só fazemos a pergunta pela vida além da morte porque partimos de uma posição, do estar e não do ser, do vivente e não da vida, do tempo linear e não do tempo enquanto tempo uno que, por ser e vigorar, se desdobra em sucessividade e unidade dos diferentes momentos sucessivos. É o tempo poético.
E só podemos falar em causalidade e sucessividade porque o tempo é memória, a unidade que dá sentido a todos os viventes e instantes da vida. O instante é o presente enquanto sentido do tempo, da vida, da memória. Só há instante para o vivente, não para o ser, a vida, o tempo, a memória. Por outro lado, sem estes não há vivente nem instante nem lembrança. Procurar trazer à memória a vida enquanto lembrança é procurar o sentido do que nos acontece como viventes. É a re-cordação das sensações sentidas como sentido da vida.
Mas não somos nós, com nosso pensar, que damos sentido. O sentido já nos é dado. Como? Como o tempo se dá em instantes. Não poderíamos experienciar nenhum instante como tempo se este não fosse sentido, ou seja, linguagem. A linguagem é o sentido do tempo na medida em que este é vida, é memória, é mar, é ser. A linguagem é a unidade da memória vigorando enquanto sentido. Cada palavra, cada oração, cada língua, cada possibilidade de discurso, é sempre possibilidade da linguagem em cada vivente, não interessa a língua, assim como cada vivente é possibilidade da vida e cada instante é possibilidade do tempo.
Na pergunta pelo que, angustiados pelo que está para além da morte, nos advém e não sabemos, esquece-se, ao se indagar isso, que a morte nada mais é do que o advento do não mais estar e passar a ser, não mais ser vivente para experienciar a vida, não mais ser instante para ser tempo e ser tempo para ser e deixar de estar. Das vivências pode-se perguntar o significado, mas da vida só se pode esperar sentido. Sentido é a linguagem sem significado, mas fonte de todos os possíveis significados e discursos. É o sentido ético da vida de cada vivente em seu destino.
Para perguntar pelo que nos advém depois da morte é necessário esquecer o que lembramos como vivente e lembrar o que esquecemos como vida, tempo, memória, linguagem, mar, ser. Mas aí não seremos mais viventes nem nos advirá nenhum instante nem frase ou palavra nem lembrança. Não estaremos mais, seremos. Só o ente está. O ser não é, porque não está. Se não é ente é Nada. O que necessariamente nos advém depois da morte é o nada. Nada não pode ser niilismo porque só pode advir ao niilismo o ente, o vivente, a oração, o discurso, o significado, o tempo linear, a lembrança, o instante, o ente, que está, sem referência.
O que nos advém depois da morte? Nada nos advém depois da morte. O nada não é porque nada e ser e tempo e mar e linguagem e memória e sentido são o mesmo. O mesmo é o elemento em que toda gota d’água encontra a sua realização e integração. Todos sabem que do mar se originou a vida porque é no mar que o sagrado faz vigorar a sua presença constante. A água não nos liberta de nossos limites porque representa algo externo a ela, que ela simboliza. Não. A água liberta purificando porque é água do mar, é energia irradiante. Purificar diz então iluminar. O sagrado é a energia que dá vida iluminando. O sagrado não é, vigora: tempo, memória, mar, linguagem, sentido, ser. Se o vivente faz a travessia do rio da vida, o que encontramos depois da vida é a fonte, onde o rio tem a sua origem. Todos os rios começam e terminam no mar. Todos os viventes começam e terminam no mar. E o que nos acontece no mar? Quem está fora do mar para perguntar isso é porque já secou. E se secou evaporou, não está porque não existe. Portanto, se não estivesse no mar não poderia perguntar. E para que quer saber se existe mar? O saber do mar é o sabor do mar, da vida. É um sabor silencioso e sem medida, porque é o próprio tempo em plenitude, como para a gota d’água é o mar, como para o vivente é a vida, como para o significado é o sentido, como para a fala é a linguagem. Pela linguagem não podemos perguntar, a não ser já vigorando nela. Vigorar nela é deixar advir toda coesão e coerência da linguagem do silêncio...
O que nos acontece depois da morte? A coesão e coerência do sentido da linguagem do silêncio. É o sabor do saber do não-saber. Mas então deixaremos de ser viventes e entes para experienciarmos, no vigorar do silêncio, a vida, o mar, o ser. Seremos gotas do mar. Não estaremos mais. Ficaremos sendo. Não mais poderemos nos angustiar com a pergunta que não quer calar: O que nos acontece depois da morte?

Bibliografia
ROSA, João Guimarães. Tutameia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

Um comentário:

f.f. disse...

a pedra é/ como o silêncio:/ se calo falo/ se movo paro

escrevi esse poema pensando nessas questões que o senhor impõe. belo texto, sobretudo "...travessia: dobra desdobrando-se...".

penso que o tempo não existe, nem mesmo enquanto impressão, páthos, porque simplesmente não há unidade; o que eu penso agora já não pensei mais. escrevo agora e já não escrevo. o tempo não é só um conceito seguro, usado pra corroborar a idéia de Platão sobre o ser? como pode haver linearidade se mesmo o passado que é o que me faz ser eu quando lembrado já não é mais passado, é presente refeito instante. e o futuro nada é porque não existe. digo isso pensando também no que dizes sobre o tempo só possuir unidade na vida, portanto no vivente; então só há tempo no sempre sendo e mesmo isso já é descontínuo. toda lembrança passa a ser um refazer do que foi e que não mais existe, um ato desesperado de presentificar o já morto.

mas penso milhões de coisas opostas, inclusive que sem nem o tempo não há espaço - do que fala Einstein, inclusive. porque espaço que é espaço faz-se passo largo ou curto à medida em que coisas o pisem; só a espaço se houver ente que o habite, não? ao menos que seja o tempo... o que o faria ente... isto me lembra o que li sobre o étimo da palavra templo: parece que os romanos da época que o Fustel de Coulanges palavreia n' A Cidade Antiga tomavam de um bastão ou coisa semelhante e traçavam um quadrado no ar e no chão, o que consagrava aquele espaço, ou aquela falta de espaço, em lugar sagrado, templo. isto também lembra os ritos da magia cerimonial que traça círculos mágicos onde são executados os sortilégios...

acabarcomeçando: só se é porque se lembra? lembrar é habitar-se?

um outro poema meu sobre essa conversa:

Sempre Sendo

Eu não sou nada.
Exceto o estar sendo,
que só por intento
de mero nada ser,
nem mais é nem o nada,
já que ser não ser
já é ser ser sem nunca.

Não que seja não,
nem que não seja ser,
mas o ser sendo sendo ser,
alguma essência sem ser,
só o que é por alguma coisa,
é pois não ser nada sendo.
(...)



......


fui aluno do prof. Antônio Jardim em Teoria Literária na UFRJ e cheguei a ler uns textos do senhor... acharei um prazer se o senhor quiser ler meus textos no meu blog, e uma honra se oferecer suas palavras.

o endereço é www.fotoalgia.blogspot.com



abraços.

f.f.