11 janeiro 2011

Aprender a pensar




Fica sempre difícil, dentro de todo percurso de pensamento já percorrido, deixar vivo e estar aberto ao próprio acontecer do pensamento. Assim como a vida que se vive e nunca se vive totalmente, também o pensamento nunca abarca tudo e sempre se dá a necessidade de estar aprendendo a pensar. Aprender a pensar é, em verdade, aprender a viver a vida que nos foi dada, mas ainda não foi vivida e de que não temos a menor idéia ou conhecimento do que seja e que se torna o motivo de viver. Aprender a pensar é aprender no que é o que não-é, que não cessa de nos solicitar em diuturna disciplina de abertura. Emmanuel trata disto bem no ensaio “Introdução ao Sofista de Platão”. Diz, em certa passagem: “Com sua ironia, Sócrates visa a provocar e testar o Estrangeiro que, assim, é forçado a confessar sua origem de pensamento. A naturalidade e filiação eleática não bastam para apresentá-lo. É indispensável mostrar ainda a sua atitude de pensamento. Pois pensar inclui sempre a coragem de colocar em questão a verdade das próprias posições e de abrir o espaço para acolher as diferenças de outras posições” (grifos meus). In: Filosofia grega – uma introdução, p. 227, Daimon, 2010. É de realçar aí o sentido profundo do questionar, uma atitude sempre aberta para o acontecer da realidade em suas diferenças. O dialogar como aceitação clara e inequívoca das diferenças. E o escutar como o estar atento e aberto ao acontecer das diferenças em outras posições e realizações. Essa abertura de escuta e diálogo se fazem permanentes e nos lançam de uma maneira radical e originária no acolhimento das diferença, não como mera deferência ou aceitação estratégica, mas como algo constitutivo da realidade, da dinâmica de ser e não-ser.

O não-ser se abre num leque de realizações e modos de se fazer presente, ainda que indique de uma maneira evidente para quem aprende a pensar algo sempre ausente, algo sempre velado. O aprender a pensar se abre como uma grande aventura em que se dá a experienciação do próprio viver. A vida de cada um se torna uma experienciação do viver e as vivências possíveis vias de presentificação e realização da riqueza do viver. Aprender a pensar é aprender a questionar incessantemente não só aos outros mas sobretudo a si mesmo. Porque aquilo que se aprende só se aprende quando se passa dentro de nós como algo que surge, cresce e se torna presente como uma riqueza que não pára de crescer. Aprender a pensar é aprender a ser o não-ser. Porém, o máximo da aprendizagem do aprender a pensar, o que sempre procuramos, o penhor que procuramos em todos os nossos empenhos, é a sabedoria, pois esta consiste simplesmente em saber que não-sabemos e que o que não-sabemos nos convida e impulsiona para a sabedoria do Nada. Mas só sabendo pelo aprender a pensar poderemos saborear o Nada. Pois este é a suprema vivência enquanto a necessidade da vivência das não-vivências. Estas não são algo que se dá e se apresenta como uma conquista. Não. Elas sempre já trazem em si numa presença dissimulada o velado, a não-verdade. Saber o não-ser é saber a não-verdade de toda verdade que sabemos. Nisto consiste o aprender a pensar. Só assim nos libertamos como necessidade não da vontade, mas de ser. É algo contínuo e exige uma disciplina rigorosa. É que em todo não-saber e não-ser sempre se faz presente o esquecimento do ser, do ser que somos e não-somos, sabemos e não-sabemos, queremos e não-queremos. Aprender a pensar é sempre e continuamente querendo no querer incessante o não-querer. Mas somente querendo podemos querer o não-querer. Aprender a pensar é, pois, a difícil renúncia a saber o pensar para saborear o a-se-pensar. Aprender a aprender a pensar é, portanto, uma renúncia que não tira, dá, sem termos vivências e bens e neles pensar que temos tudo, por só nos bastar o Bem. Nos bens temos o aparente preenchimento dos limites. Mas só o Bem nos dá, nos limites, o não-limite, ou seja, nos bens, o Bem.

Aprender a pensar é o contínuo estar aberto para o acontecer do Bem e do Belo. A beleza é sempre o bem que se nos oferece nas vivências, mas que lá não encontramos e, por isso, caminhamos de vivências em vivências sempre numa procura de desejo de chegar a realizar o que só nos advém no estar sempre aprendendo a pensar. Aprender a pensar é abrir-se para a não-verdade de toda verdade. Esta não passa a ser uma certeza, mas a permanente aventura do desvelamento e acontecer das diferenças, no dissimular-se e velar-se da identidade. Os outros deixam de ser os objetos de nossa persuasão para se tornarem a presença de mais um exercício do aprender a pensar, de sereno enfrentamento do desconhecido, do que é sempre mais do que aquilo que podemos chegar a conhecer. O outro será sempre um mistério. E isso é o difícil de aceitar, não porque ele se proponha como mistério, mas porque ele também nunca se sabe todo nem se mostra todo, nem chegar a ser todo, como acontece conosco mesmo.

Aprender a pensar é estar sendo o que nunca somos por não sermos o ser, que não é, mas dá-se em tudo que se faz presente, tanto mais quanto ele é a fonte que nos conduz pelo rio da vida, sem jamais atingirmos em nosso não-ser todo o Nada que ele é e não-é. Aprender a pensar é aprender a só ser o ser que não-somos, por ser o Nada. Aprender a pensar é estar sempre aberto para o acontecer do ser.

Aprender a pensar é deixar o saber (noein) e o dizer acontecerem. É nestas dimensões que o ser se dá. Pensar é apreender esse acontecer, onde apreender é deixar-se tomar pelo ser. Emmanuel convida a pensar: “Diante da possibilidade extraordinária do pensamento de pensar sempre a realidade de tudo, que pensa, o estrangeiro se revela pensador e não mero seguidor de escola. Pois pensar só se aprende com a coragem de renunciar a toda pretensão de já saber e ter esgotado a realidade”. Nesta Terra de ninguém, todos somos estrangeiros, onde qualquer identidade não passa de uma identificação enquanto mera representação ou conceito. Como estrangeiros, já nos experienciamos no insólito, no estranho, por sermos e não-sermos.

Pensar, originariamente, é experienciar a realidade no seu entre-acontecer. Deixar-se tomar por esse acontecer é propriamente pensar. Daí o pensar não ter nada a ver com o exercício da razão ou com qualquer outra atividade que tenha por causa o ser humano, porque este quando age, só age a partir do que a própria realidade já deu e entregou ao ser humano para ser realizado por ele. Pensar é levar a acontecer a essência da realidade que já desde sempre se destinou na essência do ser humano para ser realizada. Isso fica muito claro num verso de Pessoa, em Mensagem: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. O ser humano cai na errância e se afasta de sua essência quando resiste e insiste em não se entregar ao que lhe foi destinado e em não deixar acontecer o ser.

Embora nos realizemos no saber, o que em verdade nos atrai é o não-saber, pois nele se concentram todas as possibilidades de saber. O saber nos atrai e conquistá-lo é o penhor de todos os nossos empenhos, mas o saber já sabido nos deixa como que incompletos. A essência do ser humano é esse permanente impulso para o saber pela aventura de adentrar o não-saber. Então, em última instância, é este e só este que nos atrai. Podemos dizer que a morte é o silêncio sem fala e, por isso, ela sempre nos causa medo. É que no sem fala do silêncio não há mais ressonância do que somos e sem ressonância tudo se torna um abismo. O Nada nos angustia porque é o abismo sem fundamento. No entanto, é o silêncio que mais procuramos. Aprender a pensar é estar sempre aberto para esse acontecer da realidade que se dá como silêncio. Falamos para provar que o silêncio existe, ek-siste, vigora. Quem fala para se escutar não escuta a voz que lhe vem do silêncio, não aprende a pensar. Aprender a pensar é deixar-se tomar pelo silêncio. Pensamos para provar que existimos. Existir não é ser um sendo ao lado de outros sendos. É estar tomado pelo acontecer da realidade, num abrir-se do pleno vigorar da liberdade. Falamos para provar que o silêncio existe e para nos provarmos no vigorar do silêncio. Isso é aprender a pensar. Isso exige uma disciplina incessante, fundada na coragem da renúncia. “Esta coragem é dada a todos. E é por isso que, de uma maneira ou de outra, todos já estamos empenhados em aprender a pensar. Não adianta tomar posição na vida do pensamento, sem pensar as suposições em que a própria posição se planta. Cada esforço de pensar procura aprender a pensar toda esta coragem de pensar. É a modéstia de pensamento, nem sempre apanágio dos eruditos e filósofos” (p. 227).

Aprender a pensar é uma aprendizagem que se realiza quando a coragem é mais forte e funda do que nossa vontade e horizonte de atuação. Entre a vontade e a coragem de se entregar e deixar vigorar o pensar, o mais decisivo é deixar-se tomar pela coragem. Esta é a essência do ser humano. É a coragem e não a razão que constitui a essência do ser humano. Por isso, em Grande ser-tão: veredas, Riobalado, na travessia do rio São Francisco, quando era pequeno e estava sendo iniciado no aprender a pensar, por Diadorim, este lhe diz, diante do afrontar a incerta e perigosa travessia do rio, imagem-questão da vida: “Carece ter coragem!”. Não se aprende a ter coragem. Esta já se tem. Aprende-se a exercitar a coragem que já se tem. Aprender a pensar não é algo que nos venha como um saber que não temos. Como o saber da coragem ainda não é a coragem. Como o humano, em sua essência, não é algo que se aprenda de fora para dentro. Aprender a pensar é fazer a aprendizagem da coragem. Esta exige renúncia porque, como nos ensina Platão: o pensador, para ser pensador “... faz remontar tudo que diz e pensa à realidade, realizando-se nos fenômenos, sem se contentar apenas com calcular relações entre dados” (p. 228). Eidos, para o pensador Platão, é o vigorar da realidade. Achar relações e causas funcionais é próprio da razão. Mas quando se reduz o pensar ao raciocinar, já se reduziu a essência do ser humano ao desempenho de funções e relações. Não que isso também não seja possibilidade do pensar. É. Não é, contudo, sua essência. Como não é essência do humano o reduzi-lo ao agir produzindo efeitos, pelo poder de estabelecer relações e funções entre os entes de que se compõe o real. O real é a totalidade dos entes determinados pelas funções. A coisa é mais do que o ente funcional. A coisa é sempre a causa que diz respeito ao que é essencial em cada um e em sua manifestação. Esta abre o mundo onde todos se movem. Por isso há o pensar e há o raciocinar. Os dois têm sua proveniência na proveniência da essência do humano de todo ser humano. Proveniência se diz em grego genos.

Em sua essência, todo pensar é um deixar-se tomar pelo extraordinário. Este é o ordinário vigorando. Por isso, a proveniência do pensador é a mesma do extraordinário, ou seja, do divino. Não devemos entender aí divino como a essência de Deus. Ele não é referente ao divino nesse sentido. O extraordinário diz o próprio âmbito da essência do humano pela qual ele já originariamente nos remete à experienciação do extraordinário no ordinário, do estranho e fantástico no familiar e corriqueiro, do insólito no sabido e esperado. Fazer essa experienciação é aprender a pensar. É uma aprendizagem que nos lança na essência do saber, de onde provém a sabedoria, pois a essência do saber é o não-saber. Nesse sentido, sabedoria nunca pode ser um sistema ou regra ou receita de felicidade e realização. Sabedoria é o deixar-se tomar pelo aprender a pensar. Aprender a pensar é a difícil disciplina da aprendizagem da sabedoria, de não-saber o saber do não-saber.

Aprender a pensar é sempre estar a caminho. É a prendizagem do caminho, é a própria travessia. Fazer a travessia é aprender a pensar, pois toda travessia, todo aprender a pensar é mais, muito mais do que raciocinar, porque é um acontecer poético, onde se decide nossa vida enquanto caminhada. Todo aprender a pensar é já desde sempre um estar a caminho. Mais importante que os saberes dos conceitos, é a própria caminhada. E estar atento em todo elaborar conhecimentos ao caminho que não cessa de se abrir é o verdadeiro conhecimento, porque é o caminho de manifestação de nossa verdade corporal. Estar a caminho é, portanto, sempre um ato poético, onde fala, dança, musica, imagem, cor, volume, tempo, espaço, lugar, mundo e verdade constituem a corporeidade do que somos. Estar a caminho é sempre estar a caminho da corporeidade.
Não se pode pensar o pensar sem pensar o próprio caminhar. “O caminho acolhe tudo que vigora à sua volta e restitui o seu a todos que o percorrem. Os mesmos campos e as mesmas encostas dos prados escoltam o Caminho do Campo em cada estação do ano, mas com uma proximidade sempre nova” (1977, p. 47. Heid. “Caminho do campo”. Rev. Vozes).

Nenhum comentário: