Manuel Antônio de Castro
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Entendemos por passado o que passou, o que deixou de ser e se desvaneceu no passageiro, na inconsistência do aparente. Para nós, em nosso viver superficial e circunstancial, o passado é o que se retirou e adentrou uma noite onde tudo deixa de ser. O passado é, enfim, uma grande noite, onde, parece, todos os gatos são pardos. A noite nos traz o silêncio absoluto e a ausência de vozes, cores, luzes, vida. É a morada dos mortos para a alma. É a grande noite eterna e enigmática, de onde não se volta e todos e tudo, as vivências e tudo que elas produzem e marcam nossa vida com todos as suas conseqüências e marcas circunstanciais, se reduzem a lembranças em processo contínuo de esquecimento. O passado é o que passou e não volta mais. Vive tudo da e na saudade. A noite é o grande abismo da anulação das diferenças.
Tudo isto é muito repetido e proclamado. E o que damos e acreditamos como verdadeiro é uma grande e banal falsidade. Basta dizer que por detrás de tudo há sempre um destino, tendo como fonte inesgotável um genos originário. A lei do genos é o destino: certo, justo e livre, dando-se como o próprio de cada um. Nela nada é esquecido ou omitido, impossibilitando qualquer acaso. Vigora. Acaso é o que a limitada razão não pode explicar causalmente. Às certezas inconsistentes da consciência desmascara o inconsciente, o genos acontecendo. Ao esquecimento da lei da morte corresponde a lei da memória e da vida, eros vigorando.
Só aparentemente a noite é o reino da morte e do passado, aquilo que não volta nunca mais. Se não volta e por isso se tornou passado nem por isso quer dizer que o passado é o que passou e deixou de ser. Nada deixa de ser. Sempre é por ter sido. Só sendo porque está sendo deixa de estar para passar a ser. O passado é o estar que se tornou ser, é o estar que ficou sendo, sendo o que ficou. Por isso mesmo o passado não passou, tanto não passou que ele e só ele é a luz do futuro. Todo futuro vive do passado, do qual é o que no passado está velado e possibilita todo vir a ser futuro.
O passado não é o silêncio sepulcral que se julga e divulga ser. O passado só é silêncio sem voz para os que só escutam os falatórios das circun-stâncias e do que não passa de brilhos aparentes e do aqui e agora transitórios. O passado é o vigorar do que não cessa de ser e nunca passa, pois é o permanecer de tudo que muda. Em nossa vida nunca nos guiamos pelo futuro que não conhecemos. Em nosso presente se fazem presentes e nos guiam as vozes que se tornaram passado e vigoram como voz ativa em nossa vida presente. Essa é a memória vigorante de tudo que é humano em todas as culturas, em todos os lugares. O futuro, já sabiam os antigos povos míticos, pseudamente primitivos, está no passado. O presente é a escuta do passado nas sonoridades e realizações do que se presentifica, de um agora que não cessa de permanecer mudando. Todo agora é a transitoriedade do aqui, possibilitado pelo instante já, vigência do que no passado se velou. Isso é o instante como acontecer. Isso é época, um passado destinado que ainda acontece. Sem o vigorar do instante, que não muda nem permanece, acontece, não há agora. O instante tem a urgência do próprio nas inconstâncias do agora e aqui. Um instante que não muda nem permanece não pode ser nem presente nem futuro. Ele é o presente como passado, pois o futuro é o velado vigorando no passado. Não podemos comparar o presente com o futuro, só com o passado, que é o que vigora e nos orienta e se faz presente em todo presente como possibilidade de futuro. A comparação é a possibilidade de o instante, acontecendo, ficar sendo. Sem passado todo progresso é uma falsa promessa do presente racionalizador, projetando um futuro. O ser não progride, vigora, porque tudo e todos já são. Vigorar é deixar o Ser acontecer em seu sentido: vigência da linguagem.
A noite não é o silêncio mortal e insonoro, pois o silêncio é a luz da energia irradiante da musicalidade originária. É o passado sonoro como possibilidade de escuta do presente, porque sempre escutamos o presente como as possibilidades realizadas e não realizadas do passado. Presente é a presença dessas realizações. A escuta que se escuta no presente é a voz velada no passado. Tanto é assim que tal voz desvelada não cessa de se tornar passado, a ausência de um presente, não a sua negação. Saudade. Sem presente não há ausência e sem as possibilidades do que se faz passado, sendo, não há presente. Só o acontecer do silêncio possibilita como presente o passado sendo no futuro que não é, mas passa a ser. Passa a ser a vigência do passado, no vigorar da unidade realizadora da memória.
A noite não é o silêncio apático. Nela a vida latente tem todas as vozes da realidade se realizando em silêncio. A noite é o silêncio em sua concentração máxima de fala. É tanta fala que não temos ouvidos para a ouvir. Só a loucura ou desrazão calma e acolhedora abre nossos ouvidos para a musicalidade da noite. A musicalidade da noite é o passado vigorando e se presenteando em futuro no presente.
Quando faremos do passado a noite de todos os dias? Quem sucede ao dia? Quem sucede à noite? Como haver sucessão se não houver a noite no dia e o dia na noite? Por que então opomos um à outra e a outra ao um? Neste circular incessante e infinito não há exclusão, só inclusão do futuro no passado, possibilidade do presente, instante acontecendo.
Dia e noite são uma questão de posição, ou seja, presente e passado são uma questão de posição. Toda posição é o ser estando. Sem ser não há estar, porque o estar é o ser sendo. Todo sendo é o ser se dando em posições. Nisso e só nisso consiste o estar. Todos almejamos ficar sendo. Por quê? Se estamos na noite almejamos o dia, mas se estamos no dia almejamos a noite. Entre-seres. O ser não é dia nem noite. Não é. Vigora. Acontece. O ser vigorando é o dia e a noite em seu estar se diferenciando. O permanecer da noite é a possibilidade do mudar do dia. O mudar do dia é a possibilidade do permanecer da noite, porque esta não pode permanecer sem o dia ser mudança. A mudança do dia é a permanência da noite. A permanência da noite é a mudança do dia. Não podemos nunca apreender e aprender a permanência como o que se tornou estático. A permanência não é estática nem dinâmica, porque não é. Vigora. Acontece. O acontecer é o vigorar que se presenteou em sentido. O vigorar jamais se pode tornar só ser devir. Ser devir é estar sendo. O ser nunca está sendo, só sendo no estar. Apenas o sendo pode e deve estar sendo. O sendo é o estar que vigora no permanecer e mudar. Só o sendo permanece e muda, se torna, é devir, aparecer e desaparecer, parecendo no estar. O silêncio da noite vigora em toda fala, assim como se torna o devir e parecer de todo sendo aparecendo. O mudar é o vigorar do estar sendo. O permanecer é o vigorar do ter sido: passado. O parecer é o aparecer do que se vela em tudo que está sendo.
A noite é o passado do que se dando se retraiu. O presente é o desvelamento do que se velou. O passado é o desvelado do que se velou. Por isso o futuro é sempre o desvelamento do que no passado se velou e torna possível o presente, sem o qual não pode haver futuro.
Destino
Ponho na altiva mente o fixo esforço
Da altura, e à sorte deixo
E às suas leis, o verso;
Que, quando é alto e régio o pensamento,
Súbidta a frase o busca
E o escravo ritmo o serve.
Fernando Pessoa/Ricardo Reis
2 comentários:
senhor professor,
sou como o senhor, português mas a viver em lisboa
soube de si por um também poeta e brasileiro aqui aportado, o qual caculo, terá sido seu aluno
seu nome: marcio andré
e porque gosto da palavra poética, que calculo bem ajuntará, fiquei curioso
vou ler o que de sua lavra por aqui andar disponível e mais tarde, assim entenda eu o que de si for lendo, lhe darei noticias e competente agradecimento
apresento-lhe entretanto os meus melhores cumprimentos e desejo tenha o senhor sempre bons dias e melhores noites
chambel santos
(achambels32@hotmail.com)
O passado está presente em nós, capazes de num vôo mental ir e vir sem sair do lugar. Dessa feita, o senhor professor, me fez pensar no destino como um ser afortunado com a capacidade de viver o futuro que é "sempre o desvelamento do que no passado se velou e torna possível o presente, sem o qual não pode haver futuro".
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