12 outubro 2010

As Musas e a essência da criação poética

www.travessia.letras.ufrj.br
www.dicpoetica.letras.ufrj.br


Quando se quer pensar a essência da criação poética, uma questão retorna inevitavelmente: a sua origem. E pensar a sua origem é pensar as Musas. Com diferentes nomes elas são uma constante. Qual é a essência das Musas?

Em geral, hoje, tende-se a opor poetas e filósofos, poetas e cientistas. Esta distinção encontra sua base em algo muito antigo: a contraposição e o choque entre mito e razão, ou em sua origem grega, entre mythos e lógos. Por que surgiu essa oposição? Não se trata simplesmente de uma divergência de concepções. Trata-se de algo mais fundamental. Hoje essa oposição poderia ser caracterizada entre sagrado e profano. Há um consenso muito aceito de que vivemos uma dessacralização da realidade. Essa dessacralização vai fazer-se presente sobretudo nas artes. E dela não escapa a poesia. No entanto, essa oposição se escamoteia numa distinção em geral muito aceita: a de que a realidade criada pela arte é uma ficção. E esta distinção se justifica em algo muito grave, a que nem sempre se dá a devida importância: em nosso cotidiano, dominado pela ciência, teríamos a realidade verdadeira. Já a realidade que surge das obras em prosa ou em verso, seria falsa, ficcional. Ficcional é tudo a que nada de realidade corresponde.

Esta distinção provém de idéias mais antigas. Trata-se da oposição entre mitos e existência real. Não há a menor dúvida de que os mitos têm sua origem na relação direta do ser humano com a natureza. Dessa maneira os mitos configuravam e de alguma maneira estabeleciam as leis desse relacionamento. A distinção entre seres divinos e seres humanos era bem clara para o próprio mito. Porém, a idéia de divino que deu origem aos mais diferentes deuses foi sofrendo transformações profundas. E à medida que o ser humano deixava prevalecer a vida da cidade sobre a vida da natureza, isto é, à medida em que a vida era regida pelas leis da cidade, essa nova realidade originava outros tipos de relação dos próprios seres humanos entre si. Daí originou-se uma oposição entre as leis da cidade e as leis divinas. Dentro de todo esse complexo processo é que o mito foi cada vez mais perdendo seu poder e vigência e deixando que o logos tomasse o lugar.

No fundo, a disputa se baseia na tensão entre o sagrado e o profano. Para o mito ao sagrado correspondia toda a realidade. Esta não era vista como a criação dele, porque não havia a idéia de criação e criador. Esta idéia tornou-se dominante posteriormente. O sagrado como tal, em meio aos múltiplos mitos, jamais foi identificado com alguma figura ou causa. Era uma força que se fazia presente e operava em toda a realidade.

No Ocidente, em determinado momento, lá pelo século VII antes de Cristo, começa a ter cada vez mais importância o logos. Paralelamente, pela mesma época, a realidade passa a ser vista de um modo diferente daquela apresentada pelos mitos. Por realidade entende-se a physis, que foi traduzida para o latim como natura, ou seja, a natureza. Mas esta não era concebida como hoje, onde se dá uma oposição entre natureza e cultura. Natureza eram todos os entes e cultura era tudo que a natureza não fazia e precisava do ser humano para que fosse feito. Este fazer que a natureza não fazia e era realizado pelo ser humano, levando a própria natureza a uma plenitude que em si mesma ela não realizava, isso se dava pelo princípio da techné. Techné diz conhecimento.

Fazer em grego, aquele fazer que se constitui como uma força de transformação, ou seja, como diz Platão, tudo que passa do não-ser para o ser, se dizia poiein. Esta força, esta energia, é inerente tanto à natureza quanto ao ser humano. Porém, aquelas obras que a natureza não fazia e precisavam da intervenção do ser humano para existirem, através do princípio da techné, eram os artefatos. Não havia uma oposição entre estes e aqueles realizados pela physis, pois, em última instância tudo provinha da physis, da natureza. Esta palavra diz o que não cessa de nascer. O artefato era também um produto de um nascer, apenas diferente daquele que provinha pela ação direta da natureza, pois ele precisa da intervenção do ser humano. Mas em termos de physis, natureza, todos os produtos eram denominados entes. Ente é tudo que é. É que a physis ou natureza passou a ser denominada ser. Ora, aquele que fazia entes que a natureza não fazia denominava-se, em grego, technités. Com este termo denominavam os gregos tanto o artesão como os artistas, claro, aí incluídos os poetas. É que techné não dizia de jeito nenhuma para o grego algum fazer dominado pela razão. Ela tinha sua relação mais direta com a emperia, com a experiência. Portanto, em grego, techné diz um conhecimento e os processos de execução. A palavra techné foi traduzida para o latim como ars, artis. Desta se formou nossa palavra artista.

Na modernidade, há uma diferença radical entre artesão e artista e o conhecimento técnico. Hoje tudo é dominada pela técnica. E ao longo do percurso Ocidental a Poética reduziu-se simplesmente ao estudo e ao conhecimento das normas técnicas para compor as obras poéticas, dentro de modelos paradigmáticos, denominados gêneros. Esta palavra grega, tão importante dentro das artes, tem três significados básicos: Primeira: origem; Segunda: família, raça, sexo; 3ª. Categoria lógica com determinada extensão de universalidade. Genos enquanto origem diz a essência de algo. Em termos simples o que quer dizer essência? É um termo filosófico, mas que, em seu sentido, está na raiz de toda criação poética, pois essência quer dizer sentido e sentido é a eclosão da realidade em sua verdade. Verdade é o que tem poder de presença e constitui mundo. E justamente isso é o próprio das obras poéticas. Portanto, nestas, o sentido que decide é o primeiro. Os dois outros são secundários, não passam de atributos acidentais.

A questão da origem das obras de arte ou poéticas sempre esteve presente ao longo de todos os momentos do percurso ocidental. A criação das Musas pelo mito foi o modo de levar as pessoas a pensarem a origem das obras de arte. E nesse modo já podemos constatar uma peculiaridade essencial: a própria origem se torna um mito. Isto nos faz pensar que a origem das obras poéticas não pode ser diferente das próprias obras.

O maior mistério que sempre se colocou para o ser humano quando se defronta com tudo o que o cerca e com ele mesmo é: O que diferencia o ser humano de toda a realidade. Entre os gregos, esta questão tomou dois caminhos. O primeiro foi pelo sagrado, manifestado nos mitos, onde essa diferenciação não constituía problema, porque havia uma integração muito grande. Mas note-se que o sagrado era mais do que os deuses e os seres humanos.

A palavra mythos vem do verbo mytheomai e diz o advir da realidade à palavra, à voz. Do mesmo radical deste verbo se formou o verbo myein, que diz, silenciar. Temos em português a palavra mudo, o que não fala, originada desse radical. Eclodir na palavra quer dizer advir à linguagem. Mas devemos notar que o radical desses dois verbos se dá numa dobra originária: voz e mudez provêm do mesmo fundo: o silêncio. Portanto os mitos nada mais são do que a eclosão da realidade nas múltiplas tonalidades da linguagem. A ligação aqui das obras poéticas com os mitos é evidente. A questão das Musas está ligada à questão da linguagem.

Para os gregos, o que hoje denominamos linguagem tem uma outra fonte. Entre eles linguagem não está ligada a língua, parte do aparelho fonador. Esta palavra se diz em grego glossa. O que entendemos por linguagem provém da palavra grega lógos. E é este que se vai tornar propriamente um pomo da discórdia. De um lado, vai determinar a filosofia pela lógica. De outro, vai entrar em choque com as obras poéticas, porque elas não podem simplesmente ser classificadas de lógicas. As inspirações trazidas pelas Musas são o oposto do lógico. No entanto, falamos tranquilamente em linguagens artísticas. Por que não falamos em linguagens míticas, correspondendo à fala de cada Musa, que cria as diferentes artes? Linguagens lógicas também têm um outro sentido. Se bem observarmos, as questões levantadas dizem respeito aos atributos, às qualificações do substantivo linguagem. E sem compreendermos a essência da linguagem, será muito difícil compreender o significado dos atributos e, com isso, o próprio das diferentes criações poéticas. Isso já indica que as linguagens artísticas não podem ser decididas pelos atributos. A cada arte não corresponde uma linguagem diferente do ponto de vista de sua essencia. Mas também não podemos ter um conceito genérico de linguagem especificada pelo atributo, isto é, pelo tipo de arte realizada. Isso quer dizer que cada arte, cada linguagem artística só é artística quando a arte realiza a essencia da linguagem em sua identidade.

É aqui que vamos compreender porque o mito, enquanto linguagem, acabou por ficar em segundo plano. Linguagem não é um conceito genérico, uma essencia abstrata, a que diferentes modalidades de fazer e de matérias viriam se agregar. Essa não pode ser a essencia originária de linguagem. Ela deve ser de tal natureza que reúna em si todas as demais. Linguagem, se bem observarmos, diz propriamente mundo. E este nada mais é do que a reunião das múltiplas manifestações da realidade em sua unidade. E é um poder tão abrangente e originário que podemos chegar a dizer o misterioso mundo do silêncio. As artes, em termos essenciais não são diferentes. Elas apenas realizam a riqueza essencial da linguagem, que não se limita a uma simples reunião formal. E neste sentido, as artes, as realizações poéticas, têm, em verdade, sua origem nas Musas e não no lógos. Melhor dizendo, o lógos, em sua essencia, não é diferente da origem das Musas. Mas por que toda a tradição ocidental optou pela predominância do lógos?

Esta palavra grega é enigmática se forma do verbo legein, que congrega uma tal amplitude de sentidos que não podem ser logicamente determinados. Numa aproximação podemos indicar os seguintes: 1- Pôr e depor; 2 – Reunir; 3 – Dizer; 4 – Mundificar. Todos estes sentidos estão condensados na palavra linguagem. Tomando a palavra grega lógos, de maneira alguma podemos reduzi-la aos procedimentos lógicos. O seu empobrecimento na trajetória ocidental foi motivada pela palavra escolhida para dizê-la em latim. Lógos tornou-se ratio, em português, razão. E esta concebe-se como o fundamento de todo o saber e do próprio julgamento das ações humanas, bem como a diretriz de tudo que se faz. Quando se diz que algo é científico pensa-se em algo que é verdadeiro. É verdadeiro o que é racional. E é aqui que ficam excluídas, evidentemente, as Musas enquanto modos de produção poética. Alguém inspirado pelas Musas não pode ser dirigido pela razão. É o oposto. Predominou, entre os romanos a idéia de obra de arte como algo que tem uma função e está dominada pelo fazer técnico, pois uma coisa implica a outra. A função implica não só o técnico, muito mais implica o lógico, o racional. Todo sistema se baseia nas relações funcionais. E todo sistema é tanto mais funcional quanto mais for racional. Esta interpretação do lógos e da techné já expulsara as Musas como origem das diferentes obras de arte. Mas ficava sempre a questão da origem das obras de arte. Esta não cessa de se colocar para todos os poetas, em todos os tempos.

Para entendermos a relação dos poetas com as Musas devemos pensá-las naquilo que elas sempre foram: as manifestações da linguagem. Pois mythos e lógos, do ponto de vista da origem, não são diferentes. São duas palavras diferentes para dizerem o mesmo, pois numa e noutra predomina aquilo que as constitui como tal: a unidade. A linguagem somente sendo unidade é que funda sentido. Sentido não pode ser confundido com significados. Por isso a essencia do lógos, da linguagem, é a unidade enquanto sentido. Sentido é o ético-poético de todo agir essencial, isto é, da realidade se fazendo presença e mundo. É o sentido que orienta nossas ações e empenhos no acontecer da realidade. O sentido surge quando nos perguntamos pelo penhor de tudo que fazemos e em tudo que fazemos. Qual é o penhor de nossos empenhos? Essa é a questão do sentido.

Para melhor compreendermos isso, temos que pensar agora as Musas e sua origem. No mito diversas são as origens das Musas, mas a que a tradição consagrou diz que Zeus, querendo preservar a memória dos seus feitos em relação ao Tempo, pois foi na luta contra Cronos que ele conquistou seu lugar supremo de deus do Olimpo, se uniu com Mnemosine em nove noites seguidas. Em cada noite foi gerada uma das Musas. Em relação aos mitos temos de entender três dimensões fundamentais: Primeiro: Nenhum mito tem autoria. Isto elimina a noção moderna de autor. Segundo: Os mitos não são símbolos de nada, pois eles radicam na linguagem. Terceiro: Os mitos não são explicação de nada, nem de fenômenos psíquicos nem de fenômenos naturais. O que são os mitos em sua essencia? Linguagem e como linguagem eles, em cada realização, trazem à fala questões. Portanto, ler um mito é sempre, pelo diálogo com a fala do mito, se perguntar: Qual a questão que o mito nos quer fazer pensar?

As Musas são o mito que nos quer fazer pensar a origem da criação poética. Origem diz sempre essência. Elas são filhas de Mnemosine. A tradução corrente é memória. O que é memória? Qual a essencia, isto é, o sentido da memória? O radical de Mnemosine é mn, que diz unidade. Cronos é o tempo. Mas que tempo? Aquele que se constitui como mudança, transformação, puro devir. Daí a nossa percepção muito viva do tempo como sendo o passado, o presente, o futuro. A memória sendo unidade vem dar ao tempo uma outra faceta: o da permanência. Porém, devemos evitar logo o equívoco de fazer do tempo algo dual: o tempo cronológico seria o que passa, não restando senão a lembrança, quando resta. E há um outro tempo, o da eternidade, aquele que se contrapõe ao cronológico. É isso que memória não é, pois ela é unidade. Ela contem em si essas duas facetas essenciais do tempo. Nesse sentido memória, enquanto unidade, é o vigorar do tempo, o que não cessa de acontecer. Para melhor entendermos isso e o lugar das Musas e sua mãe, Mnemosine, o tempo deve nos advir como questão. Nesta, o tempo é uma dobra entre o que se desvela e o que se vela. O desvelado é o que denominamos passado, o futuro é o que no desvelado se vela. O presente é a dobra que não cessa de se desdobra, sem jamais perder a unidade. Por isso, quando se querem caracterizar as obras poéticas, em oposição aos outros entes da realidade, se diz que elas são a-temporais. Ora, isso é falso, pois fora do tempo não há nada, onde o nada é o tempo enquanto vigorar. Portanto, memória é unidade como essencia do tempo.

E o que essa unidade, a Memória, tem a ver com as obras de arte? Ora, a essencia das obras de arte é a linguagem. E já vimos que linguagem, enquanto lógos, é essencia da fala, é a origem de tudo que ocupa posição, é o fazer eclodir mundo. Mas estas dimensões não são apenas diversas entre si, elas constituem uma unidade, pois a linguagem as reúne. Enfim, essencialmente, a linguagem é reunião. Na medida em que as obras de arte, as obras poéticas, se constituem em diferentes linguagens, estas não são a essencia da arte. Pois, se são linguagem, e são, elas vigoram enquanto unidade. É esta unidade que as torna radicalmente temporais, no sentido de Memória, vigorar do tempo. No entanto, se Memória é a mãe, Zeus é o pai. É dessa união e unidade que nascem as Musas. Não podemos, portanto, considerar apenas a mãe, temos que considerar o pai também. E o mito de Zeus nos coloca qual questão? Ele é o deus do Olimpo, onde vigora a Luz. Mas aí Luz é a luminosidade do Céu, que constitui com a escuridão da Terra uma unidade. Luz não é apenas luminosidade. É também escuridão, pois Luz como princípio diz energia irradiante. É esta energia irradiante que constitui a essencia, a unidade e o sentido das Musas. Estas são filhas da Luz irradiante, da unidade de Terra e Céu.

Essa Luz irradiante é o que se denomina lógos, linguagem. Para nós, agora se torna essencial, para entender as Musas, penetrar no mistério profundo da linguagem, no sentido de lógos. Ele está ligado ao próprio sagrado. É a presença do sagrado em tudo que ele origina. Ele é energia, luz irradiante, presença, mundo, sentido. A linguagem não é uma faculdade do ser humano, seja como fala, seja como razão, seja como meio de realizar obras poéticas. Em verdade, na invocação das Musas, o que se con-voca é a linguagem, a unidade fundadora do poético. Pois poético vem do verbo grego poiein e diz agir. Toda poesia só é poesia caso se funde na essencia do agir, isto é, da linguagem, o vigorar do tempo. Quando o poeta invoca as Musas, o que de fato está invocando é a linguagem enquanto essencia do agir, da poesia. É esta e somente esta que torna as obras poéticas. Por isso todos os poetas, todos os artistas, são artistas e produzem obras quando nelas não está o que pensam ou sentem, mas a essencia da linguagem. Toda técnica de fazer é já um resultado desta presença da essencia da linguagem.

Eu poderia, neste momento, citar dois grandes poetas brasileiros, onde isto se realiza. Não é, portanto, o que expus, uma teoria minha. É um diálogo com a obra desses dois grandes poetas.

O primeiro é Drummond. O poeta é um destinado, não é ele que escolhe ser poeta. E quem nos diz isto é ele e com uma visão e profundidade admirável. O primeiro verso do primeiro poema – “Poema das sete faces” - do primeiro livro de Drummond – Alguma poesia - é: “Quando nasci, um anjo torto, desses que vive nas sombras, disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida”. Como não ver no anjo – aquele que anuncia – um outro nome para Musa? Como não entender o viver do anjo nas sombras, ser ele filho de Mnemosine? E como não compreender, finalmente, o gauche, como aquele que está fora do sistema?

Sistema diz sempre o uso da linguagem reduzida a uma função. É a linguagem informacional, comunicativa e retórica. Poesia, em sentido originário, não tem função. Manifesta a realidade. Quando a poesia é funcional não passa de retórica.
E como Drummond, tomado pelas Musas, realiza seu ser poeta? Não é ele o autor. Não quer em suas poesias produzir mensagens ou expressar seus sentimentos. Sua tarefa como poeta é mais densa, é deixar-se tomar pela linguagem. E onde nos advém a linguagem? Nas palavras. Se a prática da poesia exige um abrir-se para a linguagem, este abrir-se denomina-se diá-logo. Mas não é só o poeta que tem que dialogar com a linguagem, também o leitor. Só dialogando com a linguagem o leitor se torna leitor de poesia. É o que nos diz o poeta. E ele sabe do que fala, pois é um destinado da Memória. Isso se torna claro no poema: “Procura da poesia”. O poema se articula numa tensão entre o “não”, em que se negam os falsos lugares da essencia da poesia, para, depois, nos indicar o caminho do “sim”. E qual é ele? Cito só começo:

Penetra surdamente no reino da palavra.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
......................................................................

O reino das palavras é a linguagem, a unidade que se torna o princípio de todo sentido, mundo e presença. E a segunda palavra do primeiro verso já nos indica o próprio ser e essencia de toda palavra, de todo poema: “surdamente”. A surdez é o convite para erradicar todo falatório e deixar-se tomar pelo vigorar do silêncio. Este e só este é a unidade de todas as falas, porque é a fonte de todo sentido, a própria essencia da linguagem. Escrever poesia é um diálogo contínuo onde mais do que falar é escutar a voz do silêncio. Ler poesia é um diálogo contínuo onde mais do que querer achar mensagens é se deixar tomar pelo vigorar do silencio. As Musas são o vigorar do silêncio.

Numa entrevista a Günter Lorenz, grande crítico alemão, Rosa diz a respeito das Musas. “Não preciso inventar contos, eles vêm a mim, me obrigam a escrevê-los. Acontece-me algo assim como vocês dizem em alemão: Mich reitet auf einmal der Teufel...”. “De repente o diabo me cavalga”. Diabo, aqui, é um outro nome para Musa. E quanto à linguagem? O crítico pergunta a Rosa se ele é um pensador. Diz que é. E o nota frequentemente durante o seu trabalho. Esclarece: “Chocamos tudo o que falamos ou fazemos antes de falar ou fazer... E também choco meus livros. Uma palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias... Temos de aprender outra vez a dedicar muito tempo a um pensamento; daí seriam escritos livros melhores. Os livros nascem quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras”.

Rosa usa uma imagem-questão maravilhosa: “Chocar” para denominar a criação poética. No chocar podemos perfeitamente unir linguagem e vida. E ele coloca com perfeição a criação em sua essencia. Pensemos no chocar da galinha. Pelo choco ela é transformada, se retira e cai num profundo silencio. É este seu calor. Aí o silencio age e é por ele que advém a criação. Vejam como é interessante. O não-agir do silêncio do choco é que cria. E não o agir como normalmente o entendemos: causar efeito, produzir algo dentro do esquema funcional de causa e consequência. A galinha não é causa de nada em relação ao que no ovo acontece. O agir em sua essencia está no ovo não na galinha. O agir é do ovo não da galinha. Isso nos convida a pensar o ato criativo em poesia de um outro modo, num outro horizonte. Não se trata nem de possessão nem de técnica. Só o recolhimento no pensar, no silencio, na doação. Mais do criar se acolhe a criação. Isso é ser tomado pelas Musas. A criação vem do próprio ovo. É ele que já traz em si a obra em que se vai tornar. É a vida a grande gestora de tudo. A nós compete acolhê-la em silêncio para que o ser que o ovo é chegue ao desvelamento. A vida é linguagem. Chocar as palavras é chocar a linguagem. É que nesse chocar a linguagem se torna vida e vida se torna sentido, isto é, linguagem. E pergunto: Não é o mesmo que acontece com a mulher quando gesta dentro de si, em silêncio e acolhimento, o mistério da gestação da vida? Gestar um filho é a maior obra poética. Não se gesta apenas um ser vivo. Gesta-se a linguagem, gesta-se mundo, gesta-se sentido, gesta-se presença. Acolher no ventre a vida que se gesta é acolher a poesia, a linguagem gestando-se. Ser poeta é gestar a vida enquanto sentido, porque é gestar a linguagem. Sem linguagem não há mundo. Esta é o ser da realidade. Vivemos para ser. E somos, sendo poetas. As Musas são o Lógos, porque este é a essencia da vida, a linguagem, o sentido de tudo. E é sentido porque na poesia se dá o sentido do ser humano como doação do ser.

Um comentário:

Professor Pedro Rodrigues disse...

O meu silêncio ainda Grita, mas perturba a si mesmo por ser silêncio. A palavra não me origina, não me faz e nem a minha dança. Quando eu danço eu sou o silêncio. Não cesso e não inicio. A Travessia me faz, em travessia.Em sendo, em cena, eu sou e só...
Será meu silêncio loucura ou estou surdo o bastante para perceber a dança que aspira ser escritura das poesias que me esperam para escrevê-las?

Professor,
súa poética me perturba de tal forma que colho rosas em jardins sombrios em cada entrelinha.
Obrigado por compartilhar tantos tormentos!