12 outubro 2010

Identidade: os dois Ocidentes


O título nos remete para duas questões: O que é identidade? Identidade é o mesmo que idêntico? Pode-se reduzir a identidade a um conceito de identidade, reduzindo-a a um predicativo? Ou só se apreende a identidade quando se pensa como questão, isto é, a essência originária da identidade? Qual a diferença entre conceito e questão? Se há uma diferença entre conceito e questão, o que é diferença? Pode-se pensar a identidade sem pensar a diferença? Pode-se reduzir a diferença ao diferente? O que é Ocidente para que possamos dizer que há dois? Podemos reduzir o Ocidente a um conceito de realidade enquanto representação, fudamentada na causalidade? Ou não será o Ocidente uma experienciação da realidade enquanto presença? Mas presença é conceito ou questão? Pode-se reduzir o pensar das obras poéticas e de pensamento ao raciocinar causal-representativo como faz a filosofia e a ciência? São duas temáticas muito amplas e complexas e seria despropositado querer encaminhar os muitos meandros e caminhos que podem ser tomados quando se tematiza cada questão e a relação entre identidade e Ocidente. Voltados para o nosso presente, essas interrogações não são perguntas retóricas, pois de suas respostas depende aquilo que em nosso agir se torna o penhor de nossos empenhos. Sobre tais questões não se pode simplesmente teorizar e falar. É necessário uma atitude mais radical: dialogar com elas. Todo dialogar pressupõe um envolvimento em que não se têm posições prévias, mas se inicia uma caminhada com os que se colocam também tais questões. Estas reflexões querem tornar-se a fala de um diálogo fundado na escuta, pressuposto de todo verdadeiro diálogo.

A caminhada
Seria importante, para não criar expectativas falsas, que prestassem atenção não tanto às idéias que vão ser expostas, mas que se deixassem tomar pelo que elas querem fazer pensar. Trazer todas as idéias sobre essas questões é impossível e desnecessário. É mais produtivo apreender no que se diz o que não estará certamente dito e nisso está o convite e apelo ao pensar pelo e no diálogo com quem lê, a partir do que aqui é questionado. As idéias aqui trazidas querem ser sinalizações de uma caminhada num caminho que não cessa de estar sendo realizado. Esta caminhada só pode ser feita por aqueles que desde este momento se põem também a caminho, convocados pelo apelo das questões. Só assim se aprende a pensar.

Conceitos de identidade: o genérico
Temos agora que pensar a identidade e os dois Ocidentes. São questões essenciais, porque dizem respeito a nós como um todo, ao sermos cidadãos do Ocidente, e a cada um nesta época, no presente, na medida em que, seja lá onde tivermos nascido e agora estivermos, viver a vida é apropriar-se de seu próprio na identidade. De imediato, no que acabei de dizer quero destacar logo um advérbio de tempo, que introduz uma terceira questão da qual não podemos fugir: “no presente”. É nossa época. E com isso já fomos jogados na questão do tempo. Pois, em geral e predominantemente, ele não se reduz ao presente. Há também o passado e o futuro. Será que o tempo se reduz a essa classificação? Certamente não. Como vêem, já nos movemos em cinco questões: próprio, identidade, Ocidente, época, tempo. Porém, falar de tempo e época é trazer para o pensar a História. Achamos que é a historiografia que trata e nos dá o conhecimento do que é a História. Será? Não depende ela do tempo apreendido e definido pelos três tempos: passado, presente e futuro? Mas o tempo não é só essa divisão tricotômica. É também, mas não é só. Então qual será a essência originária do tempo? Esta se torna a questão, porque dependendo do que por isso se compreende é que iremos compreender o que é História e, dentro desta, o que é época. E segundo as épocas, no tempo, teremos o que é Ocidente.

Quando os seres humanos surgiram e começaram a se multiplicar em diferentes espaços da Terra, não havia Ocidente. Havia Terra. Hoje a globalização está nos levando de volta a essa condição originária? De fato, a Terra, dominada pela globalização da técnica, é o presente, é a nossa época. Mas ainda será a mesma Terra? Será que neste presente em que estamos vivendo ainda é importante ficar fazendo muita diferença entre Ocidente e Oriente? Devem vocês perguntar. E as culturas, os modos de viver, pensar e crer, não contam? Seria ingênuo se não admitisse isso. Mas se bem notarem, ao se falar das diferentes culturas, já estamos falando a partir do pressuposto de que nem todas são iguais, há diferenças ou são apenas diferentes? E elas são bem acentuadas, tanto que podem ser opostas. Em essência o que é cultura? Das diferentes culturas vem a classificação e oposição recorrente, nos mais diferentes níveis de compreensão da aventura humana na Terra, de Ocidente e Oriente. Se estes são diferentes e possibilitam essa divisão é porque também, tanto Ocidente como Oriente, podem ser vistos dentro de uma certa unidade, em outros termos, dentro de uma certa identidade, a identidade da essência do humano. A cultura oriental é diferente da cultura ocidental. Isso é certo. Portanto, toda identidade pressupõe uma diferença. Isso é certo.

Acontece que aí identidade e diferença são conceitos genéricos. Toda identidade se reduz a esse conceito genérico ou na realidade pode viger outra identidade? Há conceito que não seja genérico? O Ocidente assim como o Oriente são compostos por diferentes nações, povos, culturas, tradições etc. E não corresponde a cada cultura ou povo uma identidade que a diferencia das outras? Claro. É nesse conceito genérico de identidade cultural que se baseiam os Estudos Culturais. Porém, conceito genérico de identidade ainda não diz o que é a identidade em seu sentido originário. Em geral, achamos que identidade é o que nos identifica com uma cultura, um povo, uma nação. Também com uma língua? A pensar, porque não podemos confundir simplesmente língua com linguagem. E dentro de uma nação constatamos que há grupos étnicos diferentes, sobretudo entre nós brasileiros. A cada um corresponderia uma identidade? E o Brasil não teria uma identidade? Perguntas sérias que não se respondem simplesmente com o diferente. Em verdade, é impossível achar uma etnia “pura”. Esse seria o puritanismo racista. Um contra-senso. A identidade étnica é um conceito genérico, inexistente concretamente, caso se investigue a sua proveniência em suas raízes.

Basicamente as pessoas de uma nação são divididas em homens e mulheres, usando-se o critério do sexo. A cada sexo corresponde uma identidade. Homem é homem e mulher é mulher. Identidade diz aí aqueles traços genéricos e diferenciadores que permitem identificar e classificar as pessoas em um ou outro sexo. Estamos diante de mais um conceito genérico de identidade e de diferença, porque não é possível afirma qualquer conceito genérico de identidade sem que haja um conceito correspondente de diferença. Mas como fica aí o diferente dentro do idêntico. Maria não é Joana.
Mas se voltarmos à Terra, antes de surgirem as diferentes épocas, notaremos que ela é constituída por diferentes seres, aliás numa variedade quase infinita. Terra aí é sinônimo de natureza. Os seres humanos se diferenciam dos animais e das plantas e dos minerais. E como se dá essa classificação? Através do conceito genérico de classe, de espécie e de identidade. Identidade como estamos vendo se confunde com aquilo que simplesmente identifica algo ou alguém, um todo ou as partes desse todo. Porém, se saímos dessas classificações generalizantes, abstratas, constatamos que a identidade não passa de um conceito genérico. Na realidade, todos esses conceitos e classificações não dizem, no fundo, respeito à essência originária da identidade. Como não? Se bem notarmos, dizem respeito aos atributos com que se identificam as identidades. Ser humano ocidental, oriental, chinês, português, brasileiro, africano, europeu, homem, mulher, branco, negro etc. Atributos, só atributos. E será que os atributos já me dão a essência originária da identidade ou não passam eles de traços que passam ao largo do que na identidade é o próprio? Qual a relação entre atributo e próprio? Sem isto se tornar uma questão para nós, dificilmente daremos passos certos no incerto caminho do pensar a identidade em sua essência originária. Só se pensa a identidade aprendendo a pensar.

Genos, família e próprio
Há uma experiência, quanto à proveniência da identidade, ainda mais imediata do que as tratadas até aqui e hoje incompreensivelmente esquecida. O genérico com que se define a identidade, bem como os gêneros com que se definem os sexos, a cor etc. provêm da palavra grega genos. O que era o genos na experiência grega da realidade? Quatro sentidos imediatos estão profundamente interligados: proveniência, etnia (família), sexo, gênero (conceito, por exemplo, gênero lírico). A proveniência diz a origem enquanto descendência, ou seja, etnia, raça, estirpe, linhagem. Indica, portanto, uma ligação com a Terra onde se origina o genos, ampliada depois para demos. A reunião destes constituiu a polis, o pólo concentrador e originário das ramificações ou famílias (demoi) do genos. O traço comum é a proveniência. A ligação à Terra diz a união indissolúvel com a physis (natureza). Para o grego, e para a maioria dos povos, os três traços essenciais da proveniência são: a physis ou Terra, o genos, o logos. Porém, a proveniência era também e sobretudo a sua essência sagrada. Daí a relação de cada genos com o sagrado experienciada nos theoi (deuses). O sentido originário de cultura perpassa todas essas dimensões, bem presente no verbo cultuar. Originariamente não há cultura sem o cultuar. O laço que tudo reúne é a língua, no sentido de linguagem. Daí o lugar decisivo do logos. É este que reúne e dá unidade, ao mesmo tempo que mundifica. Apreender uma cultura é aprender a língua, no sentido do que reúne e mundifica. Toda língua constitui mundo. Porém, a essência originária da língua é a proveniência do genos em sua essência. A essência originária da língua é a linguagem.

Os quatro sentidos de genos são inseparáveis. São o fundo em que, desde os gregos, se pensou a identidade. São inseparáveis porque radicam no mesmo. É o mesmo que funda a identidade. A ligação de cada um com o genos foi pensada no mito e no pensamento como Moira, o destino. Este diz o dote que se recebeu dentro do genos. Portanto, não há separação radical entre proveniência, família e o próprio que se compartilha, como moira, com uma família, na vigência da proveniência ou essência. O originário diz a presença do genos enquanto proveniência. Isto diz que só se pode pensar o próprio, o dote, dentro da essência do genos, da proveniência. Esta não é de maneira alguma algo evolutivo, cronológico como o seu histórico. Estes atributos só são possíveis pelo vigorar da proveniência, do originário. Com o domínio da lógica, origem dos conceitos, é que se consolidou o Ocidente do duplo. A lógica foi pensada como uma metodologia de conhecimento. Acontece que este ficou dependente da causalidade a que se reduziu o acontecer da realidade. Seja lembrado que o logos pode ser entendido como o lógico, mas de maneira alguma este diz toda complexidade do logos. A característica fundamental dos conceitos é serem lógicos e causais. Nisto consiste sua verdade científica.

Dentro do mesmo sentido lógico e científico é que se formou a palavra genética. Aqui não importa tanto o genos, mas o seu estudo lógico e passível de uma intervenção pelo conhecimento lógico-causal, científico. Onde há intervenção a partir de uma teoria lógica estão dadas as condições de controle. A vigência da técnica é a vigência do estudo e controle, pela otimização da produção. A genética, regida pelo lógico, não fala em essência da vida, mas em código genético. Note-se que aí o principal é o código, onde o genético é um atributo. Todo conceito se baseia em atributos. Código é uma palavra emprestada do estudo da língua, a gramática, que diz a redução da linguagem a um conceito genérico operacional, a otimização, neste caso, da comunicação e da informação. Quando se concebe a língua como um código, ela que é um corpo vivo, pulsante, em permanente eclosão, se torna um sistema combinatório de relações funcionais. Só nas grandes obras poéticas a língua é um corpo vivo, em permanente desvelamento da realidade, é energia, é luz viva. Isso a gramática ou lingüística jamais pode classificar ou transformar em conceito, em coesão e coerência. Aqui estão os limites de toda lingüística, a priori funcionais e formais. Até onde o genos pode ser reduzido a um código? Em verdade não pode, porque o código é o conceito genérico de língua. Mas não há língua sem linguagem, como não há bíos sem a zoé. Portanto, quando se reduz a identidade a um conceito genérico, o que aí originariamente já ficou esquecida foi a linguagem. Claro que não se pode criar uma dicotomia entre língua e linguagem, mas também não pode esta ser esquecida. Esse esquecimento não é qualquer esquecimento, é nele que fica velada a essência da língua, a linguagem, ou seja, a essência originária da identidade. Tal esquecimento é o esquecimento do sentido do ser.

E é a identidade como genos que doa a moira, a essência do próprio de cada um. A identidade genérica deveria apropriadamente ser chamada: genea-logia. Aí –logia diz simplesmente o estudo do genos, entendido como origem lógica, causal e historiográfica. Na historiografia, o tempo ficou reduzido à sua dimensão tricotômica: passado, presente e futuro. Tal dimensão existe, mas não diz toda a densidade do tempo. Uma tal identidade é genérica, aquela que toma como critério operacional e interventivo o conceito lógico de língua, com o esquecimento da linguagem. A identidade que dá base aos Estudos Culturais é uma identidade genérica, predicativa, lógica, operacional, onde se exalta internamente o idêntico e, em relação às outras culturas, o diferente, mas onde se perde e esquece a essência originária da diferença da identidade e da identidade da diferença. Enfim, é esquecida a unidade, o mesmo.

A identidade não pode ser reduzida a algo genérico, deve ser pensada na sua proveniência. E esta radica na essência originária, no princípio. Pensar a identidade exige muito mais do que aplicar um conceito genérico e classificatório. Exige um resgatar e trazer para o presente o genos enquanto proveniência.

O afeto e a família
Cada um nasce numa família e é nesta, em geral, que se defronta com a questão da identidade. Cada um nota facilmente que se diferencia dos pais, dos irmãos, se os tiver, dos outros familiares. É dentro desses laços familiares que se coloca com agudeza a questão do próprio na identidade, porque têm em comum o mesmo genos, aqui no sentido de etnia, família. Esta é a unidade mínima da proveniência e da constituição de uma identidade. Mas não é sua essência. É que identidade, enquanto genos, proveniência, diz unidade, o mesmo. Um outro grupo se torna muito importante na descoberta e afirmação da identidade: a escola. O que é, hoje, a escola? Ao lado das práticas sociais deveria ser o lugar de aprofundamento da apropriação da memória, isto é, dos ritos em seu vigorar mítico. Isso está-se perdendo, porque predomina uma educação cada vez mais técnica, formal. De qualquer modo ainda é nela, sobretudo, que se faz o duro aprendizado e a gratificante aprendizagem do que é o próprio da identidade. É que nela somos a cada momento, em nosso crescimento intelectual e afetivo, defrontados com pessoas de diferentes proveniências. Seja no comportamento e valores, seja nos conhecimentos, seja no crescimento físico e mental, seja na atração pelo outro, movidos por um desejo intenso de correspondência. É nosso tempo de crescimento intelectual e afetivo e, também, daquilo de que não gostamos e de quem não gostamos. A escola é, em verdade, até o estágio final na faculdade, uma extensão da família. Mas é na própria família que se dá com mais nitidez a diferença, em relação aos outros familiares, porque aí se vivem as diferenças nos mínimos detalhes e também, muitas vezes, nos choques. É, sobretudo, aí que temos que afirmar nosso próprio. Este é uma descoberta contínua. É nos laços familiares que inicialmente eclodem os traços afetivos. Estes, porém, radicam na essência originária da proveniência, da identidade, o que também quer dizer da diferença. Não são uma construção nem familiar nem social. É no afeto que se manifesta a essência, porque esta é aquilo que nos afeta. Os afetos são a manifestação originária e primeira da linhagem como linguagem, do sentido de ser. Aliás, não há antes e depois, a própria concepção já radica, de algum modo, no afeto, no vigorar da essência. Daí a ligação essencial do afeto com Eros, claro, não em sentido meramente sexual, mas amoroso. Quando aqui se diz com Eros, não é uma simples adição, mas diz a energia que reúne enquanto linguagem a manifestação da vida, no sentido que esta tem desde sempre: luz irradiante, vigorante, em obra. O traço diferenciador de eros e sexo é a presença e mundo enquanto sentido. Este não se faz presente no sexo, redutível a atrações sensuais. O que nos afeta é o querer, isto é, o vigorar da essência. Tal vigorar é o que os gregos denominaram ser. Contudo, o abismo do ser é o nada, o vazio, o silêncio. Pode haver voz sem silêncio? Radica cada próprio na tensão originária de ser e não-ser, provenientes do nada. Nesta disputa, somos lançados no abismo, no fundo em que vigora toda a realidade, ao nos defrontarmos com o nada, fonte originária de tudo que somos e não-somos. O nada é o silêncio vigorando. Apropriar-se do que é próprio, radicalmente, é ter a coragem de dar o “salto mortale” (Rosa, 1967:78). Onde esse salto não é uma decisão da nossa vontade, mas o apelo radical que nos afeta, pelo qual procuramos encontrar a identidade, a nossa proveniência e fonte de realização e caminhada para a plena realização, finalidade essencial de todos os nossos empenhos. Portanto, todo afeto nos afeta na vigência de uma identidade e diferença. É aqui que a psicologia e a psicanálise cultivam seus saberes e intervenções. Porém, a tensão de identidade e próprio não pode ser reduzido a disciplinas. Mais do que um saber exige uma experienciação pelo aprender a pensar. Neste, o que se sabe só se sabe quando se é. O aprender a pensar é o vigorar inaugural da identidade, do mesmo, do nada.

O próprio e a função
Como vemos, identidade é uma palavra que se torna o veículo de um conceito genérico que vai do mais amplo, em relação praticamente a todo universo, pois a Terra é apenas um planeta entre outros que se diferenciam dela, até o núcleo mais íntimo e pessoal, quando somos obrigados a nos defrontar com a afirmação de nosso próprio, dentro do núcleo mais original que é a família. E mais ainda, quando constituímos um casal, a reinauguração do genos, onde se dá o confronto e unidade dos idênticos e dos diferentes. Genos, enquanto proveniência, diz nascimento, criação, eclosão no desvelamento. A cada nível de relacionamento corresponde um conceito de identidade. É que todo conceito não passa de um conhecimento funcional e relacional. Os conceitos se distribuem em sistemas maiores ou menores. Do sistema universo ao sistema família ou casal. Aqui se dá o limite? Ou é dentro de cada um que a identidade e a diferença acontecem? O dentro não subsiste sem o fora, o que é, sem o que não é, daí toda identidade exigir, essencialmente, a diferença. É então que a questão do próprio diz respeito sempre a alguma função e relação. Mas será que a essência do ser humano, a essência da identidade, aquilo que lhe é próprio, pode ser reduzida e compreendida apenas dentro das relações e funções de um sistema? E pode haver diferença sem sistema de relações e funções? Será, enfim, que a realidade pode ser reduzida a um sistema causal, pois toda função e relação manifestam a realidade entendida como um sistema causal, onde sempre há uma causa que efetua um efeito, sendo este regido pela finalidade. Pode-se pensar o próprio da identidade sem finalidade? Todo sistema é ativo, daí funcional, pois função diz aquele agir que tem em vista uma finalidade: realizar algo, produzir um efeito, empenhar-se por um bem. Então nossa identidade seria reduzida apenas às funções e às finalidades dos macro- e micro-sistemas? Das relações sociais ou psíquicas? Claro que não. Elas se fazem presentes enquanto sistema de relações conceituais, mas não constituem ainda a questão.

Vivemos para termos apenas uma função profissional? Seria absurdo negar essa realidade em que estamos inseridos e em que nos desenvolvemos. Seria insensato negar a importância da instrução para a consecução, por parte de cada um, dessas funções dentro do sistema sócio-produtivo de nossa realidade através de uma profissão. Daí uma outra questão paralela a esta: a instrumentalização da causalidade gerou a sociedade técnica em que hoje vivemos. Se bem observarmos, essa funcionalidade toda deixa à margem o outro lado: o nosso próprio enquanto identidade. Muitas vezes, não sempre, há uma oposição, que nos causa muito desconforto e até infelicidade, entre um projeto de vida que ansiamos por realizar e as funções que temos que exercer. Cria-se aí uma dualidade. Cada um é um no trabalho, no escritório, na fábrica, enfim, nas diversas e múltiplas profissões, e outro quando larga a função e se defronta com o tempo livre para ser ele, o si-próprio. E aí fica meio perdido. Em geral se acha que é a hora de se divertir, de relaxar, de encontra os amigos etc. etc. Será que nessa hora, finalmente, encontrou o seu próprio? Claro que seu próprio é isso, mas, essencialmente, é só isso? E quando chega a solidão ainda podemos falar de próprio ou de identidade em crise? E quando um casal briga e se separa não houve uma crise de identidade? E briga-se quando se constata algo muito simples, mas verdadeiro: não temos nada em comum. O que esse comum aí quer dizer e por que ele é tão importante na harmonia e realização do casal? O nada em comum não diz, essencialmente, mundos diferentes, portanto, sentidos de vida e realidade diferentes? Não diz respeito ao próprio de cada um na unidade da essência da identidade? Não é necessário ir além do conceito genérico de identidade dos Estudos Culturais? Evidente que sim, pois tudo isso se torna a questão, o a-ser-pensado.

Questão
Como vemos, a identidade se faz presente em todos esses momentos, em todos esses conceitos e sistemas funcionais, mas parece que tanto mais se faz presente quanto mais ela se torna dissimulada, se esgueira, se esvai como o tempo se esvai no tique-taque do relógio. Lembrando-nos que somos seres temporais, o tempo nos conduz para um encontro inevitável: com a morte. Sobre a morte podemos aprender muitos conceitos, ter muitas teorias, conhecer muitas soluções religiosas etc. Porém, tudo muda quando nos defrontamos com ela em nossa vida. Assim como a nossa vida é só nossa, assim também, nesse momento, a morte, é “outra estória”, pois ela advém com toda a sua determinação e radicalidade, angústia e fragilidade de nossa parte. Aí nenhum saber sobre nos socorre. Toda nossa finitude se torna presente e diante da qual nos tornamos indefesos. A morte se torna para quem a experiência não apenas uma questão aflitiva e conflitante, pois aquilo que nos parece o mais sólido e imediato, a vida, ela se defronta com sua possível dissolução. E o que nos resta? Isso é o a-ser-pensado. Conceito não é questão. Não se opõem, mas são diferentes, tensionais. Vigoram numa permanente disputa. Questiona-se para se conhecer e se conhece para questionar. Conceitos são formulados pela razão. As questões nos constituem naquilo que somos e são elas que nos têm. Já nascemos nelas e com elas. Conceitos podem ser trocados e abandonados porque são representações. Problemas podem ser resolvidos. Questões se tornam presença viva e atuante em nossa vida e delas não podemos fugir nem elidi-las. Podemos até esquecê-las, fingir que não existem. Mas nunca se pode fingir o tempo todo. Sempre chega a nossa hora e vez. Então elas irrompem com toda a sua força e determinação. Contudo, elas nunca estiveram ausentes. Nós é que vivíamos como se elas não existissem. O esquecimento é algo muito decisivo em nossas vidas. Não existimos sem as questões, porque não existimos sem o tempo, a linguagem, a vida, a morte, os limites, os não-limites, a justiça, o silêncio, o bem, o belo, a felicidade, a realização, a ação, a identidade, o próprio, o destino, o sagrado, o amor etc. O que faz com que uma questão se faça questão é o princípio. A essência originária da identidade é a questão. Apreender a essência da questão é, portanto, apreender a essência da identidade, ou seja, do princípio. Princípio, questão e identidade são o mesmo na vigência da unidade. O que é originariamente a unidade? O isso da unidade é a questão das questões, o a-ser-pensado. E o ponto de partida é nosso próprio, nossa identidade. Só pensando a unidade podemos pensar a identidade.

O Ocidente do duplo
Em geral, em nossa vida predominam os conceitos, porque a vida histórica, social e familiar nos lança necessariamente nas mais diferentes funções e relações. Estas são operacionalizadas pelos conceitos. O fundamento do conceito é racional, porque a razão, em seu operar, faz da sua relação com a realidade uma representação, fundamentada na causalidade. Todo conceito é representacional. É a representação o fundamento da nossa relação com realidade. E é aí que se dá a dicotomia, a dualidade que faz a riqueza e miséria do Ocidente representacional e dicotômico. Essa predominância causal-representacional acabou por querer reduzir tudo a conceitos, tentar resolver tudo dentro de planos conceituais. E com isso se esqueceram as questões. Seria tão bom se a realidade fosse uma representação, pois aí seria facilmente manipulável, não haveria mais destino. E da nossa vida poderíamos fazer uma reprodução do paradigma que fundou a representação. Tudo ficaria sobre controle, como se controla a realidade virtual nos programas de computador. Basta conhecer a “linguagem”/código com que se elaboram os programas e ir lá e mudar. Realidade virtual é a realidade programada. Será que é isso o que nos vai acontecer? Seria isso, de fato, bom? A vida não ficaria reduzida a uma grande uniformidade, a uma insípida banalização das vivências repetidas ad infinitum? Ainda bem que na essência da técnica vigora outro poder. Este é o a-ser-pensado. E quando a realidade se nos dá dentro do a-ser-pensado, sempre pode acontecer o inaugural. É do velado do desvelado que o pensar recebe o apelo do acontecer do extra-ordinário. Neste e por este acontece a essência originária da identidade, origem do que nos é próprio.
Em nossas vidas, hoje, tende a haver uma dicotomia entre questões e conceitos, uma separação e até oposição, que muitos procuram resolver fazendo delas uma complementaridade. Com esta ainda não se atingiu a essência do princípio, a essência da identidade. E evidentemente a essência da diferença. Pois não podemos falar de identidade sem falar da diferença. Quando se fala em Ocidente, só se pensa naquele que se constrói em cima das oposições, das dicotomias, do duplo. Senão vejamos: alma e corpo, espírito e matéria, essência e aparência, bom e mau, realidade ficcional e realidade concreta, real e virtual, sonho e realidade, masculino e feminino, rico e pobre, capitalismo e socialismo, religioso e profano, arte e ciência, língua e linguagem, gramática e língua, Deus e o diabo, ser e não-ser etc. etc. É, em geral, este Ocidente que se opõe ao Oriente, à África. Esta oposição se origina da determinação e apreensão do ente da realidade dentro da proposição enquanto representação, onde temos a oposição de todas as oposições: sujeito e atributos. Notemos logo que toda proposição diz respeito ao plano da língua/código. A realidade, em cada ente, não se constitui e constrói como proposição. Esta já é uma representação de cada ente e da realidade como um todo no plano da língua, não do ente enquanto presença. Nisso consiste a dualidade essencial do conceito: a redução do ente à proposição representacional, como lugar de sua verdade. É que, na proposição opositiva ou complementar, o seu coração, o seu núcleo forte, fica esquecido: o ser. Para a gramática ele não passa de um verbo de ligação. Mas não é pela proposição que podemos chegar à essência da identidade. A essência do Ocidente do duplo radica num esquecimento. O Ocidente do duplo se fundamenta na identidade genérica, conceitual.

O Ocidente da dobra
Todas aquelas obras de arte e obras poéticas e de pensamento que não esqueceram esse é, o verbo ser, constituem um outro Ocidente. Este não se dá num duplo, mas acontece numa dobra. Na dobra comparecem o sujeito e os atributos, mas não se esquece o verbo ser. Neste caso, mais do que uma proposição temos uma sentença. Nesta, a realidade não é reduzida a uma representação, mas se deixa vigorar na sua presença. O fundo esquecido de toda representação é a presença. Esta tem como possibilidade ser reduzida a uma representação. Mas o inverso não é possível, porque neste caso nunca há aí complementaridade. Por isso presença não é forma. Esta manifesta e se concretiza nas representações. Sem presença não há forma, mas forma não funda a presença. A presença institui a realidade como mundo. A representação reproduz o mundo instituído. Na sentença, o núcleo é a vigência do verbo. Verbo é tempo e tempo é presente. Sem verbo não há língua, se por verbo entendermos um vigorar do tempo e não uma categoria gramatical. O vigorar da língua é a linguagem. A dobra não faz do conceito e da questão uma oposição nem uma complementaridade. O verbo não é uma questão lingüística. É uma questão de ser. Nós pertencemos ao ser na medida em que pertencemos ao verbo, ao vigorar, ao tempo. Somos sempre um sendo verbal. Todo sendo é sendo do ser, porque é no sendo que o ser se manifesta como ser. Manifestar diz sempre o vigorar e o advir da realidade à verdade. A verdade é sempre a essência da realidade se manifestando, eclodindo no aberto do mundo. Isso é a identidade originária, muito diferente daquela em que se baseiam os Estudos Culturais e outras correntes críticas, a identidade genérica, conceitual. Pela identidade podemos apreender a distinção entre os dois Ocidentes.

Na dobra há sempre um círculo. No fim está o princípio porque no princípio está o fim. É o tempo poético-circular. Porém, não se cria no círculo uma oposição, uma dualidade entre tempo poético-circular e tempo crono-lógico e historiográfico. É necessário também pensar o lugar essencial desse “e” desse “entre”, isto é, de tempo linear e circular. A partir de e no vigorar desse “e”, desse “entre” é que acontece a dobra. Esse “e”, esse “entre” nos remete para o mesmo, ou seja, a questão da unidade.

Como exemplo de dobra de pensamento, citaria a sentença 123 de Heráclito: Physis kryptestai philei. A natureza apropria-se no velar-se. O entre dessa sentença está no philei. Eu o traduzi por apropria-se, mas este nada mais diz do que o sentido usual em grego de philei: ama. Amar é vigorar na identidade do próprio. Ela é o princípio enquanto o mesmo. Portanto, este é unidade, ou seja, o amor vigorando. Amor, Eros, é energia irradiante, luz inaugural. Nesta sentença, jamais o predicado da sentença pode-se tornar um atributo.

O próprio como obra poética
Tomemos um exemplo de uma obra poética. O conto de Machado de Assis: “O espelho”. Antes de partirmos para a caminhada de diálogo pensante com e a partir das questões do conto, firmemos algumas posições rapidamente para além das dicotomias do Ocidente do duplo, pois é ele que funda todas as teorias estéticas e críticas. Quem pensa a dobra é a Poética.

Uma obra ficcional não é algo oposto a uma realidade concreta. Toda obra poética se tece na medida em que se centraliza em questões e nos propõe com elas um diálogo. Ler, portanto, uma obra poética é se questionar, numa posição de aprender a pensar, dialogando: Que questões a obra nos quer fazer pensar? Todas. Toda obra de arte ou poética sempre se constitui numa dobra de tempo cronológico e tempo poético-circular. Cada obra nos convida ao pensar pelo diálogo. Este é a dobra de escuta e fala. A esta dobra denomino a identidade de rito e mito, de língua e linguagem, na unidade do narrar enquanto vigorar do mesmo. Todo rito sempre se dá num tempo que tem começo, desenvolvimento e fim. Portanto, o tempo se dá aí enquanto tempo cronológico. Disso não poderemos nunca fugir, pois é próprio do ser humano realizar-se na fala, tendo como fonte a linguagem velada e silenciosa, sem a qual não se pode nunca existir. Em verdade, o que aí comparece é sempre a questão que não cessa de nos questionar: qual é a dobra de sendo e ser? Como se dá e acontece a referência de essência do humano e ser? É nessa referência que acontece a identidade e a diferença. Pensar a identidade e a diferença é pensar sempre a referência de essência do ser humano e ser. Todo pensar é um acontecer poético. Neste acontecer poético de identidade e diferença nos advém a abertura do sentido e verdade que nos liberta.

Em si, o rito só se faz caminho linear porque nele vigora o mito. Todo rito é sempre um rito do mito. É este que faz o rito se tornar rito. Mas só vemos e lemos o rito, nunca vemos nem medimos linear e cronologicamente o mito. E mais. Os ritos têm seu tempo de realização, enquanto ritos, demarcados por um início e um fim. Se as obras se limitarem ao rito, ficarão dependentes da representação, do discurso, das formas, dos estilos, dos gêneros. Tornam-se poéticas quando o rito é fecundado pelo mito. A narração poética nada mais faz do que fazer eclodir tal fecundação. É que os mitos não ficam restritos nem dependentes do tempo cronológico, das representações, pois seu tempo é o poético-circular, a vigência da presença. São os mitos que sempre se tornam a energia que reinaugura os ritos continuamente. E sempre de um modo diferente. O mito é o tempo da linguagem vigorando. Nenhum rito se repete, assim como nenhuma leitura de uma obra se repete a não ser aparentemente. O que constitui a energia, a luz, que ilumina cada rito e cada leitura, é o vigorar do mito. Este é a identidade das diferentes leituras e ritualizações. Então o tempo acontece no acontecer de rito e mito, de mito e rito. Não temos aí, de maneira alguma, uma dicotomia, um duplo. Há a dobra, que integra, pelo poder da identidade, do mesmo, do princípio vigorando, rito e mito, fala e linguagem, sendo e ser. Pois cada sendo, cada um de nós, é um rito do mito, um sendo do ser. Não somos apenas uma linearidade entre vida e morte. Nela se dá a travessia, como nos diz Guimarães Rosa. Toda travessia é uma dobra de rito e mito na narração da obra. Nossa vida, levada à plenitude de realização é, em verdade, uma narração que se constitui como obra poética, manifesta o que somos como presença. E é obra por operar essa dobra de rito e mito, vida e morte, entrada e saída, partida e chegada. Nessa linearidade temporal há o princípio vigorando, a identidade, pois esta é algo que já nos foi dado enquanto mito e, no entanto, precisa do rito para chegar a ser o que é. O que cada um já é, desde que nasceu, é o próprio, o destino que lhe constitui a identidade. O rito do mito nunca se reduz, enquanto narração, a uma proposição. São sentenças que nos colocam diante das questões. Fazem das questões presenças.

O “Espelho” de Machado
Porém, o rito é sempre perigoso, pois viver é muito perigoso. Sempre pode haver o desvio, o esquecimento do mito. As funções, os bens, os desejos, as estesias da estética, podem facilmente envolver-nos e nos ofuscar. Temos a difícil tarefa de fazer da nossa vida um dobra, a do rito e mito, e não um duplo, onde nos cindimos num eu e num outro sem sou. O eu vê mas não se vê, porque não mais nos deixamos iluminar pela luz que é a eclosão da vida. Quando deixamos eclodir a vida, só então chegamos a ser o que somos. Quando a luz da razão quer comandar e predominar, só nos resta o resto de um esboço, impreciso e sem contornos. São as máscaras do “eu”. Este aparece e parece que é, porque lhe falta a luminosidade do que não se deixa mascarar: o sou. Sou é sempre a eclosão do que aparece na luz do que não parece nem perece, mas é aparecência sempre inaugural. É o que nos mostra o conto de Machado “O espelho”. Este nos narra algo fundamental. O rito narrativo se inicia numa sala onde alguns cavalheiros discutiam. O quê? Coisas metafísicas, os mais difíceis problemas do universo. Foi posta então a questão: Qual seria a natureza da alma? Houve muitas opiniões e nenhum acordo, pois essa questão era o fio do tecido da vida que se desdobrava em muitas outras. O que diz aí a palavra “natureza” da alma? Essência. Trata-se, portanto, de achar a essência da vida. Natureza é a palavra com que os latinos traduziram a palavra grega “physis”. Esta é a vida eclodindo no vigorar da luz. A indagação pela “natureza da alma” diz o mergulhar no que funda a “anima”: a luz. Esta é o princípio originário de tudo que é e está sendo. O que a luz tem a ver com o espelho? Não se pode pensar o espelho e sua presença sem pensar o vigorar da luz.

Entre os presentes havia um calado e casmurro, que não interferia na discussão. Chamava-se Jacobina. Instado a dar a opinião, consentiu, desde que o ouvissem em silêncio. Quando se trata de algo essencial, o seu pressuposto é a escuta, tanto de quem fala quanto de quem escuta. Por isso, o que o identifica é o ser casmurro: o ensimesmado, o silencioso. E narra um caso de sua vida, em que propõe a sua teoria: Não há uma só alma. Há duas, uma que olha de fora para dentro e outra que olha de dentro para fora. Notemos logo que há algo em comum nas duas almas: o olhar. O que o olhar, o ver, tem a ver com o espelho? Acrescenta o narrador que a alma exterior pode assumir muitas formas e dimensões. Pode ser um espírito, um homem, muitos homens, um fluido, um objeto, uma dança, um livro, um novo aparelho eletrônico, a moda das personagens da novela que está no ar, dos famosos etc. “Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira” (Machado, 1962: 346). E arremata com uma imagem-questão: “As duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja” (Assis, 1962: 346). Afirma: quem perde uma das metades perde metade da existência e há freqüentes casos em que a perda da alma externa implica a perda da existência inteira. E como o ser humano é histórico, acentua que a alma exterior não é sempre a mesma. Almas há que mudam, de acordo com as modas e as circunstâncias, diversas vezes ao ano, sobretudo se viver numa sociedade de consumo. E então vem a estória do espelho, que aconteceu com ele.
Aos vinte e cinco anos foi nomeado alferes da guarda nacional. De família pobre, com a nomeação tudo mudou. Deu-se uma ascensão social. Todos começaram a admirá-lo e a distingui-lo no tratamento. Os amigos se cotizaram e deram-lhe a farda.

Tempos depois, uma das suas tias, Marcolina, viúva que morava distante num sítio solitário, pediu e conseguiu que fosse lá passar alguns dias. Lá chegando, recebeu-o com muita festa e distinção. E para agradar-lhe mandou colocar no seu quarto um enorme espelho, herança antiga. Tornou-se o centro das atenções e a tia e os escravos só o tratavam por “senhor alferes”. Isso causou nele uma profunda transformação. Em vista disso, diz o narrador: “O alferes eliminou o homem” (Assis, 1962: 348). Será que em nossa vida, hoje, as funções só externas também não têm o perigo de eliminarem o homem? Homem diz aqui o quê? O próprio, que vigora pela essência da identidade. A alma exterior, que era natural, foi substituída pelas cortesias, as deferências, as distinções e tudo que lhe falava do posto, mas nada da essência do humano. A outra alma, a interior, no dia a dia acabou por cair no esquecimento. Porém, um dia, sua tia ausentou-se porque foi socorrer uma filha que estava à morte, distante dali. Alguns dias depois, os escravos fugiram. E, de repente, viu-se só. Isto o abala. E uma semana depois sua solidão tomou proporções enormes. No fundo da solidão há a questão do tempo. É um tempo que perde o aspecto externo da mudança e da linearidade. Ele se faz presente com toda a sua densidade angustiante por dar a sensação terrível de não estar acontecendo, vigorando. Ele, para Jacobina, não muda porque não há mais a dobra de mudança e permanência, de cronologia e circularidade. Isso é a solidão da existência quando o tempo não é um poder crescer, um levar a apropriar-se do que é próprio, um presentear-se do mundo. Presente, só o velho relógio de sala, onde as horas batiam de século a século e “...cuja pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior ... com golpes de eternidade ... não eram golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada” (Assis, 1962: 349). Embora o som da pêndula fosse bem nítido, ele não lhe falava, porque nunca há diálogo quando falta a presença da outra alma, da unidade (identidade) da laranja, esta precisa imagem-questão do narrador.

O espelho
Agora podemos voltar ao início, quando ele propõe a sua teoria. Não basta ter duas almas, é necessário haver também o olhar integrador do fora e do dentro. Não é aí que o espelho se torna presente? O olhar, mais do que nos fazer ver o que está fora, é a condição de conhecer o que nos é próprio. É o ver que permite o olhar, pois ver é a condição originária de conhecer. Porém, o próprio só se dá a ver quando olhamos e vemos o outro que não somos e o outro que somos. O não-ser é ambíguo, porque tanto é negativo quanto é positivo. O não-sou é negativo quando, pelo ver, conheço que não sou o outro que me limita, me nega. O não-sou é positivo quando me faz conhecer o limite do que sou, pelo qual me afirma e me possibilita conhecer o que sou, o próprio em seu limite próprio. É aí que então me reconheço como sendo o mesmo, porque aquilo que há de comum em mim é o ser e não-ser, sendo. No espelho se dá esse jogo ambíguo de ser e não-ser de uma maneira abissal. É também o tema do conto “O espelho” de Guimarães Rosa. Diante do espelho, de uma maneira muito imediata, somos colocados diante de nosso próprio ou não. Ao olhar-me nele até onde a imagem reproduzida é o que eu sou e o que eu não-sou sendo eu? O espelho me dá uma imagem que parece ser minha, mas até onde é a auto-imagem, o próprio que sou? Ou não passa de uma representação? Não será essa imagem do espelho o que eu gostaria ser? O que garante a verdade da imagem que o espelho me devolve, me reflete? Será que me reflete ou apenas me mostra o que eu não sou e julgo ser, julgamento baseado na luz da razão? Não serei uma ilusão de mim mesmo, projeção racional do que gostaria de ser? Quem me garante a autenticidade? O espelho reflete só o eu ou também o sou? O eu não pode se reduzir ao viver só para fora, reduzido à reprodução do exterior, reduzido a um acúmulo de máscaras, de conhecimentos que mascaram o que sou? Não pode o espelho, se for côncavo ou convexo, me refletir e dar uma imagem distorcida? É nesse impasse que se coloca a questão do próprio, quando se perde uma das almas. Faltando uma alma não é possível apreender-se o ser humano que se é, sendo. Não é possível chegar ao mesmo, que o constitui em sua essência, chegar à realização do próprio em sua identidade. Sem o mesmo só resta a solidão como abismo, como nada. O mesmo, já vimos, é a unidade. Sem unidade não há identidade. Olhamos, mas não nos vemos, escutamos, mas não nos ouvimos. O tempo em seu fluir dos dias não passa então de um cochicho. Os dias são o rito do tempo cronológico, que não chega a se tornar tempo de realização, caso não haja o tempo circular, o mito. O que nos diz o círculo? Todo círculo tem um começo e se projeta numa trajetória cujo fim é chegar ao mesmo lugar de onde partiu. Não há princípio (arché) sem finalidade (telos), porque não há finalidade sem princípio (arché). Só na unidade de princípio e finalidade há realização e consumação do próprio.

Porém, algo de muito importante acontece nesse circular, porque no retornar ao mesmo, ao princípio, aconteceu o desvelamento do que já desde sempre somos e não cessa de se velar. Esse é o acontecer poético-circular, a tensão permanente entre desvelamento e velamento, de que nos fala a sentença 123 de Heráclito, já citada. Desvelar-se no que é é deixar-se tomar pela verdade. E só a verdade realiza e liberta. E o que se realiza nessa dobra do tempo? O desdobramento do que somos, do próprio. Em todo próprio há a dobra do sendo e do ser, no contínuo ser o que ainda não se é. Em princípio, todo limite é um não, pois é no encontro do limite que chegamos à afirmação do que somos frente àquilo que não somos. No conto, o limite era constituído pela alma exterior. Perdida esta, não havia mais referência para Jacobina. É pelo limite que olhando de dentro para fora podemos olhar de fora para dentro. Nisso consiste o agir e lugar do espelho. Ele nos dá a reflexão que não nos deixa fluir no sem fim, ao nos auto-vermos. Mas também é pela reflexão, pelo pensar, que chegamos ao que somos. Não há reflexão sem reflexo, isto é, sem luz. Pensar é refletir a partir da luz. Esta é a vida vigorando no desvelar-se. Sem luz não há vida como sem vida não há luz.

Espelho vem da palavra latina speculum. Na raiz desta palavra está o verbo spectare, olhar, ver. O espelho é o lugar do reflexo, da luz que nos dá a propriedade de ver, de chegarmos a nos auto-vermos e a nos auto-conhecermos. “Auto” é palavra grega que diz “próprio”. Porque somos nós mesmos que estamos refletidos. Não se trata de uma representação, porque o espelho é o mediador, aquele que dá a medida do ver. Medida aí não é padrão, suporte teórico, é a unidade de ser e não-ser, de luminosidade e escuridão. Não podemos jamais reduzir luz a luminosidade, há também a escuridão luminosa. Mas só vemos quando especulamos, isto é, pensamos. Ser e pensar são o mesmo. Não somos nós que pelo pensar nos iluminamos, é a luz que ilumina nosso pensar. Ela é a essência do espelho. Poeticamente, não se pode confundir espelho com o objeto físico, o vidro, como diz Machado. Espelho é o ver que se deixa tomar pela luz, portanto, pelo princípio. E princípio é o mesmo, a identidade. Princípio diz, portanto, o originário. Na origem de tudo está a luz, pois luz é energia fundadora, Eros. Quando somos tomados pela vigorar de Eros, toda nossa vontade se dissolve, isto é, toda nossa subjetividade como determinante do que queremos. Eros, o Amor, é o próprio vigorar do iluminar. O espelho é o “entre” onde a luz do iluminar acontece fazendo-nos experienciar a vida como iluminação, transfiguração.

No ser humano, todo limite é sempre um “entre”, uma liminaridade, que é a tensão ou dobra entre limite e não-limite, pois nela se dá a referência de sua essência e ser. É nessa referência que se coloca a questão da identidade e diferença. Notemos, no entanto, que o entre não pode ser visto como uma dualidade. Todo entre é dobra.
Porém, além das duas almas, a exterior e a interior, há a necessidade, como vimos, de duas dimensões que se tornam questões no conto: o tempo e o olhar. O que o tempo e o olhar dão às duas almas? Pelo tempo e pelo olhar, o nosso próprio se manifesta enquanto presença, mundo e sentido. É a iluminação acontecendo. Neles, a vida se torna ressonância musical e os passos, no caminhar, são dança fluindo no livre aberto do repouso. O sentido é a palavra se tornando poesia e linguagem, deixando o silêncio falar. O mundo é o acolhimento da presença em seu sentido. Isso é o próprio acontecendo poeticamente. O acontecer se torna poético quando ele se dá enquanto dobra desdobrando-se, desvelando-se, dialogando. O desvelar-se é o acontecer da verdade. Só então há verdadeiro diálogo. Qual a importância do diálogo em nossa vida? Já disse Hölderlin que somos essencialmente um diálogo. Sem o outro, porém, como pode haver diálogo? E o outro significa aí uma parte constitutiva de cada um, pois somos as duas partes de uma laranja. Porém, sem logos não há diálogo. O poder do diálogo não vem de quem dialoga e suas falas, mas do próprio logos, que é linguagem, unidade. Podemos, portanto, concluir que linguagem é sentido porque é vigorar da luz, unindo luminosidade e escuridão, iluminando os escaninhos de nosso íntimo e de nossa solidão. Quando o outro não acontece, porque estamos divididos, só pode acontecer, na mais profunda solidão, um cochicho do nada, porque o ser que somos se nos denega. Falta-nos o próprio em sua essência, a identidade. E o que faltava ao Jacobina, além da alma externa, que se retirara e o lançara na mais cava depressão e solidão? Ele até podia falar, mas não se ouvia, porque não ressoava nele a unidade do mesmo. Todo ressoar é um iluminar. E por quê? O que lhe faltava e o levava àquela situação solitária? A dicotomia, a dualidade em que ele passou a viver, daí o espelho se tornar o estranho. Machado é classificado como realista. No entanto, este conto é insólito. Isso apenas mostra a miopia dicotômica dos estilos de época, da redução das obras de arte às formas. E acontece em virtude do predomínio do Ocidente do duplo, porque a luz da razão funda a subjetividade, mas não o mesmo, a identidade. A subjetividade não é a fonte da realidade, é o operar racional de todas as representações. Quem se guia pela vontade subjetiva colhe só representações. E acaba se tornando um simulacro.

O espelho e a alma externa
Voltemos ao conto. Desde que ficara só, não mais se olhara no espelho, pois diz: “Não era abstenção deliberada, não tinha motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo, naquela casa solitária” (Assis, 1962: 350). O narrador para tratar do lugar do espelho em nossa vida já aludiu à perda da consciência, ao sonho, e introduz, no momento decisivo, o inconsciente, além de mostrar que vive uma situação e atmosfera onde se faz presente a loucura. O que a loucura tem a ver com o espelho? A loucura em sentido poético é o acontecer do extraordinário. Como vemos tudo remete para o espelho. Mas depois de oito dias, mesmo podendo achar-se dois, evidente numa realidade dicotômica, resolveu olhar-se no espelho. E aconteceu o fantástico, o maravilhoso, o insólito. O vidro não reproduz a sua figura inteira, nítida, mas apenas algo vago, difuso, sombra da sombra. Que literatura realista é essa a de Machado? Apavorado, resolve fugir e vai vestir-se. Já fazendo isto, vem-lhe uma inspiração inexplicável, por um impulso sem cálculo lembrou-se vestir a farda de alferes. O sem cálculo a que se refere o narrador dia claramente que a realidade não pode se reduzida à causalidade. Nos momentos decisivos, surge a não-causalidade, o poético. E o estranho aconteceu: “...o vidro reproduziu então a figura integral” (Assis, 1962: 351). E explica: enfim, tinha achado de volta a alma exterior. Esta se perdera com a saída de todos, mas a reencontrou “...recolhida no espelho” (Assis, 1962: 352).
Nas grandes obras de arte, são muitas vezes os pequenos detalhes que nos lançam diretamente nas questões. Os conceitos nos dizem o habitual, o ordinário, o causal e funcional. Para dizer o extra-ordinário é necessário quebrar a banalização a que os conceitos conduzem, pois por meio deles a realidade se torna uniforme, unidimensional e generalizada, mera representação. E onde está aqui, neste final do conto, o pequeno e decisivo detalhe? Repita-se que o conto é muito rico e coloca muitas questões. Limitamo-nos ao fio que conduz nossa questão: a identidade. Pois bem, o narrador faz um jogo sutil ao se referir ao espelho. Dependendo da situação e do momento do conto, só se refere ao espelho como “vidro”. Porém, neste momento final, quando a ação sai do personagem e deixa o espelho agir, para lhe reproduzir a figura, usa deliberadamente a palavra “espelho”. Para compreendermos a troca não só da palavra vidro por espelho, mas da própria situação e de tudo o que ela implica, devemos nos voltar agora para duas questões que se interligam profundamente. Machado é um gênio multifacetado, mas seu trabalho meticuloso com as palavras mostram uma profunda escuta da linguagem, porque não há próprio sem o vigorar da linguagem. E é assim que constrói as narrativas geniais, pois a sua narração ou rito sempre se manifesta ao velar-se no silêncio da linguagem, na força do mito. Ao rito e mito correspondem nele de maneira plena, a fala e a linguagem.

Voltemos ao sintagma no qual narra a retomada da segunda alma, já citado acima: “...ei-la recolhida no espelho”. O que o verbo “recolher” aí nos diz? Recolher é reunir e todo reunir pressupõe um acolher que reúne e dá unidade. Recolher é acolher a presença da identidade, ou seja, a unidade no espelho, na luz, das duas almas. Recolher diz sempre a unidade dos diferentes na identidade. Não disse antes que não havia diálogo quando se sentiu na mais profunda solidão, quando a alma externa fugira? E nada mais havia do que “um cochicho do nada”, pois fora jogado no mais profundo silêncio, que o abatia, o esmagava e o fazia perder a presença do tempo? Por que o tempo, sem a presença da alma externa, isto é, sem a possibilidade de acontecer a unidade, não passa ou passa muito lentamente, cada tique-taque do relógio parecendo um século, uma eternidade? Pela falta da unidade. Vejamos bem que esta pressupõe os diferentes, no caso a alma interna e a alma externa. Só assim há unidade, só assim há identidade. Quando há unidade dos diferentes então temos a dobra. Porém, o Ocidente dominante só nos fala de dicotomias, de duplos, de representações. No caso, a oposição entre alma externa e alma interna. Sendo aquela o material, o exterior, e esta o espiritual, o interior.
Machado defende que não há essa oposição. As duas são necessárias, senão seremos incompletos. Portanto, este é um outro Ocidente, o da dobra. Na dobra, no lugar do raciocinar que representa acontece o pensar que traz à presença. No lugar da análise, onde predomina um desmontar as partes que constituem o objeto como representação, há o dialogar, pois este é o recolher dos diferentes na diferença, dos idênticos na identidade, na unidade, no mesmo. A palavra recolher se compõe de dois prefixos, re- e cum- (co-) e do verbo legere, em latim, e legein, em grego. E o que dizem? Pôr e depor, reunir, dizer, mundificar. Já o prefixo re- diz o tornar a fazer, e o prefixo com- diz o tornar comum, manifestar a unidade. Portanto, recolher é reconstituir a unidade. Esta unidade é que se mostra no diá-logo, pois de legein formou-se a palavra logos, que é o radical de diálogo. Todo diálogo diz o deixar vigorar a diferença, a identidade, o mesmo.

Mas agora torna-se essencial questionar o que é o espelho, pois este é o centro do conto e aquele que recolhe a integridade do sou de Jacobina, ou seja, a reunião da alma externa e interna. Só o “eu” se pode dicotomizar, não o “sou”. A dicotomia leva ao esquecimento do sou. Que poder tem o espelho para realizar não só as duas almas de Jacobina, um personagem-questão, mas toda a realidade, uma vez que esta é a vigência dos diferentes? Se o espelho é o especular enquanto pensar, é o olhar, só pode acontecer o olhar no que, enquanto luz, se dá a ver. Não é o olhar que possibilita o ver, mas é este – luz – que atrai o olhar e lhe dá a possibilidade de chegar a ser olhar. O ver é a luz vigorando na manifestação da realidade, ou seja, em sua verdade. E assim temo o que é conhecer: a manifestação da realidade em sua verdade. O conhecer só se torna epistemológico quando a razão se auto-atribui a luz de todo ver. Doce ilusão, de que Édipo é a lição permanente, aquele que nos lembra, ao arrancar os olhos, de que só arrancando os olhos da razão podemos chegar a ver o que não cessa de se dar a ver, velando-se. Só então vemos a escuridão luminosa, a outra face de toda luz, unindo-se a alma interna e a alma externa, pois somos uma laranja, uma dobra, um entre.

“O espelho” de Rosa
Os dois contos, o de Machado e o de Rosa, não se opõem, mas se completam, pois cada um traz aspectos diferentes e coloca questões de modo próprio. Em verdade, todas as obras poéticas e de pensamento falam sempre do mesmo, isso não quer dizer que digam coisas iguais. Se o conto de Machado se centraliza na questão das duas almas e através delas traz a questão do espelho enquanto reflexão poética, auto-apropriação, se o conto de Machado trata da identidade partida, transformada num duplo pela representação, já o conto de Rosa se centraliza numa personagem-questão que é ele mesmo se narrando. Parte diretamente do “eu” que se investiga para achar os vestígios do “sou”. O sou deixa vestígios do ser que ele é?

E olha-se intencionalmente no espelho, para se questionar sobre a densa tensão do “eu” e do “sou”. Rosa parte do fato de que nossa vida, não apenas social e psicológico, mas em suas origens históricas e até genéticas, vai acumulando máscaras em nosso sou como se este se reduzisse ao nosso eu (persona). Não é. E sem “eu” ainda existe o “sou” ou sem “sou” pode existir o “eu”? Daí a pergunta do personagem-questão de Rosa: “Você chegou a existir” (Rosa, 1967: 78). Trata-se, portanto, para ele, de des-mascarar o “eu”. Dá-se, portanto, uma tensão muito grande em nossa vida entre o eu histórico e a historicidade do sou. Para tanto, Rosa se centraliza em dois eixos dentro do conto: Espelho e luz, ver e não-ver. Será que eles são distintos ou formam uma dobra? Como em Machado, chega um momento em que também ele se olha no espelho e nada mais vê, senão um profundo vazio. No entanto, a retomada do que ele é passa ao largo das retomadas das máscaras do eu. O rito do conto é um percurso de recolhimento do ser do sou, pelo mergulho profundo na luz, no abissal, no princípio, na luz, na unidade.

Ambos tomam como questão o espelho e ambos, embora com ritos diferentes, chegam ao mito. Fazem do dizer uma narração para chegarem à linguagem, do rito do tempo uma estória, para chegarem ao tempo originário, isto é, poético-circular. Para tanto descem para subir, lançam-se no rito de contar para deixar vigorar o mito. E mais: fazem isso dentro de uma dobra, que incorpora a linearidade do passar dos dias na revelação e desvelamento da essência do olhar/ver e da luz. Ambos se movem, portanto, no princípio, quando tomam o caminho do espelho. Por que o espelho nos joga no princípio? O que é princípio? O que o princípio tem a ver com a identidade? Só podemos sair do limitado campo dos Estudos Culturais quando tornamos a identidade e a diferença questões. Isso quer dizer, fundá-las no princípio. E não fundamentá-las na respresentação, como fundamento do conceito e da verdade. Na representação trata-se sempre da verdade atributiva por adequação lógica. Esta opera a partir de uma essência meramente lógica e conceitual. Falta-lhe o vigorar da presença, do sendo no ser.

A identidade
A questão da identidade sempre esteve ligada ao princípio. É uma decisão sobre o princípio que desencadeia o que vai compreender-se por identidade no Ocidente. Em verdade, esta questão remonta ao pensamento originário com Parmênides, quando diz na sentença III: “...tò gar auto noein estín te kai einai”. “...pois o mesmo é pensar e ser” (Os pensadores originários, 1991: 45). A tradição metafísica nunca pensou com a devida atenção essa primeira palavra da sentença: Tò auto. Esta palavra grega pode ser entendida de duas maneiras, difíceis de diferenciar: o próprio e o mesmo. Ela ficou esquecida como tal em sua essência. Isso porque a metafísica parte do on, o sendo do ser. Tudo gira em torno deste e se torna, por isso, o fundamento. Depois, na Idade Média, o fundamento se torna causa primeira ou Deus.

Ser
A grande dificuldade de pensar o ser na unidade, na identidade, de ser e pensar, está no fato de que ele já foi determinado metafisicamente como causa. E então estamos sempre projetando-o como “algo” poderoso e criador que, por sua majestade, se distingue infinitamente das criaturas, porque finitas. Denominou-se Deus a causa primeira, o fundamento. A simplicidade do ser está em que ele é o vigorar pleno do mesmo, que é o repouso, o vazio de plenitude. Ele jamais pode ser apreendido a partir de posição, oposição e composição. No entanto, é ele e só ele que as doa enquanto identidade e diferença. Daí provir, na língua portuguesa, do verbo latino sedére: O que está sentado em silêncio e repouso, na plenitude do movimento e do poder. Desse verbo se formou a palavra sedes: cadeira, trono, lugar que assinala aquele que está revestido do poder, seja sagrado, seja político, enfim, do querer poder do ser. E também sede: o lugar, a casa, a morada dos que comandam e retêm o poder. É nesse sentido que o silêncio, enquanto ser, é a proveniência, a essência de todo genos, de tudo que nasce. A morada do ser é a linguagem. A linguagem sendo sentido, mundo, ético-poético, é a unidade que reúne ser e pensar no sendo. A linguagem é a energia irradiante operando enquanto unidade que reúne e confere identidade e diferença. Ao que reúne denominamos identidade das identidades e diferença das diferenças, isto é, o mesmo. Ser concentra em si toda energia, toda luz, daí seu mistério, de que nós somos obras pelo e no vigorar da luz. E são as obras poéticas que concentram esse vigor luminoso, esse poder manifestar na e pela luz. A luz irradiante vigorando como princípio constitui o ser e pensar no mesmo. Ser não é causa, é o vigorar da luz em sua plenitude, enquanto repouso e silêncio. É um vigorar tão denso que se dá como luminosidade e escuridão. Tudo que é é sendo do ser, porque é a luz operando, realizando. Tudo que não é é a luz irradiante vigorando enquanto nada. Um ente sendo e não-sendo nunca é a luz, mas só é sendo e não-sendo porque é constituído pela energia densidade da luz, do princípio, do mesmo. Luz é energia irradiante em plenitude. Muitos são os atributos de energia. Contudo, a Luz não tem atributos. É simplesmente a energia. É Eros.

Causalismo
A tradição, dominada até hoje pelo causalismo, esqueceu a diferença, o mesmo: tò autò. Propriamente a metafísica, nessa opção pelo causalismo, onde tudo é interpretado como causa e efeito, criador e criatura, aparência e essência, gerou o duplo da representação. E caiu no esquecimento a diferença, ou seja, a essência da identidade, enquanto o tò autò de Parmênides. Pensar o outro Ocidente é sair do duplo, das dicotomias, e reintroduzir o que foi esquecido: o mesmo, tò autò.
Naturalmente, na dicotomia entre essência e aparência, o ser se torna o fundamento de que sempre se parte. Tanto os antigos como os medievais não foram insensíveis à questão da identidade, isto é, do uno, da unidade. Porém, a opção pelo causalismo decorreu de um outro esquecimento. Entre a dobra de arché e telos e a dicotomia, inerente à interpretação causal da proposição, a metafísica sempre optou e se pautou por esta. E desse modo ficou esquecida a dobra. E passou-se a determinar a realidade e a própria linguagem a partir da proposição. Iniciou-se o domínio da representação. É uma das característica fundamentais em que se funda o Ocidente do duplo. Já o Ocidente da dobra funda-se na tensão de presença e representação. Toda proposição se estrutura num sujeito e atributos. Porém, segundo a sentença III de Parmênides, o ser é o mesmo de pensar. Ser é pensar. Pensar é ser. Ser e pensar é deixar-se tomar pelo vigorar do mesmo. Só então acontece a aprendizagem. Na dicotomia, pensou-se o ser e depois o pensar, não a dobra onde entra necessariamente o mesmo. Este não é fundamento causal de nada. O mesmo, a identidade, a diferença, vigoram no fundar. Só se funda afundando cada vez mais. Isso fizeram os poetas e os pensadores. Por isso eles, com suas obras, constituem o outro Ocidente. E sem este é redutor falar do Ocidente como um todo único. Em vista disso, falar de Orientalismo por oposição a Ocidente já se torna muito problemático. Claro que o Ocidente dualista predomina e se expandiu, com a técnica moderna, de uma tal maneira que nossa época é caracterizada pela globalização tecnológica. Isso de maneira alguma nos deve impedir de pensar e pensá-lo no círculo originário da dobra.
Partindo da proposição, o sendo é visto no que é e no como é. Neste se dão os atributos. O que é seria a alma interna, a essência, o como é seria a alma externa, a aparência, material e passageira. Tendo em vista essa dicotomia, os atributos foram divididos em essenciais e acidentais. Nessa divisão, a identidade, a unidade, o uno, é um atributo essencial do ser. Como vemos, houve uma mudança que afeta radicalmente a essência da identidade. Na metafísica é a identidade que pertence, como atributo essencial, ao ser e não o ser que co-pertence à identidade, no mesmo, conforme a sentença originária de Parmênides. Nesta inversão esqueceu-se o mesmo.
Na Modernidade, dá-se nova mudança. O ser passa a ser uma propriedade do pensar. Este torna-se o fundamento. A identidade é a própria subjetividade, onde se perde igualmente o lugar e a essência da identidade. Ela não passa de um atributo, uma consequência do pensar. A identidade em sua essência continua esquecida. Na Pós-modernidade, toma cada vez mais corpo dentro dos Estudos Culturais, a defesa intransigente das identidades culturais. Na planetarização da técnica, isso se torna uma tarefa urgente e essencial. Porém, quando aí se fala em identidade, toma-se como referência determinante, não a identidade, mas a cultura, não saindo da metafísica. Portanto, constatamos que a identidade continua impensada, isto é, não é pensada em sua proveniência originária, mas como uma propriedade da cultura, das culturas. Não deixa de ser uma ironia da representação metafísica que pensem os gêneros nos Estudos Culturais, sem atentarem para o mais evidente: a sua origem no originário do genos. É a tradicional indigência do pensar, do questionar. Ansiosos pelo intervir, mudar e dominar segundo um aparelhamento racional. E o pior inimigo das diferenças culturais é justamente esse aparelhamento racional, conceitual.

No Ocidente do duplo, a identidade foi fundamentada pelo ser, pelo pensar, pela cultura. Mas será que a identidade vai continuar esquecida em sua essência, naquilo que a constitui, para só então se poder pensar o ser, o pensar (raciocinar), a cultura? Qual a questão que está em causa? É que a identidade sempre está atrelada a algo fora dela, no jogo de fundamento e fundado. Isso faz muito bem o jogo dicotômico, duplo, do Ocidente metafísico e causalista. Em termos de possibilidade funcional de intervenção e aplicação, o dual é o reino da eficiência, seja tecnológico-produtivista, seja ideológica.

O princípio
Para resgatar do esquecimento a questão da essência da identidade, o mesmo, é necessário pensá-lo enquanto princípio. Não esquecendo, porém, que o princípio, isto é, a identidade, é o a-ser-pensado, é o a-ser-questionado. E é enquanto princípio que a identidade se constitui sempre a diferença dos diferentes e a identidade dos idênticos. Não podemos confundir diferente com diferença nem idêntico com identidade. Quando digo que tenho um bem, isso ainda não diz que tenho o bem. Quando chego ao limite de um país e me defronto com outro país, tenho aí países diferentes, mas não a diferença. Quando me defronto com um tu, configuram-se dois diferentes, mas não a diferença. A diferença é o princípio dos diferentes, assim como a identidade é o princípio dos idênticos. Não se pode cair numa dicotomia. Muito menos o princípio pode ser visto como uma igualdade: A=A. Temos aí uniformidade estéril.
No entanto, já o Aristóteles pensador (não da tradição metafísica) tematizou com propriedade o princípio em sua essência. Assim o formula: “É impossível o mesmo pertencer e não dever pertencer, simultaneamente, ao mesmo segundo o mesmo” (IV 3, 1005 b, 19-20). No ensaio “A luz na arte grega”, Emmanuel Carneiro Leão (2010: 89), acentua que o princípio, como questão, não pode ser concebido como algo conceitual, que cabe numa definição. Partindo de Aristóteles, afirma que o princípio não é estático, é dinâmico. Tal dinâmica não é linear, é circular. E tal circulação não é finita, é infinita. E sendo infinita não é de exclusão, mas de inclusão. Só se pode, portanto, pensar, em profundidade, o princípio nos seus desempenhos de diferença e de identidade. O mesmo, a identidade, a diferença, não são delimitados pelo fundamento causal. Na linearidade do círculo há causalidade, a sequência do rito, mas quem vigora sempre, em cada momento, em eclosões inaugurais, é o mito. Mito não é símbolo de nada e muito menos explicação de fatos naturais ou psico-sociais. Mito é eclosão da linguagem em palavra. Nesse sentido, o tempo deixa de ser lido e compreendido apenas como causal, linear, cronológico. Não se nega essa dimensão do tempo. Diz-se somente que, de acordo com o princípio, a cronologia é co-essencial ao tempo poético-circular. Não há aí oposição nem complementaridade, há a dobra. Assim podemos compreender que os dias são o rito do tempo poético-circular do mito; assim como o vivente (bíos) é o rito da travessia da vida (zoé). Do mesmo modo, a fala é o rito da linguagem, a música é o rito do silêncio, a dança/gesto é o rito do repouso, a narração é o rito do mito, a pintura é o rito da luz. Luz, mito, repouso, silêncio, linguagem, vida, são a identidade dos idênticos, a diferença dos diferentes, no vigorar do princípio, do mesmo.

Tudo isso sempre fica para nós, parece, muito abstrato. Nunca podemos pegar, analisar, localizar, determinar a identidade, a diferença. Não será isso muito ideal e simbólico, abstrato e distante? Será que se pode dar um exemplo onde cada um de nós, que lê ou escuta, possa experiênciá-lo como algo próximo e imediato, em que estejamos envolvidos, algo que se torne para nós questão experiencial e, como questão, nos leve a pensar, não sobre, mas com?
O a-ser-pensado sempre se nos torna distante, embora seja o mais próximo, tão próximo que vigoramos nele, embora o julguemos sempre distante. Pensemos com um exemplo: O Amor.

O Amor
Para tornar mais claro este pensar que exige de cada um uma atitude poética, um agir pensando, um deixar-se tomar pelo pensar do mesmo, tomemos um exemplo que de uma maneira ou de outra envolve, motiva e afeta a todos: O amar. Achamos que o Amor acontece quando o amante ama a amada e, recíproca e complementarmente, como se fossem onda e partícula, a amada ama o amante. Nisso, pensamos, acontece o amar. Nesse amar recíproco se dá a mútua entrega. Notamos, porém, que nesta concepção subjetivo-representacional, a entrega parte tanto do eu como do tu. Partir de significa que ainda se move numa subjetividade recíproca e pelo poder da vontade de cada um. É um duplo complementar. Não acontece a dobra, não aconteceu o mesmo, não aconteceu o Amor: Eros. Quando este acontece? Aí, a conjunção temporal “quando” diz mais do que um mero elemento gramatical da oração, um simples conjuntar no discurso. Diz a vigência do tempo enquanto acontecer.

Deixando o Amor vigorar, eles – amante e amada - são tomados pelo amar, no vigorar do qual eles podem deixar acontecer o Amor. Este é a unidade que, vigorando em cada um, deixa acontecer a mútua entrega. O Amor vigorando constitui o próprio que a cada um foi doado. E pelo mesmo, o Amor acontecendo, é que eles se podem apropriar no misterioso enlace amoroso. Neste, no e pelo Amor, podem-se tornar propriedade um do outro, porque enquanto amantes, já se apropriaram do que lhes é próprio. O Amor vigorando é a identidade das diferenças nos diferentes, amante e amada, se realizando, se consumando. Amar é deixar-se tomar pelo mesmo, pelo elemento que doa o próprio de cada um e os constitui enquanto diferentes na vigência da diferença da identidade. No amar pelo Amor, não há anulação nem negação recíproca um do outro. O amor vigorando é que permite a cada um amar, entregar-se, para plenificar-se no que é. No amar nem o amante nem a amada doam ou se doam. Se entre-entregam ao Amor, ao mesmo, que lhes doa a unidade amorosa. Só o mesmo pode dar e constituir unidade, lógos. E o que há de mais misterioso do que a linguagem amorosa, onde muitas vezes a fala é excesso e não-necessária? É que na linguagem, a própria amorosidade, tudo já é fala e nada fala. E o que procuram o amante e a amada não é a unidade? Deixar-se tomar pela unidade é se abrir para ela na entrega amorosa. Se há uma coisa muito certa, é a de que o próprio do outro como o próprio do próprio nunca ninguém pode dar. Se já não se tiver, ninguém pode dá-lo. E também não é necessário. É que o próprio é o próprio constituir-nos enquanto somos. Somos doação do mesmo no ser. O que cada um é é seu próprio, é sua propriedade inalienável. Só podemos então realizá-lo ou não. E realizá-lo é chegar a ser o que já desde sempre somos, amando. É sempre uma aprendizagem amorosa. É um acontecer pelo qual tomamos posse do que já somos. É que nesse tomar posse não nos apossamos de nada que já não tenhamos, que já não sejamos. Por isso, disse Píndaro: “Chega a ser o que já és: aprendendo”, amando. Chegar a ser o que já se é é eclodir na plenitude do que somos, no amar. Só nos consumamos quando o amar se torna o Amor. Se formos tomados pelo Amor, onde o eu dá lugar ao eclodir do sou, sendo este o vigorar do Amor, podemos concordar com Santo Agostinho: “Ama e faz o que quiseres”. Isso é deixar-se tomar pelo simples, pelo princípio, pela identidade, pelo mesmo, pela linguagem, pelo Amor. Este é o Ocidente da dobra, onde se vai além e aquém do embate amoroso e complementar de sujeito e objeto ou de objeto e sujeito. Amar é o diuturno aprender a pensar, porque o Amor é o a-ser-pensado no e pelo incessante experienciar.


Bibliografia
ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1962, v. II.
OS PENSADORES ORIGINÁRIOS – Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Trad. Emmanuel Carneiro Leão (Anaximandro e Heráclito) e Sérgio Wrublewski (Parmênides). Petrópolis: Vozes, 1991.
--------------------------. Filosofia grega – uma introdução. Teresópolis-RJ: Daimon Editora, 2010.
ROSA, João Guimarães. O espelho. In: ----------. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a filosofia? Identidade e diferença. Trad. Ernildo Stein. Petrópolis: Vozes, 2006.

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