10 outubro 2010

O ver e a Paideia poética

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Nós dificilmente vemos o que se dá a ver. Vemos o que as teorias de representação e dos símbolos nos ensinam a ver, na medida em que nos deixamos tornar produtos culturais passivos. Hoje, as culturas vivem, em geral, da reprodução dos ritos, encantadas com os recursos técnicos de registro e repetição para consumo turístico.
O ser humano vive e experiencia o difícil “entre” de ver e perceber, ser e pensar (Parmênides, sentença III). Antes de vermos o que se dá a ver já nos ensinam o que se deve ver no como ver e viver de fora para dentro. Desaprender o que nos ensinam é a difícil tarefa de começar a aprender o que na realidade se dá a ver de imediato e nos prende e nos afeta.

Tomemos como ponto de partida o ver imediato, esse ver com que todos os seres humanos veem. A crença mais comum e, por isso mesmo, a mais enganadora, é de que no ver cada um vê aquilo que está ao alcance de seus olhos, na visão que constitui o seu horizonte, e vê a realidade em primeiro lugar. Vê, acha, o que todo mundo vê: a realidade. Não é verdade.

O que há com o ver? Aquilo que houve com Édipo. Mas nos inumeráveis seres humanos que veem, poucos, muito poucos, veem como Édipo viu. Por quê? Em verdade, não vemos a realidade. Para ver a realidade temos de nos perguntar: o que há com o ver? Qual o próprio do ver? De imediato, há a claridade dentro da qual o ver vê o que vê. E a claridade não é tão clara como aparentemente se vê e pensa. A claridade o que é? É uma, mas não a única faceta da luz. Junto com a claridade há a sombra e a escuridão. Isso diz que na luz e pela luz a realidade me aparece dissimulada, oblíqua e velada. São os olhos oblíquos e dissimulados de Capitu, segundo Machado em Dom Casmurro. Todas as grandes obras de arte nos legam um novo modo de olhar. O desafio para o leitor dessas obras é desaprender o que vê habitualmente e se deixar tomar pela inaugurabilidade desse novo olhar. Nisso a crítica não ajuda, só o diálogo de escuta. Ver inauguralmente é escutar a ressonância de tudo que se dá a ver acontecendo, inaugurando realidade. Isso é Poética, pois somos projetos de possibilidades poéticas. Todos, em todos os tempos.

Para quem vê, quando escurece, a realidade não se apaga. Sabe-se – um saber de ver - que há o que não se vê. E o tato e o ouvido, nesse caso, orientam-nos como se de alguma maneira víssemos sem ver. Portanto, o ver já se tornou um saber, algo habitual, algo em que nos organizamos e situamos como conhecimento, mundo. E esse saber vem de outra instância: da luz, certamente, mas enquanto linguagem. A luz se fazendo linguagem gera o saber. Realidade, ver, luz, saber, não é algo que só esteja fora, implica aquele que vê e o que não vê, embora se dê a ver. Tudo isso só é possível porque há o pensamento da linguagem pelo qual o ser humano não apenas vê, mas se mede e confronta com a realidade, vê e apreende a realidade, entrando assim no jogo da própria realização. Neste jogo, quem vê e a realidade que se vê, na medida da linguagem, enquanto pensamento, tudo reunido e ordenado, se configura no que passamos a denominar mundo (que contém e está para além da coesão e coerência das combinações lingüísticas da língua reduzida a um código. E está para além, porque não há como reduzir o vigorar do silêncio, em tudo que se diz, às combinações sintáticas do discurso). Um tal mundo é ver na claridade da luz. E esta se torna, no jogo de ver a origem da verdade da realidade (manifestação) e de quem no ver se mede e confronta consigo mesmo, com a realidade e com os outros, gerando-se o valor ético-poético no vigorar da luz, digo, torna-se pensamento da claridade da linguagem, mundo. Este é a claridade do pensamento e o pensamento é o pensamento que toma o ser humano e o confronta com a realidade e os outros. A esse confronto se chama mundo dos valores ético-poéticos. Krisis, juízo, sentença, proposição. O jogo vigorando na luz diz a harmonia de contrários em que o uni-verso não cessa de vibrar. Toda língua vibra nas falas da musicalidade. O sentido dos sons fonéticos provêm da origem musical de toda língua da linguagem da essência do uni-verso. Este, originariamente, são feixes harmônicos de vibrações. Quem tiver olhos para ver, veja. Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça. Mas quem tiver fala para falar, silencie. Só assim acontece o ver originário, o conhecer originário.

O que há com o ver? O que no ver se dá e não vemos, mas sem o qual nada podemos ver. Quando o ver se torna escuridão então temos a oportunidade de ver o que não vemos. Que a realidade é muito mais vibração musical de pensamento da linguagem pela qual o mundo se dá em sentido. Ordenando todas as sensações num mundo de valores há o sentido que é a luz operando no ver pensado pelo operar da linguagem, daí que o ver vê sempre a realidade, a partir das vibrações harmônicas da luz. Por isso, o ser humano em tudo que vê só vê o que o canto o constitui enquanto linguagem de sentido. A luz sendo princípio originário, divino, perpassa o que se lhe oferece como realidade, physis, enquanto matriz e mãe de possibilidades de realização. É isso que se dá com o ver, é isso que se dá com o jogo do ser humano no vigorar do pensamento da linguagem. O ser humano sempre vê, mas não a partir do que ele julga ser o exercício do ver dos olhos, vê a partir do que lhe permite ver e lhe permite que a realidade se dê a ver. Não vemos a realidade. Nossos olhos sempre veem e se veem já dentro de uma realidade iluminada pela luz que gera sentido e valores ético-poéticos, no operar da linguagem do pensamento. Isso é o que há com o ver, uma participação vital enquanto a vida se dá enquanto sentido e verdade. Isso é o âmbito do desvelamento da vida, em que o ser humano, tomado pelo pensamento da linguagem, se realiza como ser humano. Nada disto é subjetivo ou objetivo. Aqui a certeza racional construtora e crítica precisa da abertura do que se dá a ver, até para poder transformar tal ver em certeza racional ou não, em saber crítico-racional ou não. Dis-cernir é muito mais, originariamente, o jogo de se dar a ver e de velar-se da realidade. Só por já desde sempre estarmos lançados neste jogo é que podemos jogar o jogo do dissimular-se da realidade, diante do qual nos sentimos e surpreendemos pequenos e limitados. O jogo sem limites não é jogo. O jogo só de limites também não é jogo. Só há jogo onde há o entre de dis-cernir, do desvelar-se e velar-se da realidade. O alcance da razão não é a certeza, é muito mais o perceber-se na dissimulação. Nisto consiste o poder de discernir da razão, ou seja, o poder de não poder nada afirmar ou julgar de-finitivo. Esse, quisesse ou não quisesse Édipo, queiramos ou não queiramos, é o jogo de ver e não ver o que se dá a ver, porque tanto mais se dá a ver quanto mais se dissimula, se vela.

Ver, para o ser humano, não é apenas um ato de viver, é o duro e constante empenho e desempenho pela realização do pensar o viver existindo. Este se torna a dura questão de fazer do existir do viver um aprender e ensinar o que já é, mas ainda não tem e se empenha para vir a ter. Pois somos sempre um empenho de viver. Isso quer dizer que somos sempre um empenho de ver. E é no vigorar da linguagem, que reúne tudo, que se vê nos empenhos de viver a realidade chegando a ser mundo. Mundo é o sentido possível da realidade possível se dando a ver, a conhecer, no possível da linguagem e na linguagem do possível. O possível é o vigorar incessante da luz, da realidade se manifestando em sua verdade. Ver a partir da realidade e não de quem vê por olhar é apreendê-la em sua verdade, ou seja, como conhecer. Ver é conhecer originariamente. Conhecer é com-nascer com o manifestar-se da realidade enquanto luz, enquanto verdade. Mas um tal ver não é o da razão que reduz a realidade à luz racional. Sem a luz originária não há luz racional, não há epistemologia. Todo ver originário é ontológico. É poético. Somos porque vemos e vemos porque somos. Por isso não basta viver, é necessário no e pelo ver encontrar em todos os nossos empenhos de viver o que nos move a fazer do viver um ver. É isto o que há, desde que começamos a viver, com o ver. É nesse sentido que nosso destino nos torna edipianos. Ver para se ver a partir do não-ver. Isso é sua sabedoria, nossa sabedoria procurada. Todos, edipianamente, estamos condenados a ver, a conhecer, o que não vemos em tudo que se dá a ver, a conhecer. Nisso e só nisso consiste nosso destino. E é preciso mais? Cumprir nosso destino é o incessante e originário aprender a pensar. Não é uma decisão nossa, é nosso destino. É esta a Paidéia poética, onde aprender e ensinar é chegar a ser o que já desde sempre se é, aprendendo. Ela vigora na difícil travessia de desaprender para aprender e aprender para desaprender. Toda Paideia poética é um mover-se no ver originário.

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