Quando estamos diante de uma obra poética e vamos começar a ler, diversas podem ser as atitudes. Mas, basicamente, podemos apontar três, fundamentadas em dois princípios que podem ser opostos e formar um duplo ou acontecerem numa dobra. A existência de cada um não é um duplo. É uma dobra. E isso depende do que se compreende tanto por princípio (arché, em grego) quanto por finalidade (telos, em grego). Há duas compreensões canônicas dessas palavras fundadoras. E, de fato, aí se decidem os dois Ocidentes.
Os dois princípios:
A – Causalidade e finalidade
O primeiro princípio, o da separação entre leitura e vida, baseia-se na causalidade. Tanto a vida quanto a obra são concebidas como sistemas, onde cada ser humano ou cada parte da obra exerce uma função. Por isso, nessa leitura, predomina sempre a finalidade. Tudo é feito tendo sempre por objetivo um fim, que pode variar muito, mas onde o leitor, a obra e a realidade ficam submetidos a essas finalidades. Todas as ações são determinadas pela análise. Esta pressupõe um sistema, seja social, seja psicológico, seja histórico, seja orgânico. Desmontar o sistema ou o organismo, quando se pensa em obra, em suas partes ou funções é o modo de ler para conhecer tudo, seja o ser humano, seja a arte, seja a realidade. Com isso visa-se tanto o conhecimento objetivo quanto o estético. Há uma separação entre o que é (ontologia) e o que se conhece (epistemologia). Toda a análise é determinada pela racionalidade epistemológica. Mesmo a fruição estética é dirigida por processos racionais. Eis as leituras dentro desse princípio:
1ª. Para melhor compreender esta primeira leitura, podemos perguntar: Qual a finalidade (telos)? Quando se compra uma obra poética e se inicia a leitura, esta já está influenciada pelo motivo que levou à compra ou ao seu empréstimo numa biblioteca ou ainda ao empréstimo por um amigo/a. Esses motivos podem variar. O nome do autor, a leitura de uma outra obra desse autor de que se gostou muito, o interesse por determinado assunto ou temática, o sucesso que faz no mundo ou no país etc. etc. O que, em geral, menos contribui é o interesse que a própria obra deve despertar pelo que ela tem a dizer. Esse é um motivo interno. A leitura é determinada por motivos estritamente subjetivos e externos ao valor da obra. Em geral, o leitor procura idéias que venham confirmar as suas ou satisfazer sua curiosidade. São, em geral, leituras superficiais e externas, tendo interesses passageiros e circunstanciais. Como se vê, aqui finalidade (telos) se reduz a algo que nos vem de fora, embora pareça satisfazer algo interno que, em verdade, é fundado no “eu” e seu narcisismo representacional e mascarado. É a subjetividade como fundamento estético.
2ª. Também aqui podemos perguntar logo: Qual é a finalidade (telos)? Em termos de ensino, ou seja, por motivos escolares, que deveriam servir à educação, a leitura da obra já está direcionada ou pelo nome do autor e sua importância para determinado períodos literário ou pelo seu estilo. Outro motivo deriva das posições críticas sobre a obra e sobre a própria compreensão do que seja uma obra poético/literária. A mais comum é determinada pela época e suas circunstâncias históricas e sociais, ou seja, há um motivo histórico e social. Pensa-se, infundadamente, que a obra é um produto da sua época e de determinadas estratificações sociais. Os personagens serão representação dessas relações sociais com seus valores e posições ideológicas. Em geral, tais posições críticas tem por finalidade ou louvar o autor por sua crítica social ou mostrar a dependência da obra e do autor desses preconceitos sociais, históricos, culturais e econômicos. Se bem observarmos, a obra é um pretexto para aplicação de conhecimentos advindos de outras disciplinas, que podem ser: história, sociologia, psicologia, política, cultura, antropologia, linguística etc. Claro que aí uma pergunta importante se coloca: Por que a obra deve ficar dependente desses conhecimentos externos à própria obra. É evidente que toda obra poético/literária é uma fonte preciosa de dados para o desenvolvimento dessas disciplinas. Isso não está sendo negado. O que se questiona é a total dependência da obra dessas disciplinas. Não terá a obra uma autonomia e uma realidade própria? Todo o seu poder criativo consiste em reproduzir algo que lhe é circunstancial? É isso criação? Esta limita-se a reproduzir e representar e a pensar o já penado e repensado? Em se tratando de poesia, acha-se que tudo se resume aos sentimentos subjetivos do poeta ou do leitor. É isso verdade? Claro que não.
A compreensão da finalidade (telos) continua a mesma, apenas voltada mais para o exterior enquanto ação objetiva originada na razão. Portanto, só aparentemente se opõe à primeira, pois continua baseada no sujeito racional, o que se denominou um “eu” universal, causal, representacional, funcional. E a palavra grega telos significa isso? Pode significar isso, mas não é seu sentido essencial. É derivado e até secundário, por isso forma uma dimensão da dobra. A finalidade aí está sempre dependente do que funda tudo isso, ou seja, a finalidade essencial e não funcional nem representacional. Esta finalidade nunca funda sentido, só significados dentro do sistema de oposições complementares. Mas estas não podem existir sem o fundar do sentido em que consiste o próprio telos e o próprio do telos. Como vamos ver, telos é sentido poético-fundador de mundo.
B – Não-causalidade e não-finalidade
Nem tudo na vida e na realidade está sob o princípio da causalidade. Pelo contrário, a existência e a realidade em sua essência são não-causais. E quando há não-causalidade não há, evidentemente, finalidade. Toda finalidade é determinada por uma relação de agente e paciente, de causa e efeito, onde se espera sempre algo como resultado. Este conhecimento causal se dá sempre dentro de sistemas e estes dependem de teorias e conceitos. Como a realidade e a existência são essencialmente dinâmicas tais teorias são obrigadas, com o tempo e no tempo, a mudar, ou seja, embora os conceitos sejam definidos por conhecimentos objetivos, universais e permanentes, tal objetividade, universalidade e permanência ou duração estão diretamente ligadas às teorias. A realidade é mais, muito mais, do que as teorias. E isso acontece porque a realidade não se restringe ao princípio causal e final. Daí surge uma pergunta: Se a realidade não se conhece só por meio de conceitos, em que outro modo de conhecer a realidade se dá, acontece? Tanto a realidade quanto a existência é constituída por questões. Estas têm algo de enigmático e da evidência. Elas são prévias a qualquer teoria e seus conceitos. Por isso mesmo não dependem de finalidades. Elas são válidas e existem ao simplesmente existirem, ao se darem como a própria dinâmica da realidade. O Tempo, a Vida, a Morte, a Existência, o Amor, a Alegria, a Felicidade, a Finitude, a Solidão etc. etc. independem de conceitos e finalidades. E como tais são a própria realidade se dando continuamente em sua dinâmica de acontecer. Por isso mesmo, jamais podem ser dependentes de sistemas, sejam eles quais forem. E se não dependem de sistemas não são causais nem funcionais nem são determinadas pelas finalidades. A vida não tem outra finalidade senão ela mesma. O tempo também. A felicidade também. O amor também etc. Vejamos bem que tais questões não dependem de nenhuma subjetividade nem de nenhuma época ou cultura. Elas são prévias, atuais e futuras. Viver consiste em consumar a vida. Amar consiste em consumar o amor etc. É então que as questões se tornam questões. Como consumar? Como experienciar no viver e existir as questões?
O sentido ético-poético de telos
Antes de responder às perguntas anteriores, vejamos como elas se deixam fundar no princípio (arché e telos). Princípio é a energia fundadora que não deixa de vigorar em todo acontecer da realidade em seu eclodir enquanto finalidade, telos. Mas o que aqui quer dizer finalidade? Jamais significa objetivo, pois este sempre resulta de um agir causal. É uma finalidade sem causa. E o que é isto? Simples: a finalidade que consiste em levar o que já desde sempre é à sua plenitude. Então telos é finalidade no sentido de consumar, levar à plena realização do que se é, e não a uma finalidade determinada pelas funções bem realizadas dentro de um sistema causal e representacional. E o que é mais importante e próprio para cada um senão consumar o que já desde sempre é e que no desdobrar da dobra consiste em chegar a ter o que já se é? Ora, este desdobrar é o que se chama em grego e é seu sentido originário, telos. Portanto, estamos diante de uma finalidade não-causal nem simbólica nem representacional, porque não depende de função dentro de qualquer que seja o sistema. É que este telos, este consumar diz o vigorar da questão em cada sendo, onde se dá e acontece a dobra, ou seja, o que é se consuma no como é. Temos aqui o princípio em sua circularidade poética, e não linear, não estática, mas dinâmica, não-finita, mas infinita, não de exclusão, mas de inclusão. Isso é a dobra de arché e telos. Deste modo a leitura das obras de arte se dão sempre num diá-logo, onde se dá a dobra de língua e linguagem, de rito e mito, de vivente e vida.
É então que acontece o agir não-causal nem final. É o agir que conduz à eclosão das obras de arte. Todas as obras de arte são experienciações das questões, esses enigmas que nos motivam para viver e existir. Desse modo, o experienciar a existência é fazer desta uma obra de arte. E como se pode fazer da existência uma obra de arte? Experienciando as obras de arte, aprendendo com a arte a ser o que desde sempre já somos. Aprender é sempre tomar posse do que somos e ainda não temos mas existimos para chegar a ter. E como acontece tal experienciação em relação às obras de arte e à arte? Dialogando com as obras de arte. Ler uma obra de arte é sempre na leitura e pela leitura abrir-se para uma escuta e nesta e com esta estabelecer um diálogo. Este não é uma decisão subjetiva. As obras de arte só falam se para com elas nos abrimos e assim deixarmos o diálogo acontecer. Essa é a atitude da leitura: deixar a obra falar. Ler do ponto de vista das obras poéticas é deixar a obra falar. Ler as obras poéticas é deixá-las falar. Elas solicitam de nós esse ato amoroso. Seja amoroso, amigo leitor, escute, dialogue, deixe a obra falar.
A atitude mais importante e decisiva é valorizar a obra pelo que ela é. É deixar a obra falar sem qualquer preconceito prévio. E como é que a obra fala? A obra fala quando começamos a dialogar com ela. Todo diálogo pressupõe um respeito mútuo pela abertura ao que outro tem a dizer. Isso pressupõe algo fundamental na nossa vida: a escuta. É necessário que valorizemos a escuta, sem a qual não nos abrimos para as questões que constituem e envolvem nossa vida. Outro modo de deixar a obra falar é procurarmos nela as questões de que ela trata e que, de algum modo, também são sempre nossas questões. Para essa leitura onde a obra fala, temos de partir de algo muito simples: Toda obra se faz, se cria numa tensão profunda entre duas instâncias decisivas: a – Entre poema (obra) e poesia; b- entre língua e linguagem; entre vivente e Vida. Esse entre, a energia amorosa e dialogante atuando, parte de uma constatação muito evidente: não há separação nessas três instâncias. Elas constituem uma dobra. Nossa existência consiste no desdobrar (historicidade) dessa dobra, desse entre. Esse existir em seu sentido é a energia irradiante que é a Vida se fazendo claridade, advindo à verdade na manifestação do que somos. Vida, existência e luz constituem aquilo que somos e temos de conquistar para chegar a ser. Cada vivente é diferente do outro. Mas não há vivente sem estar em tensão com a Vida (a língua grega tinha duas palavras bem claras para marcar essa diferença: bios era o vivente, zoé era a Vida). Pois bem, o mais importante para o leitor é deixar-se tomar na obra pelas questões que a Vida põe, depõe, dispõe e propõe. É aí que surge o diálogo, desde que haja uma escuta. Quando escutamos as obras, isto é, a poesia, a linguagem, a Vida que pulsa nas obras, então estamos deixando as obras falarem. Esse, sem dúvida nenhuma, deve ser o principal motivo de toda leitura de obras poético/literárias. E lemos não por causa da escola nem por causa delas obras, mas de nós mesmos, pois somos os maiores interessados. Simples. São interesses onde se decide o nosso motivo de existir. Inter-essar-se é deixar-se tomar pelo ser na dobra (inter/entre), pois mais importante do que viver simplesmente é dar à existência um motivo de viver.
Toda leitura pressupõe um contato do leitor com a obra. E é então que uma condição essencial se torna necessária para deixar a obra falar: a escuta. Parece algo muito óbvio e simples, mas não é. Talvez um exemplo pudesse ser dado para mostrar esta dificuldade em deixar a escuta nos tomar para que a obra fale e a escutemos. Quando olhamos, nosso olhar se move continuamente atraído pelas muitas coisas e objetos e até pelas pessoas. É algo absolutamente natural. Porém, devemos notar que tudo aparece porque o vigor irradiante da luz as toma e lhes dá a condição de serem olhadas e vistas. Sem luz não há como nosso olhar atingir essa riqueza mutável e constante da realidade. Embora a luz seja o princípio de eclosão de tudo naquilo que é, ela mesma nos fica em segundo plano. Nunca lhe damos a atenção que deve ter. Pois o mais comum em nossa vida é aquilo que nos envolve dentro do sistema de relações chamar mais nossa atenção. Vemos tudo e tudo só se dá a ver com a presença e vigorar da luz. E, no entanto, de tudo que vemos e não paramos de olhar não vemos a luz que a tudo envolve e lhe a visibilidade e nem vemos os olhos com que vemos. Agora podemos dizer o que é a escuta. Seria o mesmo que no olhar tudo ficasse em segundo plano e só tivéssemos olhos para a luz. Ter olhos só para a luz é o mesmo que nos deixarmos tomar pelo silêncio em meio às múltiplas vozes. Assim como não há coisas sem luz também não há vozes sem silêncio. Praticar a difícil arte da escuta é isso: em tudo que vemos só olhar e ver a luz e, em meio a tantas vozes, só escutar o silêncio, para que em sua plenitude a voz da obra nos fale. Não é fácil e exige nossa concentração e ascese disciplinada. Mas dela uma riqueza incalculável nos advém. Se é o eu que escuta, a fala da obra fala ao que somos. O que somos tomado pela voz da obra opera algo novo, diferente: a iluminação não do eu, mas do sou de cada um. Eu e sou formam uma dobra que não cessa de acontecer. E o que uma tal luz ilumina? Sem dúvida nenhuma, o que nos é próprio. Por isso, a voz das obras poéticas só ilumina e nos envolve com suas questões porque elas se tornam as nossas questões, irrompendo em novas iluminações. Iluminar algo é manifestá-lo na sua verdade. Ler e deixar as obras falar, enfim, é eclodir na verdade do que somos.
Vale a pena escutar para deixar as obras falarem, pois são as vozes das questões que são nossas. As questões são sempre próprias, pois não há questões como idéias ou conceitos gerais. Sobre questões não se pode falar, pois caso se fale sobre, já não são as falas das questões. As questões somos nós mesmos sendo.
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