16 janeiro 2012

Narrativa e mito, em O senhor do lado esquerdo - A casa das trocas





Manuel Antônio de Castro

O romance de Alberto Mussa ainda traz muitas outras questões, de que não tratei no Parecer. Convido os leitores para que leiam o romance e possamos neste espaço estabelecer um diálogo poético. Penso que devemos promover um novo educar para o humano, a que denomino: Educar poético-originário. Aguardo as leituras dos leitores e seus comentários.

A Biblioteca Nacional distribui prêmios anuais em diversas categorias ou gêneros. Um dos prêmios é o Machado de Assis, para romance. Neste ano de 2011, fiz parte do Júri que deveria escolher o melhor romance. Cada membro do Júri deveria escrever um parecer justificando a escolha. Premiamos, por unanimidade, o romance de Alberto Mussa O senhor do lado esquerdo – a Casa das trocas. Rio de Janeiro: Record, 2011. É esse meu Parecer que ofereço aos leitores deste Blog.

Ensino da literatura: uma dialética poético-originária

No ensino da literatura, o desejável seria valorizar os alunos estabelecendo com eles um diálogo. Devemos ler as obras e dialogar a partir das provocações que elas desencadeiam, ao mesmo tempo que lemos e dialogamos com os diálogos dos outros, pois não há diálogo sem escuta, o tempo da fala do silêncio, origem de todas as falas.
Isso é ser social e educar para a sociabilidade enquanto exercício do próprio no e como diálogo. Esta é a dialética poético-originária. O ficar falando sobre as obras ou o emitir juízos classificatórios em nada serve para a obra, para o autor, se estiver vivo, e para o leitor. A época das informações sobre e dos juízos críticos avaliadores e classificatórios tem que dar lugar ao pensamento e ao diálogo. Só assim as obras serão o que elas são: um operar nas e pelas questões que movem e promovem o existir do leitor. Mais importante, porém, nessa trajetória de um educar poético-originário, se mostra a arte e sua força de transformação e manifestação da realidade.
Quando falamos das questões da narrativa, queremos com isso indagar a referência que há entre a experiência poética, a experiência humana e a experiência real de mundo. São três dimensões indissociáveis que sempre se fazem presentes em todas as épocas, porque estas são, em última instância, o tempo como e no diálogo, diálogo de escuta do destinar-se do ser. E por que isso é tão importante? Porque a Poética é a experiência criadora de si mesmo, isto é, de todo e qualquer ser humano, na experienciação de nossa condição humana no tempo e como tempo, isto é, em nossa finitude e não-finitude. Tal experienciação se dá sempre no horizonte de uma conjuntura histórica. Não que esta seja sua essência, mas no sentido de que é sempre numa conjuntura que há a apropriação histórica do próprio de cada um, daquilo que cada um é. Portanto, toda narrativa poética é sempre movida nas questões, porque estas remetem para a experienciação histórica do próprio, para além e aquém do que a simples conjuntura e contexto historiográficos podem oferecer. Importantes estes, sim, pois somos uma dobra. Decisivos, não. Deve haver sempre um dispor-se para o compor da realização histórico-social do humano na diferença de cada próprio. Porém, esse compor só é possível porque já faz parte do pôr e depor do ser em seu dispor-se e propor-se como verdade e linguagem, origem das épocas e de uma dialética poética e originária.
Toda narrativa, portanto, opera em três níveis inseparáveis: o poético, o humano e a experienciação da realidade em seu doar-se enquanto narrar histórico. Isso é o acontecer poético da obra de arte, um acontecer da realidade em que tanto mais se põe quanto mais se depõe, numa dialética de dar-se e retrair-se.

Meu parecer

Reflexão sobre os critérios de seleção.

Na sociedade em que estamos vivendo atualmente, ou seja, a era da Globalização, com o predomínio da realidade e inclusão digital, os autores se veem diante de múltiplas possibilidades de elaboração e realização de seus romances ou de qualquer outra obra de arte. Já passou o tempo em que havia uma preocupação preponderante com os aspectos ideológicos, formais e retóricos, pois esses eram os critérios determinantes da qualidade de uma obra literária ao longo da Modernidade. Hoje os critérios se tornaram mais amplos e outras dimensões devem ser levadas em consideração. Crítica, crítico e critérios precisam reencontrar sua dimensão originária.
A sociedade e economia do conhecimento têm uma contraface bastante decisiva para quem se propõe a elaborar obras romanescas: a sociedade da comunicação e suas infovias. E o próprio conceito de autoria se amplia e cada vez mais é questionado, gerando equívocos quanto ao fazer obra de arte. Ninguém faz obra de arte. E ninguém faz a obra de arte porque não é dado ao ser humano criar sentido, só significados. O sentido é da essência da linguagem, o significado é do operar das línguas. A obra já é. Ser diz agora poder eclodir como sentido. Cabe ao autor/a manifestá-lo. É que a physis (natureza) delega ao ser humano realizar aquilo que ela mesma não realiza, mas traz nela como possibilidade de realização. (Para melhor compreensão desta faceta, peço ao leitor que cf. o ensaio “Physis e humano: a arte”, no meu livro Arte: o humano e o destino. Editora Tempo Brasileiro, 2011).
No duplo moderno, ao autor corresponde em igual poder o leitor. Por isso, aparentemente, em relação à obra de arte, o elemento decisivo se tornou o público leitor. Isso hoje se exacerbou porque na Modernidade a produção romanesca sempre esteve atrelada ao consumo e isso implicou sempre agradar aos leitores e se tornar um fator de universalização da representação. A Modernidade é epistêmica porque vigora na representação da realidade, em seus mais diferentes níveis: físicos, sociais, históricos, psicológicos, científicos, artísticos, filosóficos.
Mas essa nunca foi a preocupação essencial quando da elaboração das verdadeiras obras de arte. E quando se fala em público leitor o elemento decisivo se torna a linguagem. Mas é aí que se deve levar em consideração, para o julgamento de uma obra literária, o que se considera linguagem e, junto com esta, a que público leitor nos referimos. Isto é, para cada público corresponde o uso de um determinado vocabulário preponderante. Mas isso é do âmbito da língua não da linguagem, em sua essência. Atender a esse pressuposto prévio não seria desvirtuar o próprio de uma obra literária? A essência da linguagem não é a representação, o que quer dizer que não se identifica com a epistemologia. A ciência da linguagem nunca fala a linguagem da essência. Onde há essência não há ciência, pois esta nunca tematiza o que é, somente o como é e o como se conhece. E é então que se dá a tensão entre obra literária e público leitor. A cada faceta corresponde um critério. E hoje esses critérios estão sendo revistos e muitas vezes criticados. Porém, tais críticas, na maioria das vezes, se fundamentam em equívocos. E por isso mesmo a própria noção de crítica está sendo posta em questão.
Em si, não há e nunca houve uma incompatibilidade entre conjuntura social e obra poético-literária. Essa postura ideológica foi dependente de uma determinada corrente crítica, hoje cada vez mais defasada diante do novo paradigma da ciência desencadeado pela Mecânica quântica e de outros estudos e descobertas, ocasionando a criação de novas correntes críticas. Também é falsa a oposição entre elementos extrínsecos e elementos intrínsecos, entre engajamento e estética ou arte pela arte. O poético não é nem será jamais uma síntese, porque ele é o próprio e incessante acontecer poético da realidade. Onde há acontecer é impossível haver síntese. A falta desta jamais quer dizer relativismo crítico. Há, sim, uma tensão poético-circular entre o singular e o universal. Isso até a ciência do novo paradigma já admite, porque ele leva a uma postura nova diante do conhecimento: da universalidade conceitual se parte para a complexidade do conhecimento. É nesse horizonte que se move a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade. Epistemológica esta. Ontológica aquela.
Esta questão já foi abordada pelo primeiro pensador da obra literária do Ocidente, Aristóteles, quando examina os elementos a que toda obra de arte é devida (aitia, em grego). E o elemento decisivo é o que ele considerou o fim da obra (telos, em grego). Será este fim que determinará o uso apropriado da matéria de que é feita a obra, ou seja, que não é, embora seja denominada impropriamente, a linguagem. O mármore de uma futura estátua ainda não é linguagem. Matéria é princípio universal de criação e o seu sentido é dado sempre pela linguagem. São as obras de arte que manifestam o sentido da linguagem nas diferentes matérias das diferentes artes. Matéria e linguagem são os princípios de todas as manifestações artísticas. As matérias só aparentemente mudam de acordo com as artes, assim como também só aparentemente mudam as diferentes línguas das obras poéticas narrativas. Não podemos confundir matéria com algo entitativo. Matéria é princípio de criação. No caso das obras literárias, sem linguagem não há línguas. Esse é o motivo pelo qual todas elas podem ser traduzidas. As matérias, desse modo, podem variar do mesmo modo que as línguas das obras literárias variam. É claro que não há língua sem a linguagem, mas esta é mais do que as línguas, do que os códigos, o modo como a ciência vê as línguas. Se a linguagem não está na matéria, ela se faz presente na figura que a obra toma ou como os gregos a denominaram: morphe, traduzida para o latim como forma. Forma é o limite imposto à matéria. Tudo que é tem forma, mas nem tudo que é é obra de arte. A forma de tudo que é e está sendo se mostra como forma porque já apareceu no sentido da linguagem que possibilita vê-la como a vemos.
Muitos são os níveis de uso de uma língua. E qual o mais apropriado para a narrativa poético-literária? Com essa pergunta estamos nos referindo à matéria vertente de que a obra narrativa se utiliza e à forma que ela deve receber na sua manifestação pela e na palavra originária. É a linguagem que doa o sentido à matéria, sem o qual não há obra de arte. Todo sentido é sentido de ser. Jamais podemos confundir sentido com significado. Brevemente, poderíamos denominar o sentido da linguagem a verdade em que a realidade e o ser se manifestam. Significado é o sentido ligado às relações semânticas estruturais e conjunturais, confinadas num código, num sistema. Talvez não nos demos conta, porém, todo sistema e todos os seres humanos, em todos os tempos, ordenam sua vida por uma verdade, de tal maneira que realidade e verdade são, muitas vezes, confundidos. Daí se afirmar frequentemente que só a verdade liberta. É nesse sentido que uma das questões mais presentes nas narrativas é a questão da verdade, que se torna a questão de toda ficção. Aliás, falar de ficção já implica falar de verdade e, portanto, da existência também de uma não-verdade. Mas esta jamais seria a não-ficção. Tudo isto nos remete para a referência entre ser e transcendentais: a verdade, o bem, a beleza, a unidade. O próprio do transcendental é ser conversível com o ser. Infelizmente, a epistemologia nunca os leva em conta. Essa ignorância dos críticos e da crítica moderna é lamentável.
Em si, toda a vida, a vida de qualquer pessoa, comunidade, estamento, dentre outras possibilidades de a vida irromper, se torna a matéria da narrativa. Vida pode-se tomar em muitas dimensões, mas ela se torna matéria, do ponto de vista do agir e posicionar-se humano, quando ela se torna narrativa de vida com tudo o que ela implica. Mas devemos compreender por narrativa tudo o que advém à fala de uma determinada língua. Toda fala, portanto, é narrativa, se entendermos narrativa em seu sentido originário: advir ao conhecer. Não podemos, de modo algum, reduzir a narrativa a um gênero. Essa classificação encobre a essência da vida enquanto narrativa. Só o ser humano se manifesta em narrativas, porque só ele fala. Porém, as mais diferentes culturas se fundam em mitos. E todo mito implica sempre um rito. Os mitos enquanto ritos podem se tornar matéria narrativa, mas os mitos no que eles são como mitos, jamais podem se tornar matéria narrativa, porque já estamos aí diante, não mais das diferentes línguas, mas da linguagem, lugar do sentido do ser humano e da realidade, em seu acontecer poético. Porém, não há separação explícita entre mito e rito. Acontece que o rito pode perder a densidade mítica e tornar-se narrativa funcional, vazia, onde os gestos, palavras, cantos perdem o operar poético, fundador do sentido que o mito implica. Os ritos se reduzem à representação dos mitos, não se fazendo mais presente a memória fundadora. O mito enquanto rito apenas pode se tornar matéria narrativa. Cabe às obras poéticas reinstalar o poder e agir do mítico. Mas este só é possível quando a língua se dimensiona pelo sentido da linguagem. Neste, nem a linguagem nem a língua se tornam a matéria da narrativa. Linguagem e língua formam uma dobra. Elas ocupam seu lugar próprio quando se coloca a questão do fim. Entendemos por fim o sentido do agir do pensar. Portanto, o decisivo na narrativa poética passa a ser sempre o fim que a narrativa manifesta. É dentro do fim que se coloca a questão do poético-literário de cada obra. Isso porque o fim se torna o lugar de apropriação do que o mito é, porque é ele que dá unidade à obra como obra de arte e não como qualquer artefato narrativo, como, por exemplo, uma reportagem circunstancial. É aí que se distingue obra de arte e instrumento, objeto, utensílio. A palavra portuguesa fim traduz a palavra grega telos. Porém, este é ambíguo: diz tanto consumação, completude, quanto finalidade. A completude tem o fim em si mesma, pois indica a consumação do que é, já a finalidade realiza uma função dentro de um sistema, de onde lhe advém o significado. Nesse sentido, o fim sempre articula duas dimensões essenciais: a qualidade narrativa e as questões levantadas e tratadas. Essas questões podem dizer respeito a diversas instâncias, mas sua densidade consiste em se articular em torno dos transcendentais. É nesse horizonte que aparece o que a distingue: o sentido ético-poético. Neste, fim jamais pode ser confundido com finalidade. Toda finalidade é causal e funcional, isto é, está em função de uma relação entitativa, ou seja, das relações dos componentes dos sistemas e do significado do sistema como um todo. Porém, o fim é sem por quê. Ele é consumação do que é. Ele é plenitude de sentido.
Foi dentro desse horizonte de critérios, instâncias e questões que selecionei o romance de Alberto Mussa.

Primeiro lugar:

O senhor do lado esquerdo – a Casa das trocas,
de Alberto Mussa.

O escritor optou por uma narrativa consagrada pelo grande público, ou seja, o denominado romance policial. Toda esta narrativa se estrutura em torno de um crime. E como a pessoa assassinada, neste romance, ocupava um cargo político importante no governo, muitos podem ser os interesses em jogo, isto é, os motivos que levaram a tal assassinato. Este é o fundo em que se articula a linha narrativa. Sem dúvida nenhuma, ao imaginar um tal crime como tema, já cativa o leitor desde o início e mantém seu interesse até o final, porque, evidente, o crime só no final terá sua solução. Esse seria um enredo simples e já milhares de vezes repetido. Nessa paranoia causal, já se quis reduzir Edipo Rei a um romance policial (seria cômico, se não fosse trágico, pois os espectadores gregos já conheciam e muito bem o final que o mito propunha, mas justamente esse final é que era problemático, isto é, se tornava a questão a ser pensada). Então a questão se torna: O que este romance traz de novo?
Um apelo muito usado nesse tipo de romance remete para uma das questões que desde sempre perpassou toda obra de arte: a sua relação com a dita realidade. Por diversos motivos, oriundos do positivismo, que grassou no século XIX, criou-se uma dicotomia entre realidade e ficção ou, talvez, numa versão mais antiga, entre mito e história. O romance policial tem essa faceta de que sempre narra crimes que aconteceram, que não são meros frutos da imaginação. Também essa faceta se faz presente neste romance. Em verdade, trata-se da antiqüíssima, mas sempre presente questão da mímese, tão mal compreendida. Não seria, portanto, por esse motivo narrativo ou enredo de fundo policial que se destacaria o presente romance. Esse critério atrai o leitor, mas não se torna essencial para a realização da obra poético-literária.
Quanto às instâncias, o ter escolhido alguém de destaque na sociedade e no meio político motiva o leitor, mas não se torna o decisivo. E surge aí a primeira qualidade do romance. Diferentes instâncias sociais são chamadas para compor o tecido narrativo. Podemos entender por tecido a matéria da narrativa. Na realidade, é toda uma rede social que é envolvida. E isso tem um motivo significativo. O romancista parte de uma tese que ele procura comprovar reiteradamente ao longo da narrativa: “... a tese defendida neste livro – a de que a história das cidades é a história de seus crimes...”. Em vista disso, múltiplos crimes são historiados. História e mito, no romance, se mesclam continuamente. Sempre enleados nas relações eróticas. Por isso, o romance tem como referência a conhecida “Casa das trocas”. Na verdade é um prostíbulo de luxo, destinado aos segmentos dominantes e de alto poder aquisitivo ou que ocupam importantes posições políticas. Porém, o que vai ser destacado, e de algum modo estudado ou tematizado, são relações sexuais fora do comum.
Em nenhum momento há uma centralização em qualquer relação amorosa. Tudo gira em torno do sexo. Estamos, portanto, neste romance, longe da linha de grandes romances que se guiavam em torno das relações afetivas entre casais ou relações triangulares, onde o ciúme e traição se tornam um eixo decisivo. Nem se trata do fundo que motivou as grandes obras romanescas da Modernidade: uma descida ao universo interior e complexo das relações humanas, onde sempre predominou um certo sentido de exploração dessas dimensões humanas que acabavam se tornando motivo e oportunidade de aprendizagem. São os famosos Romances de formação. No romance também é desenvolvido pelo doutor que clinica (para manter as aparências do prostíbulo) na “Casa das trocas” uma pesquisa científica voltada para o estudo das relações sexuais nas ditas relações “anormais”.
Estamos diante de um romance que de algum modo continua a grande tradição, mas trazendo para primeiro plano o lado obscuro do ser humano e aquele que se coloca à margem da sociedade e das relações aceitas como “normais”, dentro da moral vigente. Por isso, no romance não há personagens que desvendem o seu interior. É um romance voltado para o social exterior, mas que nada tem a ver com a determinação do meio nos comportamentos humanos, na linha do naturalismo. Pelo contrário, é um social onde são examinados os comportamentos sexuais das pessoas, normalmente marginalizados. Por outro lado, também não se trata de um romance na linha das produções pornográficas. Há, em verdade, até uma certa banalização do sexo, isto é, uma certa desmitificação em relação à tradição moderna no que diz respeito ao laço e motivos afetivos.
Outra temática que perpassa o romance, rico este em linhas de reflexão, e ligada à questão da mímese, está a questão fundamental da verdade. O gênero escolhido, o policial, se presta muito bem ao tema e é explorado de uma maneira muito criativa pelo narrador, pois sempre se refere, na narrativa, enriquecendo-a, às denominadas versões. A variação das versões acaba pondo em questão e em dúvida a verdade da realidade e a realidade da verdade, dando um suspense especial à narrativa. Com isso, Mussa alarga o alcance da sua narrativa, pois abala no leitor a certeza tanto da realidade quanto da verdade dessa realidade. As versões dos fatos se tornam os fatos das versões, relacionadas estas sempre à questão do sexo e do crime, dentro da linha temática escolhida pelo autor.
O romance se estrutura dentro de um paradoxo que lhe dá uma grande criatividade. Por um lado, ao escolher o gênero policial, espera-se toda uma estrutura lógica que conduza à descoberta causal dos motivos que resultaram no crime. Contudo, no presente caso, o fundo em que se move o romance remete para o mundo dos mitos em que vivem muitos dos personagens importantes desta narrativa, mas sem abandonar a linha racional, em que se vai debater o detetive. Esse mundo dos mitos acaba instalando uma linha de ligação entre os diferentes segmentos que compõem a cidade. Os mitos têm um poder que desfaz diferenças sociais. Eis outro aspecto positivo, inovador. Há, portanto, uma tensão criativa, pois, no fundo são as mais diferentes camadas míticas que determinam os valores dos personagens. Mais do que valores de segmentos sociais, tomam o primeiro plano os valores míticos mais ligados à questão de eros. Portanto, é afastada qualquer moralidade advinda do poder de um determinado sistema dominante. E isso é novo e original. E, no entanto, tão antigo, tão primordial.
Diga-se logo que o autor não trabalha com o critério racional de classificar como mitos as crenças ligadas a culturas primitivas. Na dimensão e presença dos mitos não há cultura primitiva. Para o autor qualquer crença entra no âmbito do mítico. Chega a exagerar ao classificar os mitos cristãos como superstições. E as demais crenças míticas não seriam? É necessário perguntar. Esse exagero talvez se justifique porque o narrador se identifica com o detetive, onde o exercício da razão causal se torna decisivo. Por isso mesmo, em nenhum momento há referência a algo mais interno onde prevalecesse o afetivo. Há sexo, mas sem afeto. E há também a procura do prazer acima de tudo. E como vivemos numa sociedade da imagem, a “Casa das trocas” está disposta de tal maneira que o sexo se torna espetáculo. A questão do crime vai ser ambígua, pois o seu motivo não é financeiro, mas aquele que põe em questão os valores morais em que, geralmente, se estruturam as cidades. Porém, são valores morais que são mais aparência de farsas do que valores que levem ao ético-poético. Desse modo, o romance acaba tendo um valor artístico-poético realmente inovador, porque, por detrás dos motivos dos crimes, sempre está presente a quebra dos valores morais, da aparência, de fato, desses valores, de tal modo que no final os valores morais sempre dependem das versões.
Surge a questão: Qual a lei que rege essas relações sociais e familiares, se para além das aparências as pessoas são tomadas por outros motivos e são levadas a quebrarem as regras dessas leis, às quais se submetem só aparentemente? É nesse momento que surge a pergunta crucial sobre a natureza, a essência do sexo. Mas é importante destacar que em nenhum momento é tematizada a questão do amar, mas somente do amor ligado ao prazer sexual, seja por meio das relações “normais”, seja através de outras formas “anormais” ou até doentias de relacionamento sexual. É quando os motivos inconscientes tendem a ser mais fortes do que os freios sociais. Mas o romance, com razão, prefere falar da presença dos mitos. (A psicanálise não se funda numa “interpretação” mítica do humano de todo ser humano? Até onde tal “interpretação” não se tornou também uma “superstição”, ao querer se afirmar como científica? E haverá alguma “interpretação” que dê conta da questão do humano?).
O crime onde se fundamenta a linha temática do romance é o crime motivado pelo sexo, pelo erótico, pelo mistério que impulsiona as pessoas para as mais diferentes práticas sexuais. O que nessas práticas se mostra e aparece como motivação, vindo, portanto, ao aparecer, são impulsos que nunca chegam a se mostrar, uma vez que as pessoas são tomadas por algo que está além da vontade delas e as ultrapassa. Só na aparência fazem isso conscientemente. Dessa maneira, a realidade, reduzida aos fatos positivos e racionais, é a todo momento negada. Eis o limite da ciência. Pode haver ciência do inconsciente? Seria um paradoxo. Seria a mesma pretensão de fundar uma ciência do silêncio, do ser feliz, do sentido da Vida etc. Tentativas e respostas há, não fosse o humano de todo ser humano essa tentativa reiterada. Em vista disso, a realidade se faz mito, de que a ciência não é nem pode ser sua negação, mas a tentativa racional de encontrar a solução. O mito é mais radical do que a ciência. A realidade é mais forte e complexa do que a consciência. A realidade é. E se mostra em todo o seu vigorar justamente na questão da Vida, de que o sexo é uma decorrência. O que, afinal, ela é seria a questão que nenhuma interpretação ou versão pode responder. E é então que em determinado momento e inexplicavelmente um personagem tem o poder mítico de atrair as mais diferentes mulheres, das mais diferentes camadas sociais e de levá-las ao êxtase total e por isso mesmo mortal. Mas, de novo, como não se centraliza na temática do amar, também não tematiza a questão da morte, a que são levadas essas pessoas. Em verdade a morte, no caso do romance, é uma plenitude de prazer sexual, não de uma consumação amorosa. Eis uma questão que merece ser pensada, mas, para tal, é necessário sair das dicotomias sexo/amor e ser tomado pela dobra de amar e ser. (Cf. a este propósito o ensaio “Amar e ser” em meu livro Arte: o humano e o destino. Editora Tempo Brasileiro, 2011).
Embora a matéria do enredo seja historicamente do início do século XX, as principais linhas de pensamento se voltam para o que estamos vivendo hoje. Falta, porém, ao romance, o toque das grandes obras, uma atmosfera irônica e de questionamento. Contudo, o autor se mostra senhor não só da construção romanesca, mas também de um poder narrativo admirável. Domina o rito de narrar. A leitura flui facilmente e os leitores são envolvidos por essa fluência que unida à dupla temática do crime e do sexo tem tudo para ser apreciada. Esse poder narrativo mostra um escritor no pleno poder da arte da palavra comunicativa. Também da palavra poética? Para levar o leitor à reflexão não faltam as intervenções do narrador que se afasta do narrado e assinala que ele está narrando o que se passa por realidade. Certamente falta ainda uma descida mais presente ao poder da linguagem, marca das grandes obras poético-literárias. Entende-se aí por linguagem não só o jogo da verdade nas versões, mas também um ir além do jogo das versões na narração. Diria que faltou uma linha do paradoxo no narrar e nas estórias narradas. Com isso a própria noção tradicional de história receberia um aprofundamento novo, além do escolhido para estabelecer a história das cidades, o que quer dizer, das pessoas e instituições que configuram sempre uma cidade no tempo, tendo por horizonte o crime de motivação sexual.
É em virtude dessas múltiplas possibilidades de leitura e de aspectos novos que Mussa realiza que acabei escolhendo este romance para ser premiado.


LEITOR:

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2 comentários:

Ana Lucia disse...

Boa noite, Mestre!

Admiro sua capacidade de chegar ao âmago das questões, e gostaria de poder compartilhar minhas dúvidas com o senhor.

Mal começo a trilhar o caminho da descoberta das palavras não enunciadas, mas que se impõem porque são vivas, e pressinto uma bifurcação.

Não sei especificar que tipo de polarização está se formando, mas seja o que for "isso" está me exigindo um determinado posicionamento. Algo como: "Você não pode ficar em cima do muro! Ou você é a favor "disso" ou você é a favor "daquilo".

Normalmente prefiro estudar sem me prender a uma ou outra concepção, porque acredito que as perspectivas são convergentes e não, divergentes: elas se completam.

Então, peço sua opinião: é errado para um aluno de Letras querer unir o estudo das formas com a interpretação dos conteúdos? Será que uma perspectiva forçosamente excluiria a outra?

Mesmo que saibamos que, para cada povo, uma dada realidade possa significar algo diferente, aquela realidade tem de partir de algo real e esse algo real tem de ser universalmente conhecido, ou não?

Ana Lucia disse...

Boa noite!

Desculpe-me, meu nome é Ana Lucia,tenho 46 anos, sou estudante do primeiro período de Letras da Universidade Estácio de Sá, Campus Jacarepaguá, e meu email de contato é anamac@oi.com.br .

Ana.