05 janeiro 2011

Entre o poema e a poesia



Manuel Antônio de Castro
De uma amiga recebi a seguinte pergunta: Qual a diferença entre poema e poesia?
Eis minha resposta que outros podem enriquecer. Vamos logo para a realidade imediata.
V. tem vida, mas a sua vida é diferente da minha, como é diferente de todas as outras vidas, de todas as vidas em todos os tempos. Isso, hoje, a genética está comprovando o que os poetas e pensadores já sabiam há muito tempo e coloca muito tempo nisso. Pois bem, também a língua da linguagem sabe disso. Tanto é verdade que os gregos usavam duas palavras para marcar essa diferença, embora ambas tenham a mesma raiz:
Bios diz cada vida.
Zoé diz o vigorar da vida em cada bios. Porém, a Zoé jamais pode ser reduzida a UM bios (como o ser jamais pode ser reduzido a um ente, qualquer ente, embora não haja bios sem a Zoé como não há ente sem o ser).
O bios está para o poema assim como a Zoé está para a poesia.
Em termos de linguagem, diria que a manifestação da zoé em seu sentido e ser é a linguagem. E o mesmo em cada bios ou poema é a língua. O ser abrange tanto a zoé/poesia/linguagem como o bios/poema/língua. Eis o motivo porque podemos nos compreender uns aos outros e dialogar em todos os tempos e lugares.
Veja que nunca há uma ciência da zoé, só do bios. Então a ciência do bios é a tentativa de apreender em cada bios o seu vigorar, mas de uma maneira abstrata, conceitual. Já a poesia deixa vigorar a própria zoé em cada bios/poema. Porém, isso sempre se dá como questão e não e jamais como conceito. Toda questão vigora numa dobra. Já os conceitos se afirmam num duplo, pois sempre esquecem o próprio em cada bios, porque tal próprio é o próprio ser se dando e retraindo, velando. Por isso é que a linguística não pode nunca procurar nem achar a coesão e coerência do silencio/poesia/linguagem. Aí está a diferença fundamental da Poética em relação às Correntes críticas e ao seu enfoque científico (ciência da literatura) e ideológico. Todo ideológico só combate ums sistema porque propõe outro que acha mais verdadeiro, como se a verdade fosse uma questão de sistema e de melhor ou pior (campo da moral). Elas sempre tratam de sistemas e propõem sistemas. Mas qual o sistema que dá conta das diferenças em seu vigorar sempre inaugural? Só o não-sistema que é a Poesia, a Zoé, a Vida. O não-sistema é a não-verdade de toda verdade. Se precisamos da verdade, e precisamos, sua fonte é a não-verdade, sem a qual não correnteza de vida.
Nesse sentido, também se dá a diferença entre precisão e necessidade, entre lei e Lei. E assim vamos por aí a fora. O mais impressionante é que a zoé/linguagem ao se manifestar em diferentes bioi/línguas não passa, deixa suas marcas e sentido em tudo (pois eles sem a linguagem nada são). É o que comprovam a arqueologia e a genética e as pesquisas da origem do universo, do ser humano etc. Isso é uma maravilha que só a presença da linguagem/zoé pode nos fazer entre-ver. Explicar conceitualmente, jamais. Mas este jamais não é negativo. Pelo contrário, é o desafio de permanentemente termos de nos realizar poeticamente. As pesquisas nos abrem novos horizontes que abrem cada vez mais tempos e espaços novos. Mas só a linguagem e poesia inauguram épocas enquanto o próprio destinar-se do ser, da realidade acontecendo Por isso vale a pena viver e pensar. A ciência não é nossa inimiga, mas também não é nosso telos total. Ela desencobre o que se dá no que não cessa de se encobrir. A diferença entre a ciência e a poética é que aquela quer nos dar o conhecido, cada vez mais trazer o desconhecido para o conhecido, Já a poética quer mostrar, manifestar no conhecido o não-conhecido, de quem aquele depende e em que vigora. Para a póetica, o futuro está no passado como fonte de todo presente.
Nesse sentido, hoje em dia, a ciência vive uma saudável contradição. Quanto mais adentra o desconhecido e futuro mais se torna passado sem futuro. Tomemos o exemplo: O disco de vinil deu lugar à fita cassette que deu lugar ao disquete que deu lugar ao cd e assim vamos. Nada impede que continuemos a usar o vinil, uma possibilidade da realidade, mas as novas descobertas se mostram mais operativas, eficientes e tendem a sepultar as descobertas anteriores. A ciência vive da eficiência. A poética procura experienciar na eficiência a não-eficiência, no causal o não-causal. O mesmo acontece e com mais radicalidade na biologia e na medicina. Mas essas tarefas não deixam também de ser poéticas, onde predomina mais a técnica em seu sentido de medida. Também a techne se faz presente na Poética, mas como o conhecido que demanda o poético, o não-conhecido. Essa é a diferença entre techne e poiesis. Nisso também se dá a referencia entre os poetas de agora e os de antes e os de todos os tempos. Os de hoje não superam os de antes. Essa foi uma ilusão que a modernidade cultivou e que a pós-modernidade está sepultando. Daí a insistência no contemporâneo, tão mal compreendido porque dependente para muitos de uma cronologia anacrônica. A música de Beethoven não superou a música de Bach. Mas nossos ouvidos e nossa vida entraram em outra medida de apreensão da realidade, depois dessas duas realizações (e de outras). Outra medida não diz aí superação nem melhor, porque em poética não há o valor quantitativo, mas o ético. A medida do ético é o ser, é a linguagem, é a poesia. Trata-se sempre de conseguir levar a moira de cada um a sua plenitude (telos). E quem conhece e pode determinar a medida ou moira de cada um, de cada época? Tanto a macro-física como a micro-física encontram seu ponto de desafio no não-finito, onde qualquer conceito só pode ser conceito se deixar de ser também não-conceito.
Esse é o impasse saudável da ciência, que depende sempre do método e suas medidas. Como pode haver método sem medida? Não há meia-medida. Só o circular caminho do entre. Daí que não se pode procurar e ter que esperar os novos poemas para ter um encontro marcado com a poesia. Já estamos sempre vigorando nela. Porém, as vozes dos poemas são o anúncio dessa presença, que nunca é igual para todos e para nenhuma época. Abrir-se para essa abertura incessante, para esse acontecer da realidade inaugural é o desafio não só dos poetas, mas também dos leitores que trazem em si a poesia que os torna um poema. Mas quem hoje em dia tem paciência para deixar acontecer a poesia, o silêncio, a linguagem? Muitos e não podemos julgar ninguém, pois a luz vigora onde quer e não onde temos a tendência de querer anunciar e determinar. De toda verdade a não-verdade é a medida poética. Tudo isso é a permanente e mutante/inaugural tarefa poética.
Deu para compreender um pouco mais? Só dá para compreender e não para transformar em conceitos. Mas, graças ao sagrado, também não dá para reduzir nossa vida a conceitos e ritos meramente narrativos. Somos sempre mais, estamos sempre sendo, embora em todas as circunstâncias e situações aspiremos a ficar sendo.
Um abraço poético.
Manuel


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