01 outubro 2008

Crítica e realidade: teoria, sistema, disciplina


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Quando Antônio Cândido defende a idéia de que a literatura é um sistema, o que essa idéia pressupõe para o crítico nisso se basear? O que imediatamente fica claro é o fato de que para chegar a essa formulação, esta só é possível dentro dos quadros da modernidade. Qual o princípio básico que rege toda a modernidade?
A consciência crítica, isto é, a razão crítica, encontra nessa formulação de A. Cândido o desdobramento do que ela estabelece como princípio. Desde o início se soube que a ciência nascia e nasceu sob o lema da intervenção em todos os aspectos da realidade. Pelo princípio da intervenção, a natureza como tal é esquecida e se torna o objeto de uma intervenção teórica, que desdobrada em saberes epistemológicos, criou as disciplinas. Estas têm, portanto, como princípio, um sistema de conhecimento com uma finalidade: a intervenção funcional. Esta intervenção não tem limites e não se restringe somente à dita natureza, mas a todos os âmbitos da realidade, aí incluídas as relações humanas e o próprio ser humano. O princípio, no fundo, se move numa nova concepção da realidade, do social, do homem, automaticamente entram aí todas as produções do ser humano, não se excluindo a própria arte. Se a faceta principal é a funcionalidade, tudo se torna instrumento para conseguir os fins da funcionalidade. Tudo, de algum modo, deve ser incluído nesta instrumentalidade. A partir desta tudo se torna recursos: naturais e humanos. Mas será que a essência originária da realidade, do ser humano e da arte é o reduzir-se a recursos? Veja-se bem, não se nega essa faceta, mas a redução a recursos. As questões maiores da vida e do humano podem ser reduzidas a recursos? Podemos notar facilmente a íntima relação entre a nova ciência e os recursos. Mas devemos também notar que quando tudo se reduz a recursos, surge aí, naturalmente, o valor que um recurso como possibilidade de intervenção e circulação no sistema produz. Todo valor influi e tem conseqüências no sistema de relações sociais. Mas quando o valor surge de seu poder de interferência, de intervenção funcional na realidade, todo o seu âmbito de sentido fica reduzido à funcionalidade. Isso acaba por corroer os valores do humano como tal. Transformar esse valor funcional em capital foi uma conseqüência natural e necessária do princípio da intervenção funcional, senão não há como distinguir, criticamente a funcionalidade e operatividade dos recursos. Cria-se um círculo vicioso entre a operatividade e as novas descobertas da ciência aplicada, pois, no fundo, toda nova ciência é essencialmente ciência aplicada. A ciência passa a retroalimentar-se dos próprios recursos que ela cria tendo em vista a aplicação, a intervenção, a renovação, as novas descobertas, onde uma supera a outra. Essa superação tende a redundar numa maior funcionalidade e, conseqüentemente, numa maior valor de circular e uso. Isto pode acontecer na arte? Não há como. Cervantes não supera Sófocles. Mas a arte não é regida pelo princípio da intervenção. Ela não intervém na realidade, ela manifesta a realidade como realidade, isto é, em mundo. Daí a impropriedade da aplicação dos critérios de forma e conteúdo para análise, classificação e conhecimento das obras de arte. E como fica aí, então, a crítica? Esta é a questão. É ela que cria o próprio padrão de avaliação das obras ou o padrão deve vir das próprias obras?
Mas não há funcionalidade sem sistema de relações. É neste horizonte que há uma correlação entre crítica e sistema. Embora a teoria e conhecimento científicos se queiram universais, isso não nega a mudança, pois ela é pressuposta pela teoria intervencionista, pela imposição de um conhecimento à própria realidade. O mais interessante é que esses conhecimentos se põem e defendem uma objetividade em relação à realidade, quando, em verdade, ela não passa do âmbito da teoria como conhecimento da realidade. Mas um conhecimento onde a própria realidade enquanto physis já foi deixada de lado, já foi esquecida. Porém, será que podemos esquecer o que não pode ser esquecido, pois sem ela não vigoramos no que nos é próprio. Esquecê-la é nos esquecermos. E não será essa a crise ética profunda em que estamos mergulhados? Como viver bem se vivemos esquecidos do que somos?
A intervenção sofre mudança e transformações, mas não o princípio de formulação da intervenção. Até porque a teoria interventiva pressupõe a funcionalidade, que é sinônimo hoje da competência. Pode o artista ser, nesse sentido, competente? Não, porque a criação não é uma questão de competência, mas muito mais e essencialmente uma questão de auto-escuta e de auto-diálogo. Todos somos convocados e provocados a nos tornarmos artistas, a fazer da vida uma obra de arte.
É dentro desse quadro interventivo e funcional que, naturalmente, a teoria do ente (sendo) como matéria e forma se torna o padrão para todas as áreas de conhecimento ou disciplinas. A essa determinação não fogem nem as artes enquanto teorias ou correntes críticas ou literárias. Ou ainda como vanguardas. Podemos notar facilmente que há uma correlação imediata entre o conhecimento funcional e o domínio da técnica, mas não mais no sentido grego. Pode-se notar também como o próprio fazer artístico se torna de antemão uma corrente/teoria artística ou literária. Mas assim como a natureza, enquanto physis, foi esquecida e tornada objeto de intervenção também o fazer poético como tal foi esquecido e foi determinado pelas teorias prévias. Matéria e forma jamais nos conduzirão à experienciação do que seja a obra poética, a obra de arte. Elas são determinadas pela finalidade, isto é, pela funcionalidade. E esta é própria do utensílio, jamais da obra de arte. Esta, já nos disseram os gregos, tem um “telos”, um “fim”, mas não uma finalidade, pois o “telos” grego quer dizer consumação, plenificação de realização e sentido, ou seja, é o princípio (arché) em vigor de plenitude. É a manifestação da realidade em sua verdade. Obra de arte é manifestação de mundo enquanto sentido e verdade da realidade, ou seja, mundo eclodindo.
Para o princípio de intervenção, a literatura, para ser literatura como tal, só o pode ser se se constituir num sistema. Podemos observar que os mais diversos conhecimentos científicos são sempre interventivos. Mas sobretudo também os das chamadas ciências humanas. Qualquer teoria sociológica mostra seu grau de verdade na proporção da possibilidade da intervenção político-social. E isto sempre em nome do ser social do ser humano. A contradição entre a realidade social em seu acontecer poético e as teorias vem do fato de que estas querem, em nome da intervenção, estabelecer, determinar e controlar o acontecer da realidade, como se a realidade fosse a teoria ou as teorias da realidade, sejam elas sociais, psicológicas, históricas, literárias etc. Se a teoria fosse a realidade não haveria tanta mudança de teoria e tantas teorias dentro de uma mesma disciplina. Isso apenas prova como a realidade enquanto acontecer poético e de mundo fica esquecida e é sempre mais do que qualquer teoria ou sistema. E que é isso – o que se esquece e a realidade teimosamente se nega a entregar? Por que ela se recusa, esgueira e dissimula?

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