28 outubro 2008

O "Trans-" , o "Inter-" e o conhecimento

O “Trans” e o “Inter”

Manuel Antônio de Castro

Abaixo transcrevemos um ensaio que nos fala de transdisciplinaridade. É um convite à reflexão e ao aprofundamento de questões que dizem respeito à ciência. Até onde tais reflexões nos levam a aprofundar as questões em torno da referência do ser e do ser humano enquanto obra de arte?
É isso que propomos. Primeiro o ensaio de Basarab Nicolescu. Depois algumas observações minhas. Trata-se de pensar a questão que hoje a todos aflige: como num mundo fragmentado e de corações e mentes fragmentadas ir além ou aquém do saber que funda a realidade na modernidade?

UM NOVO TIPO DE CONHECIMENTO - TRANSDISCIPLINARIDADE

Basarab Nicolescu

Físico teórico do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (C.N.R.S.).
Fundador e Presidente do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (CIRET).
[...]
A metodologia da transdisciplinaridade

c. A lógica do Terceiro Incluído
O desenvolvimento da física quântica, assim como a coexistência entre o mundo quântico e o mundo macrofísico, levaram, no plano da teoria e da experiência científica, ao aparecimento de pares de contraditórios mutuamente exclusivos (A e não A): onda e corpúsculo, continuidade e descontinuidade, separabilidade e não separabilidade, causalidade local e causalidade global, simetria e quebra de simetria, reversibilidade e irreversibilidade do tempo etc. O escândalo intelectual provocado pela mecânica quântica consiste no fato de que os pares de contraditórios que ela coloca em evidência são de fato mutuamente opostos quando analisados através da grade de leitura da lógica clássica. Esta lógica baseia-se em três axiomas:

1. O axioma da identidade: A é A;
2. O axioma da não-contradição: A não é não-A;
3. O axioma do terceiro excluído: não existe um terceiro termo T (T de "terceiro incluído") que é ao mesmo tempo A e não-A.

Na hipótese da existência de um único nível de Realidade, o segundo e terceiro axiomas são evidentemente equivalentes. O dogma de um único nível de Realidade, arbitrário como todo dogma, está de tal forma implantado em nossas consciências, que mesmo lógicos de profissão esquecem de dizer que estes dois axiomas são, de fato, distintos, independentes um do outro. Se, no entanto, aceitamos esta lógica que, apesar de tudo reinou durante dois milênios e continua a dominar o pensamento de hoje, em particular no campo político, social e econômico, chegamos imediatamente à conclusão de que os pares de contraditórios, postos em evidência pela física quântica, são mutuamente exclusivos, pois não podemos afirmar ao mesmo tempo a validade de uma coisa e seu oposto: A e não-A. A perplexidade produzida por esta situação é bem compreensível: podemos afirmar, se formos sãos de espírito, que a noite é o dia, o preto é o branco, o homem é a mulher, a vida é a morte?

O problema pode parecer da ordem da pura abstração, pode parecer interessar apenas alguns a lógicos, físicos ou filósofos. Em que a lógica abstrata seria importante para nossa vida de todos os dias? A lógica é a ciência que tem por objeto de estudo as normas da verdade (ou da "validade", se a palavra "verdade" for forte demais em nossos dias). Sem norma, não há ordem. Sem norma, não há leitura do mundo e, portanto, nenhum aprendizado, sobrevivência e vida. Fica claro, portanto, que de maneira muitas vezes inconsciente, uma certa lógica e mesmo uma certa visão do mundo estão por trás de cada ação, qualquer que seja: a ação de um indivíduo, de uma coletividade, de uma nação, de um estado. Uma certa lógica determina, em particular, a regulamentação social.

Desde a constituição definitiva da mecânica quântica, por volta dos anos 30, os fundadores da nova ciência se questionaram agudamente sobre o problema de uma nova lógica, chamada "quântica". Após os trabalhos de Birkhoff e van Neumann, toda uma proliferação de lógicas quânticas não tardou a se manifestar. A ambição dessas novas lógicas era resolver os paradoxos gerados pela mecânica quântica e tentar, na medida do possível, chegar a uma potência preditiva mais forte do que a permitida com a lógica clássica.

A maioria das lógicas quânticas modificaram o segundo axioma da lógica clássica: o axioma da não-contradição, introduzindo a não-contradição com vários valores de verdade no lugar daquela do par binário (A, não-A). Estas lógicas multi-valentes, cujo estatuto ainda é controvertido quanto a seu poder preditivo, não levaram em conta uma outra possibilidade, a modificação do terceiro axioma: o axioma do terceiro excluído.

O mérito histórico de Lupasco foi mostrar que a lógica do terceiro incluído é uma verdadeira lógica, formalizável e formalizada, multi-valente (com três valores: A, não-A e T) e não-contraditória.

A compreensão do axioma do terceiro incluído — existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não- A — fica totalmente clara quando é introduzida a noção de "níveis de Realidade". Para se chegar a uma imagem clara do sentido do terceiro incluído, representemos os três termos da nova lógica — A, não-A e T — e seus dinamismos associados por um triângulo onde um dos ângulos situa-se num nível de Realidade e os dois outros num outro nível de Realidade. Se permanecermos num único nível de Realidade, toda manifestação aparece como uma luta entre dois elementos contraditórios (por exemplo: onda A e corpúsculo não-A). O terceiro dinamismo, o do estado T, exerce-se num outro nível de Realidade, onde aquilo que parece desunido (onda ou corpúsculo) está de fato unido (quantum), e aquilo que parece contraditório é percebido como não-contraditório.

É a projeção de T sobre um único e mesmo nível de Realidade que produz a impressão de pares antagônicos, mutuamente exclusivos (A e não-A). Um único e mesmo nível de Realidade só pode provocar oposições antagônicas. Ele é, por sua própria natureza, auto-destruidor, se for completamente separado de todos os outros níveis de Realidade. Um terceiro termo, digamos, T’, que esteja situado no mesmo nível de Realidade que os opostos A e não-A, não pode realizar sua conciliação.

Toda diferença entre uma tríade de terceiro incluído e uma tríade hegeliana se esclarece quando consideramos o papel do tempo. Numa tríade de terceiro incluído os três termos coexistem no mesmo momento do tempo. Por outro lado, os três termos da tríade hegeliana sucedem-se no tempo. Por isso, a tríade hegeliana é incapaz de promover a conciliação dos opostos, enquanto a tríade de terceiro incluído é capaz de fazê-lo. Na lógica do terceiro incluído os opostos são antes contraditórios: a tensão entre os contraditórios promove uma unidade que inclui e vai além da soma dos dois termos.

Vemos assim os grandes perigos de mal-entendidos gerados pela confusão bastante comum entre o axioma de terceiro excluído e o axioma de não-contradição. A lógica do terceiro incluído é não-contraditória, no sentido de que o axioma da não-contradição é perfeitamente respeitado, com a condição de que as noções de "verdadeiro" e "falso" sejam alargadas, de tal modo que as regras de implicação lógica digam respeito não mais a dois termos (A e não-A), mas a três termos (A, não-A e T), coexistindo no mesmo momento do tempo. É uma lógica formal, da mesma maneira que qualquer outra lógica formal: suas regras traduzem-se por um formalismo matemático relativamente simples.

Vemos porque a lógica do terceiro incluído não é simplesmente uma metáfora para um ornamento arbitrário da lógica clássica, permitindo algumas incursões aventureiras e passageiras no campo da complexidade. A lógica do terceiro incluído é uma lógica da complexidade e até mesmo, talvez, sua lógica privilegiada, na medida em que nos permite atravessar, de maneira coerente, os diferentes campos do conhecimento.

A lógica do terceiro incluído não abole a lógica do terceiro excluído: ela apenas limita sua área de validade. A lógica do terceiro excluído é certamente validada em situações relativamente simples, como, por exemplo, a circulação de veículos numa estrada: ninguém pensa em introduzir, numa estrada, um terceiro sentido em relação ao sentido permitido e ao proibido. Por outro lado, a lógica do terceiro excluído é nociva nos casos complexos, como, por exemplo, o campo social ou político. Ela age, nestes casos, como uma verdadeira lógica de exclusão: bem ou mal, direita ou esquerda, mulheres ou homens, ricos ou pobres, brancos ou negros. Seria revelador fazer uma análise da xenofobia, do racismo, do anti-semitismo ou do nacionalismo à luz da lógica do terceiro excluído.

Conclusão:
Sem uma metodologia a transdisciplinaridade seria uma proposta vazia. Os Níveis de Realidade, a Complexidade e a Lógica do Terceiro Incluído, definem a metodologia da transdisciplinaridade. Só se nos apoiarmos nesses três pilares metodológicos poderemos inventar os métodos e modelos transdisciplinares adequados a situações particulares e práticas.

Referências
- Gibbons, Michael et al., The New Production of Knowledge - The Dynamics of Science and Research in Contemporary Societies. Londres, Sage: 1994.
- Nicolescu, Basarab O Manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo, Triom: 1999. Tradução do Francês por Lúcia Pereira de Souza.
- Site do Centro Internacional de Pesquisa e Estudos Transdisciplinares (CIRET): http://perso.club-internet.fr/nicol/ciret/ .

Oservações para diálogo.

Manuel Antônio de Castro

A substituição da disciplina pela trans-disciplina ainda não saiu do âmbito moderno e metafísico do “como saber crítico”, porque ainda fica na renitente insistência científica e lógica de querer reduzir a physis à cultura (ao como se sabe, como se faz, como se sem te, como se crê, como se cria). Só sairemos da cultura e seus produtos quando compreendermos que cultura e natureza não se opõem, mas também não formam uma síntese.

Notemos que o autor fala de “modelo” ou método para incluir o T (o terceiro excluído). É sempre a idéia metafísica causal da realidade, onde se busca determinar o terceiro como “algo” passível de “modelo”, a que preside uma “medida” ou “critério”. No horizonte deste critério, a realidade pode ser “conhecida”, é passível da aplicação de um método para depois intervir (prática, aplicação) na realidade.

A questão da realidade se torna o problema de achar uma “nova” medida, uma nova verdade, pois o “critério” sempre determina, nessa visão, a verdade da realidade e a realidade da verdade.

Mas qual é a questão da realidade? Ela já está colocada na sentença 123 de Heráclito: Physis kryptestai philei (O desvelar-se ama velar-se / A realidade apropria-se no velar-se). Nunca poderá haver uma “medida”, um critério para o kryptestai, senão deixará de ser kryptestai (physis). Ele pode ser acolhido no amar. Mas haverá algum dia medida ou critério para o amar? E isso não é muito bom? Não é bom que as diferenças não tenham nunca uma medida? Não ter medida é não ater controle. Caso contrário, ainda seriam diferenças? No entanto, podemos acolher sempre as diferenças. Caso contrário, também deveríamos afirmar que há uma dicotomia radical entre as diferenças. Então o que pro-curar? O que nas diferenças é o seu vigor, não para determiná-lo e medi-lo, mas para deixar que ele opere e vigore. E assim deixe as diferenças serem diferenças, porque movida pelo mesmo de todas as diferenças: a identidade (possibilidades de ser). Mas agora não mais a formal e lógica, de que fala o ensaio acima, no início. A obra de arte é a identidade, como diálogo possível, de todas as diferentes leituras. Mas o que é o dia-logo?

Então deveremos no lugar da transdisciplinaridade pensar o “entre” de toda “inter-disciplinaridade”. O que é esse “entre”? Um neutrale tantum, o mesmo de que nos fala o pensador Parmênides, na sentença VII: “O mesmo é pensar e ser”. Quando colocamos estas questões, devemos estar atentos ao fato de que elas já são a vigência do krinein, de um criticar não apenas racional e do como conhecer, mas a própria realidade em sua disputa originária (Sentença 53 de Heráclito): De todas as coisas a guerra [polemós: disputa] é pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres.) (Cf. a interpretação de M. Heidegger in: Ser e verdade, p. 97 a 136. Petrópolis, Vozes, 2007).

Devemos compreender, a partir da vigência do krinein, que a realidade sempre se vela. Quando vemos o dia, não vemos o sol em sua presença como tal, vemos o manifestar-se de sua presença, mas em que ele mesmo como sol, não pode ser visto. Quando ele, em sua luz, se retrai temos a noite. Mas nesta ainda não temos o sol em seu velar-se. Temos como velamento a presença do sol, como o que não pode ser visto tanto em presença como em ausência. Notemos, no entanto, que não há aí fundamento e fundado, pois sem o sol e sua presença vigorante não há noite nem dia. Portanto, não podemos reduzir o sol a T (terceiro excluído), passível de um novo modelo de conhecimento, passível de um critério, de uma medida. A noite e o dia do sol, são, no dizer do pensador-poeta, Guimarães Rosa, veredas do grande ser-tão. Um tão como tao que nos convoca ao diá-logo, como o mesmo de todas as falas e escutas: as veredas, veredazinhas. Mas estas são Sabedoria para poucos, diz ele: os doidos. “Ao doido doideiras digo”. É a sabedoria de que nos fala outro pensador-poeta: Platão, no dia-logo: Fedro. Então tal sabedoria não é mais o simples saber, é amor.

Cf. meu ensaio: “Interdisciplinaridade poética: o “entre”. In: Rev. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006.

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