03 setembro 2008

No princípio era a Poética


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Por que a Poética é sempre permanente e sempre atual? A resposta é muito simples por dois motivos que são uma dobra: Porque no princípio era a Poética, sendo, as obras poéticas, por isso mesmo, sempre permanentes e atuais. Por obras poéticas entendemos todas as diferentes manifestações poético-artísticas. E por que as obras poéticas têm esse poder? Porque elas vigoram na e a partir da essência do agir, ou em grego, de onde se forma poética: poiein. A essência do agir é consumar o que é, daí ser e tempo, tempo e ser. Mas que tempo? O da memória enquanto linguagem ou logos. Por sua vez, atual é o que se manifesta a partir da essência do agir, pois atual provém do verbo latino: agere, isto é, agir. Permanência é o per-durar no dar-se e retrair-se de tempo e ser. Poética é o morar e de-morar na mansão do ser. Mansão provém de manere, ou seja, é a morada. Per-manere, per-manecer, é morar a liminaridade do limite e do não-limite. É isto o que nos diz o prefixo per, onde está jogada a mansão, a nossa morada. Nela moramos como ser poéticos. A morada é morada do ser: o que permanece nas mudanças, porque poética.
A redução, em geral, da Poética à produção de poesia, em oposição, por exemplo, à prosa, e a outras realizações poéticas como a música, a dança etc., parte de um equívoco de tradução nas vicissitudes da passagem das palavras gregas para o latim. As reflexões de Aristóteles a respeito das produções poéticas, como um todo, recebeu em grego o seguinte título: Peri poietikes technés. A tradução literal seria: Em torno da técnica do poético. Há o poético e há o conhecimento que possibilita a realização das produções poéticas: a techné. O poético é mais fundamental, porque originário, do que a techné, isto é, o conhecimento específico para realizar cada produção poética. Ele é, portanto, específico e depende de um aprendizado e treinamento desse conhecimento segundo cada realização poética. Mas esses conhecimentos não são o poético. Os conhecimentos técnicos variam, mas a poética, o originário, é o que permanece e possibilita cada realização poética e também seus conhecimentos de realização. Na tradução para o latim, houve uma inversão, presente até hoje em nosso linguajar. Techné foi traduzido por ars, artis, de onde se originou o substantivo português: arte. Como vemos o que chamamos de arte e artes nada mais são do que os conhecimentos técnicos, onde o decisivo, o originário, não são eles, mas a Poética, o Poético. A Poética não trata, pois, de conhecimentos técnicos, de artes, mas do Poético, do originário de todas as artes. Os conhecimentos técnicos podem mudar com o tempo e circunstâncias, influindo nos desempenhos formais. Porém, o que é decisivo numa obra poética é o originário e não esses conhecimentos variáveis e passíveis de aprendizado. O Poético não se aprende, é uma doação do originário, isto é, do princípio. E só por vigorarem no princípio, no originário, e não por serem técnicas, é que as obras poéticas são sempre permanentes e atuais.
Estamos comemorando, neste ano, o centenário da morte de Machado de Assis e o cinqüentenário da publicação de Grande sertão: veredas, ou seja, de Guimarães Rosa. É claro que em 1908 morreram centenas de milhares de pessoas. Por que não celebrar o centenário de sua morte? Primeiro, porque nem todas escreveram; segundo, porque nem todas que escreveram deixaram uma obra tão significativa e essencial que seja poética. Disto já resulta uma conseqüência: não celebramos qualquer escrito, qualquer obra. O que é celebrar senão comemorar o que é digno de permanecer na memória. Mais importante ainda é que a celebração só aparentemente é do nome. Na realidade, não celebramos o nome Machado de Assis, e, sim, sua obra. O substituir o nome pela obra, achando que a obra é uma criação da imaginação criadora do autor, é um grande equívoco da modernidade. Qual a diferença entre celebrar o nome e celebrar a obra? Ela é fundamental. As obras poéticas é que são sempre permanentes e atuais. E me sirvo da autoridade inerente a toda obra poética, mostrando a diferença entre o nome e a obra. Quem o diz é Riobaldo, em Grande sertão: veredas. Refletindo sobre o duplo nome de Diadorim, dito em segredo só a Riobaldo, pois para os demais jagunços ele se chama Reinaldo. Revelado o outro nome, diz Riobaldo: “Era um nome, ver o que. Que é que é um nome? Nome não dá: recebe” (1968: 121). Mas quem dá o que o nome recebe? Só pode ser a realidade, porque realidade é o que acontece. Diante do enigma, do mistério do acontecer da realidade, noutra passagem vai afirmar: “...: eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome” (1968: 86). Para compreendermos o jogo poético-originário da obra de arte, temos ainda que citar uma terceira passagem, que abre horizontes de leitura e compreensão dialogal para as duas passagens já citadas: “E o que era para ser. O que é pra ser – são as palavras” (1968: 39).
Aproveito logo para fazer uma observação fundamental. Quando, como leitor, dialogo com a obra poética, já surpreendo na própria obra poética a sua poética. Não preciso vir com nenhuma teoria literária de fora, nenhuma corrente crítica externa à própria obra. Será isso possível? Sim. Toda grande obra poética já traz em si-mesma a sua poética enquanto horizonte de leitura dialogal. Em vista disso, podemos já fazer uma distinção: A poética é sempre permanente e atual porque a própria obra poética já se move numa poética implícita e numa poética explícita. As passagens que citei são implícitas ao próprio fazer poético da obra citada. Estão dentro da própria obra. Quando as destaco e estabeleço um diálogo com essas passagens, estarei certamente no diálogo manifestando a permanência e atualidade da poética. Uma tal leitura poética é sempre dialogal. Outros leitores farão outros diálogos. A obra enquanto o operar do poético é que provoca e convoca a leitura como escuta. Não é uma decisão do sujeito, pois tem de ser fundada na escuta da fala poética da linguagem, ou em grego, do lógos. Por isso, jamais poderá ser uma leitura subjetiva. A leitura só é do leitor a partir da escuta da fala poética da obra. É a permanência e atualidade das obras poéticas que fundam a leitura do leitor seja em que época for. E a poética explícita? Quando Homero e Hesíodo convocam as musas já nos jogam numa poética explícita. Já nos dizem explicitamente o que os funda ao escreverem as obras. O fundamento é o princípio, enquanto originário e não e jamais enquanto origem. E se os leitores não se abrirem também para as musas como poderão compreender o que só as musas criam? É difícil, senão impossível, haver uma grande obra poética em que não haja lugar para esse momento de reflexão e pensamento. Vamos a um exemplo mais recente, não que os mitos estejam ultrapassados, pois o mítico jamais deixa de vigorar como o permanente e sempre atual das obras poéticas. E é em Rosa que o encontramos. Seu livro Tutaméia – terceiras estórias (Rosa, 1967), ele o compõe de uma maneira insólita: É disposto em quatro partes. A cada uma precede-a um prefácio. Estes prefácios são a poética explícita. Vemos, portanto, que obra poética e poética nunca estão separados. Como poética explícita também podemos apontar as citações, se as houver. No caso há. São de Schopenhauer e a que se referem? Ao todo da obra e à leitura. Também o título se torna parte essencial da poética da obra. No caso de Rosa, é emblemático. Grande sertão: veredas é de 1958. Em 1962 publicou Primeiras estórias. Parece um título banal, mas não é. Por quê? Cada detalhe mínimo nas grandes obras poéticas é essencial. Em 1967, publicou Tutaméia – terceiras estórias. Acontece que não há segundas estórias. Só primeiras e terceiras. Isso faz pensar, mas pensar em profundidade. Na entrevista que concedeu ao crítico alemão Günter Lorenz, e essa entrevista é uma verdadeira poética explícita também, ele declara: “E também choco meus livros. Uma palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias...Os livros nascem quando a pessoa pensa; O ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras” (Rosa, 1991:79-80). O não haver um livro com segundas estórias é intencional. Acostumados ao cronológico, só vemos no tempo a corrente, a ordem e a sucessividade. Acontece que primeiras não indicam aí ordem e, sim, uma profunda tematização do que é o primeiro, as origens, o originário, ou seja, o poético permanente e sempre atual. A esse originário é que os gregos chamaram de arché. Todos os mitos, todos as obras poéticas e de pensamento se tecem em torno e a partir da arché, como a memória originária em que se funda a permanência e atualidade da poética. O primeiro é o princípio. A pro-cura do princípio é o que move todas as nossas pro-curas e não apenas as dos poetas e pensadores. E isso em todos os planos e dimensões da vida. Por isso, nos revela São João no princípio de seu evangelho: “´En archéi ´en ho logos...” (“No originário vigora o Logos”). O que é isto – o lógos? Este ora é traduzido por verbo, ora por palavra. Neste horizonte talvez possamos agora compreender melhor porque a poética é sempre permanente e atual. A poética vigora no logos enquanto este inscreve e circunscreve os princípios, as primeiras estórias. Todo princípio só é princípio poético porque vigora no originário. Penso a referência de Poética e originário, enquanto arché, no ensaio: “Poética: permanência e atualidade”, publicado na revista Tempo Brasileiro, 171.
Mas se atentarmos agora para a passagem de Grande sertão: veredas, acima citada quando falamos da poética implícita: “O que é para ser são as palavras” (1967: 39), veremos que o ser nos advém sempre como princípio E como lógos. Daí se traduzir também o lógos como verbo. Mas não indica este ação? E não se diz ação em grego poiésis? No princípio era, pois, a poética. Dessa poética originária nos fala a obra poética Primeiras estórias.
E a primeira afirmação poética, segundo a própria obra citada, é de que o nome não dá, recebe. O que é para ser são as palavras. É com as palavras que as obras poéticas se constituem e não com os nomes dos autores. Mas não é a mesma coisa? Riobaldo diz que não. Para além da tensão entre Nome e palavra, há uma terceira citação que escolhi, onde Riobaldo diz: “Muita coisa importante falta nome” (1968: 86). Qualquer leitor mais atento, vai notar que a questão aqui se dá entre “coisa” e “nome”. Coisa é em grego “on”, o sendo. Ser e coisa são um e o mesmo. Coisa diz-se em latim res, de onde se originaram nossas palavras: real, realidade, realização. Não fica bem claro na poética de Grande sertão: veredas que não há autor sem palavra, mas que na referência do autor ao sendo, à coisa, ao real, faltam muitos nomes? Isso é evidente. Já podemos concluir que em relação à poética das obras poéticas, a palavra ocupa um lugar inter-mediário entre nome E coisa. Pensar a poética é, portanto, pensar a palavra como lugar inter-mediário, pois palavra, em sua formação, provém do grego: Pará-ballein, ou seja, jogar no entre. A palavra, a coisa e o lugar inter-mediário não são redutíveis a conceitos, pois a coisa não cabe nos nomes. O que cabe nos nomes são os conceitos, as definições. O que não cabe são as questões.
Pensar a permanência e atualidade da Poética é pensar as questões, as questões que a própria obra poética nos coloca. Questão não é um problema que se possa resolver, não é algo que eu, cada um de vocês, cada leitor, posso ter ou não ter. Todos nós já estamos lançados nas questões. Será, portanto, como questões que aqui e agora pensaremos a permanência e atualidade da poética. Permanência e atualidade não são só questões da poética. Só são da poética porque elas já são radicalmente as questões onde nós fomos lançados desde que nascemos e com as quais temos que nos defrontar. Não é uma questão enigmática e misteriosa o viver e morrer desde que nascemos? Viver e morrer não são sempre atuais? Viver e morrer são questões.
Se, como afirma, Riobaldo, o que é para ser são as palavras, toda obra de pensamento, toda obra poética suscita questões que nos advêm na luta com as palavras. E como nos diz Drummond no poema “O lutador”:

Lutar com palavras
É a luta mais vã.
Entanto lutamos
Mal rompe a manhã...
..................................
O ciclo do dia
Ora se conclui
E o inútil duelo
Jamais se resolve.
............................
Cerradas as portas,
A luta prossegue
Nas ruas do sono.

Disto resulta uma questão poética: São os poetas que fazem os poemas ou são os poemas que fazem os poetas? Defrontar-se com esta questão é pensar a permanência e atualidade da poética. Para encaminhar melhor esta questão, proponho agora uma auto-reflexão, em que me surpreendo já sempre me debatendo em meio às questões da permanência e da mudança, de onde surgem as questões da atualidade e da Poética. Esta, no horizonte das questões, tem, portanto, um sentido de realizar a vida poeticamente, no seu sentido originário, isto é: fazer, criar, desdobrar, realizar, manifestar, poietizar. Acontece que não se pode pensar a permanência sem nos defrontarmos com a mudança. Nos interstícios da permanência e da mudança é que se dá a atualidade. Dada a transitoriedade da vida, pois somos transeuntes, ao longo do percurso do humano, que será sempre um humano poético, e a essência do poético está em realizar a essência do humano, muitas foram as respostas ao que é a morte. Porém, como pensar a morte senão pensando a vida? Na vida a morte e na morte a vida. Mas pode haver depois sem antes, se vida e morte são simultâneos, sempre atuais? O que é o tempo? Rosa, sempre genial, assim começa o conto Reminisção, cujo radical nos remete para reminiscência, ou seja, memória e tempo: “Vai-se falar de vida de um homem; de cuja morte, portanto” (1967: 81). A vida é morte, simultaneamente e não pode haver aí causa e conseqüência. Só permanência e atualidade. Toda atualidade pressupõe a mudança no que permanece e o permanecer na mudança. Essa é a essência originária do atual, isto é, do poético.
Podemos dizer que a morte é vida assim como dizer poeticamente: A noite é luz. Isso o princípio da contradição lógica e racional não aceita. É que o poético não cabe na mistificação racionalista do real, da “coisa”, como já nos disse Riobaldo. Não será esse o fio da meada para as questões de permanência e atualidade da Poética? A questão do tempo sempre foi questão em todas as épocas e culturas. A sua compreensão é que variou de cultura para cultura, mas de maneira alguma o tempo depende da cultura, assim como a sentença poética não se prende à proposição crítica e racional em que se funda toda identidade e princípio da contradição, toda causalidade e funcionalidade, toda compreensão do tempo como linearidade, corrente e progresso. Por exemplo, a cultura grega experienciou o tempo como memória e como memória falou de quatro modalidades de tempo: o kronos, o kairós, o aion, as horai. O que as une? A memória. Como unidade, a memória é o tempo poético originário, de que nenhuma razão ou consciência crítica dá conta, até porque o alcance da consciência crítica se defronta já desde sempre em-si e para-si com a necessidade da própria crítica da consciência. E aí a consciência e razão se vêem em aporia.
Quando desenvolvemos isto já estamos pensando no alcance da Teoria Literária e das Correntes críticas. Pois, historiograficamente, não foram estas que substituíram a Poética, dando-a como ultrapassada? Mas será que Dom Quixote ultrapassa Rei Édipo? À procura do tempo perdido ultrapassa Dom Quixote? Grande sertão: veredas ultrapassa Dom Casmurro? Em relação às obras poéticas podemos falar em ultrapassagem? Não se dá ultrapassagem só nos produtos culturais enquanto utensílios. O navio atômico não superou a caravela? Só podemos falar em superação no que diz respeito aos utensílios, jamais em relação às obras poéticas. Estas são sempre permanentes e atuais. Por isso mesmo elas não se restringem a uma determinada cultura e sua identidade. Elas pertencem ao humano, que está para além de todas as culturas, e à sua identidade. Para Freud não era o mito de Édipo, o Rei Édipo, de Sófocles, ainda atual? E por acaso ele se restringiu à cultura e identidade gregas? Por acaso ficou ele preso e dependente do tempo cronológico e da historiografia causal e finalista? Mas claro que não, porque a obra poética como algo vivo é sempre permanente e atual.
As questões da mudança e da permanência me lançaram, desde jovem, na reflexão sobre o sentido da vida tendo como interface a presença constante da morte. E isso significou para mim pensar a questão do tempo. Foi este ser tomado pelas questões que orientou minhas escolhas de vida, fazendo-se presente nas escolhas profissionais. Elas sempre constituíram para mim uma dobra e jamais um duplo, uma dicotomia.
E agora me refiro a minha experiência de formação e vida profissional. Ao estudar filosofia, tive a sorte de ter um professor de História da filosofia, onde o nome do autor e sua vida não tinham importância nenhuma. O que contava eram as obras e as questões em torno das quais toda obra de pensamento se move. Por isso, a história da filosofia que eu estudei, sempre se desenvolveu em torno das questões da referência do humano ao real, do ser do homem ao ser. O estudo de cada nova obra de um pensador consistia em pensar no pensado o que não tinha sido pensado pelo anterior. Se bem notarem, quando o estudo e a aprendizagem se guiam pelas questões, eles consistem em pensar na vida a morte, no desvelado o velado, na obra poética a poesia.
Depois da filosofia fui estudar Letras. E o ensino da história da literatura, em que se baseia todo curso de letras, seguiu outro rumo, que me causou muita estranheza. A memória poética ficou reduzida à historiografia e o tempo à cronologia, onde sempre se falava de nomes de autores e obras, mas onde também as obras eram pretextos para usar classificações numa sucessividade aparentemente lógica de formas ou estilos e de gêneros. Tal classificação é muito útil para o estudo classificatório e funcional, mas onde também da poética das obras nada se pensa e nada se fala, como se as obras fossem objetos de museus, esperando os rótulos formais ou ideológicos classificatórios, como virgens pudicas temendo ser violentadas. Mas não é verdade que não se pode fazer homelete sem quebrar o ovo? A mulher, como verdadeira obra poética criativa, precisa para procriar ser desvirginizada. Diante do milagre e do mistério extraordinário que é criar e procriar é algo originariamente necessário. A pura possibilidade que a vrigindade como velamento contém em-si pode tornar a mulher a mãe de muitos filhos, continuando o milagre da vida como permanência da vida diante da permanência da morte. Todo nascimento de uma criança reinaugura o mundo diante da morte. E em relação à obra de arte, como torná-la permanente e atual: fazendo dela leituras originárias. Fazer da obra poética uma leitura originária é levar a obra a procriar. Isso não era ensinado.
Meu primeiro curso de teoria literária, em 1966, tratou da leitura das obras poéticas através da estilística. Mas quando em 1969 terminei meu curso, a corrente crítica da moda, que fazia furor em muitas áreas de conhecimento, passando pela teoria literária e pela lingüística, e se espraiando pela antropologia etc. era o estruturalismo. Como sempre me vi possuído pelas questões, estranhava aqueles modelos, aqueles suportes externos e prévios para ler, catologar e classificar as obras, reduzindo toda leitura a fórmulas formais, que eu via como esqueletos inertes. Mas havia outras correntes críticas. Era também o tempo da literatura engajada, com Sartre, e do Realismo Crítico de Lukacs.
Porém, para mim, como esquecer a sábia lição do aprendizado da história da filosofia, voltado para as obras e nas obras enfrentar o desafio de pensar as questões, que sempre permanecem e são atuais? Pretender isso seria pensar a poética num diálogo desafiante e amoroso com as obras poéticas. Sempre me causou desconforto ficar falando sobre as obras através de análises, onde primeiro se mata a obra como no laboratório se mata o animal, para depois proceder à análise anatômico-formal, ao desmonte das partes e do levantamento temático para achar o que o autor quis dizer. Isso nada acrescenta ao leitor nem à obra. Não há nada mais anti-poético. Pois Poética é vida, é lançar-se afoita e amorosamente no elemento da vida, no diálogo com as questões da vida.
Já faz alguns anos, vi e revejo um filme chamado: Samsara. Não vou contar aqui o enredo, mas apreender no filme, como obra poética, a questão em torno da qual ele acontece: a experienciação do amor. Porém, como toda obra de arte, ele está sintetizado numa pergunta. É que ex-perienciar é sair dos limites para voltar ao originário dos limites: o não-limite. No caminho circular de ir e vir para chegar aonde desde já sempre estava, o personagem-questão central encontra no caminho de sua pro-cura uma pedra em cima de um muro, em que estava escrita uma pergunta. No ir, ele pega a pedra e leu a pergunta: “O que fazer para que uma gota de água não evapore ao sol?” Como no ir, a pro-cura era mais importante do que a cura da vida, ele nem se deu ao trabalho de tentar apreender e compreender o que tal questão lhe tinha a dizer. Depõe a pedra e continua. A procura o projetava nas mudanças e o opunha à permanência, ao cultivo do que permanece no fluxo das mudanças, enfim, ao poético. Isso é natural. Só no empenho de nossas procuras é que poderemos ou não encontrar o penhor de nossos desempenhos e empenhos. Depois de muitas experiências e desenganos, inerentes às procuras sem o cuidado do cuidar do permanente, ele volta para o lugar de origem, para o originário. E passa no mesmo lugar e vê a mesma pedra. Torna a pegar a pedra e relê a pergunta: “O que fazer para que uma gota de água não evapore ao sol?” E então algo acontece: ele resolve encarar a questão e vira a pedra e lê o que estava escrito atrás, tornando o velado desvelado. E o que o velado desvelado dizia? “Jogue-a no mar”. O mar. A água é certamente o elemento da mar, assim como a poesia é o elemento do poético. O permanente e atual é sempre a poesia, o elemento do poético. Permanente viver como vida poética é deixar-se tomar pelo elemento da vida, a poesia. Mas tem de ser um acontecer poético, onde permanentemente se experiencia a atualidade do poético. Quando acima perguntamos: O poeta é poeta porque faz poemas ou faz poemas porque é poeta?, deixamos sem resposta. Agora já podemos responder. Nem um nem outro: é a poesia. É na e pela poesia que a poética é sempre permanente e atual, o poeta é poeta e o poema é poema.
Em 1973 escrevi minha dissertação de mestrado, uma leitura poético-dialogal de Grande sertão: veredas, a que dei o título: O homem provisório no grande ser-tão. O ser é tão grande que nossa vida em meio à sua excessividade poética não pode senão ser provisória, enfim, uma travessia, a travessia do nada para o tudo, como nos diz Rosa. Começamos no Nada e somos projetados no não-finito. No entre-ser: a permanente e sempre atual travessia da liminaridade onde se dá o limite e o não-limite, a única possibilidade de conquista do humano. Estas palavras fazem parte da poética Roseana. Não disse Riobaldo que o que é para ser são as palavras? Na Área de Poética já se desenvolvia a Leitura Poética e uma reflexão profunda em torno da obra, diferenciando-a do utensílio e do objeto.
Em 1977, publiquei minha dissertação e um pequeno livro de ensaios intitulado: Travessia poética. Como vêem a minha experiência de vida de estudos sempre se desdobrava na juntura e conjuntura de minha formação profissional e do meu construir poético pessoal. É minha vida como uma dobra se desdobrando. O ser assediado pelas questões me levava a uma distância renitente em relação aos conceitos, porque amava e amo apaixonadamente a liberdade. Diante da Moira, do destino entre morte e vida, que uma Parca pacientemente tece e um dia vai cortar, só podemos amar e concretizar a liberdade fazendo de nossas procuras um acontecer poético, onde o social é o pessoal e o pessoal é o social como construção utópica permanente e sempre atual. Não há, não houve e nunca haverá qualquer modelo, qualquer arquétipo, qualquer suporte, qualquer paradigma, qualquer teoria que consiga enclausurar a experiência amorosa que é viver e viver a liberdade de viver, tendo como horizonte de sentido permanente a morte. Viver é tornar-se, construir-se livre, ser livre poeticamente, mas uma liberdade que encontra seu vigor e sentido na morte, não na pretensa liberdade da vontade e do querer subjetivo. Como exercer a razão crítica em relação ao que não se sabe nem pode caber na consciêncica? Não há identidades culturais, ideológicas, formais, religiosas, políticas que possam prescrever o que só cuidando livremente podemos realizar sempre inauguralmente como atualidade e permanência do poético, da poética: apropriar-nos do que nos é próprio. Isto é a essência originária do humano. E não só criar as condições sociais, mas também conjunturalmente desformatar as mentes e os corações. Isto é uma conquista sempre atual e permanente, isso é sempre uma conquista poética, porque cada ser humano, independentemente de cor, religião, partido, cultura, sexo é um “sendo” absolutamente inaugural, único: uma autopoiese dentro da rede social de relações, como hoje a genética nos propõe, mas que foi sempre o que os grandes poetas e pensadores já sempre defenderam. Porém, não somos o produto de um código genético, porque para além deste nosso destino, ou o quinhão (moira) que nos cabe no genos, somos um projeto da Cura, do cuidar, que poderemos realizar ou não em nossas pro-curas poéticas ou não poéticas. A liberdade do cuidar e do discernir, do criticar, pode-nos conduzir aos caminhos da errância na pro-cura da verdade. A permanência e atualidade da poética advém e só pode advir no e pelo cuidar do que nos é próprio, do que é próprio em cada um, pessoal e socialmente: nisso consiste a essência originária da identidade, da liberdade, do amar. Isso é a Poética.
Em 1979, defendi minha tese de doutorado. O tema era: O acontecer poético – a história literária. Como vêem, o poético, a poética não é algo acidental em minha vida., como não é na vida de cada leitor.
Porém, desde 1970 me tornara professor da Faculdade de Letras. Na realidade minha estadia na Universidade começou em 1965, quando fiz um ano de Sociologia. O social sempre me pré-ocupou, mas não e jamais como sistema ou ideologia. Assedia-me um social poético inaugural, utópico, fraternal, livre. Como professor, eis a ironia do destino, o que eu tinha de ensinar? Teoria literária. Afinal eu ensinava teoria literária ou poética? Eu formatava as mentes dos alunos nos suportes conceituais ou dialogava para que juntos falássemos com as obras? A tal diálogo chamávamos Leitura Poética, como está na minha tese de doutorado, publicada em 1982. Claro que as obras poéticas e o poético das obras sempre foram o mais importante, porque não exige nem permite que se parta de um suporte, de qualquer teoria. Mas não será isso impossível, segundo a teoria crítica moderna? Como fugir da subjetividade e do perspectivismo, da razão e da consciência crítica, do científico e objetivo como o único verdadeiro? Não me espreita o abismo do misticismo e da mistificação irracionalista? Do falar de Nada, fugindo da prisão obrigatória e obsessiva da razão? Quem pode em sã consciência afirmar só o querer da razão, diante do paradoxo poético de vida e morte, de noite e de luz? Do que vemos e sabemos vemos e sabemos tão pouco que nem vemos e nem sabemos o que nos está tão próximo, mas tão próximo que nem o podemos ver: nosso olho que vê. Nossa consciência pode tão pouco, tão pouco que nem pode sonhar os sonhos que quer nem na ordem lógica e consciente que a consciência quer, entregues interiormente, no nosso mais profundo íntimo ao inconsciente. Não será este o abismo sobre o qual já desde sempre pairamos, mas poeticamente? No conto “O espelho”, o personagem-questão, ao final de sua descida ao interior do que é, para continuar a ser radical, conseqüente e lógico, na descida, depara-se como uma situação extraordinária e enigmática para continuar o jogo do especular do espelho: o ter de se jogar no abismo, dar o “salto mortale” (1967: 78) e ainda ter de se perguntar: “Você chegou a existir?” (1967: 78). Nós chegamos, ao final, a existir? Na permanência e atualidade como diferenciar vida e morte? Mas há o poético e não apenas a medida cronológica ou científica da vida, numa definição biológica. Mas há o poético enquanto vida poética que nenhuma biologia nem nenhuma antropologia com seus suportes crítico-conceituais podem apreender. O conceito de vida da biologia nem de longe consegue apreender o que no mais amplo plano e no mais profundo e íntimo de nós mesmo cada um experiencia como vida. Dependendo da campo de conhecimento que trata da vida, biologia, psicologia etc., o que é vida muda completamente. Só não muda o ser medido por um suporte e paradigma. Mas será que a vida tem medida? O elemento da gota sendo o mar, o elemento do ser sendo Nada, que é tudo, não será essa a medida sem medida, porque a vida se quer e acontece sempre poeticamente? Como medir o poético com qualquer paradigma ou suporte?
Contudo, em meu percurso profissional experienciei uma outra realidade, bem diferente da Leitura poética, na qual o diálogo substitui a análise e aberta à escuta do logos. Com o passar dos anos, constatei que as Correntes críticas se sucediam e ainda se sucedem. Sempre há uma Corrente crítica nova. De certo, vocês podem argumentar: o conhecimento evolui, muda, se renova. É a vida. Pensar a mudança sem a permanência, é abandonar a possibilidade do atual. O atual é sempre concreto, porque vigora no originário, no poético. As novas obras poéticas não são repetição das anteriores, mas também não são evolução. As questões não evoluem, não progridem. Contudo, a cada obra poética nova elas são experienciadas inaugural e originariamente. A vida é sempre experienciação originária, porque é poética.
Depois de trinta e oito anos de vida profissional, constato a enorme variedade e sucessividade das Correntes críticas. Num levantamento não exaustivo, constatei vinte e seis. Claro que de algumas vocês nem mais ouvem falar. E até quando se falarão destas de hoje? Eis os nomes, sem preocupação com sua sucessão historiográfica:
1 – Fenomenologia da obra de arte.
2 – Desconstrucionismo.
3 – Estudos culturais.
4 – Realismo crítico.
5 – Estética da recepção e do efeito.
6 – Psicanálise.
7 – Teoria crítica ou Escola de Frankfurt.
8 – Crítica feminista.
9 – Formalismo russo.
10 – Estruturalismo.
11 – Nova crítica.
12 – Sociologia da literatura.
13 – Impressionismo.
14 – Biografismo.
15 – Estilística.
16 – Semiologia.
17 – Estudos neocoloniais e pós-coloniais.
18 – Estudos de gênero e etnia.
19 – Pós-estruturalismo.
20 – Pragmática.
21 – Teoria empírica.
22 – Teoria dos polissistemas.
23 – Poética lingüística.
24 – Estética.
25 – Hermenêutica.
26 – Gêneros discursivos e textuais.
É ainda necessário incluir dois modelos de analisar as obras e classificá-las, que não são tratados como correntes críticas, mas que se movem nos mesmos princípios da epistemologia crítica da Modernidade:
26 – Estilos de época.
27 – Gêneros literários.
Diante de uma diversidade tão grande, que não pára de crescer, o que fazer? Esclareça-se ainda que essas posições não são uniformes. Em torno de cada uma há uma diversidade de autores com pontos de vista bastante variados. É claro que essas diversas e aparentemente contraditórias posições têm um fundo comum. Todas elas são filhas da metafísica, consubstanciada na epistemologia crítica da Modernidade. Em última instância, são desdobramentos da filosofia cartesiana, kantiana e hegeliana. Nestes há dois traços comuns: a epistemologia crítica. Mas esta não permeia só os estudos das artes. No dizer de Octávio Paz, ela atingiu todas as instâncias do real:
A modernidade começa como uma crítica da religião, da filosofia, da moral, do direito, da história, da economia e da política... Crítica do mundo, do presente e do passado; crítica das certezas e valores tradicionais; crítica das instituições e das crenças, o Trono e o Altar; crítica dos costumes, reflexão sobre as paixões, a sensibilidade e a sexualidade... (Paz, 2001: 34, 35).

Essa crítica que tudo abrange, tinha em mente um abandono do passado e a construção de uma nova realidade utópica, baseada na liberdade crítica da razão. É nesse horizonte que os movimentos artísticos se sucedem e também as Correntes críticas. Há uma oposição entre passado e futuro, que hoje se esvai na fluidez de um presente imediato e técnico, onde técnica e capital fazem os jogos das metas como progresso e desenvolvimento, gerando um sistema abrangente, que a tudo quer transformar em recursos humanos e naturais. Toda a realidade continua crítica, agora no sentido de ser criticamente sistematizada, controlada e anestesiada pela estética do consumo. A esta nada escapa. O grande aliado são os recursos técnicos, cada vez mais amplos e potentes. E quem os promove são as universidades e os centros de pesquisa. Tudo hoje é objeto de pesquisa, aplicada ou teórica. Destrói-se o conhecimento para se reconstruir com mais sofisticação e abrangência. O real é a medida do real, isto é, o real é o calculável.
E em meio a tudo isso onde fica a Poética? Não será ela também uma Corrente crítica entre outras? Podemos falar de duas Poéticas. Para apreendê-las é necessário trazer para reflexão a questão da verdade. A história do Ocidente é a história da variação da essência da verdade. Podemos falar, basicamente, em duas essências: a conceitual e a originária. Portanto, também em duas verdades e em dois reais: o real e verdade conceitual e o real e verdade originária. Em si, uma não se opõe à outra. A grande questão é a verdade conceitual tender a reduzir o real ao seu modelo, pela globalização da técnica. Esta tendência é tão forte que gera as próprias Correntes críticas, através das quais até as criações poéticas ficam delimitadas pelo alcance de sua verdade. No âmbito desta verdade todo o real torna-se uma representação e dependente do conhecimento causal, funcional, cronológico e útil. O real é concebido como sendo constituído por leis, que as diferentes teorias das disciplinas tratam de explicitar e dominar através das pesquisas. Hoje tudo tem que ser objeto de pesquisa, caso contrário não receberá financiamento nem apoio. E tudo é regido por metas. Os próprios cursos de pós-graduação são estruturados dentro desta teoria e visão de mundo. Em tudo se busca a lei da coesão e coerência. É uma busca desenfreada para determinar quem é primeiro: a galinha ou o ovo? É questão de achar a causa e estabelecer a finalidade. A esta finalidade não fogem algumas criações ditas artísticas. Elas têm que trazer impacto, causar prazer estético, levar as pessoas a participar, a agir, isto é, a se agitarem. Acabou-se a contemplação. Em boa hora seria, se por contemplação se entendesse uma teoria como modelo a ser alcançado. Não é o caso. Tudo isso apenas quer reforçar esse modelo ideal e metafísico. E dentro desse modelo foram também surgindo algumas poéticas: a dos gêneros, numa leitura equivocada e metafísica de Aristóteles, a moralista do renascimento, a semiótico-estrutural. Aqui sempre se trabalha com modelos ou arquétipos, idealmente estabelecidos, que servem de guia para realizar as obras poéticas, mas sobretudo para classificá-las. São, pois, modelos funcionais que, em seus fundamentos metafísicos, em nada diferem dos modelos funcionais das Correntes críticas e de toda a construção do real: causal, funcional, objetivo, finalista. Claro que tais poéticas não são permanentes nem atuais.
A Poética das obras poéticas é sem por quê como as próprias obras poéticas. Não quer estabelecer nenhuma finalidade seja, estética, seja ideológica, seja prática. Nela vigora a verdade manifestativa do real, um real concreto do acontecer poético, onde todas as dimensões do real se fazem presentes, no ambíguo sentido que esta palavra tem: o que é o ser é ser presente, fazer-se presente, manifestar-se, doar-se, e neste doar-se oferecer-se como presente, doação ao ser humano, para que este, poeticamente, se realize em sua essência poético-originária: alcançar na travessia o humano. Num tal real não é só real o que se manifesta, mas também o que se vela, não é apenas real o que se fala, mas também o silêncio. Não é apenas o que se vê, mas também o que não se vê. Se vemos tão pouco que nem podemos ver o fundo de nossas retinas, tão próximo, como ainda querer trazer para o saber epistemológico a coesão e coerência do silêncio, a dobra de vida e morte? Feitos por Cura, temos que fazer de nossas pro-curas o cuidar poético do que somos e não somos. Mas só seremos radicalmente poéticos se ao cuidar do que nos é próprio, este cuidar não for qualquer cuidar, mas um cuidar poético, onde o que o move como permanência e atualidade é o Amor. E há algo mais poético, permanente e atual que o Amor?

Bibliogafia:
ROSA, João Guimarães. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Fortuna crítica. 2. e. Rio, Civilização Brasileira, 1991, pp. 62-97.
-----------------------------. Grande sertão: veredas. 6. e. Rio de Janeiro, José Olympio: 1968.
-----------------------------. Primeiras estórias. 3. e. Rio de Janeiro, José Olympio: 1967.
-----------------------------. Tutaméia. Rio de Janeiro, José Olympio: 1967.
DOLEZEL, Lubomir. A poética ocidental – tradição e inovação. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1990.
WELLEK, René. História da crítica moderna. São Paulo, Herder, 1967, IV volumes.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 4. e. Rio de Janeiro, José Olympio: 1973.
PAZ, Octávio. A outra voz. São Paulo, Siciliano, 2001.

Um comentário:

Silvia disse...

O senhor me ajudou muito emseu trabalho poético.Grata!