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Shakespeare
Num mundo globalizado fica cada vez mais difícil achar um caminho adequado frente à produção e reprodução de novos conhecimentos. Teríamos que ter muitas vidas e não fazer mais nada senão ler para poder acompanhar tudo que está à disposição nas bibliotecas e, hoje sobretudo, na internet. O que fazer ma vez que temos apenas uma vida e cada vez como menos tempo disponível para ler?
A cultura sempre girou em torno de três núcleos: produção, acumulação e transmissão. Em nosso processo educacional a tônica se dá na transmissão do acumulado. E a produção? Mas o que é produção? Devemos distinguir: sabedoria, conhecimento, informação. Informações são produzidas descomunalmente cada dia. Mas na maioria quase absoluta são descartáveis. Já o conhecimento passa por uma expansão alucinante, pois hoje se vive uma corrida desenfreada por novos conhecimentos, melhor dizendo, por conhecimentos técnicos. É que há um círculo entre a produção e a transmissão. Os desenvolvimentos técnicos da computação tornaram o problema da acumulação praticamente resolvido. Podemos concretamente carregar bibliotecas inteiras e de grande porte num “hd”. Ocorre que tradicionalmente a acumulação era função do cérebro humano. Hoje ele não dá mais conta disso, diante da produção geométrica de conhecimentos pelas novas pesquisas. Também a transmissão sofre transformações profundas e até diria inimagináveis. O sistema de escolas como está hoje montado é coisa do passado e tenderá a se extinguir. Mas o que nos interessa é o problema da produção e da acumulação. O que fazer hoje?
Podemos notar que nada disse até agora do saber. As informações estão hoje servidas por amplos sistemas nas mais diferentes mídias. Então não é problema. Este se faz presente quando se trata de conhecimentos e saberes
Um fato bastante recente é que os conhecimentos produzidos pelas ciências estão diante de um paradoxo: de um lado, sofrem uma expansão nunca vista, mas, de outro lado, tais conhecimentos têm cada vez mais uma vida muito curta. São quase tão voláteis como as informações, que não resistem ao tempo real da transmissão pelos novos meios eletrônicos. Mesmo diante dessa volatilidade é impossível acompanhar e tomar conhecimento de tudo. Não bastasse isso ainda há a necessidade da interdisciplinaridade.
Como esses problemas se apresentam em relação às artes? Por que esta pergunta? É que em relação às artes não basta ter conhecimentos, pois elas são essencialmente portadoras de saber. Nelas se fazem presentes os conhecimentos e o saber. Nenhuma ciência produz saber, só conhecimentos. A diferença fundamental entre conhecimentos e saber é muito simples de dizer, mas dificílimo de compreender e realizar: Os conhecimentos se movem em torno de problemas. O saber se move em torno de questões.
Os problemas são históricos e circunstanciais, além de passíveis de solução. É certo que por essa condição estão também surgindo sempre novos problemas. A realidade histórica produz sempre novos e contínuos problemas. Mas eles podem ser equacionados e resolvidos. Já as questões não são históricas. Elas constituem a história. Por isso mesmo é que o ser humano tem problemas, mas é constituído pelas questões. Não é ele que as tem. São elas que o têm. Isso não quer dizer que as questões são atemporais, pois aí já estaríamos partindo de um conceito de tempo.
Qualquer pessoa percebe que aí nos movemos num círculo vicioso e até ilógico. Ao dizermos que as questões constituem o ser-humano não estamos já conceituando as questões e o próprio ser-humano? Será? O que é conceituar? Atentemos para o que se passa com quem pergunta, se não for uma pergunta meramente retórica. Notamos que perguntar é questionar. Todo perguntar implica um conhecer e um não-conhecer em torno de problemas, e um saber e um não-saber em torno de questões. No primeiro pode-se procurar transformar o não-conhecer do problemas em conhecimento. Um jovem que não sabe uma língua pode estudá-la e passar a conhecê-la. O genoma humano já foi mapeado, mas ainda não é todo ele conhecido. O mesmo não acontece com a questão. Esta nunca se deixa resolver na resposta enquanto conhecimento, porque a resposta só produz conceitos. E estes nunca dão conta de abarcar, delimitar e circunscrever as questões. Simplesmente porque as questões precedem todo perguntar. Por quê? Perguntar é concretamente perguntar por algo, é uma determinada ação. Mas quando se pergunta por alguma questão o que está em questão é o próprio perguntar, é o próprio agir. E o perguntar pelo agir já recoloca de novo e de maneira intransponível a questão do agir. Por quê? Só se pode perguntar agindo. O concreto exercício do perguntar ou questionar não pode dar conta nunca da questão que constitui a essência do agir. Pois só agindo podemos questionar. É no sentido da essência do agir que a questão precede todo ser humano, pois este só é ser-humano ... agindo.
Este agir essencial se configura em questões, que por isso mesmo precedem o ser-humano na medida em que o manifestam. Agir é viver e morrer. Agir é viver no tempo e na linguagem. São questões. Como questão, por isso mesmo é a linguagem que fala, não o ser-humano, pois só já se movendo na linguagem e na abertura para sua escuta é que podemos realmente falar de ser-humano. E então aparecem aí duas novas questões: real e verdade. Notamos logo que já enumeramos algumas questões. Estas não podem ser resolvidas com os conceitos nem com os conhecimentos. É que as questões nos movem sempre no âmbito do saber.
Se as questões nos assediam nem por isso deixamos de experienciá-las sempre em novas dimensões: as dimensões do saber consubstanciado na memória das obras de arte. Mudam as experienciações das questões mas jamais podem ser resolvidas como se fossem problemas. Resolvê-las seria extinguir o ser-humano.
As questões e o saber vivem numa tensão ambígua com os problemas e os conhecimentos. Na medida em que os conhecimentos resolvem os problemas fazem emergir com mais nitidez o mistério e os enigmas das questões. Do mesmo modo que os conhecimentos e os conceitos promovem um aprendizado também o saber e as questões fazem crescer o ser-humano numa aprendizagem.
O ser-humano experiência o real enquanto liminaridade, pois vive a tensão de saber e não-saber, ser e não-ser. Por isso é pelo enfrentamento das questões que ele revela o de que ele é capaz tanto enquanto conhecimento quanto enquanto saber. Pela liminaridade o ser-humano nunca se dá por satisfeito com os limites dos conhecimentos e se lança continaumente a novos desafios, mas o que mais o desafia é enfrentar as questões. É um enfrentamento que lhe dá a medida do que ele é e não é. E é na experienciação do não-ser que lhe advém o saber e a aprendizagem. O lugar de tal enfrentamento é o fazer arte. É nele, por ele e com ele que cada ser-humano se densifica no que ele é e não-é. Por isso a arte é um jogo poético-onto-fenomenológico e não e jamais um exercício conceitual-epistemológico ou estético.
Nas obras de arte está sempre em questão o que cada um é e não-é, não só singularmente mas também coletivamente. E mais. A predominância absoluta dos conhecimentos exige de nós hoje uma tomada de posição em defesa do corpo comum a todos os seres-humanos que é a Terra, a Mãe-Terra. É nesse momento que se vê a importância fundamental da arte. Uma arte que nada então tem a ver com conhecimentos conceituais onde se olha a arte a partir de classificações, gêneros e funções. A arte só é arte quando enquanto obra nos defronta com nossos limites diante do não-limite das questões.
O pôr em questão
As questões se dão sempre num exercício concreto e isso se faz pondo algo em questão. Então nos referimos ao que está em questão. Porém , este uso pode dar margem a imprecisões terminológicas. O que está em questão pode então ser entendido como: tema, matéria, tarefa, assunto. Esses termos não indicam a mesma coisa e muito menos podem ser confundidos com as questões.
A respeito de um tema, assunto, matéria podemos desempenhar uma tarefa. Esta por sua vez pode ter três atitudes:
1ª. Uma exposição descritiva;
2ª. Uma problematização;
3ª. Um questionamento.
1ª. Descrição. Esta consiste essencialmente em descrever expondo o tema, o assunto, a matéria em que consiste através de diferentes visões ou conceitos.
2ª. Problematização. Esta consiste na escolha de um tema, assunto ou matéria para discutir as diferentes visões ou conceitos, mostrando as suas diferenças e insuficiências e propondo um novo encaminhamento conceitual. O novo conceito desfaz a problematização ou encaminha a sua solução, pois ela por definição é passível de uma solução.
3º. Questionamento. O tema, assunto ou matéria pode ser constituído por uma ou mais questões. A questão ou questões é que determinam ou configuram o tema, assunto ou matéria. Mas neste caso não costumamos usar estes termos e, sim, muito mais três expressões equivalentes: O que está em questão. A coisa em questão. O objeto em questão.
Neste caso temos algo fundamental: vai haver uma tensão entre questão e conceito ou conceitos. Estes não bastam. E, portanto, vão ser questionados, postos em questão. O conceito configura um conhecimento. A pergunta questionante questiona esse ou esses conhecimentos conceituais ou a experienciação da questão. No pôr em questão não se quer dar conta do conhecido, mas fazer irromper um novo conhecimento a respeito da questão, o não-saber pelo qual se pergunta.
A pergunta se torna questão quando pergunta pelo ser (agir). Porém, a pergunta não institui nem funda o ser. Ela o quer configurar no conceito, na resposta. Uma vez que a pergunta pergunta a partir do ser e pelo ser, ela só o pode fazer porque já se move no questionar, na questão. Por isso, o que move e funda a pergunta é o questionar. Como no questionar sempre se pergunta pelo e a partir do ser, o questionar e as questões são manifestações do próprio ser e igualmente suas respostas. Chama-se época à irrupção de novos questionamentos e respostas do, no e pelo ser. Nesse sentido somos sempre questões não só do ser, mas do ser como memória, tempo, linguagem, póiesis.
Enquanto somos e só sendo somos, não somos nós que colocamos as questões, mas são elas que já desde sempre nos constituem. Por isso, na pergunta há três referências: o perguntador, o perguntado, o ser.
O assunto, tema, matéria só se podem constituir como tais na medida em que são constituídos pelas questões. Nesse sentido, as questões jamais têm soluções, ou seja, uma vez que se movem no âmbito do ser, nenhuma pergunta ou resposta pode dar conta do ser, pois toda pergunta e o perguntador sempre necessariamente se movem no âmbito do ente, do sendo.
Nós sempre teremos questões porque movendo-nos no âmbito do ente só poderemos obter nas respostas conceitos, que são a delimitação de algo que é. E o que é é o ente. Já a questão está já desde sempre para além do ente, do delimitdado e conhecido. Por isso é que com propriedade dizemos que não somos nós que temos as questões, mas as questões é que nos têm.
No questionar, “o que”, “a coisa”, “o objeto” em questão já mostra e demonstra pelo próprio questionar o estar além dos conceitos. Nesse sentido é que dizemos que tema, assunto, matéria é que são consituídos pelas questões. São estas que configuram e reconfiguram o tema, o assunto e a matéria. Quando estas é que se impõem então temos apenas uma problematização ou uma descrição problematizante. A descrição também pode preparar a eclosão da questão.
Por isso a atitude é diferente nos três casos. Na descrição e na problematização, o sujeito é que exerce a sua vontade e razão, e se move necessariamente no complexo conceitual. Já no questionamento a matriz do questionar não é o sujeito com sua vontade e razão. O questionador até tenta, procurando na resposta delimitar a questão conceitualmente, mas sempre fracassa, porque a questão é mais do que ele pode, pois o questionar provém de outro poder-ser, o ser. E só por já desde sempre estarmos abertos ao ser é que podemos questionar.
Se a questão não vige no vigor do sujeito e do seu querer, onde ele vige? O sujeito e o seu querer exercitam a razão conceitual-instrumental-funcional-comunicativa e chegam ao “como” do ser, mas ficam aí determinados e delimitados enquanto razão e jamais se consumam no que são.
O sujeito perguntador só se abre para as questões quando ele se abre para a vigência do pensamento e da arte, e isto é mais do que a razão, é o poder-ser corpo. No pensamento se dá a densidade da palavra-poética e na arte se dá a vigência das imagens-questões, que são a manifestação da sintaxe poética. Uma imagem diz aí o manifestar-se do ser enquanto physis que se vela, que poeticamente ama velar-se. Por ser imagems e amar velar-se é que é questão e não, tema, assunto, matéria.
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