08 dezembro 2007

As questões da questão da arte



Prof. Manuel Antônio de Castro


gota de orvalho
ao sol da manhã
precioso diamante

(Bashõ)


As questões

No § 206 Heidegger diz a propósito de seu ensaio A origem da obra de arte:

No interior da referência humana à arte, dá-se a outra ambigüidade do pôr-em-obra da verdade, que à p.59 [§161] é denominada como criar e desvelar. De acordo com o que é dito nas páginas 58 e seguintes [§158 e seguintes] e 47 [§124], a obra-de-arte e o artista baseiam-se simultaneamente no que se essencializa na arte. Na frase: “Pôr-em-obra da verdade”, em que fica indeterminado, porém, determinável, quem ou o que em qual modo “põe”, vela-se a referência do ser e da essência humana, e tal referência, nesta formulação, já é pensada inadequadamente, - uma dificuldade aflitiva que está clara para mim desde Ser e tempo e, depois, é dita em muitas formulações (veja por último Zur Seinsfrage [Para a questão do ser] ) e no presente ensaio à p. 49 [§131]: “Seja apenas observado isto que ...”.

Se lermos com atenção o que o autor aí diz, quando afirma: “...vela-se a referência do ser e da essência humana, e tal referência, nesta formulação, já é pensada inadequadamente, - uma dificuldade aflitiva que está clara para mim desde Ser e tempo e, depois é dita em muitas outras formulações...”, vamos ser remetidos para um horizonte de reflexão, quando se busca o originário da obra de arte, para Ser e tempo, mas na medida em que neste acontece uma procura da “referência de ser e essência humana”. Mas esta “referência” não é algo assim tão fácil e determinável, pois ela “...vela-se...”. Para onde nos remete este velar-se? Para onde Heidegger nos está remetendo quando na tematização do originário da obra de arte nos lança retrospectivamente na grande questão a partir de onde se tece e entretece Ser e tempo? Ora, o autor não cansou de dizer e repetir exaustivamente que a grande questão em questão é o esquecimento do sentido e da verdade do ser, o esquecimento do ser, porque desde a filosofia grega como filosofia não se falou propriamente a não ser do ente. Mas são tantos os discursos sobre o ser no percurso do Ocidente! O que aí o pensador nos propõe para ser pensado? E que diferença faz isso para a arte? Certo é que uma coisa é pensar a arte no horizonte do ente e outra, bem outra, é pensar a arte no horizonte do sentido e da verdade do ser.
Por isso, não adianta tentar adentrar a questão da arte, do originário da obra de arte, se antes não se enfrenta, de frente e inequivocadamente, a questão do esquecimento do ser. O que é isto – o esquecimento do ser, o esquecimento do sentido e da verdade do ser?
Pensar isto – é abrir-se incondicionalmente para um diá-logo não só com a tradição ocidental, mas radicalmente com o imemorial da memória. Esta abertura exige a vigência e a abertura a partir de três verbos: questionar, diferenciar, dialogar. Questionar diz inauguralmente o pôr em questão no e pelo perguntar. Mas este é um conduzir-se nas entre-vias do saber e do não-saber, por isso o questionar é regido pelas vias do “entre”, do “di-“ do di-ferenciar. Se somos, de fato, conduzidos pelas vias do “di-ferenciar“, já nos movemos na clareira do aberto, isto é, no dia-logar, onde as entre-vias se tornam “vias” do “logos”, o “mundo” do aberto da clareira. O que é isto - o “dialogar” como “entre-vias” do “logos”? Dialogar é deixar o “logos” se densificar no e pelo poietizar (dichten/poiein/Dichtung/poiesis). As “entre-vias” são as questões, como diferenças essenciais.
Muitas são as questões em nossa vida, quem o poderá negar? Porém, o Ocidente se constitui como Ocidente quando se instaura a questão inaugural? O que é isto – o que permanece no fluxo das mudança?. Esta é a questão inaugural. Mas a quem se dirigia esta questão? Evidente: à Physis. O que na pergunta se pergunta? Não qualquer coisa. Quando o “isto” é a questão, então a pergunta pergunta pelo “originário”, pela “arché”.
“Isto” que parece tão simples continua hoje a nos questionar. Mas na longa e mutante via do Ocidente, ela se densificou e hoje podemos desdobrá-la em duas, inscrita numa terceira que é a primeira e que toma três faces:
Eis as duas questões permanentes e mutáveis:
1ª. O que é isto – o ser humano?
2ª. O que é isto – a filosofia? O “isto” da filosofia não é simplesmente qualquer filosofia do isto e aquilo. Tal questão questiona no e como princípio: O que é isto – a physis?
Estas duas perguntas estão em tensão, a tensão de physis E homem. É a referência a que Heidegger se reporta no § 206, a referência originária de “ser e essência do humano”.
3ª. Para não cair numa resposta/conceito de essência essencialista, porque a physis é sempre um acontecer poético-apropriante, esta questão, embora terceira é a primeira. E se desdobra em três faces:
3.1 – O que é isto – o mito? Esta pergunta traz incrustrada a pergunta pelo sagrado;
3.2 – O que é isto – a arte? Se esta pergunta, por um lado, se liga ao mito e, portanto, ao sagrado, por outra, não se pode separar da filosofia/pensamento, surgindo a terceira, certamente ligada também ao sagrado, mas como que aparentemente vindo em terceiro lugar;
3.3 – O que é isto – o pensamento? Mas não é esta a pergunta pelo isto da filosofia? Sim. E aqui um esclarecimento. Moderna e metafisicamente, o ponto de partida deve ser epistemologicamente o homem que pergunta, pois, em si, a physis, parece não pergunta. Que não pergunta é fato, mas que ela já Se dá como questão é um fato mais incontestável que precede toda e qualquer pergunta, caso contrário nem se poderia perguntar. Então, na realidade, devemos agora dizer que a primeira pergunta não é: O que é isto – o ser humano?, mas: O que é isto – a physis? Para sermos ainda mais lógicos na evidência das questões, devemos dizer ainda mais verdadeiramente, que a physis Se dá como questão nas três faces da terceira. Estas três questões como desdobramento da segunda são, na realidade, o elemento onde viceja a primeira. Enfim, as três questões/perguntas inaugurais e originárias se interligam e explicitam circularmente e vão ter sempre como elemento a questão inaugural da arché e do telos (Princípio/Ursprung).

O humano
A apropriação do homem como humano gera um “entre” desdobrado em três caminhos do mesmo, mas não sendo a mesma coisa: 1º. Mito; 2º. Arte; 3º. Pensamento/filosofia. Porém, o núcleo das duas questões inaugurais a partir da primeira se dá na tensão de ser e ente, localizado no “isto” como essência essencial – a questão ontológica, e como essência essencialista – o conceito epistemológico. Pergunta pela arte é pergunta sempre e sempre pelo humano. Então a tarefa consiste em inaugurar no pensamento do ente o esquecimento do ser, na verdade do ente como presença, a não-verdade como ausência velada, na fala da linguagem falada, o silêncio da não-linguagem, no saber do ente, o não-saber do ser, na historiografia dos fatos, a história da vigência da memória como acontecer poético, no é de todo ente, o não-é do Nada de todo ser.

Postura
Mudar nossos hábitos e certezas conceituais e nos abrirmos para as questões não assim tão fácil. Como deixar vicejar no solo firme de nossos pés conceituais, o sem fundo do permanente da mudança? É assim tão fácil deixar acontecer

gota de orvalho
ao sol da manhã
precioso diamante
Não. Não é. Dar esse “salto mortal” - perigoso – exige coragem.
Por isso podemos falar de duas posturas básicas:

1ª. A que se restringe unicamente ao ente e diz respeito a todos os conhecimentos da ciência. Temos de partir da ciência porque é ela o horizonte dominante hoje, a partir da qual se determina o que é a filosofia, o que é a teologia, o que é o homem, o que é a arte, o que é o mito, o que é Deus, o que é tudo que é. Este poder avassalador da ciência é um desdobramento natural da filosofia, onde ela como ciência morde o próprio rabo, porque a filosofia, ao responder à questão que a funda e constitui, respondeu não ao “isto” da physis, ao “isto”do “ser”, à sua arché, à sua essência essencial, mas à essência essencialista- conceitual do ente; Não se ateve ao: “Que é isto – a árvore?”, mas simplificou tudo na claridade essencialista: O que é a árvore? (o ente árvore). E respondeu com a definição conceitual. São estas definições – citadas e recitadas religiosamente no altar dos conceitos – que fazem a sorte dos eruditos citadores e das disciplinas colonizadoras da physis, do originário da physis.

2ª. A que, além do ente diz respeito também ao ser e então todos os conhecimentos adstritos ao ente pulsam num outro horizonte e configurações realmente diferentes. Mas isto é impossível de acontecer e ser vigente, em todos os conhecimentos, e mais especificamente no que diz respeito à arte, se não se retorna, obrigatoriamente, às três questões fundadoras, não esquecendo, evidentemente, que há uma história do destino do ser.
Para a primeira atitude tudo se torna objeto de classificações conceituais, de pesquisas historiográficas, como se a história fosse simplesmente uma sucessão cronológica de causas e conseqüências, como se não houvesse memória. Não há história sem memória. Mas não é aquela que determina esta. Muito pelo contrário, é o acontecer desta que dá os possíveis sentidos e verdades do que como história se quer constituir como história. A história como memória nada mais é do que a história do sentido e da verdade do ser, porque nenhum ente se pode arvorar em sentido e verdade do ser. Porém, na memória Se dá destinalmente, como acontecer poético, a manifestação do que dando-se e se fazendo presente nos presenteia com o seu velamento. Por isso não basta procurar a coerência e coesão do que Se dá e presenteia como presença. É também necessário se perguntar e se abrir para o que Se dando como presente se vela e silencia. Quando perguntamos pela coerência e coesão do que no presente Se presenteia como presença, devemos saber o não-saber dessa pergunta, a não-verdade desse diferenciar, o não-ser desse dialogar. Como? Radicalizando e perguntando: Qual é a coerência e coesão do velamento,do silêncio? Qual é a verdade da coesão e coerência da não-verdade? Qual é a coesão e coerência do sentido do Nada do não-ser. Talvez aí possamos pensar a ciência na sua verdade lógica a partir da lógica da verdade, onde esta precede aquela como a não-verdade de toda verdade. Mas pode a lógica pensar a não-verdade? Não. Mas a não-verdade pode pensar a lógica, assim como o silêncio pode pensar a não-coerência e não-coesão enquanto a não-linguagem da linguagem.

A questão da arte
Por que “isto” é importante? Porque a importância não vem da ciência, mas do “isto” enquanto originário e enquanto arché, na pergunta que é a questão da arte: O que é “isto” – o humano do homem? Ou seja: O que é “isto” – a physis? O que é “isto” – o que permanece no fluxo das mudanças?
Estas são as questões da questão da arte. E só pensando-as podemos pensar originariamente: O que é isto – a arte?
Ou como nos lembra Bashõ, provocando o diálogo com Alberto Marsicano (esperando o nosso):

“...manifesta-se[no Haikai de Bashõ] o fluir contínuo e errante através da
eternidade, a compulsante unidade estabelecida entre o elemento efêmero,
transitório e mutável (ryuko) e a imutável e eterna essência (kyo):

gota de orvalho (transitório do ryuko)
ao sol da manhã (eterno do kyo)
precioso diamante (unidade)

(Alberto Marsicano, 1997: 16)

BASHO. Trilha estreita ao confim. Trad. Kimi Takenaka e Alberto Marsicano. S. Paulo, Iluminuras, 1997.

05 novembro 2007

Amor


Manuel Antônio de Castro

Quando duas pessoas se amam, não amam uma à outra. Amam o amor que as une e faz amorosas. Somos sempre amantes do Amor, porque o Amor é o fogo da vida , eros, o vigor do sagrado. Amor do sagrado que acontece em cada amante, eis o Amor dos que verdadeiramente se amam.
A cada dia a Mãe-vida se doa inauguralmente pela excessividade amorosa. Habituados ao habitual, agradecemos mal e não nos deixamos amar pelo Amor.

03 novembro 2007

"Deus" é fiel?





É muito fácil ao ser humano transpor para "Deus", que não deve nem pode ser um nome entre nomes, mas o mistério, problemas do seu âmbito de ação e comportamento. Por isso vemos que há uma insistência em querer atribuir a "Deus" qualidades ou atributos estritamente acidentais, que só podem dizer respeito ao ser humano. Não é melhor o respeito do silêncio? O acolhimento de sua presença e sentido?
Deus é fiel. Eis uma afirmação inútil e perigosa. "Deus" não é fiel nem infiel. "Deus" não é, pois se fosse seria um "ente" entre outros "entes", e não "Deus". Como "Deus" ele já contém em-si todas as qualidades ou, o que dá no mesmo, nenhuma. Ele é uno, bom, belo e verdadeiro, de uma maneira absoluta. "Deus" é fiel ou infiel, no fundo, dá no mesmo, pois tais adjetivos ou atributos nada dizem quando se trata de "Deus", que melhor seria denominar "Mist´rio". Por isso "Deus" não é fiel ou infiel, porque não "é". Só o ser humano, que "é", pode ser fiel ou infiel. Por que não acolher "Deus" como o vigor do silêncio e deixar que escutemos, fiel ou infielmente, o mistério da sua voz e assim nos tornemos humanos? Humano? Sim, o deixar acontecer o mistério que leva cada um à dignidade do que é., acolher, enfim, a claridade de sua verdade, habitar nela, tornando-a o sentido de nosso viver. E mais: unir-se e reunir-se a todos os seres num hino de louvor e gratidão, sem julgar aos outros, numa procura incessante do que recebemos para ser. Nisso podemos ser fieis ou infieis, fracos, débeis, finitos. Até para nos sabermos infieis e finitos já temos que ter a abertura, que só o Mistério nos pode conceder, e concedeu por simplesmente sermos humanos, de sua presença. Experienciá-la é que é ser fiel, grato. Rio, 03-11-07

08 outubro 2007

A Universidade do porvir - Reflexões



www.dicpoetica.letras.ufrj.br.



1 - Apresentação

As presentes reflexões procuram responder e corresponder à dinâmica integradora do saber e do conhecimento numa sociedade do conhecimento em rede e de uma cultura globalizada em que hoje vivemos. Voltam-se também para uma visão crítica e assinalam alguns pontos a serem considerados caso se queira pensar uma universidade que corresponda à sua vocação original e aponte caminhos novos pela revitalização do impulso que a criou. Mais do que um modelo acabado têm por finalidade estas reflexões trazerem uma contribuição de questionamento que se una a outras para assumirmos a responsabilidade consciente de pensar uma universidade por vir, em consonância não só com nossos tempos, mas também tendo em vista a realidade e o mundo que queremos construir.

2 – A universidade

A uni-versidade surgiu quando se quis constituir um saber que abarcasse e, ao mesmo tempo, dissesse respeito ao todo da realidade, apreendendo na unidade a di-versidade de fenômenos e conhecimentos. O grande ponto de partida foi a pergunta pela physis, ou como a denominamos hoje, a natureza, da qual se buscava o princípio de origem e de constituição, o que os gregos nomearam como arché. A busca da arché foi-se desdobrando em muitos princípios, questões e conceitos. E desde então é longa e complexa a maravilhosa história dessa procura. Porém, algo estranho aconteceu: perdeu-se a idéia de unidade enquanto princípio. O conhecimento tendeu a se separar cada vez mais da natureza viva, multiplicando-se até hoje em novas disciplinas. E pelo predomínio do conhecimento técnico levou a profundas transformações dos ecossistemas, de tal maneira que hoje seus efeitos ameaçam a mãe-Terra, considerada pela teoria de Gaia, vida, origem e fonte de todos os seres-vivos. Os gregos a entenderam em seus mitos como zoé, não um sentimento de vida, mas o vigor e princípio de toda vida, de todos os seres viventes. A universidade não se vê apenas diante do problema da proliferação incontrolável de disciplinas e seus conhecimentos cada vez mais especializados, precisando urgentemente de uma nova organização e fins, mas também diante da questão mais profunda de tentar reencontrar o saber que lhe deu origem e é o seu motivo de ser. Para isso é necessário que ela integre saber e conhecimentos.

3 – Os fins da universidade

Tendo em vista uma nova universidade, deve-se procurar integrar nela, na formação do ser humano e na integração deste ao corpo social, o saber e os conhecimentos, e o possível exercício de ambos na vida social e pessoal, dentro de quatro pressupostos básicos integradores:
1º. A tensão criativa entre a realidade como um todo e o saber e os conhecimentos ensinados e produzidos na Universidade;
2º. A formação do ser humano tendo em vista a experienciação de um saber e a prática de um conhecimento profissional e funcional que o integre no corpo social;
3º. A concretização de um saber mais integral, enquanto realização do que cada um é e o exercício pleno da cidadania, para que não haja separação entre o que se conhece e o que se é, nem entre pessoa e ser social;
4º. A realização de um saber e conhecimentos que integrem a Terra e a sociedade, tendo como referências a identidade humana e as diferenças culturais.
A universidade não pode ser uma ilha em meio a uma realidade em contínua transformação. No entanto, deve ser repensada como pólo de produção múltipla dos conhecimentos e do saber e, ao mesmo tempo, como o lugar de integração e reflexão pelas quais eles estejam a serviço do humano do ser humano e da Terra como um todo (zoe).

4 - A universidade e o ser humano

Ao longo da sua preparação, o ser humano deve procurar desenvolver seis dimensões:
1º. O pensar, como dimensão maior e permanente do questionar, do diferenciar e do dialogar;
2º. O raciocinar nas mais diferentes formas e possibilidades de questionar, criticar e conceituar;
3º. A capacidade comunicativa em suas diversas manifestações;
4º. A capacidade de ler, compreender e interpretar, fazendo de um tal ato algo radicalmente criativo e de auto-crescimento, onde o ler seja também ler-se;
5º. O dom para a inovação, a invenção e a criação;
6º. A realização harmônica e plena do que cada um é: social, pessoal, profissional e afetivamente.

5 – A organização integrada através dos núcleos

Estas seis dimensões são os pressupostos orientadores para a organização integrada da universidade em núcleos. O importante não é querer agrupar as disciplinas, mas achar para a rede interdisciplinar o horizonte comum aos nós e fios da rede. A imagem da rede com seus nós, fios e vazios quer acentuar que a constituição dos núcleos deve responder e corresponder efetivamente a demandas reais, tendo algo fundamental em comum. Por isso, as disciplinas devem buscar esse algo em comum para depois se reunirem em núcleos. Só em seguida devem ser institucionalizadas, mas estabelecendo a possibilidade dinâmica de novas configurações. As práticas e as necessidades já existentes e futuras é que devem ser o horizonte da constituição de tais núcleos.

6 – A universidade e as projeções futuras

Nunca a uni-versidade precisou tanto do saber para dar conta da di-versidade de conhecimentos. Os três níveis em que atua a Universidade: acúmulo, transmissão e produção de conhecimentos passam hoje por uma transformação e expansão sem precedentes na história humana. Daí a necessidade de repensar a uni-versidade dentro dessa di-versidade quanto às suas quatro finalidades antes enumeradas.
Esse processo tradicional passa hoje por um fenômeno novo, exigindo da universidade atitudes e procedimentos novos, onde as divisões tradicionais não atendem mais a esta dinâmica. O saber sempre teve como característica fundamental o traço da permanência, enquanto Memória. Sua concretização se dava nos ritos míticos e nas festas. O saber transformou-se em conhecimento conceitual. Este traço permitia o ensino e a aplicação continuada. Hoje, a dinâmica da produção do conhecimento, pelo investimento maciço em novas pesquisas, introduz um componente novo: a obsolescência do conhecimento científico e técnico muito rapidamente. E, paradoxalmente, os conhecimentos conceituais vivem hoje de mudança, em função da própria mutação dos seus paradigmas. Por outro lado, é intensa a busca de paradigmas cada vez mais abrangentes e radicais, tentando dar conta daquela princípio e unidade que deu origem à uni-versidade. É nesse esforço que se inscreve a inter-disciplinaridade científica. Além do seu aspecto funcional, diz respeito também aos próprios conhecimentos que ela desde sempre procura. Fica, porém, a questão se tais conhecimentos algum dia darão conta do saber em que se fundou a uni-versidade. Mas isto não é negativo, pode ser seu desafio maior.
A necessária interdisciplinaridade traz conseqüências múltiplas e novas para a universidade nos planos: do ensino, da acumulação, da profissionalização e da sua função social. Por isso, a extensão tem de ser repensada e integrada totalmente no binômio ensino e pesquisa. Hoje, ocorre uma nova verticalização das camadas sociais pelos novos conhecimentos e pelo acesso às novas técnicas, pela mutabilidade das profissões tradicionais, pela fragmentação, ampliação e especialização dos conhecimentos. A rede de conhecimentos tende a se fragmentar em muitos nós. Daí a necessidade radical da inter-disciplinaridade, onde o “inter/entre” passa a ser um “nó” de muitas possíveis conexões.
Isso muda completamente a tarefa e perfil da formação, pois acarreta custos sociais cada vez maiores para a formação de cada um, pelo aumento do tempo de estudo e pela adaptação dos profissionais antigos aos novos conhecimentos e às novas técnicas, exigindo reciclagens contínuas.
Tudo se transforma pela globalização desses conhecimentos e pelos acessos facilitados pela internet. E traz a angústia da formação contínua, da falta de tempo para estudar e acompanhar os conhecimentos novos. E ainda ter tempo para a vida pessoal afetivo-familiar e cultural.

7 – As disciplinas e a universidade

O que hoje é evidente é a obsolescência das tradicionais divisões do conhecer. Qualquer nova divisão hierárquica que queira dar conta da complexidade dos conhecimentos em relação ao real, ao social e ao pessoal, nos mais diferentes planos e níveis, está fadada ao fracasso. A rede como teia de conhecimentos é a nova realidade. Platão inaugurou a organização do saber em três grandes epistemes: a da physis, a do logos, a do ethos. E com essas três divisões procurou achar, na realidade, um fundamento. E o achou. Pois a episteme do logos, enquanto razão e lógica – pressupostos do conhecimento científico - acabou por determinar as outras duas e se impor nos desdobramentos que ocorreram nas três, criando-se as diferentes e novas disciplinas, que se foram multiplicando pelo auto-desdobramento. A universidade nasce, na Idade Média, como resultado desse auto-desdobramento. A Modernidade nada muda essencialmente nesse modelo de organização das disciplinas. Há, apenas, uma ampliação e redistribuição pelo aprofundamento do modelo lógico-matemático-científico. Esse modelo precisa de uma reinvenção. E é seu maior desafio. A questão da interdisciplinaridade é a questão do método. Quanto a isso não pode haver ilusões. O que é o método?
Para tal é necessário achar alguns pontos de rumo. Porém, não podem mais ser grandes divisões do conhecimento em relação ao real, como por exemplo, ciências da natureza e ciências do espírito. Essa dicotomia já soa estranha e problemática. Também se deve questionar se essas divisões ainda são necessárias. Hoje, o fundo em comum é, sem dúvida, a constituição do conhecimento em rede, onde as denominações são muito precárias, porque o inter-relacionamento e sua necessidade são cada vez maiores. Com isso, a instituição da disciplina isolada soa como algo obsoleto. Porém, o paradigma expresso nas metáforas da rede, nós e linhas não dá conta de toda a complexidade dos conhecimentos e saberes em relação à realidade enquanto mundo.

8 - Uma universidade atual e atuante

A universidade como lugar central desses processos precisa urgentemente ser repensada para responder e corresponder a essa dinâmica. Para tanto é importante:

8.1 - ser ágil, reduzindo o poder da burocracia ao indispensável;
8.2 - otimizar os custos cada vez mais crescentes;
8.3 - fazer fluir e circular os conhecimentos sem entraves burocráticos, organizacionais e institucionais;
8.4 - otimizar os conhecimentos de ponta;
8.5 - otimizar o tempo dos que detêm os conhecimentos e podem multiplicá-los (técnicos, professores, pesquisadores e profissionais especialistas), ampliando o conceito de professor;
8.6 - repensar o espaço universitário, baseando-a em redes comunicativas e nós referenciais pela criação institucional de uma forte infra-estrutura de circulação do conhecimento, com a criação de núcleos/nós em rede informatizada, sem a necessidade de muitos espaços físicos, no que diz respeito à circulação dos conhecimentos;
8.7 - repensar o ensino como transmissão através de novos procedimentos:
- contato com o conhecimento através dos novos meios comunicativos e da disponibilidade da informação em larga escala, e facilmente acessível para os alunos;
- otimizar a potencialidade criativa de professores e alunos pela discussão e diálogo em sala de aula e em rede;
- reduzir as aulas tradicionais expositivas e repetitivas sobre o que já está largamente disponível, pois essa estrutura de ensino reflete tempos em que o acesso á informação era muito precário;
- um forte impulso no exercício da leitura e interpretação dos mais diferentes textos. Na compreensão do que se lê, dá-se o termômetro do aprendizado, da capacidade compreensiva-crítica da auto-poiese;
- sair da concepção de formação como assimilação passiva e passar – pela metabolização e apropriação – para o aprendizado auto-poiético;
8.8 - que o contato entre professores e alunos passe por uma reformulação profunda, atendendo a essas novas realidades e, ao mesmo tempo, a cada tipo de ensino e sua dinâmica;
8.9 - que a nova universidade se mova em duas administrações: 1ª. A acadêmica, onde a rede e a disponibilidade do conhecimento dispensa a multiplicação de lugares e professores repetidores, atendendo a um maior número de alunos; 2ª. A administrativa, a que já existe hoje, simplificada pela organização em rede, com procedimentos padrões, circulação de processos, decisões e atendimento em rede;
8.10 - que se repense completamente o currículo dos alunos e o acesso às disciplinas, levando em conta: a duração, a profissionalização, a reciclagem, a atualização, a formação contínua, a criação de novas profissões, o atendimento a demandas sociais específicas, o planejamento de uma interface humana, social e econômica, uma forte formação humana e não apenas funcional-profissional;
8.11 – que, nesse sentido, a universidade aja em três planos: inclusão pelo conhecer; diferenciação pelo domínio do conhecer; realização pela integração de conhecer e saber, com vistas à auto-poiese tanto na dimensão profissional como na ético-humana e social.
8.12 - que é necessário repensar a relação universidade Polis, numa integração transformadora e de desenvolvimento social, mas sem reduzi-la a uma função político-ideológica passageira. Isto pressupõe pensar a dimensão política inerente a todo conhecimento e saber.

9 – Núcleos: a formação em teia

Nota-se na natureza, mãe de todo saber e conhecimento, que cada ser humano se constitui como alguém com raízes, sejam físico-orgânicas, sejam familiares, sejam culturais, sejam de memória, ou seja, ser alguém é sempre se relacionar a partir de um nó na teia da vida, em múltiplas direções e relações, tanto verticais como horizontais: é dar-se o corpo que terá. A rede é o corpo social e vital enquanto mundo cultural.
Assim sendo, o aprendizado do conhecimento se dá numa dinâmica de realização pessoal e de inserção social. A formação em raiz deve atender livremente às mais variadas demandas, numa grande dinâmica de possibilidades de formação. Estes oferecimentos reais de conhecimento é que devem constituir os núcleos, mas as escolhas devem ser para cada um bastante livres. Claro, dentro da dinâmica do núcleo ou congregação de núcleos escolhidos. As raízes devem procurar naturalmente o alimento do conhecimento para o desenvolvimento pessoal e profissional. A tensão entre as cinco dimensões e sua otimização, e os conhecimentos acumulados e desenvolvidos é que irá determinar a inclusão profissional e social, de acordo com as demandas dos novos conhecimentos e técnicas, bem como das necessidades sociais. Por isso, o trânsito entre os núcleos deve ser bastante livre, isto é, o currículo deve ser feito dentro de uma organização profissional includente e aberta, e de sua otimização.
Com isso, deve-se procurar uma tensão e um equilíbrio entre os novos conhecimentos e técnicas, e as demandas sociais. A inclusão social é que irá dizer, pela demanda do conhecimento, da adequada formação de cada pessoa. Hoje, em muitos casos, lançam-se as pessoas no mercado com os diplomas, que não mais correspondem ao conhecimento demandado. Por outro lado, deve haver um equilíbrio entre o conhecimento demandado socialmente e a livre pesquisa e inovação, inerentes à universidade. A aplicação sempre resulta de teorias e pesquisas paradigmáticas. A universidade deve produzir um conhecimento expansivo e inclusivo, ao mesmo tempo que se deve tornar também o lugar por excelência de um saber que leve cada um a uma aprendizagem. Só assim será uni-versidade, ou seja, um verter em direção ao todo, ao uno. Os núcleos devem conter e integrar os conhecimentos e o saber.
Com os núcleos, o aluno teria sempre possibilidades abertas de fazer novas disciplinas, até ser incluído social e profissionalmente. A nova organização do conhecimento, seu acesso e disponibilidade, não trariam tantos custos e otimizariam o desempenho de cada um. A duração dos cursos dependeria dessa dinâmica de formação pessoal e demanda profissional, claro, com exames para avaliar o aproveitamento e mostrar até a necessidade de redirecionamento dos estudos, quando o aluno notar a sua inadequação ao que escolheu, e com metas de estudo e duração adequadas. Nesta nova dinâmica, o vestibular se torna obsoleto. O acesso universal seria regulado pela capacidade de acompanhamento e aprendizado, comprovado em exames rigorosos.
A duração mínima ou máxima seria determinada pelo progressivo domínio das cinco dimensões, podendo, o aluno voltar livremente à universidade se constatasse que não consegue passar ou que está desempenhando mal uma ou mais dimensões em relação ao conhecimento que lhe é exigido profissionalmente. Essa constatação é que determinaria a escolha do núcleo ou uma ou mais disciplinas dentro dos núcleos. Os núcleos se constituiriam em rede, de tal maneira que o aluno pudesse ficar dentro do mesmo núcleo ou se inter-relacionar com os que achasse necessários. As atuais disciplinas se organizariam em torno dos diferentes núcleos. E aí seria notada a duplicação ou não. Com isto muitas podem ser suprimidas ou criadas novas.
Há um fato novo hoje muito patente: dependendo da disciplina, muito dos seus conhecimentos se tornam obsoletos diante de novas pesquisas e descobertas. Por que continuar a ensinar o que não é mais necessário? Esse aspecto da cultura precisa ser mais estudado e aprofundado. Esses conhecimentos ficariam na “memória”, para possíveis consultas, mas não seriam mais exigidos dos alunos. Mas isto depende muito dos núcleos de conhecimentos, pois o desempenho se nutre de um duplo processo: alimentação e metabolização do que se estuda. Ninguém tende a pensar e a raciocinar sem leitura e estudo que alimentem.

10 – Os núcleos

Hoje, a realidade cultural de cada povo passa por grandes transformações, em virtude do impacto revolucionário da computação no modo de produção, acumulação e transmissão dos conhecimentos e do exercício das profissões. E até no modo de conceber e experienciar o real e a própria realidade humana. Os meios tradicionais de acumulação e circulação, por conseqüência também da produção, tornam-se rapidamente obsoletos. Disto resulta que o passado perde em muito o seu valor de referência. Novos paradigmas têm de ser criados. Contudo, isto não ocorre em todos os saberes e conhecimentos, como, por exemplo, os das artes. Por isso, os núcleos não podem ser tratados através de uma idéia padrão. Deve haver di-versidade e riqueza na estruturação dos núcleos.
Esta realidade nova torna ainda mais complexa a reformulação dos currículos, indo muito além de uma mera redistribuição da grade curricular. Nesse sentido, qualquer reformulação pode-se tornar rapidamente obsoleta. É necessário prever uma grade dinâmica que esteja aberta às rápidas e grandes transformações por que passam os conhecimentos e as profissões. A par disso, assistimos ao esfacelamento da organização do conhecimento em múltiplas disciplinas estanques. Esse modelo levou ao paradoxo da especialização, tornando patente a sua necessidade e ao mesmo tempo as suas contradições. Aqui coloca-se a necessidade de se repensarem profundamente as relações em quatro níveis: a) as partes e o todo, e o todo em cada parte; b) a realidade-mundo, o conhecimento e o saber; c) a realidade-mundo, o conhecimento e o saber, diante do não-saber. Este é a presença inequívoca dos vazios da rede, dos seus buracos, do silêncio gerador das falas. A rede com seus nós e fios é uma doação do vazio. O “inter/entre” aponta para esse vazio. Ele é uma dimensão nova a partir da qual se devem estabelecer diálogos abertos com o não-saber, com o vazio, com o próprio desafio do infinitamente pequeno e do infinitamente grande, com a complexidade da grande unidade que perfazem a natureza e o ser humano; d) pela abertura para uma nova postura entre os procedimentos da análise e da interpretação, onde o físico-orgânico, o biológico, o social, o psíquico, o poético-artístico e a memória sejam horizontes complementares. A sociedade em rede se constitui de sintaxes discursivas de conhecimentos emuldurados por vocabulários específicos. Tudo isso dificulta a comunicação e a convivência social.
Em última instância, todo conhecimento quer dar conta da realidade. A segmentação disciplinar exacerbada resultou, em muitos casos, em intransitividades, não da realidade, mas das disciplinas como teorias de conhecimentos. Os limites formais extremos exigiram a construção de pontes de acesso a campos que, supostamente, seriam de outras disciplinas. O avanço dessas disciplinas pressupõe o avanço con-junto. Só assim se retoma o horizonte de visibilidade, re-inserindo a atividade de aprendizado, prática profissional e produção do conhecimento no horizonte da realidade cultural global, para assegurar cada vez mais as diferenças e, ao mesmo tempo, a promoção de inclusão do ser humano como identidade no corpo social.
A esse agir con-junto pode-se chamar interdisciplinaridade. Tome-se, porém, cuidado. A justaposição de disciplinas não institui a inter-disciplinaridade, assim como a justaposição desordenada de tijolos num terreno não constrói e constitui, por si, uma casa. Na e pela casa os sistemas de relações e de conhecimentos são redimensionados na medida em que a casa se torna um lugar cujo sentido, como um todo, lhe é dado pela linguagem e não pela soma de discursos ou vocabulários. A linguagem é a identidade das diferentes redes, das relações e até dos vazios das redes e do silêncio das falas, onde o ser humano perfaz sua realização. Ela é, portanto, uma re-ferência para além dos conhecimentos técnicos e culturais diferentes. Como origem, a linguagem é a mãe de todos as línguas e vocabulários.

11 - Núcleos e inter-disciplinaridade

Na inter-disciplinaridade há dois pólos de referência:
1º) o das disciplinas e seus conhecimentos. São as diferentes redes com seus nós;
2º) o do “inter”, palavra latina que significa “entre”, e que referencia o silêncio das falas e os vazios das redes, ao mesmo tempo que é ponte das disciplinas. É que o “entre”, por ser “entre”, é sempre ambíguo. A realidade-mundo no seu todo é constituída em redes, fios, relações e vazios.
Quanto às disciplinas: O pólo das disciplinas poderíamos definir assim: são conhecimentos constituídos dentro de uma determinada teoria e visão do real, apreendidos e desenvolvidos em consonância com uma determinada teoria, paradigma e método. O método está estreitamente relacionado à teoria e esta ao método. Uma vez que método significa caminho-entre, poderíamos reunir as disciplinas quando perfazem o mesmo caminho ou caminhos ou discursos semelhantes, não esquecendo que estes caminhos/discursos são sempre caminhos do real, no real e para o real. Partamos da rede de conhecimentos. Centralizemos a nossa atenção nos fios da rede. Estes são: caminhos, conhecimentos e percursos do real, no real e para o real. Já podemos perceber que os fios se entrelaçam e se ligam por nós. Cada nó congrega diferentes fios. Um núcleo pode ser a confluência de nós e fios. O que identifica os nós e os fios? 1º. O discurso; 2º. A sintaxe; 3º. O caminho/teoria. Não são os conhecimentos, em primeiro lugar, que devem determinar ou ser princípio de constituição dos núcleos, mas as três características anteriores. Horizontalmente, a interdisciplinaridade deve necessariamente surgir desses entrelaçamentos, que constituem a rede e cobrem e apreendem dimensões do real, do social e do humano (ecologia em sentido profundo).
A circulação dos conhecimentos e sua apreensão pelos alunos deve ter sempre em vista essa idéia de rede em movimento e constituição como circulação. E há outra idéia básica e fundamental para bem apreender a dinâmica das disciplinas e dos núcleos: essa rede é virtual, ou seja, constitui-se no circular dos conhecimentos e discursos. Este circular deve deixar de lado o que ficou obsoleto, ou seja, deve ser sempre uma memória viva. O domínio dos discursos passa a ser fundamental. Significa então as cinco características a serem desenvolvidas em cada aluno/ser humano e no todo social, preservando os ecossistemas. Com isso se abandona de vez um princípio organizacional dos conhecimentos hoje ultrapassado: o da linearidade cronológica e causal. Isso é um ranço metafísico, ultrapassado por cada nova descoberta e configuração de conhecimento em rede, onde o “passado” não é determinante, mas o alcance dos pardigmas. O real virtual está em tensão com o real poético, no mover-se e no circular vivo, contínuo e concreto do saber e conhecimentos na rede, onde o “passado” pode se tornar um obstáculo e perda de tempo para o aluno, porque não implica seu conhecimento num relacionamento com o funcionamento atual da rede e com a possível inserção social e atuação nela.
A presença do passado será determinada pelas necessidades presentes e não como um a priori de iniciação nos conhecimentos. Mas, por outro lado, a definição de passado e presente também não pode ser historiográfica e causal. Como memória, não existe passado, mas algo já presentificado. Por exemplo, o conhecimento do grego e do latim é de uma atualidade sem par para o diá-logo de pensamento filosófico, literário e artístico com as criações gregas e latinas. O mesmo se pode dizer do hebraico para os estudos bíblicos. São memórias vivas e não simples conhecimentos “passados”. Ou seja, cada conhecimento articula discursos e ocupações de espaços na rede da realidade-mundo, dentro de uma dinâmica que ultrapassa a historiografia. Hoje, as diversas histórias e as novas narrativas provam isso.
Na realidade, o que é fundamental para o aluno seria um questionamento do tempo e dos discursos em torno dele. As disciplinas têm, pois, uma relação próxima muito tensa, rica e dinâmica. Certamente, nesta configuração, muitos conhecimentos das disciplinas têm que ser reconfigurados e até abandonados. É importante perceber que o conhecimento em rede não se dá na dinâmica de seu trafegar e circular no acúmulo de dados, mas muito mais, por parte do aluno, no desenvolvimento das cinco dimensões. Até porque, hoje, os conhecimentos são facilmente acessíveis nas diversas redes e bancos de dados. O que esses bancos de dados não dão é o “inter”. O que é o “inter”?

Quanto ao inter/entre: O “inter” da inter-disciplinaridade (entre) pode ser entendido em dois sentidos.
a) Na rede diz respeito ao “fio” que une os “nós”, constituindo a “rede” ou “teia”. Um tal “inter” remete para “dis-cursos” processuais pelos quais se constitui cada organismo e os organismos entre si, em auto-organizações. O “lugar’ de um tal “inter” é dado pelo paradigma a partir do qual os nós e redes são dis-cursados e compreendidos. É um tipo de interdisciplinaridade paradigmática, que pode funcionar nos modelos científicos, nos conhecimentos conceituais.
b) Mas há outra interdisciplinaridade, na qual o “inter” apresenta um outro sentido. Para melhor entender este “inter” partamos de duas imagens ou metáforas. Uma imagem não é conceito. Ela abre o pensamento para o aberto das possibilidades, sendo, por isso, portadora de uma dinâmica criativa e questionante. Então estamos diante das questões.
Podemos comparar o “inter” a uma ponte. Esta supõe dois campos (disciplinas) que ela liga, mas também e, sobretudo um espaço vazio que possibilita a ponte ser ponte, a partir do qual se percebe o lugar, o recorte de cada disciplina. Este espaço vazio que nenhuma disciplina recobre também é real. Aliás, é nele e por ele que se percebem as diferentes disciplinas e o sentido da sua direção e afirmação. Na imagem da rede, seriam os buracos e o que permite à ponte tornar-se ponte. Este vazio é o horizonte a partir do qual cada disciplina se institui e estrutura como disciplina. Não é a disciplina que estrutura e institui o vazio do entre nem o buraco da rede. Sem este entre não há disciplina assim como sem buracos não há rede. Logo, toda rede se constitui no e a partir do “inter”, do entre. Que “entre” é este tão importante?
A articulação dos tijolos para a construção de uma casa, previamente, só é possível porque há um vazio que possibilita o aparecimento da casa enquanto casa e não de um simples amontoado de tijolos. A casa é, em si, uma figura ofertada pelo vazio, sem o qual a casa não seria casa. A casa enquanto casa se funda no “inter”. Notemos que os tijolos manifestam a visibilidade da casa, mas eles, em si, não são a casa, nem o vazio. Precisamos dos tijolos para a visibilidade tanto do que se mostra, a casa, como do que não se mostra, o vazio, ou seja, a rede em movimento só é possível ser apreendida e manipulada e discutida e modificada na medida em que nos abrimos para a presença ausente do vazio, dos buracos da rede, até como possibilidade permanente de invenções e projeções. A rede de conhecimentos não aumenta por si, é uma doação do vazio, que se retrai para a rede se constituir e aparecer. Os conhecimentos são uma doação do não-saber. Esta dinâmica é muito fácil de perceber se notarmos que cada um já constitutivamente é e não-é, sabe e não-sabe, vê e não-vê, fala e escuta a partir do silêncio.
Nesta perspectiva, não há uma hierarquia entre um antes e um depois (rede), porque simplesmente não há um antes e um depois. Há a casa constituída por tijolos e sua figura disposta e ofertada pelo vazio, assim como há a rede constituída e seus discursos de conhecimentos dispostos e ofertados pelo vazio. Na realidade, há sempre as disciplinas e discursos e o “inter”, o “entre”. Conhecer, em realidade, é dominar o visível, o orgânico-sistêmico, em direção sempre ao não-visível, ao não-orgânico, ao não-sistema, horizonte de realização do humano do homem. Deles podemos apenas ter um saber. Deste não pode haver um aprendizado, só uma aprendizagem. Esta é a matéria-prima das obras de arte, pois elas se movem nas questões. Por isso, não podem ser reduzidas a conceitos e qualquer discurso ou vocabulário científico lhe é estranho. Para isto existem as pesquisas e não apenas o ensino do já visto e sabido.
As casas variam muito de figura. O vazio das figuras é dinâmico. As pontes podem também, como as disciplinas, serem múltiplas. Elas serão erguidas onde se fizerem necessárias, como conexões nos limites das disciplinas e dos discursos. Mas cobram seu sentido não dos conhecimentos em si, mas do pensar no qual pode eclodir o sentido e a plenificação do ser humano e do corpo social. Ou seja, há os seres humanos, as redes sociais, a rede de conhecimentos e o vazio, no qual e a partir do qual se constituem as casas e seus habitantes: os seres humanos e as sociedades. A essa casa em rede podemos chamar sociedade humana ou corpo social e corpo da mãe-vida, mãe-Terra (Gaia). Nesse sentido, otimizar as dimensões humanas é o fim de toda otimização dos conhecimentos em rede, na medida em que podem fazer eclodir o ser humano em sua singularidade auto-poiética, no que no homem é o humano, enquanto ser sábio e ético. Por isso, não pode haver separação entre uns e outros.
Quem pode cumprir esta tensão de identidade como rede das diferenças é a uni-versidade, dando conta e promovendo a di-versidade. Este é o único fundo que deve presidir à distribuição dos conhecimentos em núcleos. A interdisciplinaridade pressupõe pontes. A estas pontes chamamos núcleos ou nós na rede. Cada ser humano como ser do entre, do limiar de finito e não-finito, de saber e não-saber encontra a sua essência nessa tensão, uma essência não dada, mas construída em consonância no que nele é projeto de ser. Esta tensão deve ser o horizonte de uma uni-versidade plena, onde conhecer, saber e ser se reúnam harmonicamente.
Para constituição dos nós/núcleos não se pode partir dos conhecimentos em si, mas de duas coordenadas: 1ª. A uni-versidade como identidade de di-versidades; 2ª. A tensão entre/conhecimentos e saber, tendo como objetos/sujeitos desse processo os seres humanos, seus lugares, seus mundos e a Terra. Temos então como metas:
1ª. A otimização das dimensões humanas;
2ª. A inclusão social;
3ª. A harmônica operacionalização da rede em tensão com as sempre novas possibilidades do “inter”;
4ª. A otimização da rede em seu operar e circular para uma interação dos seres humanos em sociedade e do lugar dos conhecimentos, de uma tal maneira que haja uma circularidade recíproca;
5ª. A preservação dos ecossistemas como poético-ecologia.
A rede nunca poderá estar a serviço de interesses corporativos, de exclusão social, de destruição das condições ecológicas. A rede deve se mover, crescer e constituir num horizonte ético em que os conhecimentos e saberes se dimensionem pela otimização das potencialidades de todo ser humano, promovendo, sem uniformidade, tanto as diferenças quanto a fraternidade poético-ecológica.

12 - Os três níveis dos núcleos

Por sua vez, cada núcleo teria três níveis em suas disciplinas:

-1º. domínio dos conhecimentos enquanto conceitos básicos e seu questionamento;
-2º. domínio das variações dos conceitos presentes em diferentes pesquisas e teorias, e seu questionamento;
-3º. abertura para a pesquisa, que corresponderia hoje aos cursos de pós, com predominância do questionamento e de propostas de inovações teóricas e realizações poético-criativas. Neste sentido, os conceitos seriam continuamente referenciados às questões básicas que deram e dão origem aos conceitos e à sua transformação e expansão contínuas.

Portanto, o ponto de partida dos núcleos deve se centrar em questões, a que as diferentes disciplinas procuram responder e corresponder. A dinâmica histórica em todas as disciplinas mostrou que as questões básicas continuam sempre, mudando ou se ampliando apenas as teorias, os paradigmas e os conceitos.

13 – Os núcleos e os currículos

Uma grade curricular montada em disciplinas é uma, em núcleos é outra. Os núcleos são dinâmicos, como hoje o é a rede da sociedade do conhecimento, pois possibilitam diferentes ligações e percursos com diferentes disciplinas. Uma disciplina pode ser substituída por outra ligada ao núcleo. O que determinará essa composição e modificação serão as metas acima expostas da uni-versidade na di-versidade. Estas determinarão a constituição e troca das disciplinas e até a criação de novos núcleos e, ainda mais importante, a necessária “inter”-ligação dos núcleos, atendendo às demandas sociais e às transformações político-históricas. A vantagem é que essas trocas, previstas nos núcleos, são automáticas e rápidas. A burocracia nunca poderá impedir essa dinâmica nem a formação de pequenos grupos de poder institucionais.

14 – A universidade e a liberdade

Fica evidente que é fundamental, para que haja uma nova universidade que atenda a toda essa complexidade, a mais ampla e responsável liberdade de atuar, pensar, pesquisar, inovar, questionar, diferenciar, dialogar.

15 – Conclusões

Partindo destas reflexões concluímos que:
- 1º. a grade curricular deve ser montada, tendo como referência núcleos;
- 2º. são os núcleos e não as disciplinas isoladamente que devem atender ao binômio fundamental formação humano-profissional e inserção social;
- 3º. a obrigatoriedade giraria, essencialmente, em torno dos núcleos e só, acidentalmente, de disciplinas, sempre de acordo com o binômio fundamental e a especificidade da profissão;
- 4º. a programação de disciplinas por semestres ou anualmente atenderia à dinâmica dos núcleos, isto é, os responsáveis pelos núcleos é que elegeriam o elenco de disciplinas a serem oferecidas, podendo variar de semestre para semestre ou de ano para ano. Este oferecimento teria como parâmetro a dinâmica humano-profissional e necessidades sociais. Uma pré-matrícula de preferências dos alunos daria os parâmetros da inclusão ou exclusão do oferecimento das disciplinas;
- 5º. aos núcleos poderiam ser sempre acrescidas novas disciplinas e inter-conexões com novos núcleos de acordo com a dinâmica da demanda e da otimização da formação humano-profissional e social;
- 6º. uma vez que a formação deve ser humano-profissional, os núcleos deveriam atender também a essas duas facetas. Ao aluno caberia, pelas escolhas, acentuar um ou outro aspecto sem perder o equilíbrio. O exercício profissional deveria estabelecer os conhecimentos necessários, mas não perdendo de vista um equilíbrio com a formação humana. Isso só aparentemente tornaria mais longo e mais custoso a formação profissional, porque uma pessoa satisfeita e inteira em seu ser é sempre um melhor profissional e se insere mais rapidamente na práxis social;
- 7º. as profissões baseadas em conhecimentos estanques estão hoje sendo rapidamente ultrapassadas e cada vez mais se exige uma formação interdisciplinar para atender às novas demandas sociais. A abertura dos núcleos atenderia perfeitamente a essa dinâmica;
- 8º. todo currículo, de acordo com cada profissão, deveria ter uma obrigatoriedade mínima e uma escolha livre e ampla. A realidade social e suas demandas com as tendências e desejos pessoais é que seriam os parâmetros para o percurso do curso e, evidentemente, a otimização do desempenho profissional;
- 9º. o preenchimento das vagas nos concursos sempre deveria constar de três partes nas quais fossem avaliadas numa profunda interligação:
- a) a formação humana;
- b) a competência profissional;
- c) a inclusão social.
Que adianta ter um excelente técnico desajustado como ser humano e numa sociedade cada vez mais piramidal?
- 10º. A liberdade inerente aos núcleos deveria ter como contrapartida a qualidade, pressuposta num número mínimo significativo de créditos e rígida avaliação. Essa liberdade seria um motivo a mais para a mais rápida conclusão da(s) habilitação(ões). Nesse sentido, o currículo deveria constar de um mínimo e de um máximo em aberto. Com isso, a dinâmica do conhecimento em rede determinaria para cada um a sua otimização e inclusão diferenciada. Isso evitaria a descontinuidade entre os cursos da universidade e a dinâmica geométrica do conhecimento em rede. É importante acentuar que o aluno chegado a determinado nível não precisa mais de aulas expositivas, mas de aulas de discussão dialogante e de domínio de vocabulários. Para isso é fundamental atentar para uma nova dinâmica do ensino, em consonância com as novas realidades no que diz respeito à acumulação, transmissão e produção dos conhecimentos;
- 11º. a contrapartida docente seria uma necessidade de atualização permanente, em consonância com a própria dinâmica do conhecimento em rede para uma sociedade do conhecimento humano e social
- 12º. A concepção do ensino tradicional baseada na oposição sujeito/objeto, professor/aluno deveria dar lugar a uma concepção poético-circular, mediada pelo diálogo, pois o que cada um conhece e sabe é sempre diferente, mas o que identifica a todos é o não-saber. É deste que falamos quando nos referimos ao vazio da rede. O não-saber é a possibilidade de chegar a ser o que ainda não se é;
- 13º. o pano de fundo desta dinâmica passa necessariamente por um estudo e questionamento do real, da pólis e suas políticas, e do ser humano, tendo em vista as seguintes dimensões interligadas: conhecimentos, tempos, linguagens, discursos, memória, identidade, diversidade. Para isso é necessário ter sempre presente a questão que funda essas dimensões em sua variação: que o real é ao mesmo tempo mudança e permanência. E que estas são experienciadas sempre em todos os lugares e tempos como liminaridade de limite e não-limite. Essa ambigüidade fundamental deve ser o pano de fundo em que se inscreve uma nova uni-versidade, para dar conta da di-versidade sem cair num sistema estanque nem num relativismo sem consistência;
- 14º. Neste pensamento que pensa a interdisciplinaridade em sua plenitude fazem-se presentes as dimensões poéticas.

Rio de Janeiro, 01 de março de 2006

18 setembro 2007

Como e para que pesquisar?






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Nem sempre os jovens pesquisadores recebem uma orientação mínima a respeito do modo de desenvolver produtiva e adequadamente o projeto elaborado. No entanto, alguns passos e procedimentos, devem ser seguidos. Eles, no caso de que vamos tratar, estão correlacionados ao próprio método em que a pesquisa se deve envolver e desenvolver. Eis a seguir alguns procedimentos que devem ser seguidos para otimização das leituras e do tempo gasto no projeto, tendo em vista uma maior profundidade e excelência na realização do projeto.

1º) Elaborado o projeto, é necessário, num primeiro momento, estabelecer um SUMÁRIO provisório. É provisório porque nele as questões ainda estão atemáticas. Ainda não foram pesquisadas através de leituras, reflexões, comparações, comprovação de afirmações, ampliações dos âmbitos das questões. Todo atemático que procura o temático ocorre num processo metodológico de apreensão, depreensão e compreensão.
Esse SUMÁRIO provisório deverá conter as principais questões que o tema/assunto do projeto contempla. É sempre necessário ao projeto uma coerência e coesão. A coerência diz respeito à pertinência das questões em relação ao tema/assunto do projeto. Já a coesão deverá partir da idéia do todo em relação às partes em que o projeto se desenvolve. A coesão exige, portanto, a coerência. Há, portanto, uma profunda referência entre coesão e coerência.
Contudo, a coesão e coerência são algo dinâmico, vivo, mutável, num contínuo processo de aprofundamento. Em vista disso, a coesão e coerência dependem de uma terceira coordenada que, em geral, não é levada em conta: o processo. Este é tão importante ou até mais do que a coesão e a coerência. A importância fundamental do processo abre a segunda fase da realização do projeto.

2º) A pesquisa como processo.
Nesta fase, o que é atemático no projeto começa a se transformar em temático. Como se faz e se dá isso? Aqui é necessária muita disciplina por parte do pesquisador. O que entender por disciplina? Em si, não é o dedicar sistematicamente muitas horas ao trabalho, porque pode se tornar um trabalho não produtivo. Então disciplina implica:
a) trabalho, dedicação, persistência e paciência;
b) produção de resultados.
Como, através do trabalho, obter a produção de resultados?
I) Evitar o trabalho desordenado, dispersivo, repetitivo. O pesquisador que lê desordenadamente pode-lhe ser negativo, porque vai acumulando na mente uma quantidade muito grande de informações e estas não podem apenas ser quantitativas. Devem também ser qualitativas.
II) O equilíbrio entre quantidade e qualidade eis a chave. É aqui que se exige uma disciplina acumuladora num primeiro momento e, num segundo, produtiva e criativa. Para tal, alguns procedimentos são necessários:
a) Tendo em vista as questões do sumário, o pesquisador deve selecionar uma bibliografia pertinente. Num primeiro momento não precisa ser muito extensa.
b) Sempre tendo em vista as questões do sumário, o pesquisador deve escolher uma questão sobre a qual irá ler, para passar do atemático para o temático. O ler a bibliografia sobre a questão não pode ser uma leitura genérica, mas feita com muita atenção, ou seja, é uma leitura dirigida e com muita atenção. A finalidade é apreender e compreender como o texto trata da questão pesquisada. Essa leitura deverá produzir tópicos pertinentes à questão ou resumos. Aqui o modo de ser do pesquisador e a sua criatividade é que deverão determinar o modo de aproveitar a leitura. Mas de qualquer modo deve ser uma leitura disciplinada e persistente.
c) Previamente, o pesquisador já deve ter organizado o suporte material para organizar os apontamentos, fichas, caderno com divisão para diferentes disciplinas, ocupando o lugar destas cada questão etc. Para CADA QUESTÃO deve haver fichas ou pastas ou arquivos no computador (dependendo de cada um, o uso deste fica para um segundo momento). A separação e guarda das fichas ou apontamentos por questões e tópicos do SUMÁRIO é fundamental. Aqui deve haver muita disciplina.
d) Ocorre que é muito difícil haver um ensaio onde outras questões não apareçam, Então o pesquisador deve ter à mão o caderno ou criar as pastas com as outras questões. Fazer na hora as anotações – às vezes rápidas e indicativas para não cair na dispersão – e colocá-las nas pastas respectivas é fundamental. Se deixar para fazer depois, certamente irá esquecer. Nossa memória é muito traiçoeira.
e) A leitura de um segundo ensaio sobre a mesma (mesmas) questão (questões) já é mais complexo e essencial. O pesquisador não se deve limitar a resenhar as idéias de cada ensaio. Isso é necessário, mas ainda superficial. Muitos trabalhos: ensaios, dissertações, teses, ressentem-se disto. As mais das vezes resultam numa justaposição de idéias com ligeiras e superficiais relações ou até nenhumas. A leitura de um segundo ensaio sobre as mesmas questões já dá mais trabalho. O pesquisador não pode esquecer que seu trabalho consiste em trazer o atemático para o temático e não enumerar, justapor idéias já tematizadas. Cada um deve comparar o que os dois (três, quatro, cinco) ensaios dizem e ver até onde há repetições e só aproveitar o que houver de novo na configuração da questão em seus diferentes aspectos. O que for repetição devido ao estilo do ensaísta deve ser simplesmente abandonado ou criticado. Criticar aqui não diz meter o pau, denegrir ou coisa semelhante, mas lembrar-se sempre que o significado original de criticar é diferenciar, distinguir. Destacados os limites das idéias sobre as questões, aspectos negativos, deve o pesquisador propor as idéias positivas e acrescentar a sua contribuição com novos aspectos e dimensões.
f) Então, vejamos, todo trabalho de pesquisa exige o conjugar três verbos: 1º questionar. Por este verbo se monta um projeto de pesquisa, onde o não-saber atemático gera um querer saber-tematizado. Isso suscita o segundo verbo: dialogar, pelo qual, tendo como diretriz sempre as questões, se confrontam dois, três, quatro etc. ensaios, num diálogo real e produtivo. Do diálogo produtivo entra em cena o 3º verbo: criticar, como diferenciar. Aqui algo realmente tem que acontecer:
I) não se guiar por nomes que assinam os ensaios ou obras. A autoridade de um autor não está no nome, mas na profundidade com que trata as questões;
II) também não deve simplesmente justapor as idéias dos autores, mas, a partir do diferenciar, estabelecer: primeiro, o âmbito amplo da questão; segundo, as suas relações com outras; terceiro, descobrir criativamente aspectos e dimensões ainda não tematizadas, isto é, ainda não pensadas. É aqui que se mostra o vigor do pensamento do pesquisador. Neste processo o trabalho vai-se escrevendo lenta, mas seguramente.
Quando os três verbos foram exercitados, a apreensão, compreensão e depreensão foi acontedendo.
g) a tarefa descrita no tópico “f” tem duas dimensões:
1ª) Vertical. O pesquisador deve descer literalmente aos arcanos da questão, isto é, do seu núcleo fundamental;
2ª) Horizontal. É muito difícil que uma questão não se correlacione – ao ser aprofundada – com outras, estabelecendo-se uma rede de relações. Descobrir novas relações é uma das tarefas mais importantes do pesquisador. A esta altura, o pesquisador já deve estar tomado completamente pela tematização das questões e aí deve permanecer disciplinadamente. Esclareça-se que as relações horizontais não devem trazer confusão e mistura de questões. Nunca se deve perder o fio da meada. O pesquisador pode perfeitamente esclarecer que aquela relação exige o tratamento de uma outra questão, que será visto num tópico seguinte ou noutra parte do trabalho. Nesse momento não pode esquecer que deve haver coerência na tematização de cada questão e coesão nas diferentes relações e referências a outras questões, tendo sempre a idéia do todo que constitui o projeto e é a razão de ser do trabalho, da obra.
h) Decorrente do que foi dito no tópico “g”, pode ocorrer algo muito importante: o SUMÁRIO provisório, tendo sempre em vista a procura da coesão do todo, pode exigir que ele seja refeito na sua organização e disposição. Os tópicos/questões podem mudar de lugar ou até alguns serem abandonados e novos serem acrescentados. Tudo isto tendo em vista o objetivo primordial de coerência e coesão. O pesquisador nunca deve esquecer que o processo deve ser criativo e que, em última instância, é o atemático que deve determinar em princípio a coerência e a coesão, não só em relação ao já tematizado nos ensaios e obras que se vão lendo, mas muito mais no ainda não-tematizado. É este -transformado e manifestado no tematizado – que vai determinar a originalidade do trabalho.

i) A realização do trabalho - ensaio, dissertação, tese -, como se vê, exige muita disciplina e dedicação. Qualquer dispersão afetará muito a sua qualidade. Muitas dissertações e teses limitam-se a justapor idéias, às vezes mais pelo nome do autor do que pela densidade e profundidade no tratamento das questões, escrevendo alentados mas chatos e improdutivos trabalhos, que terão um único destino: entrarem num catálogo geral sem, jamais terem a menor chance de virem a ser publicadas. É que são feitas de superficialidades quantitativas e de repetições muitas vezes desordenadas quando não caóticas. Nunca se pode tomar coerência e coesão como subserviência a determinados autores e ensaios ou obras. Elas são, na disciplina da pesquisa, um primeiro momento que deve ser não só necessário como também rigoroso. Mas tudo isso como preparação para fazer manifestar-se o trabalho numa nova coerência e coesão. Nesse sentido, o processo poético-criativo (vá a tautologia) é ambíguo sempre. A disciplina de coerência e de coesão é o limiar da não-disciplina da qual emergirá uma nova coerência e coesão. Isso não é nem deve ser estranho, porque é o cerne das próprias questões. Elas são fonte inesgotável de novas experiências e experienciações.

j) Caso sejam levadas a sério estas observações, muito trabalho de leituras quantitativas e desordenadas serão evitadas. Há um fato relevante. Avançar em profundidade e densidade numa questão não é assim tão fácil. Por isso, o pesquisador, depois de algumas leituras atentas e disciplinadas, notará que os autores começam a se repetir. É a hora de se guiar só pelas questões e pelo que os ensaios e obras tem algo a dizer de novo. Caso contrário, abandonar logo a leitura em andamento e passar para outro ensaio ou obra. Não adianta perder tempo com o que nada tem a dizer. Por outro lado, deve ser feito o inverso com os ensaios e obras realmente densos. Esses devem ser lidos e relidos, pensados, refletidos num processo lento de metabolização, de tal maneira que as questões no nível em que são tematizadas passam a ser incorporadas pelo pesquisador. Mas metabolização jamais quer dizer decorar, mas um tornar próprio o que é digno de ser pensado. Só assim vai fazer algo de produtivo e criativo. Isso, é claro, é trabalhoso, lento, doloroso. Porém, esse é o único caminho para a tematização criativa. Quando o pesquisador deixar de ser um papagaio repetidor do que os outros dizem e passar a dialogar profundamente com as questões e conseguir já dizê-las de modo próprio, só então aconteceu o dialogar. Este não é chegar a consensos enganadores e superficiais. Todo consenso é perigoso, porque nele ambos os dialogantes estão perdendo algo. Uma transferência de identificação e, portanto, de perda, aconteceu. No dialogar com os autores e as questões, o essencial é a identidade harmônica e tensional das diferenças.
k) A identificação deve acontecer em relação às questões, mas jamais à adoção pura e simples de uma enchurrada repetitiva de citações. A densidade e a profundidade de um trabalho não se medem pela quantidade das citações. O critério fundamental é a sua pertinência em relação à questão que está sendo tratada. Para isso é fundamental que o pesquisador se dê conta de algo fundamental. Uma citação tirada do seu contexto pode perder muitas articulações e não chegar a dizer o que o pesquisador, ao citar, quer dizer e acentuar. É sempre necessário comentar a citação, justificá-la, destacar aspectos, palavras, imagens. Simplesmente porque não é evidente que o autor citado quis dizer aquilo que o pesquisador acha que disse e percebeu ao ler. Então é necessário um comentário que mostre o porquê da citação e o lugar que tais idéias ocupam no processo construtivo e criativo do texto do pesquisador. O excesso de citações – a não ser que estabeleça um diálogo cerrado, denso, questionante – ou muito longas perdem o seu lugar apropriado, além da pertinência e coerência. Afinal o que o pesquisador quer realçar? O que é deveras importante? Como tudo isso se insere no texto criativo do pesquisador? Uma citação – no corpo de um trabalho – deve ser como um quitute culinário, algo muito precioso e gostoso, que foi metabolizado e passou a fazer parte do trabalho, enquanto este deve ser a expressão criativa do novo sentido, mundo e verdade das questões em que o pesquisador com seu trabalho se move. Neste horizonte, é importante destacar que o trabalho que se mova no âmbito das questões não pode de maneira alguma ficar restrito a uma tematização racional, objetiva, no sentido de algo distante, desligado das experiências e experienciações, do pesquisador. No trabalho, é importante que isso se destaque e afirme, pois a vida do pesquisador, enquanto saber e não-saber, está sendo decidida. Eles não simples conceitos abstratos, mas conhecimentos que implicam referências de sentido, mundo e verdade, ou seja, são referências de valores éticos. As questões – se são questões – sempre se movem no horizonte do ético. Nelas, o próprio sentido, mundo e verdade do pesquisador estão implicados. Nelas, não só se decide uma futura profissão funcional, mas também uma experienciação do que é, enquanto o humano do homem. Então podemos dizer que fazer pesquisa e desenvolver um projeto não é uma tarefa qualquer dentro de um sistema funcional para o exercício somente de uma função. É também uma verdadeira travessia do ser homem para a apropriação do humano do homem. Esta pertinência se torna fundamental para a escolha do tema/assunto do projeto e do que no projeto é projetado. O tema/assunto das questões deve surgir, provir do que há de mais profundo no pesquisador. Deve ser, por isso, a escolha e o resultado de um auto-diálogo e de uma auto-escuta que vai se dando no próprio ler, estudar, compreender e experienciar a vida.

3º O projeto concluído
Trabalhando com disciplina e organização, o SUMÁRIO vai sendo realizado e as questões do tema/assunto de distribuem, redigidas ao longe dos capítulos, de uma maneira coerente e coesa. Nesse momento, a redação de cada parte pressupõe a consulta sistemática às notas contidas nas pastas para cada questão. Eis que o projeto deixou de ser atemático e o tematizado surge como uma obra de pensamento original e criativa.
É sempre importante ler e reler o que foi redigido para mudar o que for necessário, dando clareza às idéias. Para isso é importante retirar repetições, criando um todo harmônico, cuidar do estilo, evitando repetição de palavras e de construções. Cuide para que não haja períodos longos e sem pontuação adequada.
Quando o pesquisador segue com firmeza e disciplina a orientação, o tema/assunto do projeto cria corpo num ensaio mais ou menos longo. Aí depende da quantidade e densidade das leituras. Tudo se dá num certo processo de crescimento. Se não há leituras diversificadas e densas, na hora de desenvolver as idéias em torno das questões elas serão poucas, fracas e generalizantes. O mais difícil é ultrapassar o senso-comum, as idéias estabelecidas pelos paradigmas dominantes. O caminho de crescimento e ascensão passa necessariamente pelo descer às raízes das questões. Para isso é necessário que o pesquisador se deixe envolver por elas e selecione muito bem as leituras e se dedique – sendo avaro com seu tempo – aos autores, ensaios e obras realmente importantes, significativos, inovadores e questionadores. Isso nada tem a ver com modismos paradigmáticos. As grandes questões, em sua complexidade e riqueza, encontram-se naturalmente nas obras dos grandes pensadores. Nesse sentido, para o pesquisador, é fundamental que não se refira a ou cite obras de grandes pensadores pelo que outros dizem deles. É necessário ler com coragem e assiduidade as próprias obras. Quando se dá mais importância aos comentadores do que às próprias obras, cai-se no perigo de tratar a planta verdadeira pelas plantas parasitas que se grudam e alimentam dos seus troncos.
Seguindo uma dieta de leituras substanciais e rigorosas, quando houver necessidade de passar de um ensaio para uma dissertação, o esforço despendido nas leituras ao longo do projeto antigo e do novo dará a base para acontecer o significativo pulo de um simples ensaio de dez, vinte ou trinta páginas, para uma dissertação de cem páginas e, finalmente, para uma tese com originalidade. Nada se realiza da noite para o dia. O trabalho sistemático e disciplinado de leituras em torno de diferentes questões já irá sinalizar as dificuldades maiores ou menores na conclusão de um projeto.
O pesquisador inteligente já vai se organizando ao longo do processo de pesquisa, cuja preparação consiste na busca de uma bibliografia consistente e densa, em torno das questões essenciais. Em geral, os trabalhos finais se ressentem desta bibliografia básica e variada em torno de uma ampla gama de questões. Isso significa que, ao longo do curso como um todo, poucas leituras, de fato, foram feitas. Isso é desastroso na hora de redigir o trabalho. Ele será pobre e raquítico. E mais, vai-se fazer bem presente quando participar de um concurso. Nesse momento aparecem as lacunas deixadas ao longo do percurso. Mas será tarde para saná-las. De certo que nunca será tarde quando se leva a sério e se torna avaro com seu tempo, dedicando-se disciplinadamente ao estudo sistemático e criterioso.
As leituras têm que ser acompanhadas por um processo interno, onde o mais importante é o auto-diálogo e a auto-escuta, como ponto de partida consistente para um diálogo e escuta frutífera com as obras dos pensadores, ou seja, o auto-diálogo deve sempre ser acompanhado com o hétero-diálogo (diálogo com o outro). Só na reunião do auto-diálogo e do hétero-diálogo se constrói um pensamento sólido, variado, profundo, questionador. A realidade em seu sentido de mundo e verdade vai aparecer rica, variada, diferenciada e harmônica. Os conceitos paradigmáticos vão dando lugar à vivacidade tensa e desafiante das questões.
O projeto de pesquisa vai aos poucos se ampliando e dando origem a novos projetos, e o que era um objetivo configurado por um horizonte bem delimitado torna-se tão importante que acaba por se transformar, com o passar dos anos, num projeto de vida profissional e pessoal.
Mas isso só acontece quando os projetos de pesquisa deixam de ser trabalhos que falam sobre diferentes coisas ou temas/assuntos, para serem tão intimamente experienciadas suas questões que só dá para falar com e não simplesmente sobre. Então o auto-diálogo acontece, porque nele, o diálogo com o que é o próprio só pode ser o próprio que cada um é.
Apropriarmo-nos do que nos é próprio não é afinal o verdadeiro projeto de nossa vida? Eis porque seremos eternos pesquisadores, caso contrário seremos mortos ambulantes, fazendo-se passar por vivos. Enfim, pesquisar é tornar-se e ser feliz.