Globalização:
o sentido da técnica e a serenidade
Manuel Antônio de Castro – Prof.
Emérito da UFRJ
Em
outubro de 1955, em Messkirsch, Heidegger pronunciou o discurso, posteriormente
publicado com o título: Gelassenheit, isto
é, Serenidade. Trata fundamentalmente
da atitude e ação do homem frente à essência da técnica. Dele retiro a seguinte passagem:
Por que nos esquecemos de perguntar: em que assenta
o facto de a técnica científica ter podido descobrir e libertar novas energias
na natureza? Assenta no fato de estar em curso há alguns séculos uma
reviravolta de todas as representações dominantes. O Homem é, assim, transposto
para uma outra realidade. Esta revolução radical da visão de mundo é consumada
na filosofia moderna. Daí resulta uma posição totalmente nova do Homem no mundo
e em relação ao mundo (Heidegger, s/d, p. 18).
São reflexões atualíssimas e
essenciais para tentarmos compreender o que hoje e agora nos está acontecendo.
Destacamos: “...está em curso ... uma reviravolta de todas as representações dominantes. O homem é, assim, transposto para outra
realidade”. E muitas representações
dominantes há milênios, hoje estão desmoronando. E uma nova realidade se
desenha e nos deixa perplexos. O que fazer? Como agirmos diante do que
desmorona, revoluciona e não propõe uma nova utopia, uma nova ideologia
salvacionista? Pelo contrário, predomina claramente a distopia, seja à esquerda, seja à direita, sem nenhuma nova utopia
para substituí-la. Sem dúvida nenhuma, uma utopia
sempre foi um sistema ideal, algo a ser atingido, tornando-se dominante e
operante. Convido-os a ver o filme: O
doador de memória, direção de Philip Noyce, para terem uma ideia disso. No entanto, a questão é mais profunda
e o filme não se depara e nem reflete sobre a questão em questão. E a distopia está bem clara, hoje mais do
que nunca, no declínio e desmonte do império comunista. E digo mais, quando
Heidegger escreveu esse pequeno, mas essencial ensaio, ele estava perplexo e
preocupado com a descoberta da energia atômica, mas não se fazia na época a
menor ideia do que estava por vir: todo o poder da realidade digital e a
criação da internet e das redes sociais. E neste momento as pesquisas em torno
da internet das coisas. É como um
abismo que nos aguarda. E a efetivação desse poder é o que nos assombra hoje e
desafia, pois o ser humano é mais do que qualquer sistema, do que qualquer utopia coletiva. Simples: Sem o agir
essencial do ser humano não há a menor possibilidade de qualquer utopia. É que a essência do agir não é
social, é ontológica. Realmente, bem lá no fundo, a utopia concreta e poética é a essência
do agir, pois agir em sua essência é pensar e não se reduz, sem o excluir,
ao fazer. E aí está a encruzilhada em que fomos lançados hoje, aqui e agora.
1 – A
globalização e o desmonte das representações
Por isso podemos compreender melhor
o que diz Heidegger, quando afirma que está em curso um desmonte total de todas
as representações até então dominantes. É que os sistemas
técnicos e os sistemas humanos, ao interagirem, provocam quatro grandes
impactos:
1.1 - Hoje tudo é político.
Sendo
tudo político, tudo é poder e o poder é tudo. É uma questão global que está
para além das outras questões como, por exemplo, as culturais. Mas é um
político sem os problemas do âmbito da Polis,
pois hoje a polis é global, é planetária.
Viver na cidade hoje é um grande desafio, com todas as vantagens de possível
qualidade de vida, mas também de todo tipo de violência. Nesse vazio das
utopias e dos valores morais, o sistema técnico substitui a antiga política. As
ideologias entram num segundo plano e tendem a perder força. Há apenas uma
ideologia: a do sistema e do sentido da técnica. Cada nação tem que se haver
com seus problemas em relação a atraso, desenvolvimento e técnicas. Portanto, o
que está bem no centro do terremoto é a questão do poder e da técnica. O que hoje, verdadeiramente, gera poder? E qual
a relação do poder com a violência? Enfim, o que é poder? Com isso, o sistema representativo político inaugurado e
fundamentado no exercício da razão, comum a todos os cidadãos como afirma a
modernidade, está em profunda crise e necessidade de revisão. Poder é valor.
Valor é poder? Quando há crise de valores é que há crise de poderes. E valor e
poder são a essência da Lei. E se há
crise política, isto é, de valores e de poderes, é a lei que está em crise. E, espero que compreendam, sem lei só resta a violência. É isto que está acontecendo hoje. Mas de quantas e quais
Leis podemos falar?
1.2 - A questão da linguagem.
Há
um enfraquecimento da linguagem e do seu poder criativo, pois ela foi reduzida
ao meramente instrumental, comunicativo e funcional, como se fosse uma língua enquanto
código apenas. Não há mais lugar para a escuta, o silêncio, o não-saber, a
não-verdade e a não-ação. Todos querem falar ao mesmo tempo em rede, mas sem
que haja o diálogo, transformando-se tudo num grande falatório. Diante disso,
como manter a criatividade da língua materna em vista de toda e progressiva
informatização e banalização da palavra?
E
assim vivemos cada vez mais um mundo pobre de linguagem criativa: predominam siglas,
logotipos, marcas, gírias, até parecem balbucios de crianças certas expressões
veiculadas nas redes sociais. É que, por outro lado, têm todos esses usos a
marca certa da transitoriedade, numa sucessão assustadora. Porém, a linguagem e
seu poder de realização do ser humano foram uma das bases de inauguração e
implantação do sistema político representativo moderno. Com a crise da
linguagem, meramente comunicativa e vazia de ideias e manifestações do próprio,
daquilo que faz do homem um ser humano, é impossível haver e vigorar o poder
político com seus valores e promoção do humano, fundado na representação e nos
representantes que, cada vez mais só representam a si e a seus interesses. Sem
o império da linguagem essencial não há razão para nos guiar a todos, pois um
dos pilares da modernidade foi: o que fundamenta tudo é a razão. É ela que
diferencia o homem de todos os demais entes do universo. A crise mostra que não
é bem assim. Claro que não pode haver exclusão da razão, mas ela não é tudo. O
que falta então? Eis um motivo forte, quando a razão não é o único fundamento
do poder, do social e do político, para se pensar a essência do poder, do valor e da Lei. Enfim, da verdade.
E os jornais já veiculam textos que falam do mundo pós-verdade.
1.3 - As identidades culturais.
Tudo
isso ameaça as identidades culturais e pessoais conforme vêm sendo pensadas há
séculos, pois também, com a técnica, há uma profunda transformação da memória, do tempo e da história. Cultura/linguagem/diálogo
entram em crise, uma vez que predomina não o contraste das diferenças, mas a
monotonia do banal, do consumo e da novidade. Mitos e ritos culturais milenares
tornaram-se hoje, na oferta global de consumo de novidades, matéria para
turismo. Vivemos, nesse sentido, queiramos ou não, a Sociedade do espetáculo, pois o que predomina hoje, de modo quase
absoluto, é o império da imagem. Podem-se
mandar fotografias de qualquer lugar do mundo, praticamente de modo
instantâneo, através do whatsapp, além
da sua possível divulgação no Facebook. E
gratuitamente, desde que conectado a alguma rede. Podemos afirmar com certeza
que vivemos a geração daqueles que olham tudo e não veem nada. Para isso há
toda uma indústria de excursões para qualquer parte do mundo. E até há em cada
país, para isso, espetáculos culturais já contratados e apresentados
regularmente. Nada neles fala mais de identidade e memória cultural. As vestes
rituais das culturas tornaram-se fantasias, máscaras de espetáculos. Tais ritos
nada mais têm a ver com os mitos culturais que lhes deram origem e nem com a
vida histórica e pessoal da cultura. É a perda da substância temporal e
essencial das culturas e de seus membros, em sua memória e identidade. E assim
as pessoas julgam que estão aproveitando a vida e tendo qualidade de vida.
Quando não há uma roda viva de atividades e um repouso é necessário – às vezes
até por causa de doenças e envelhecimento – chega a cobrança da conta do
sentido da vida: em lugar da plenitude do aproveitar a vida, resta a dor, a
depressão, o sofrimento e até o desespero, dominado que se está pela
proximidade da morte. E dentro da mais profunda solidão, chega a hora e a vez
de se perguntar, sem subterfúgios escapistas, pelo sentido da vida, ou seja,
diante da Lei da morte, a cobrança do
que se fez com a vida. A verdade do sistema global substitui a verdade plural
da convivência das diferenças como diálogo. Mas só aparentemente há substituição.
E só então se percebe, quando se percebe, como somos radicalmente sociais, mas
como disse Heidegger: Mit-sein, ou
seja, somos uns com os outros. Então isso significa que somos a convivência e
afirmação de diferenças, de que o outro pode
se tornar o espelho para eu chegar a me ver em maior complexidade e
profundidade, ou seja, para descobrir que eu mesmo para chegar a ser o que sou,
também tenho de me ver como uma identidade que é um próprio, pois não sou o
outro nem um outro em geral, o mundo da caverna das imagens distorcidas geradas
diante do que se afirma como sendo “a gente”, um sujeito indeterminado, geral,
vazio, sem face, sem identidade: A “gente faz”, a “gente diz”, a “gente pensa”
etc. etc. E mais, descubro que eu mesmo em minha identidade sou uma identidade
em realização, em manifestação e que, portanto, sou um próprio poético, isto é,
tenho de me descobrir no outro de mim mesmo e que ainda não sou, mas já recebi
para ser. E assim pelo agir em sua essência e seu sentido me construir poeticamente. E só nesse sentido e somente nesse há em cada
próprio uma atuação e presença necessária do outro. A este jogo do eu sou em minha
identidade e da necessária presença também do outro que não é o outro que eu
sou, é que podemos denominar, adequadamente, o político, em sentido poético,
e, portanto, ético. E, claro, se
podemos falar: a – do outro que não
sou eu, devemos também falar: b - do outro
de mim mesmo, para que o eu e os outros não constituam uma soma sem
sentido. Devemos dizer que uma identidade mais profunda e essencial os reúne e
dá sentido num todo. Este todo, em primeira instância, é o fato de todos em
nossas dimensões próprias e sociais sermos reunidos socialmente porque todos
vivemos no mundo. Mais do que
vivemos, somos no mundo. “In der Welt sein”, diz Heidegger. Mas somente somos porque vigoramos no ser. Sem ser não há social, caso contrário este não passará de uma
máscara ou soma de máscaras e fantasias. E então, em vista desta última
instância, esta que a todas funda, temos de nos perguntar se quisermos achar o
sentido do viver e conviver, do falar e do dialogar: O que é o ser?
1.4 - A
Paideia e a perda do mítico e da memória.
Todos
sabemos que os mitos, sejam orais, sejam escritos, é que por seus rituais,
festas cíclicas e participação de todos como fazendo parte de um povo, de uma
cultura, de uma história, a história dessa cultura e povo e, mais, a própria
memória, constituíram sempre o fundo histórico de identidade e permanência de
qualquer cultura. Os ritos estão para os mitos assim como as línguas estão para
a linguagem e sentido das próprias culturas. Ora, trata-se para cada uma
assegurar uma continuidade e conservação dos mitos e sua memória no tempo e na
história. E nesse processo todo há uma dimensão e um fato que normalmente não é
pensado: o ciclo de vida e morte. E, dentro deste, os processos de conservação
da memória. E esta conservação consiste em introduzir os jovens, através dos
ritos, na memória e tempo inerente aos mitos. Este processo variou muito no
tempo e de cultura e povo para cultura. Hoje, predomina, globalmente, uma
denominação que provém da cultura grega: a paideia.
Ela mesma passou a dominar os romanos que, politicamente, os dominaram. E
então a paideia recebeu entre os
romanos o nome: sistema educacional. E
é ele ou a paideia que a globalização
técnica substituiu levando-a à profunda e generalizada crise. Essas
representações é que estão em crise profunda e têm de ser substituídas. E
atinge especialmente a universidade, pois nesta se coloca o valor da paideia enquanto o desafio de pensar o universal, sem o qual não há como fundar
o saber universitário num operar da verdade e do valor ético e poético. Temos de compreender que não se trata
simplesmente de transmitir os conhecimentos cientificamente comprovados. É que
fundando a paideia está uma concepção
do ser humano em sua diferença ontológica. E até a denominação sistema é inadequada, pois ela deve ser
tão dinâmica e aberta quanto é a vida de cada um em seu próprio. Recentemente
este próprio também se passou a
denominar: autopoiese. Aliás, uma
denominação muito adequada e que diz todo o processo que é mais do que cultural
e do que a denominação educação. E o grande pensador que foi Platão já a pensou
de maneira simples e direta de uma maneira decisiva. Diz ele no início do Livro
VII, do diálogo Politeia: Trata-se de
passar da a-paideusia para a paideia. Mas aí ambas as palavras
denominam o processo pelo qual tanto há o crescimento biológico da criança
quanto o ontológico, pois paideia provém
da palavra grega pais, paidos, que
significa criança. Sem dúvida nenhuma, os sistemas educacionais desenvolvidos
como representações ao longo da história, estão hoje em franca e evidente crise
diante da predominância da técnica em sua essência e sentido. O mais difícil de
perceber nesta crise, conforme a estamos tentando descrever, é o fato de que
sempre se julgou a técnica como um meio operacional
de todos os demais processos. E até se chegou a afirmar que, diante das
transformações que os novos meios técnicos inauguravam, o meio era a mensagem. A questão é que não se trata de uma visão
técnica da linguagem, pensada como código instrumental, ou seja, meio e
mensagem. Isso ainda é sistema comunicativo. Trata-se de pensar a linguagem, mãe de todas as línguas, enquanto
essência, sentido, verdade e mundo do ser humano. E quem diz sentido e verdade, diz ético e poético da paideia. E aqui podemos voltar ao início deste tópico: a
questão do político ou, em outras palavras, do social, não visto e reduzido ao
mero conhecimento disciplinar das sociologias ultrapassadas pela revolução e
representação técnica da realidade, da nova realidade, pois, impensadamente a
sociologia e seus seguidores, sem pensarem, afirmaram que o social é que determina e fundamenta
tudo. Porém pensemos: o social implica, mas não funda o poder
ético-social-político e sua verdade. Sem Ser não há o social, o Mit-sein, o Ser-com, a comum-unidade.
2 - Poder, lei e
violência
Para
agora descermos mais claramente aos problemas pelos quais passamos hoje
globalmente, temos de nos deter então em algo que precisa ser pensado:
violência, lei e poder. E para compreendermos o nosso devido e essencial lugar
neste todo temos de fazer, ainda que pequena, uma reflexão que traga para cada
um uma apreensão do que em verdade cada um é e seu poder de decisão: necessidade, verdade, liberdade e vontade.
E como muito bem compreenderam os pensadores e poetas gregos, isso significa
pensar nosso destino. Como tais
dimensões em que o ser humano se vê enleado se relacionam com o nosso destino e sua força e poder de Lei, aquele não social, mas de cada um?
É muito famoso e conhecido de todos,
em geral superficialmente, o Mito ou
Alegoria da caverna, narrado no livro VII do diálogo Politeia, por Platão, logo depois da afirmação da apaideusia e da paideia, de que já falamos acima. Há uma ligação essencial entre a
afirmação da paideia, como passar da a-paideusia para a paideia, e as duas partes de que se constitui o Mito/parábola da caverna. Este não pode
ser lido e tomado literalmente. É, sem dúvida nenhuma, uma grande e essencial
parábola. Portanto, exige de cada um uma interpretação que remeta para a
própria compreensão do que é em si, bem como de sua vida na pólis, ou seja, interpretá-la na
essência da verdade, conforme a pensavam os gregos na palavra por eles usada: a-letheia. Também há nela um jogo e uma
metáfora parabólica essenciais, ou seja, trata-se de pensar o vigorar da verdade
enquanto o vigorar do que somos. E no fundo podemos indicar o fundo deste jogo
essencial como sendo um jogo de Eros e
Thanatos. Sob seu domínio e poder e
verdade e Lei vivemos nosso destino, já desde sempre dado e traçado. É nossa
sina e sorte. E é nele – destino – que vigora a violência mais radical e
essencial, frente à qual se coloca com pertinência o que é a liberdade em sua
essência e o real poder de nossa vontade. E só então poderemos falar
adequadamente de qualidade de vida.
A parábola Mito da caverna se divide em duas partes bem claras e se processa
em quatro estágios ou paradas e passagens. Numa primeira parte, os seres
humanos estão confinados, metaforicamente, numa “caverna”. Nela, a realidade
social se apresenta de uma certa maneira a que a todos orienta e atinge.
Sintomaticamente, o pensador Platão denomina esse mundo, mundo da escuridão,
pois só por sombras as pessoas se entreolham e não se veem entre si e em si, e,
claro, nem às coisas. Porém, há possibilidade de se sair dessa caverna e
adentrar o mundo da luz. A luz é o princípio de tudo, ou seja, viver na luz,
com a luz e para a luz, é adentrar e viver na dimensão ontológica do princípio
de tudo. Por isso mesmo, do que cada um de nós é. E um dia um ser humano
consegue ultrapassar os limites do cotidiano da caverna e adentrar o mundo da
luz, onde o esperava uma trajetória de descobertas e auto-descoberta. Dessa
maneira, o diálogo de Platão Politeia é
um diálogo daquilo que é necessário a todos e atinge uma reflexão sobre a nossa
vida em todas as dimensões acima apontadas. E que são necessárias para passar
da apaideusia para a paideia. E me pergunto nesta altura:
Será que a universidade vigora nessa paideia?
Penso que não. Mas, então, não é essa a sua vocação? Sem dúvida. Porém, o seu
caráter disciplinar, ideológico e técnico não precisam se deixar tomar pela luz
e sair das sombras da caverna e seu pseudo-mundo utópico, quando o ocaso das
ideologias é tão evidente e irreversível?
Na segunda década do século XX,
Heidegger escreveu um livro cuja estrutura e divisão lembra aquela do diálogo
no livro VII da Politeia, se tomado
em suas diretrizes fundamentais e não nos processos como tais: Ser e tempo. Nele também temos uma
primeira parte que faz uma fenomenologia detalhada do ser humano na vida
cotidiana. E uma segunda que nos remete para o que por detrás dessa
fenomenologia já age e vigora, pois igualmente em sua obra sonda e pensa o
sentido de ser. E nos coloca como seres mortais que encontram no pensar a morte
o sentido do existir. E então todo o livro se tece e entretece em torno da existência, como sendo a nossa diferença
ontológica. Todos os demais entes são, mas somente o ser humano existe. E o sentido do existir tem como
horizonte e motivação de pensamento o sermos mortais. Todos os seres vivos
fenecem, mas somente o ser humano, porque existe, morre e sabe que morre, e não
apenas deixa de viver. Ele sabe que existir é descobrir-se como mortal. No
final do diálogo Politeia, no Livro
X, também o pensador Platão introduz a questão do sentido de viver e da vida
após a morte, tratada através agora do Mito
de Er.
Após o sucesso mundial de sua obra Ser e tempo, Heidegger dá uma parada, o
tempo necessário para ir ainda mais fundo. E nas publicações seguintes dá uma
grande virada: é o segundo Heidegger. E qual a diferença: Se no primeiro e até
ali suas reflexões o tinham levado à descoberta do existir do ser humano como
diferença ontológica, na grande virada, o mais importante não é a existência,
pois esta depende do sentido e do vigorar do ser. E desde então sua reflexão se
voltou para o sentido do Ser, até porque descobrirá que Ser é Nada. Mas um Nada Criativo, de possibilidades de
sentido para tudo, indo, portanto, além do campo do sendo, dos entes e da sua
totalidade. O Ser é Nada de ente. Não criou uma dicotomia em relação ao
primeiro Heidegger, mas adensou o seu pensamento e, com isso, deu novos
horizontes ao existir do ser humano. Estes foram pensados de uma maneira densa
na pequena obra de pensamento exemplar que é Carta sobre o humanismo. E é nela que sintetiza de uma maneira
admirável a dobra em que se vê jogado o ser humano, seja enquanto à lei, seja
enquanto à vontade e necessidade, seja enquanto à liberdade e ao destino. Enfim,
há a lei, vontade e liberdade inerentes ao ser humano enquanto ente. E há a
Lei, a Necessidade e a Liberdade enquanto Ser, isto é, no horizonte do agir e
sentido do Ser. A cada plano corresponde um poder e, sem dúvida nenhuma, a sua
correspondente violência. Logo, nem todas as violências são iguais. Por isso, a
questão da vontade e da liberdade não são assim radicalmente dependentes de uma
subjetividade racional. Há causas, há motivos, no ser humano que vão além da
racionalidade. Podemos lembrar a sentença de Pascal: “O coração tem razões que
a própria razão desconhece”. E será que o essencial e decisivo em nossa vida
não é desconhecido pela razão, sobretudo em sua versão racionalista moderna?
Afinal, somos finitos e não-finitos. Em vista disso diz Heidegger:
O pensamento não se transforma em ação por dele
emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. O pensamento age enquanto pensa.
Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado por afetar a re-ferência
do Ser ao homem. Toda produção se funda no Ser e se dirige ao ente. O
pensamento, ao contrário, se deixa requisitar pelo Ser a fim de proferir-lhe a
Verdade. O pensamento consuma esse deixar-se” (Heidegger,
1967, 25).
Fica bem claro
que a razão se aplica e dirige a todas as nossas ações que acontecem no âmbito
dos entes e que, portanto, têm como finalidade os entes. Ora, quando separadas
estas ações da sua fonte: o sentido e verdade do Ser, é claro que estamos aqui,
em nossas preocupações vivenciais no nosso cotidiano, igualmente no interior e
mundo da caverna, onde em lugar da luz imperam as sombras. Afinal, esse é o
nosso mundo do cotidiano com seus apelos e seduções e, ao mesmo tempo,
violências e desencantos. É que nossas relações nele estão regidas pela lei que
diz respeito a limites em seu alcance e não se funda no sentido de ser e do
Ser. No império da Globalização mais do que nunca está em operação e visível
esse mundo: é o mundo do consumo generalizado como aquele que pode nos
satisfazer e nos dar qualidade de vida. Embora cada vez mais cresçam as formas
de violência e insegurança. As contradições desse mundo cada vez se percebem
mais.
3 – O corpo da
mulher como objeto de consumo
Mas
nesse mundo consumista da globalização há uma violência sobre a qual eu
gostaria de chamar a atenção: contra o corpo da mulher em sua essência. Esta
violência é muito bem tematizada em dois filmes de Stanley Kubrick: “Laranja
mecânica” e “De olhos bem fechados”. Eles apenas evidenciam e fazem pensar
sobre o que cotidianamente agride a mulher em seu corpo, pois neste mundo
globalizado e de publicidade e consumo, ela se torna mero objeto a ser comprado
e consumido. E por que o corpo da mulher tem esse apelo de consumo e compra? Sem
dúvida nenhuma porque nela acontece o mistério da Beleza em sua essência. E a
Beleza nos causa prazer porque ela é um Bem. E por isso se torna o objeto do
desejo por excelência. Mas há a Beleza e o Bem ao nível dos entes e ao nível do
Ser. Tal distinção, claro, para o consumo na globalização não interessa. E por
isso ignora que, ao se tornar mero objeto de consumo, a mulher, em sua
essência, perde todo o seu próprio e interioridade. Por outro lado, em geral,
ela tende a ser inapelavelmente envolvida pelo glamour das passarelas, dos
produtos das modas e das exaltações dos meios de comunicação. Na realidade e
fundamentalmente seus corpos tornam-se produtos à venda para causarem somente e
tão somente prazer a quem os consome e pode comprar. Porém, a Beleza e o Bem
não passíveis de compra e venda. Mas, muitas vezes, tudo isso se faz sob o
argumento da liberação do corpo da mulher. Claro, à liberação nem sempre
corresponde a libertação. Mais do que nunca temos de lutar pela libertação da
mulher como um todo, enfim, como aquilo que ela é: ser humano. E nesse sentido
devemos lutar por um comportamento ético, deixando de lado o simplesmente moral
e preconceituoso vigente há séculos, pois fundado este em “representações” já
ultrapassadas pela globalização técnica e que, portanto, devem ser abandonadas,
como diz Heidegger. Fique bem clara essa distinção.
4 – Eros e
Thanatos e o sentido da vida
No
horizonte destas relações nossa conceituação e ideia de: Lei, violência,
necessidade, vontade, liberdade, sentido, verdade, é uma. Outra, bem outra,
funda a essência de nosso agir. Trata-se então do que Heidegger denomina com
precisão a re-ferência ao Ser em nosso agir: “O pensamento... se deixa
requisitar pelo Ser a fim de proferir-lhe a verdade” (Heidegger, 1967, p.25).
Sem dúvida nenhuma, para além de nossa vontade e de nossa liberdade, há a Lei
de nosso destino e seu poder e violência. Então, quando resolvemos aproveitar a
vida podemos cair numa dicotomia mortal, violenta: tornarmo-nos vítimas das
meras relações e escolhas entitativas, presentes em nosso mundo consumista. E os
efeitos dessas escolhas mais cedo ou mais tarde vêm. Tardam, mas não falham. Todos
temos a nossa hora e vez. Édipo que o diga. Este, quanto mais tentava fugir do
destino mais o cumpria. E haverá outra saída? Não, pois se vivemos e somos
tomados por Eros, o amor, em nossa
vida, Thanatos, a Morte, faz com Eros uma
dobra. Mas a Morte não é, por nosso
destino de entes finitos e não-finitos, algo que nos advém num final sobre o
qual não temos nenhum poder. Ela é a violência essencial da Lei, enunciada e
anunciada desde que nascemos. Como nos diz o pouco conhecido “Mito de Midas”,
quando ele pergunta a Sileno: “O que fazer para ser feliz?” E ele responde:
“Para seres feliz, Mísero mortal, o melhor que podias ter feito era não ter
nascido. Mas, uma vez que já nasceste, só te resta morrer” (Cf. Castro, 2011,
p. 185). O poder de nossa vontade diante da Morte não existe. Por isso, em
nossa sociedade do espetáculo e do consumo, até a Morte deve virar um produto
embelezado. O morto é rapidamente oculto e retirado do nosso meio. Penso que
todos viram o belíssimo filme “A partida” (Direção de Yojiro Takita). A Morte,
por sua violência e inexorabilidade, é o que nos causa mais temor, uma vez que,
por mais que tenhamos as verdades religiosas, a Morte é o inominável e o
totalmente desconhecido. Ninguém até hoje voltou para nos relatar como é viver
depois da morte. É algo totalmente ignorado. Mas não sei se perceberam a
contradição dessa nossa angústia e preocupação, pois gera muito sofrimento, dor
e até desespero. Não perguntamos pela Morte em nossa vida, mas pela Vida depois
da Morte. Queremos sempre olhar e compreender e experienciar a Morte no
horizonte da Vida, enfim, de entes limitados, pois mortais. Por que não podemos e devemos experienciar a
Vida no horizonte da Morte? Se atendermos apenas ao plano dos entes e suas
relações, podemos ter a certeza de que quanto mais plena a satisfação nesse
horizonte, mais plena será a colheita do vazio e do sem sentido. É que jamais
poderemos chegar a ser pelo que nos satisfaz entitativamente. Se somos entes,
somos entes do Ser, queiramos ou não. E Ele, só Ele, pode nos dar a plenitude
que essencial e originariamente perseguimos e desejamos. Não há a libido sentiendi – o desejo do sentir -, sem
a libido essendi – o desejo de Ser. Eis
o paradoxo a que nos conduz a globalização e suas promessas de beleza,
felicidade e plenitude. É um paradoxo que, afinal, tenta fugir da Lei de nosso
destino e tem como consequência a geração de uma maior violência, uma vez que a
Lei do destino é inexorável e nenhum poder é maior do que o dele.
5 – O sentido de
ser na globalização
Diante dessa realidade, o que fazer?
No ensaio Serenidade Heidegger pensa
também isso. E o que ele diz?
Seria insensato investir às cegas contra o mundo
técnico. Seria ter vistas curtas querer condenar o mundo técnico como uma obra
do diabo. Estamos dependentes dos objetos técnicos que até nos desafiam a um
sempre crescente aperfeiçoamento. Contudo, sem nos darmos conta, estamos de tal
modo apegados aos objetos técnicos que nos tornamos seus escravos. Mas podemos,
simultaneamente, deixar esses objetos repousar em si mesmos como algo que não
interessa àquilo que temos de mais íntimo e de mais próprio. Podemos dizer
“sim” à utilização inevitável dos objetos técnicos e podemos, ao mesmo tempo,
dizer “não”, impedindo que nos absorvam e, desse modo, verguem, confundam e,
por fim, esgotem a nossa essência (Wesen)... Gostaria de designar esta atitude do sim e do não simultâneos em
relação ao mundo técnico com uma palavra antiga: a serenidade para com as coisas (die Gelassenheit zu den Dingen) (Heidegger, s/d, p. 23).
Sermos
tomado pela serenidade é termos a coragem
e persistência de nos deixarmos tomar pelo mistério em seu silêncio de vazio
pleno e sentido.
É aqui que se
coloca com mais pertinência do que nunca o que a Poética defende há muito: em nossa vida aquilo que é essencial não pode
vir de fora, de algo sobre o qual se fale
e estabelece um conhecimento, essencialmente não nos fale e afete. Não basta
conhecer. É necessário ser o que se conhece. E isto vale também para a paixão e
para pensarmos o amar. Temos de estar sempre inter-essados naquilo que fazemos e, sobretudo, pensamos, agimos.
Temos de ser e estar inteiros em nosso agir e pensar essencial, em nossa realização ontológica e não apenas
entitativa. E essa é a essência da de arte em suas obras, daí a sua perenidade.
E dessa integração e inteireza de realização pode e deve nos advir a Beleza,
porque então ela é inseparável dos outros atributos transcendentais: o Bem, a
Unidade, o Próprio. Mas não é fácil, pois exige de cada um de nós uma caminhada
fundada na maiêutica de Sócrates/Platão, que exige muito desprendimento de tudo
que diz respeito às relações entitativas, ou seja, ao mero plano dos entes e a
posse deles. Se tomarmos nossa vida como essa caminhada maiêutica e livre como
realização, então a segunda parte do Mito/Parábola
da caverna começará a fazer todo o sentido e nos libertará, sem dúvida
nenhuma. O cume e plenitude será a plena iluminação e o sermos totalmente
tomados pelo Bem, pois Bem é também Beleza, a Luz como princípio de tudo. É o
que nos provocam a pensar os dois pensadores que figuram, com certeza, entre os
maiores do Ocidente: Platão e Heidegger.
Na, com e diante da globalização,
sejamos todos tomados pela Serenidade, para
a plena realização nos novos tempos da globalização.
Bibliografia
HEIDEGGER,
Martin. Serenidade. Trad. Maria
Madalena Andrade e Olga Santos. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.
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Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel
Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1967.
CASTRO, Manuel
Antônio de. “O mito de Midas da morte ou do ser feliz”. In: ---------.
Arte: o humano e o destino. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 2011.
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