Mythos e genos
Manuel
Antônio de Castro
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realidade digital.
A “coisa” no mito se dá como “coisa”
sem nenhuma interpretação. Ela articula e reúne Céu e Terra, Mortais e Imortais (cf. Heidegger: “A coisa”,
2002: 143). O grande problema em
relação ao mito é que ele, originário de todas as origens, foi medido,
identificado e representado pela metafísica, desdobrada em três grandes ramos,
dos quais nos vem hoje o que os livros divulgam como sendo o mito, tornando-o
vulgo e desfigurado, ficando, por isso mesmo, oculto e até desprezado o que é
essencial, o próprio mito.
Esses
três grandes ramos são, evidentemente: a filosofia, a teologia e a ciência. Em
verdade elas nada têm a dizer sobre o mito, a não ser que seu discurso o
silencia violentamente. De antemão, por seus próprios princípios e posições
perante o mito já são contra, se opõem ao mito. Por essas vias e desvios,
caminhos e descaminhos só colhemos e sabemos o que, de fato, o mito não é. Uma
longa Noite de esquecimento e encobrimento pesa sobre o mito, mas ele não deixa
de viger nas entrelinhas dos conceitos e doutrinas como “mítico”. Este nunca
pode ser silenciado nem reprimido. É claro que o mito também se faz presente na
poesia e artes, mas estas também sofrem o assédio dos três ramos do
conhecimento, desfigurando o mito e a própria poesia-arte. Sobretudo através
das correntes críticas e outras formas da teoria literátia. É isso que veremos
em parte no decorrer deste ensaio. Para tanto é necessário uma sábia abertura
de escuta crítico-questionante.
O mito se
desdobrou em três dimensões: kaos, kosmos e aletheia.
Mas
o que é o mito? Na realidade, quem pergunta isto já não pode nunca saber o que
é o mito, porque já se colocou fora dele para perguntar por ele. O mito não
pergunta, o mito é o mito. Que quer dizer a palavra mito? Do verbo mytheomai,
significa simplesmente o eclodir, o se abrir como palavra, linguagem. O mito
não é por isso um discurso narrativo sobre algo. O mito é a narração, o narrado
e a alétheia (verdade) da narração e
do narrado. Em grego temos, portanto, mythos e alétheia. São esses “os
princípios” de tudo. Só que no mythos não há princípio, isto é, ele
o princípio dele mesmo. A leitura do real a partir da procura de um princípio,
seja ele qual for, já indica uma posição orgânica e metafísica. Brevemente: Em
Hesíodo, quando narra a “gênese” dos deuses, ou Teo-gonia, o genos é o
que se poderia chamar de “princípio”, mas não de fundamento. Só que este genos não é princípio porque ele se faz
presente em todos os “momentos”, até porque não há “momentos” como cronologia.
O genos
só pode ser considerado princípio no estar sempre principiando. O genos é sempre um acontecer. Só nos
podemos referir a ele como “princípio” porque está sempre principiando para
além de toda carga genética e dos principiados.
“Antes”
da primeira palavra do mythos já há o mythos, ou seja “o real”
como linguagem, palavra que se abre (kaos) e manifesta (kosmos)
ou aletheia
(tensão entre kaos e kosmos). Ou seja, linguagem/mythos, kaos/kosmos e
aletheia/verdade é “o uno diferente de
si mesmo” (“hen diapheron eautoi”, segundo Hölderlin, Hiperion). Este “uno
diferente de si mesmo” recebe o “nome” de kaos/kosmos/aletheia. Kaos é o que em si se abre, se
fende, doando-se como kosmos. Algo o “precede” e “sucede”
(palavras impróprias porque já se trabalha com uma certa “experienciação” de
“tempo” como “cronologia”): o impensado e o impensável, embora vigorando em
tudo que se pensa ou pode pensar. Por isso o genos do kosmos/kaos se dá por cissiparidade.
Isso é muito importante, porque mostra que mythos, kaos/kosmos e aletheia não
são um princípio do outro. Não há princípio. Há o “uno diferente de si mesmo”.
O mais importante a perceber é que qualquer diferente é ao mesmo tempo
originário e origem, mas sem separação nem precedência de um sobre o outro,
senão caímos aí já numa linearidade, baseada num fundamento primeiro. Não há
primeiro, apenas identidade e diferença, diversidade e universidade. É isso o
que significa cissiparidade. Quando hoje de qualquer organismo se isola uma
célula e se dá origem a um novo organismo, ao mesmo tempo idêntico e diferente,
não se faz, não se pensa e nem se diz nada diferente do que o mythos
já desde sempre e originariamente proclamou em mythos, kaos, kosmos e alétheia.
Dois
aspectos importantes: primeiro, não há primeiro ou princípio. Há, sim, o
mistério insondável do que se abre e manifesta ocultando-se. Manifesta-se como
mythos e kaos e kosmos e aletheia. E oculta-se como o “E” de mythos “E” kaos “E” kosmos “E” aletheia, onde esse “E” é
a identidade e universalidade de todas as diferenças e diversidade. Eros “E” Thanatos “E” Noite “E” Dia “E” Physis “E” Logos já vigem nesse “E”
insondável, que sempre se desvela “E”
vela. Sendo muito importante perceber que nós também já vigoramos nele e somos
irresistivelmente atraídos e seduzidos por ele. É o vigorar de Eros, esse mito fundador e manifestador. Segundo: a questão do
princípio é, pois, uma questão tão originária que qualquer resposta pretende
ser sempre mais do que a questão. Só podemos ser arrastados pelo mistério e
dizer: no princípio não há princípio. O mito vigora, portanto, em quatro
grandes questões desdobradas e simultaneamente vigentes em múltiplos genos, onde cada um é a família em que, em
si, se dá ao mesmo tempo o originário, a origem e o originado. Por isso o
mythos não questiona. Os mitos e o mítico são experienciações sempre
radicais do que se dá como mythos, kaos, kosmos e aletheia. O mito se
experiencia então como mítico na poiesis e
nas religiões, na medida em que são
experienciações do sagrado. Estas não
provêm numa linearidade, que não existe, do mito, mas do sagrado: Falar e
experienciar o sagrado é possível: como mythos,
poiesis, religião (em verdade: religiões),
pensamento, metafísica e filosofia.
Um comentário:
Simplesmente Sensacional: Cheguei aqui, por coincidência, através dos escritos de Paul Brunton.
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