Criticar: origem e vigência
Prof.
Manuel Antônio de Castro
www.dicpoetica.letras.ufrj.br - Para aprofundamento das questões levantadas no ensaio consulte este Dicionário neste endereço digital. Trata-se de um Dicionário de questões e não de levantamento de significados semânticos.
O criticar e a linguagem
Criticar
forma-se diretamente do verbo grego: krinein.
Em grego é um verbo de múltiplos sentidos que cobrem e manifestam as facetas essenciais
do que implica todo criticar, jogando-nos num agir da linguagem (poiesis) em que a própria realidade se
dá e mostra em sua radicalidade originária. Nele estão implicados a realidade/physis e o homem, e a própria referência
de ambos, em que ambiguamente a realidade se dá e se retrai, projetando-se e
dissimulando-se no criticar, não do homem como sujeito, mas do acontecer do
homem como acontecer da realidade, ou seja, em sua condição humana. Por ser o
lugar ambíguo do acontecer ambíguo da realidade, o criticar do ser humano o
constitui e manifesta em sua essência originária, ou seja, ser ele mesmo o
lugar ou referência originária da realidade (physis) e ser humano. É uma ambigüidade que foge a qualquer mera
relação de sujeito e objeto (esta só desenvolvida na modernidade), pois o krinein é o lugar da dobra originária. A
sua posterior apreensão na relação a sujeito e objeto já é o resultado –
enigmático - da sua transformação num
duplo. No duplo, o que está em jogo é o esquecimento do sentido do ser, que
implica sempre também o sentido do humano do homem, da sua constituição
ontológica, enquanto acontecer poético. No krinein/criticar
podemos nos deixar tomar pela dobra ou tomar a posição do duplo (mais
explícita na sofística e na modernidade, onde ocorrem claramente como operar da
linguagem em sua dimensão lógico-instrumental ou funcional). Para o sofista a
essência da linguagem, do ponto de vista crítico, o único possível, consiste em
poder ser instrumento de persuasão. Dando origem ao gramático, ele parte,
portanto, da convicção de que esse instrumento de persuasão, pode ser objeto de
uma técnica que se pode aprender e ensinar. Para o pensador a linguagem não é
instrumento, mas o lugar do compreender crítico. Toda compreensão como diálogo
já acontece sempre num mundo. Este é o logos
se manifestando enquanto essência da realidade/physis. Krinein é o entre-lugar do diálogo em que o logos acontece como mundo e a realidade/physis nos
advém como realidade.
As dimensões do criticar
O âmbito poético-semântico de krinein/criticar é:
1 – interrogar,
questionar.
2 – pensar;
3 – separar, dis-cernir (mesmo radical de krinein), diferenciar;
4 – interpretar;
5 – julgar;
6 – cortar,
de-cidir;
7 – atribuir.
Esta
ordenação não tem qualquer valor classificatório, mas apenas dimensões
inerentes ao vigor do krinein/criticar.
Os sete significados semânticos assinalados pelo dicionário (Bailly, 1963:
1137) estão profundamente ligados entre si. Essa inter-ligação já está evidente
para o pensamento da compreensão. Nesse universo a ação de cada verbo já está
implicada nas demais ações de todos esses verbos. Somente podemos dis-cernir
sete facetas porque já nos movemos na essência originária do krinein/criticar como sendo a própria
essência originária da realidade/physis.
Como ela se dá em múltiplos sentidos profundamente interligados daí se origina
um conjunto de palavras derivadas que explicitam todo o processo do krinein/criticar no âmbito do agir da
realidade e do agir do ser humano, no horizonte da própria realidade/physis, desdobradas em diferentes
relações sempre repostas e renovadas. Mas não podemos deixar de assinalar logo
que todo criticar é já
originariamente um questionar, um perguntar. Não somos nós que temos as
questões, são elas, como a realidade vigente enquanto krinein, que nos têm. Ao ser humano na sua referência à realidade
como criticar só cabe mover-se nelas. É neste mover-se que inscreve o seu
percurso destinal. Termos um destino é a nossa própria condição humana e da
qual nenhum ser humano pode fugir. Na vigência do krinein, todo questionar é já um pensar. Daí todo filosofar dar-se no âmbito do discernimento como pro-cura do originário. O taumadzein que toma o pensador e poeta é já a vigência do krinein. E todo ser humano é pensador e
poeta, caso contrário nem poderia ler e compreender as obras de pensamento e as
obras poéticas. E isso acontecerá em
toda obra de pensamento, isto é, em todas as grandes obras dos grandes
pensadores e dos grandes poetas. Porém, o discernimento
que origina como questionar e pensar as obras demanda um interpretar: um agir ético a partir do krinein como “inter”, isto é, no vigor
do “entre”, ou seja, da intuição
originária. Essa interpretação se efetiva como diá-noia no (in) diá-logo. Só
no âmbito das possibilidades do logos é
que é possível todo e qualquer julgamento
criterioso. Por isso, no criticar haverá sempre um de-cidir onde se sai do
plano meramente ôntico para deixarmos aflorar a vigência do ser. É no horizonte do ser e só no horizonte do ser que podemos interpretar e dialogar nas e
com as obras poéticas. Nelas
apreenderemos dessa maneira sempre as atribuições
essenciais, ou seja, os chamados transcendentais.
De krinein
formaram-se as palavras em grego: Kriter ou Krites: juiz, ou seja, aquele
que é configurado pelo poder verbal inerente ao vigor de krinein. Não é qualquer ser humano como tal que pode se arvorar em
ser juiz, só aquele que é investido do poder que provém do krinein. Por isso, o sentido profundo é aquele que recebe o poder
de julgar. Mas o juiz não pode julgar, como se poderia dizer, a bel prazer. Não, seu poder é pautado
pelo kriterion, isto é, a medida (jurídico-sagrada), que lhe dá a capacidade e poder de julgar. Daí se
tornar o tribunal. Este é então a
instância regida pela medida, pelo kriterion, e não simplesmente o espaço
onde acontece o julgamento. A partir do krinein,
do Kriter e do kriterion é que o espaço se constitui
como este espaço, ou seja, torna-se
um lugar, o tribunal. Portanto, medida e
tribunal constituem a própria essência do julgamento. Para bem compreender a ligação profunda entre kriter e kriterion temos de partir do poder
de que o krinein é portador e
doador enquanto é a própria physis constituindo-se
em mundo. Na instância de mundo, juiz será o kritikós, isto
é, o que é apto a julgar, o crítico. E
o que disso resulta é, evidentemente, a krima,
a de-cisão (jurídico-sagrada). O
horizonte da decisão sempre se exerce
a partir de algo krisimos, de-cisivo,
crítico. Nunca podemos pensar o criticar fora do próprio acontecer da physis/realidade. O krisimos, o de-cisivo, dá-se num
processo de mudança já instaurado pela própria realidade/physis a que se denomina krisis.
Crise
Hoje
só temos a idéia de crise ligada a um
momento perigoso, a sintomas de
transformações profundas, como se de repente algo estivesse para explodir, vir
a realizar-se, mas sempre num acontecer decisivo, no mesmo tempo de algo novo
que quer surgir e de algo que está em vias de ser superado. Mas crise não diz simplesmente qualquer
momento e mudança. A crise diz o tempo amadurecendo em novas
possibilidades de eclosão. Por isso, toda época
surge de uma crise. Nesta está
implicada algo como uma “perturbação/doença” (metáfora para indicar algo que
foge ao conhecido e determinável), que é, no fundo, um acontecer ético, que ultrapassa a simples oposição
de bem e mal. O ético, enquanto crise, já
traz em si, ao mesmo tempo, o bem E o
mal. Por isso, estes não podem ser julgados moralmente, a partir de um
paradigma externo e prévio. A própria realidade está amadurecendo e prestes a
eclodir em algo novo. Este novo é ruptura (mudança) e tradição
(permanência), mostrando a essência originária da realidade/physis como atualidade. Se, por um lado, não podemos reduzir a crise ao moral, também não a podemos
reduzir a algo meramente físico-corporal.
Está sempre implicado o corpo pessoal,
o corpo social, o corpo Terra, na vigência de sentido do
humano e do sentido da realidade. Então a crise
é ética porque acontece num
âmbito ontológico. É necessário
pensar toda doença corporal para além
do paradigma físico-material (organismo-funcional). Toda doença como crise é sintoma de um todo de sentido em que o corpo pode ser corpo e o lugar da eclosão. E é esse lugar que diferencia o corpo do corpo meramente orgânico. É
necessário repensar o âmbito da krisis (não
apenas como “doença”) e reinstalá-la no vigor do krinein, de que a krisis é
um sintoma evidente. Toda crise/doença
é sempre corporal, mental, psicológica, social, conjuntural, numa palavra: onto-lógica, porque diz respeito à
realidade/physis como um todo, um
mundo em crise. É nesse horizonte que
podemos compreender a emergência da Modernidade como crise da Idade Média. E devemos compreender hoje a crise da
modernidade na eclosão da globalização. Isso
fica mais claro quando retomamos a unidade de sentidos em que a palavra grega krisis se move, sentidos implícitos na
palavra crise como ela é usada hoje,
de que dificilmente temos em vista a sua compreensão. Por isso, é essencial
retomar os sentidos de krisis, em
grego, para melhor nos tomarmos conscientes do vigor em que ela se move,
fazendo uso do sintagma: consciência
crítica, mas, agora, em seu sentido real e não apenas semântico-moderno e atual.
A crise e a verdade: o certo
Para compreendermos o nível originário em que
se move a palavra krisis, claro, como
denominação da ação do krinein, é bom,
logo, destacar que, em primeiro lugar, krisis
diz o certo. Devemos tirar logo
de nossa mente o certo do duplo em
que ele se opõe a falso. O certo, originariamente, diz a
manifestação, o desvelamento da realidade/physis
na sua verdade. Platão gosta de
usar a palavra orthotes. É esta que
funda a certeza do certo. Um certo ético. Verdade diz-se em grego aletheia (onde se dá a tensão de velamento/desvelamento). Por isso, diz Platão a propósito de krinein (dis-cernir): to alethis te kai me (o que é verdadeiro e o que não é).
A
perda da memória etimológica ou como disse o pensador da linguagem Guimarães
Rosa: o retirar as camadas de cinza com que as palavras são recobertas pelo
fluir do tempo em seu operar, tal perda não nos deixa escutar o que ressoa como
brasa viva por debaixo das camadas de cinza na palavra certo. Este forma-se do verbo latino: cerno, crevi, cretum, cérnere: dis-cernir, julgar. Tanto krino como cerno têm a mesma raiz indo-européia, daí dizerem o mesmo: os sentidos inerentes ao krinein, que estamos vendo. E estes se
centralizam na palavra derivada krisis, que
congrega em si todo o âmbito dos sentidos do krinein/cerno, tendo como vigor de instituição de sentido o certo. O certo não precede nem é posterior à crise. É sua própria manifestação como vigor de manifestação da
realidade/physis enquanto verdade.
O âmbito de sentidos da crise
Neste
horizonte krisis apresenta os
seguintes sentidos:
1 – ação da
faculdade de dis-cernir (di-ferenciar);
2 – ação de
escolher, isto é, escolha (daí eleição);
3 – ação de separar
(daí contestação);
4 – ação de
de-cidir: de-cisão, ou seja, julgamento ou juízo (em múltiplas instâncias, na
medida em que tem sempre como horizonte as questões).
Toda questão nos joga continuamente
em de-cisões, onde a questão se reinstala como solicitação da
realidade/physis enquanto krinein, inaugurando novas possibilidades do acontecer da questão.
A krisis e o julgamento (juízo)
O
sentido mais geral e radical de krisis
é o que diz respeito ao julgamento como
proposição judicativa, onde se afirma
ou nega algo a respeito da realidade/physis.
A proposição ou oração é o lugar da
manifestação da realidade/physis enquanto
linguagem (logos). Nas considerações a respeito do juízo/proposição criou-se uma dicotomia (duplo), onde se tende a
separar o âmbito da realidade/physis como
tal de sua representação como
discurso/proposição (âmbito do logos/lógica).
Esta separação iniciada pelos sofistas tem seu campo privilegiado e aplicação e
continuação nos estudos gramaticais e lingüísticos até hoje. Nestes, a linguagem como lugar do julgamento fica reduzida às possibilidades instrumentais
de persuasão. Quando examinamos com atenção a estrutura do juízo (krisis), tendemos a acentuar dois pólos,
o do sujeito e o do predicado, ignorando sua fonte, sua origem: o verbo, no
caso, o verbo ser na sua manifestação
enigmática do é. Tomemos como exemplo
o verso famoso de Fernando Pessoa em Autopsicografia:
“O poeta é um fingidor”. Jamais vamos apreender e
compreender o que aí acontece como realidade poética se nos limitarmos a
discutir e discernir apenas as relações entre o sujeito e o predicado. Toda a
força poética do verso reside na simples constatação do juízo, em que se move o
verso, de que enigmaticamente o poeta é e
só sendo pode ser fingidor. Gramaticalmente
fica esquecido que o é é a
manifestação temporal da realidade/physis
no atuar do poeta, que vem da força do ser
que se dá como krisis (juízo/proposição). Isto significa que os membros
constitutivos do juízo/proposição são
o resultado da vigência da realidade/physis
(ser), enquanto krinein, numa dobra de manifestação. Então não é a proposição que
representa a realidade/physis, mas
esta mesma é, no que lhe é próprio, dando-se
no é, des-dobrando-se no seu vigor de
manifestação: a dobra misteriosa de krisis
E poiesis. Tanto isto é certo que a este des-dobramento dão os gregos o
nome de krisis, isto é, julgamento,
juízo. O vigor da krisis é o é e não o sujeito e o predicado. Estes
só podem ser o que são pelo vigorar do ser se dando no krinein, o que significa, no desdobramento de sujeito (essência) E
predicado. Esse “E” se torna o
lugar do próprio acontecer da krisis, do
krinein. O certo inerente a toda proposição
provém não da proposição (krisis)
como manifestação lingüística, mas da realidade/physis (ser), enquanto krinein (krisis). É este que constitui o âmbito de verdade (certo) da proposição enquanto
manifestação do logos. Então
realidade/physis, krinein e logos constituem uma unidade sempre dis-cernível, mas jamais dicotomizável
sem perda da compreensão do próprio do krinein/cernível,
porque em si a realidade/physis já
é constitutivamente permanência E mudança
(arkhé E telos, isto é, krinein). O krinein como krinein é
esse “E” enigmático que atua como o
“entre” de permanência e mudança. Todo
krinein é um entre que reúne em-si a
unidade e a diferença, a partir do qual se pode sempre e se dá sempre um dis-cernimento. Mas este não é dito pelo ser humano, mas lhe é dado para poder julgar, isto é, krinein (krisis). Mas o que dito, dado E julgar (krineini) têm em comum?
O discernir poético: o entre-ser
Para
que fique claro em que questões nos vamos mover é necessário deixar bem
discernido que a questão fundamental é sempre a referência entre o ser humano e o ser (realidade/physis). E nessa referência quem age? A
metafísica ocidental criou um duplo, pelo qual foram tomadas duas posições.
Pela primeira, a ação (poiesis) foi jogada num fundamento externo ao ser humano, recebendo então
diversos nomes: fundamento, essência, criador, substância etc. Pela segunda, a ação foi atribuída ao ser humano, então
denominado sujeito, autor etc. É a
posição moderna. No duplo sempre predomina uma relação, pela
qual um se torna o determinante e o outro o determinado, estabelecendo-se uma relação causal. Isto causa aquilo. Na dobra sempre se dá uma
referência, pela qual não há determinante e determinado, não se mostrando,
portanto, nenhuma relação causal. A dobra
é a própria vigência da realidade/physis
enquanto krinein, onde o
di-ferenciar, discernir, é a própria manifestação da realidade/physis enquanto arkhé E telos, ou seja, permanência E mudança. Isto diz, portanto,
que o acontecer poético da realidade/physis
se dá, se diz, se julga enquanto krisis,
no ser humano. Este, por ser o lugar de
tal acontecer, é que propriamente se constitui no que lhe é próprio: entre-ser. Ser entre-ser eis o destino do ser humano. Um destino no qual a própria
realidade/physis se destina como krinein: vigor de permanência E
mudança.
O julgar e o sagrado
Podemos
agora repetir a pergunta: Mas o que dito,
dado E julgar (krinein) têm em comum? Se bem
observarmos todos os sentidos de krinein surgem
para se concentrarem no ato de-cisivo de
julgar, pois este se torna o lugar do dis-cernimento. Nossa facticidade nos joga já desde sempre, isto é,
originariamente, no entre-ser E
entre-estar no limite e no não-limite. É nossa condição humana. O que, em sua origem, quer dizer julgar? Não implica ele radicalmente
sempre um ser limite E um ser não-limite?
Julgar forma-se das palavras latinas: jus e dicere. Jus propriamente é uma fórmula sagrada que tem força de lei. Judex é aquele que diz a fórmula sagrada da justiça, onde esta nada mais é do que o
pronunciamento e a atuação do jus, enquanto
força do sagrado, da lei divina. É a fala do sagrado pelas palavras (narração) do Juiz. Já na sociedade latina
perdeu-se, isto é, ficou misturado, meio indistinto, o sentido sagrado de jus e o sentido profano, que passa a ser
“direito”, “justiça” no âmbito das relações jurídico-político-sociais. Essas
instâncias nas sociedades antigas não eram tão nitidamente separadas como
ocorreu depois com o advento da razão
crítica, na Modernidade (quando acontece a fuga dos deuses). E para o
sagrado se reservou exclusivamente uma outra palavra: fas. Esta diz o direito
divino, a lei divina (não
esqueçamos que os “deuses” tinham seu vigor no “divino/sagrado”, que lhes dava
uma unidade. Os “deuses” enquanto
diferenças eram naturalmente o operar do krinein
ao nível do “divino/sagrado”. A
diferença entre jus e fas está consagrada na expressão: “contra jus fasque: contra a lei humana e a
divina”. O que acontece no âmbito
do fas é o justo, o que é permitido, daí:
fas est: é permitido. Algo é
permitido desde que se mova no âmbito do fas,
isto é, da lei. Ligado a esta,
isto é, a fas, está o destino, a sorte, a disposição do destino. Mas quando procuramos a
etimologia de fas vamos ver que está
ligada ao verbo fari: falar, dizer. Segundo Ernout e Meillet (1979: 217), jus, fas e mos (costume) se co-pertencem. Isto mostra a instância e o sentido
ético-originário do fas. A presença
de um vigor que não está no âmbito de
quem julga, que não é quem de-cide (krinein)
se mostra no fato de que tais palavras só se usam (e não se declinam) em
expressões impessoais: fas, mos, jus est significam:
é lei, é costume (ético), ou seja, vigoram no sagrado. Não é possível lhe
atribuir um sujeito, uma pessoa
verbal. A força emana do próprio verbo.
Propriamente
o sentido de fas é: permissão ou
ordem dos deuses (do sagrado), direito divino, por oposição a jus, direito humano. De fas formou-se fatum, o fado, o dito como destino que tem sua origem no sagrado.
Porém, diz Meillet e Ernout (1979: 217) que: fari, fama, fabula não têm um valor nitidamente religioso em latim. Essa
ambigüidade entre o religioso e o profano levou os filólogos a aproximar a
etimologia de faz de feriae (festas) e fanum (templo). Fas viria
de uma raiz *dhas. O sentido de fas lembra, com efeito, o do grego: themis (tendo então a mesma raiz, isto
é, *dhas), o que é estabelecido como lei e regra. Daí: lei divina e ética (em latim
fas) e se opõe a nomos: lei humana, estabelecida pela moral, o que é usado, é
costume. Themis estí: o permitido
pelo destino, pelos deuses. Este nome está ligado ao verbo grego tithénai, da mesma raiz de fas: *dhê: pôr como norma divina. O
verbo grego themidzo significa julgar. A deusa grega Themis remete para a questão da justiça, enquanto medida justa. É “a deusa das leis eternas, da justiça emanada dos
deuses” (Brandão, 2000, v.2: 417). Com Zeus deu à luz as três Moiras: Cloto,
Láquesis e Átropos. O nome themis já aparece no micênio e pode ser
traduzido como limite. O julgar pela
medida justa, pela lei nos remete diretamente para o krinein/criticar como referência do ser e do homem. Daí estarem as
ações dos personagens trágicos sempre ligadas à hybris, à desmedida ética. Tudo isto nos mostra o quanto a ação originária de krinein é complexa e que a junção ou distinção de jus e fas, de direito humano e divino, acontecem num “entre” sempre
referencial, mas enigmático. E isto ainda se torna mais enigmático do ponto de
vista das palavras da linguagem, pois, deve-se notar, a referência de ser e
homem no krinein/criticar acontece
necessariamente na referência de poiesis
E linguagem. Não há uma referência sem a outra. É uma dobra originária.
Se retomamos agora a questão do julgar como jus-dicere, é necessário estarmos atentos para um fato curioso.
Tomando as palavras isoladamente, os filólogos vão nos dizer que jus é o direito humano e que fas é o direito divino. Mas a partir da
etimologia de fas a palavra liga-se
ao verbo fari: dizer, falar. No lugar
de fari, em jus-dicere vamos ter dicere, que
tem o mesmo sentido de fari: dizer. E
em julgar, na verdade, o vigor da
palavra está dependente do verbo dicere. Sem
dicere não há jus. Sem a linguagem não há poiesis,
como não há linguagem sem poiesis. E
o que diz o dicere? Provém da raiz deik que significa: mostrar, fazer conhecer pela palavra, isto é, dizer. O verbo tem um caráter solene e específico: é um termo da
língua e do direito sagrado. Então jus-dicere
é manifestar o sagrado como tal. Nele se julga porque na fórmula do jus a divindade se mostra e faz
presente, isto é, se doa. Presentear-se
é doar-se. É uma proclamação onde a
divindade se mostra enquanto linguagem pela qual e na qual advém o sentido e o
vigor da lei enquanto ação (poiesis) que faz a realidade/physis advir ao manifestar-se em seu sentido
e mundo: linguagem. Numa tal manifestação como julgamento é que temos o krinein/criticar/julgar propriamente
vigorando.
Krinein já traz em si o próprio conhecer
enquanto o sentido que a linguagem do dizer divino já doa, presenteia, sem o
qual não é possível julgar, mas um conhecer que não tem seu âmbito de atuação
baseado apenas nas possibilidades do conhecimento como techne nem das possibilidades de aprender e ensinar, ou seja, da máthesis. Nele já vigoram as
possibilidades do dizer enquanto linguagem e do próprio fazer, não em sentido material ou prático, mas no sentido de poiein,
de trazer ao desvelamento enquanto vigorar da ação da physis que ama velar-se, conforme
nos diz Heráclito na sentença 123 (Physis
kryptestai philei). O verbo grego essencialmente diz o dis-cernir o que é verdadeiro/desvelado e o que não é (Platão,
Theeteto: to alethes te kai me). (In: Bailly, 1950: 1137).
O núcleo do criticar
Temos
três palavras fundamentais no processo crítico, do ponto de vista daquilo que
constitui aspectos ou dimensões essenciais. São elas: Krinein, kriterion, krisis.
É
claro que os três, em si diferentes, são reunidos pela vigor do logos. Mas o vigor que opera no krinein, kriterion e krisis, em si, não
é radicalmente diferente, embora não seja a mesma do logos. Entende-se por vigor a vigência de possibilidades que podem
ser realizadas ou não. É nessa instância que entram todas as forças familiares,
sociais, educacionais, religiosas (sem exclusões) e políticas (sem ideologias)
como exercício de criação das condições para que tais possibilidades tenham o
lugar e o momento oportuno para se desvelarem e cada sendo chegar a seu telos, isto
é, à sua realização, à plenitude de seu próprio. No fundo, krinein e logos são a
própria physis vigorando. Porém, esta,
em si mesma, é a unidade de diferenças, na medida em que vigora numa disputa (polemós). Este encontra seu lugar de
realização no ser humano na medida em que ele se guia pela essência do agir.
Por isso, este será um sendo da physis e,
ao mesmo tempo, o lugar onde ela chega a realizar o que ela, em si mesma, não
realiza. A physis não compõe uma nona
sinfonia nem escreve a tragédia Rei Édipo
etc. Nesta dimensão, teremos então que acrescentar ao âmbito do criticar
uma quarta palavra: kriter ou krites. Este, na krisis, opera não de uma maneira aleatória ou totalmente ativa ou
passiva, mas dentro da dinâmica da physis
(vida/sagrado), em situações sempre concretas, a partir dos critérios. Em toda de-cisão (julgamento,
seja de que natureza for), implícita ou explicitamente, sempre agimos dentro de
certos critérios (conscientes ou inconscientes, bons ou maus, justos ou
injustos, ideológicos ou poéticos, éticos ou anti-éticos). São estes que
conferem aos atos de diferentes krites uma
certa unidade, tendo como horizonte na krisis
sempre o krinein. Os critérios
são de alguma maneira um paradigma do que se poderia chamar e sempre se chamou medida. Mas que medida? A do plano humano, da razão, da política, do poder da
vontade? Ou a medida do humano, medido pela vigência e dizer do
sagrado? Por isso, os gregos chamaram a falta
de medida a des-medida, a hybris. Esta
refere-se sempre ao ético como o poético do humano, tempo como horizonte a vigência do sagrado. Na
modernidade, a medida do julgamento
vai ser a razão crítica. E são os seus critérios que hoje ainda permeiam todas
as instâncias das realizações. Porém, sua formulação sempre se dá dentro de um
vocabulário oriundo de teorias e paradigmas específicos a cada disciplina, a
cada campo de conhecimento. Tirante o imperativo de ser uma crítica racional,
surgem as mais diferentes posições, inclusive dentro de uma mesma disciplina.
Esta não é algo estático.
Estético, poético e ético
Porém, no racional, o que decide não é a lei do sagrado nem da cidade. É o Lógico,
daí tudo ter de ser científico. Para tentar ir além deste lógico, a ciência
criou a estética. Esta é abordagem
científico-racional das sensações, presentes nas obras de arte, pois,
aparentemente, em primeiro lugar o que o leitor ou espectador tem, diante de
uma obra de arte, são sensações ou estesias, compreendidas como experiências estéticas. E o seu
tratamento científico originou a estética.
Daí se falar sempre em teoria literária ou em qualquer corrente crítica,
quando se trata de obras de arte, em análise.
Esta, porém, jamais apreenderá o ético-poético
de qualquer obra de arte. Costumo brincar dizendo que em questão de obra de
arte não se pode falar em análise, pois
obra de arte não é “cocô nem sangue”, passíveis este de análises nos laboratórios.
Das obras de arte temos sempre a dobra de escuta e experienciação. Em se tratando de estesias, só
aparentemente elas me dão o essencial da obra de arte, pois se o ser humano em
sua condição já não fosse aberto ao não aparente, nunca iria além das aparências
ou estesias das sensações dos sentidos. Sem sentido
não há jamais estesias, em se tratando do ser humano. E o que mais clama
dentro dele e sempre é essencial, é aquilo que vigora e produz tudo que é
aparente, pois até para ser aparente, a aparência tem de aparecer, isto é,
originar-se no que não cessa de se manifestar, ao mesmo tempo que nunca se
esgotando, não cessa também de se velar. É neste horizonte que os gregos
pensaram a verdade como a-letheia. Claro,
apreendidas e diferenciadas as sensações através da razão, daí a estética se fundamentar na epistemologia. No Helenismo havia três epistemes: episteme physike; episteme
logike; episteme ethike. Aí logike origina-se
na palavra fundadora grega: logos. Mas
na episteme ficou reduzida às regras
ou leis lógicas. E são estas que
orientam desde então todo exercício crítico
ou de conhecimento, ou seja, algo
é crítico quando se guia pelo lógico, pois
só assim será conhecimento verdadeiro. E
o que é verdadeiro é real, ou seja, a
ciência por ser lógica será sempre real, porque o que é verdadeiro é real, mas
um real reduzido ao lógico. Desde então
todas as disciplinas se tornaram verdadeiras, reais e críticas, porque lógicas. E o que não for lógico passa a ser i-lógico, não-verdadeiro,
ou seja, não-crítico: ficção, ilusão, fantasia, sonho, digital. Como há ações
no comportamento humano que não são redutíveis a essa camisa de força científica,
inventou-se o inconsciente. Veja-se
que a própria palavra já diz o horizonte e âmbito do consciente, do epistemológico,
do lógico, do científico. Note-se logo que esta crítica
não está negando esses nossos atos, esses nossos comportamentos. Nega-se a sua classificação
só no âmbito do lógico e, portanto,
da ciência. Algo que para a ciência é
i-logico, realmente existe e vigora
com uma força que nenhum conhecimento científico tem. Por exemplo, a força e
vigor do destino. Desse modo, a arte
não é redutível ao científico, horizonte que orienta todas as correntes críticas.
A obra de arte, em seu operar, é lógica sem dúvida nenhuma, mas vai muito além
desse lógico, pois a physis e a
condição humana são muito mais complexas do que o lógico e seu conhecimento científico. E é dessa complexidade e riqueza que nos falam as obras de arte.
Por isso, conforme vimos propondo, a crítica, no sentido originário do krinein, é muito mais profunda e
complexa do que a lógica científica, pois
esta o supõe e pressupõe.
Se
bem observarmos, o científico avança sempre, mas não dá conta jamais do ético e do acontecer poético, ou seja, da memória
em sua vigência histórica, ou seja, a vigência do krinein. E claro, muito claro, não dá conta jamais do sagrado, o universal concreto. Pois o científico é sempre um universal abstrato. Porém, o que somos
em nosso próprio jamais é algo
abstrato, mas desafiante a cada dia de uma maneira mergulhada radicalmente no
tempo, o tempo de ser. É na dobra de
ser e tempo que vigora o krinein.
BAILLY, A. Dictionnaire grec-français. Paris,
Hachette, 1950.
BRANDÃO, Junito de
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