25 dezembro 2015

Ek-sistencia e Eros


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  Qual questão Ek-sistencia nos provoca a pensar? Eros. Qual questão Eros nos provoca a pensar? Ek-sistencia.
  Ek-sistencia é uma questão essencial em Ser e tempo, de Martin Heidegger. O apelo à origem latina da palavra quer destacar que não se trata do significado tradicional de existência, termo usado na filosofia para se opor a essência. Mas o que então compreender por ek-sistencia e qual a sua diferença de existência bem como de essência? É uma provocação do pensamento pela qual tudo que a metafísica diz entra em questão. Tal tematização encontrou ressonância em todos os campos do saber. Aí incluído o repensar as classificações formais, estéticas e ideológicas da arte, nas quais o atuar próprio das obras não acontece. Mais profundamente ek-sistencia é o vigorar de Eros. O traço decisivo do esforço de pensamento consistiu em algo simples, porém, de profundas consequências: pôr em questão o conceito de essência. Conceito é uma representação generalizante com pretensões de verdade universal, onde o atuar do tempo, que é sempre inaugural porque em permanente advir, é esquecido. Essência é o termo matriz em que se fundamentou a construção do Ocidente metafísico. Dialeticamente há também o Ocidente poético. É admirável como um único conceito teve influência tão permanente. O que é essência? Esta pergunta já traz na sua formulação uma armadilha, pois pergunta-se pela essência a partir do é. E, evidente, toda resposta se faz usando sempre um é. A essência é isto, é aquilo. Para nós, entes finitos, é muito difícil e problemático sair do âmbito do é, pois todo é refere-se ao campo dos entes. Tudo muda quando se quer dizer o que é o Ser. Não podemos falar de essência sem apelarmos para o Ser. Como entes, sempre finitos, parece inevitável que nos movamos somente no plano dos entes, isto é, do que sempre é. É necessário perceber que não só nos movemos no plano do ente, do é, mas também quando empreendemos uma compreensão da questão maior do Ser, sempre o julgamos e conceituamos trazendo-o para o plano do é, do ente. Não somos somente nós, entes, que decaímos no plano e dimensão do é, do ente, tornando-nos essencialmente decadentes, também pensamos, definimos e trazemos o Ser para o plano e dimensão da decadência, pois só compreendemos o Ser enquanto fundamento da essência dentro do é, ou seja, reduzimos o Ser ao plano da essência entitativa. Claro que lhe damos uma proeminência ao conceituá-lo como sendo o Fundamento, a Causa Primeira, o Ser em geral, o Ente enquanto Ente. Porém, toda essa proeminência do Ser é apenas conceitual, pois enquanto essência não passa concretamente de uma essência vista, percebida e conceituada dentro do plano do é. E se notarmos bem, todo linguajar metafísico está viciado neste essencialismo conceitual. Até para nos referirmos a algo que nos aparece como o superior a tudo: Deus, concebemo-lo como o maior dos entes. Torna-se um “Entãaao”. Levamos sempre Deus para a decadência do é. Reduzimo-lo inevitavelmente a um conceito lógico, teológico. A identificação da Causa Primeira (essência, razão) com Deus foi uma consequência natural e uma dedução absolutamente lógica. E aí primeira já diz uma ordenação entitativa dos entes, de tudo que é. É que pela lógica das causas tudo se torna racional, onde essência se torna razão de tudo que é. E nada é sem razão, afirma-se. Deus é? Se é é ente. Se não é, pela lógica das essências, é niilismo, pois partindo somente do plano do é, tudo que não é é nada, caindo e decaindo no plano do niilismo. É consequência da verdade lógica, onde algo é ou não é. Porém, já o poeta-pensador Guimarães Rosa, contrariando a lógica, sem ser ilógico, afirmou: “Tudo é e não é” (ROSA, 1968, 12). A força da essência do é é tão forte e presente que chega a entificar o nada. O que é o nada? Até para de-finir o nada temos que partir da entificação, do império do é, isto é, da pergunta pela essência como ela é formulada.
  Um dos meios de tentar fugir do império do é foi substituí-lo pelo existe, opondo-o a essência. Ou seja, não se abandona o jogo dicotômico da essência metafísica. O traço marcante da metafísica é a dicotomia excludente e não dialética. Por ele a existência se opõe à essência. Por isso a questão com que nos defrontamos é sempre a questão da essência. Nem a ciência com seus conceitos operacionais e funcionais escapa dessa dicotomia, onde algo ou é útil ou inútil. Daí, em face de todo conhecimento, perguntarmos: Para que serve? O Ocidente se construiu a partir do paradigma, do cânone da essência. A tentativa de sair dele apenas gera inversões, porque se procuram palavras que digam a mesma coisa de outra maneira. É que não se defrontam com a questão que se coloca como a única a ser questionada. Notemos bem: ...a ser questionada. Até a questão para ser questionada já vigora no Ser. Surge o perigo de o questionar acontecer no plano do ente, da essência entitativa. Como sair desse perigo? Dele podemos sair ou não? Quando Heidegger se dá conta dele propõe-se como tarefa repensar a essência, sem formular uma nova versão. E o primeiro passo foi pensar a lógica da essência. Temos aí três núcleos essenciais: Pensar, lógica, essência. A tarefa do pensar é desfazer-se das palavras que dão consistência à verdade metafísica, que é pensar pela verdade da lógica, sempre essencialista, o Ser. Propôs a destruição ou desconstrução da metafísica. Trata-se, portanto, de desmontar o edifício duas vezes milenar da língua metafísica. Deve até soar irônica essa tentativa de desconstrução da nomenclatura e cânone que inventou o Ocidente e só o Ocidente inventou, uma vez que esse cultivo e crescimento inigualável pela via dos humanismos, em termos de outras culturas e de outros continentes, levou hoje à globalização, um modelo metafísico ocidental. Todo humanismo é um paradigma teórico-canônico do ser humano e da realidade que tenta, em vão, determinar totalmente em seu acontecer histórico. Se antes se julgava que o ser humano, pelas regras da razão lógica, estava preso ao determinismo religioso e social, tratava-se de libertar o ser humano dessa prisão. A receita de realidade, intervencionista e, aparentemente, libertadora, nada mais fez do que inventar um outro paradigma dentro do mesmo cânone da essência entitativa, conceitual.
  Essência conceitual. O que é isto? É a determinação do Ser pelo ente, pelo é. Tal determinação se faz em torno do raciocinar, da lógica e da essência.  Porém, os termos lógica e raciocinar só surgiram tendo em vista o império da questão da essência entitativa. Se esta quer dizer o que é a realidade (em grego on, traduzido para o latim por res, (coisa), embora o on seja o particípio presente de einai, ser), já o raciocinar diz o conhecê-la. A palavra lógica é ambígua, pois ao mesmo tempo diz: linguagem, enquanto pro-posição (língua), e verdade. Raciocinar se formou da tradução da palavra logos para o latim como ratio. Portanto, raciocinar e lógica provêm do mesmo processo de afirmação do conhecimento lógico em detrimento da realidade em seu vigorar temporal e desvelante. A questão da essência vai gerando uma rede de conceitos que, em vez de melhor nos lançarem nela, pelo contrário, vão enredando a realidade em seu acontecer num entrelaçamento de conceitos excludentes, embora se queiram libertadores. E a essência enquanto questão fica impensada. Acentue-se que são múltiplos os caminhos de versão para a questão da essência, na trajetória ocidental. A essas variações correspondem diferentes fundamentos e humanismos. Seja como causa, seja como razão, o que sempre está presente como questão intocada e inquestionada neles é a questão da Essência. Quando se fundamenta a natureza do ser humano na razão e a ciência no conhecimento científico, que essa razão elabora, o que está sempre presente, embora oculta e operante, é a questão da essência conceitual. O Ocidente não consegue sair de sua aporia, de sua decadência, por não se defrontar com a questão, inicial e sempre presente: o destinar-se do sentido do Ser, para além e aquém da essência entitativa, conceitual.
  A longa preparação de estudos persistentes e uma intuição originária levou Martin Heidegger a se fazer a pergunta que persiste sempre em tudo que escreve: Qual é o sentido e verdade do Ser?  O que esta questão põe em questão? Notando que toda a trajetória do Ocidente nada mais era do que uma retomada da resposta entitativa, ainda que causal primeira, fundamentalista, conceitual, a sua pergunta tem a explícita finalidade de sair da questão da essência entitativa, dirigindo a pergunta, e colocando a questão, não à essência, não ao ente, não à causa, não ao conceito, mas tão somente ao sentido e verdade do Ser. É o que ele não cessa de desenvolver em suas obras, ao pôr a essência conceitual em questão. A trajetória do Ocidente e sua decadência, em termos do humano, consiste unicamente no esquecimento do sentido e verdade do Ser e suas consequências destruidoras, violentas. Contudo, ao fazer tal pergunta não a faz inscrevendo-a no plano e dimensão do ente, da essência entitativa, ao ter que dizer: é? Sim, com uma diferença: não lhe importavam agora as respostas dadas nem ele quis elaborar uma nova resposta, afinal mais uma nessa trajetória ocidental. A pergunta se tornou para ele a questão, nas palavras dele: o a-ser-pensado. E aí começa toda a sua revolução, não propondo uma nova teoria, um novo paradigma. Ele subverteu os procedimentos. Para avançar, recuou historicamente. Trouxe para o questionar os termos essenciais em que se deu o esquecimento do sentido e verdade do Ser. No lugar de raciocinar propôs o pensar e da verdade da proposição e da lógica, propôs a volta à palavra-verbal dos pensadores pré-socráticos para verdade: a-letheia (desvelamento). E logo notou que não podia continuar denominando-os pré-socráticos, pois já se inscreveria na tradição da língua metafísica da decadência do Ocidente. Tratava-se, em verdade, dos pensadores originários. Eles não eram uns pré-filósofos. Eram radicalmente pensadores, não das origens essencialistas, mas do originário, aquilo que não cessa de vigorar (na tensão dialética de ser e tempo). Repensou a arche, não como fundamento, mas como princípio originário, dialeticamente articulado ao telos (fim e consumação). Voltando a Heráclito, repensa o logos no lugar da lógica, retomando o valor verbal e poético da palavra, em lugar da proposição. Restitui a densidade da palavra-verbo, em lugar dos substantivos/sujeitos. Voltando a Parmênides, repensa, no lugar da razão subjetiva, fundamento do conhecimento e abolidora do destino, três palavras-guias: a-letheia, noein, Moira (destino). Noein diz pensar. É nesse horizonte que vai pensar, não definir nem conceituar, a Essência. Ela não é causa, fundamento, razão. Com isso desfaz-se da razão como diferenciadora do ser humano enquanto animal racional, onde animal é o orgânico, o de que a razão pode dar conta, representar e medir com conhecimento exato, matemático, determinando crítica e analiticamente as funções e finalidades. O universo como o corpo humano seriam semelhantes a uma máquina, a um relógio, em que se pode intervir nas suas partes (peças), desde que se conheçam as leis (fórmulas) do seu funcionamento, pois é conhecimento da consciência, isto é, sabe e sabe que sabe, é especular (de speculum, espelho).  Heidegger desfaz-se, enfim, de todas as formas de humanismo, este que toma o homem como fundamento de tudo. Mas no lugar não propõe o in-humano, pois não está mais fazendo o fácil jogo das oposições metafísicas, onde o que não é lógico é i-lógico, fundadas na tradicional e inquestionada essência conceitual (oposta a existência). Disso tudo resulta, evidente, a pergunta: Tudo isso não o levou a uma nova concepção de essência? Sim, caso contrário teria sido, ou mais um passo nas soluções metafísicas, com uma nova proposta de paradigma da essência, ou nada. Seria uma grande confusão de conceitos que propõe a destruição dos valores tão caros aos humanismos, sem nada de concreto, de aplicável, de claro, de objetivo resultar. E qual é a nova proposta de essência? Quem assim pergunta ainda não compreendeu nada de tudo aquilo em que consiste o pensar, melhor, o a-ser-pensado. Sempre se espera já uma resposta nos moldes da decadência metafísica. Não se pode conceber, pelo instrumento diferenciador do ser humano, a razão, que o originário não é algo que caiba numa resposta, seja conceitual, seja paradigmática (cânone). Não se percebe que o a-ser-pensado é, de fato, o a-ser-pensado, pois não adianta reduzir a questão da essência a uma resposta dentro da vigência e horizonte do é. Como então evitar e fugir desse é? Para não reduzir tudo ao é, só resta um caminho, o caminho do Ser. E Ser não é, pois se fosse seria ente. Não podemos dizer o Ser, é ele que se diz em tudo que se afirma ou nega. Todo é é um predicativo do Ser, dentro da lógica da proposição. E o originário da Essência jamais é o é. Só pode ser o Ser. Mas este, o isto de toda Essência, é o a-ser-pensado. Este abala os alicerces da metafísica, porque sai do plano do ente, da essência entitativa, racional, subjetiva/objetiva, causal-lógica. Temos sempre de voltar à Essência enquanto questão. Por isso não se cansou de dizer: Questionar e pôr em questão é a única tarefa do pensamento.  Neste horizonte, o pensamento não é, pensa no e a partir do Ser. A linguagem não é, diz no e a partir do Ser. A verdade não é, desvela velando-se. A verdade é verdade do Ser, não da proposição.  Nesse sentido, a Essência do pensamento é o Pensamento da essência, a Essência da verdade é a Verdade da essência, a Essência do agir é o Agir da essência, a Essência da linguagem é a Linguagem da essência. Na Essência da Linguagem, da Verdade, do Agir, do Pensar, se dá o sentido do Ser. Na entificação da Essência deu-se o esquecimento do sentido do Ser, da memória do Ser. O esquecimento da Memória é a memória do esquecimento.  Só saindo da decadência onde viceja o Ocidente podemos nos abrir para o dom (moira) que o Ser nos destina, pois o que é, antes de tudo, é o Ser. Tal abertura se dá no pensar. Mas este não se reduz ao raciocinar.
O pensar consuma a referência do Ser à Essência do ser humano. Não a produz nem a efetua. O pensar apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser. Essa restituição consiste em que, no pensar, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o ser humano. Os poetas e pensadores lhe servem de vigias. Sua vigília é consumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem (HEIDEGGER: 1967, 24).
  O pensar nos abre para a Essência originária. Porém, tal Essencialização não é um conceito paradigmático novo, a partir do qual tudo agora vai ser clarificado e classificado. A Essencialização se dá na referência do Ser e ser humano. Nessa referência o pensamento não é causa eficiente, essência causal. A razão humana não a produz nem a efetua, pois a Essência do agir é o Agir da essência. A Essencialização foi e é uma doação do Ser para que o ser humano a restitua ao Ser como algo que lhe foi doado, destinado, pelo próprio Ser. Essa restituição consiste em que, no pensar, o Ser se torna linguagem. “A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o ser humano”. Morar diz que o ser humano já está na linguagem do Ser, que ele só vigora a partir da própria Linguagem. Quando o ser humano é caracterizado como aquele ente que é zoé que tem logos, diz então que viver é ek-sistir no logos, enquanto a casa do Ser. Ek-sistir é desde sempre e originariamente con-sistir num re-stituir. Notemos a raiz comum: st (que indica um posicionar-se). Convém, portanto, pensar a formação da palavra existência. Compõe-se do prefixo ek-, que diz o livre aberto do caminho, o não-limite. Que limite? O do radical do verbo: sistere, ocupar uma posição, estar. Ek-sistencia diz, ao mesmo tempo, o livre aberto (não-limite) e o limite. Eis a Essência paradoxal e dialética da condição humana. Os gregos a nomearam: Eros.
Eros, a Essência do Amor
  Não é jamais por meio de análises do organismo e sua produção de hormônios ou outras substâncias que chegaremos à Essência do Amor. Esta sempre se dá e presenteia enquanto a própria ek-sistencia. É no vigorar desta que Eros eclode em seu esplendor de Verdade, Bem e Beleza (sentido e mundo). Aos que esperavam conceitos novos se decepcionaram com a obra do pensador da Essência originária, vigorar da ek-sistencia. E o acusaram de construir uma “philosophie ohne Liebe”, “uma filosofia sem Amor”. Ao tentarem denegrir a obra do grande pensador com essa acusação imbecil já partem dos seus débeis conceitos e não atentam para o fato de que um pensador só pensa nas e a partir das questões. Por isso mesmo, jamais pretende fazer um sistema filosófico a que nada falte, sobretudo uma reflexão conceitual sobre o Amor. Ao centralizar todo o seu pensar na questão da Essência originária e, nesta, a questão da ek-sistencia, toda a sua reflexão já se deixa tomar pela questão do Amor. O pensamento de Heidegger é um pensar profundo a ek-sistencia enquanto a Essência do amar, de Eros. É neste pensar o amar, Eros em sua Essência, que se mostra o quanto a ek-sistencia está para além e aquém de toda e qualquer concepção do ser humano como um corpo orgânico, máquina funcional. E então se adentra o que em Essência o corpo é. Ele é ek-sistindo. Não é o corpo orgânico e racional que dá a Essência enquanto ek-sistencia e a realização do é.  É o Ser que energiza e manifesta a Essência erótica do corpo, doando-lhe sentido. Então o corpo em sua Essência é Eros. E este advém no jogo da dissimulação (aletheia) que acontece enquanto manifestações concretizantes da Beleza e do Bem. A dissimulação se torna afeto e este presença de Eros. Energizada por Eros no afeto da dissimulação, toda a ek-sistencia se torna Beleza e Bem. Pensar a ek-sistência é pensar o jogo de presença e ausência da dissimulação, oblíqua concretização de Eros. Assim, o orgânico recebe toda a sua potencialidade e transcendência pela transfiguração do desvelo amoroso. Transcendência diz o não-limite do limite: libertação. A ek-sistencia se torna poiesis e esta se torna Eros, Amor, a mais profunda e total afetividade, pois poiesis é a energia erótica do sentido, da linguagem, uma vez que sentido é o livre-aberto do mundo que o Ser enquanto luz doa. O Eros da ek-sistencia não provém nem tem seu vigor no organismo corporal com todas as suas funções e correspondências estético-vivenciais. Pelo contrário, só por ser a ek-sistencia radical e originariamente Amor, desvelo, afeto, carinho, doação, é que se pode ver-conhecer, falar e sentir todo o transe de posse do corpo por Eros. Pensar a ek-sistencia é pensar a Essência do amar. Em sua Essência a ek-sistencia é dissimulação. Esta, dialética, oblíqua, toma muitas dimensões: o sonho, a fantasia, a ilusão, a imaginação, a utopia, a estesia, enfim, real e ideal, ficção e verdade, dor e alegria, angústia e libertação. Porém, a dissimulação originária é se desvelar tanto mais quanto mais se vela. Dissimulação é velamento desvelando-se em desvelo velado porque energia amorosa. É no desvelar e velar da dissimulação erótico-amorosa (e isto é poiesis) que a ek-sistencia se realiza. A sua real realização da realidade (Ser) não é nem pode ser o real dos fatos circunstanciais, histórico-sociais, psíquicos, pois não se trata de consciência, mas de Ser e Tempo. A ficção poética é a realidade em sua mais profunda e afetiva dissimulação, jamais falsa ou verdadeira, por isso nem lógica ou ilógica. O real das relações estabelecidas e das funções previstas e programadas pelos sistemas e projetos estéticos, morais e ideológicos, lança a ek-sistencia na proximidade do estritamente orgânico e representacional. A realidade da ek-sistência se encaminha e realiza na dissimulação dos ritos que narram e encenam as questões, num forte apelo ao próprio e seu destino. É a liberdade do sentido e o sentido da libertação vigorando. E então tudo isso se torna via dissimulada daquilo que em toda dissimulação se procura: a plena posse de e integração em Eros. Só o Eros con-suma o que no dissimular não se dissimula por não se poder dissimular mais, por simplesmente Ser. Ama e dissimula o que quiseres. Sê Eros e isso te bastará. A ek-sistencia te basta, nela colherás e acolherás a plenitude do que és, do que te foi dado para na poiesis ser re-stituído em plenifitude de realização, enquanto verdade e linguagem do Ser. No Ser e pelo Ser o poético e o ético são a ek-sistencia se realizando enquanto sentido do Ser.
  Quanto mais a vida se torna um domínio do conhecimento, tanto mais este leva à indigência de ser. É o paradoxo que só a dialética inclusiva desfaz, oposta da excludente. Por isso só resta a renúncia, como afirmação da negação. Renúncia não é ignorância nem indigência. Não se pode renunciar ao que não se tem. Os conhecimentos se tornaram descartáveis, pois a própria ciência se encarrega de substituí-los rapidamente, num círculo vicioso de aparente progresso. Em meio à sociedade do conhecimento a ek-sistencia, que vive da renúncia ao conhecimento e se deixa tomar pelo pensamento, se torna um caminho desconhecido para o domínio da consciência. Nos caminhos desta a ek-sistencia é um caminhar descartável, uma vez que reduz tudo ao mero funcional, consumista, representacional, estético, banal, fútil, descartável. E a Essência de ser se torna uma questão inessencial. Não se sabe hoje o saber só advindo na e pela sabedoria da experienciação de ser. Nesta sabe-se da indigência que é apenas ter sem ser o que se presenteia em tudo que é: a Essência de Ser, enquanto o Bem e Beleza de todos os bens. É que os bens estão relacionados sempre aos entes e seus valores. No apenas ter há a indigência do Bem e da Beleza que são o vigorar do Ser, enquanto plenitude de sentido e verdade da ek-sistencia. No Bem e na Beleza que a renúncia dá, é o Ser que se doa e conduz o ser humano para a Essência da ek-sistencia: Eros. Na indigência do apenas ter, advém o sem sentido do existir. Renúncia é desprender-se do que nos prende ao ter, às máscaras do “eu”, sem sermos o “sou”. É que os bens sem o Bem e a Beleza são o mesmo que amantes sem o Amor, objetos de transas ocasionais, efêmeras. O Amor se manifesta e vigora nos amantes quando eles sentem a indigência de que por mais que amem ainda não são o que os torna amantes: Eros, o Amor. Para os amantes nunca o Amor é demais. Há sempre uma indigência de completude, um quero o que falta e faz muita falta... É o sentido da ek-sistencia. É Eros.


Bibliografia:
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 6. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.

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