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Quando se trata de pensar alguma questão, a
dificuldade inicial mais difícil não é pensá-la e deixá-la eclodir em sua força
iluminante. O mais difícil é “... esquecer-me
do modo de lembrar que me ensinaram, / e raspar a tinta com que me pintaram os
sentidos ...” (CAIEIRO, 2004, 84), seja no processo da transmissão da
tradição, gerando os hábitos de pensar já feitos e acabados como verdades
indiscutíveis e não-pensadas, seja no próprio sistema de ensino, que se
fundamenta na repetição exaustiva até fazer dos conceitos já solidificados e
pétreos uma verdade evidente por si, formatando a mente dos jovens, tolhendo
toda energia inovadora. É aí que o educar poético faz a diferença, pois exige o
exercício do questionar dialogante como o verdadeiro aprender e ensinar.
Certamente uma
das ideias habituais mais arraigadas é criação.
Ela já faz parte de nós como a pele
faz parte do nosso corpo, parece. Para um asiático isso não é tão evidente,
pois parte de outras experienciações da realidade, do ser. Entre nós,
ocidentais, a criação sempre é pensada a partir de uma ideia bem fixa de criador. Em virtude das teorias, ao longo
do percurso histórico ocidental, há duas ideias paralelas, embora opostas, de
criador: a ideia de um Deus Criador de tudo, vinda sobretudo do mito hebraico
relatado no livro do Gênesis (teologia); e a ideia do artista criador a partir
do fazer humano e sua razão subjetiva (epistemologia). Tudo isso desvia a
atenção das verdadeiras questões que envolvem a criação, que implicam dialeticamente
o criar, o agente criador e a obra.
Tanto num caso como no outro, a ideia de obra ou criação será sempre de
Deus ou de um autor, no caso, o artista. O interessante nessa dupla ideia habitual
é o fato de que se tende sempre a antropomorfizar Deus (entificação) ou a
deificar o artista ou autor (poder criador). Tudo isso desvia o foco da questão
do que seja, em essência, a criação.
E são muitas as consequências negativas. Sobretudo aparece logo a grave questão
da leitura da obra, porque já se parte de uma ideia fixa do que seja a obra,
sem se atentar para o seu operar: É uma análise? É uma interpretação? É um
diálogo? É uma experiência? É uma experienciação? A resposta não é fácil, pois
exige que abandonemos as concepções habituais e estabelecidas, e as
questionemos até chegarmos a um fundar aberto e livre. Neste horizonte, nenhuma
resposta ao perguntar satisfaz, pois não dá conta da questão. Desse modo toda
resposta a um perguntar é um recolocar a questão em outro nível. Por leitura
não entendemos aí o ato de decodificar algo escrito. É muito mais. No simples
ato de olhar já vigora um pré-ver e um pré-compreender, possibilidades de toda
leitura. Isso é facilmente constatável quando, hoje, algo é mostrado para
pessoas de diferentes culturas e todas elas olham e vêm essa mesma coisa de
maneiras diferentes. E não apenas olham, geram-se valores e comportamentos
diferentes. Como hoje em dia com a globalização, digital ou não, as obras de
arte estão ao alcance de todos, o que elas provocam é um verdadeiro enigma.
Isso não é negativo, é altamente positivo. Não há e nem haverá uma teoria, um
modelo, que nos diga o que uma obra de arte quer dizer e provocar, pois obra
não é jamais redutível a um objeto. A verdade científica objetiva tornou-se uma
entre outras ficções ou imaginações.
Outra tinta com que nos pintaram os sentidos é
a separação nítida e funcional das diferentes disciplinas. Tendo em vista o
avanço e a complexidade dos novos conhecimentos, isso é inevitável e até
positivo. Por outro lado, é negativo, na medida em que se perde a visão e
compreensão do todo. A parte só tem sentido na sua unidade com o todo. Do mesmo
modo as artes: seu sentido exige a integração de todas naquela unidade de sentido
que as funda. Nenhuma obra pode operar isoladamente, uma vez que ela é
intrinsecamente unida e harmônica com as demais. E entre elas há uma profunda
interligação. Na segmentação ou análise torna-se um corpo anatomicamente
desmembrado, até diria esquartejado. A mera análise da forma não consegue fazer
ver a unidade de sentido em seu todo e no todo, pois o conhecimento formal não
pensa o que a funda: o ser. Fundada neste e por este, obra é presença. Porém,
não se pode confundir jamais ser com criador ou deus ou homem. O que é o ser
será sempre uma questão. E junto com a concepção orgânica e funcional da obra
caminha a concepção do que seja o corpo, seja da obra, seja do ser humano.
Falar em criação é falar do corpo humano e sua concepção. Portanto, obra e corpo
constituem uma unidade indissolúvel. E aí já se faz uma observação necessária e
essencial: não se podem reduzir nem corpo nem obra a conceitos formais, sejam
eles variados ou não (quem me garante que este conceito ou forma agora é mais
verdadeira e válida do que uma próxima que surgir ou de um outra mais antiga ou
de teorias diferentes?). Disso decorre algo que acompanha o questionamento do
que seja criação e corpo: os caminhos que nos põem em contato com eles e nos
dão o seu acesso. Porém, esse acesso jamais é algo de fora que conduz a um
outro algo que se nos opõe, que está diante de nós. Não. É já caminhar dentro e
a partir do que se dá e nos desafia e questiona. É caminhar da parte para todo
já dentro e a partir do todo que se faz presente nas partes enquanto obra/corpo.
Isso muda radicalmente o que se compreende por obra e corpo.
Uma palavra mais comum para caminho é método. Como é uma palavra cheia de
tintas habituais, é melhor falarmos de caminhos, no plural, pois precisamos
raspar as tintas que tal palavra já traz encruadas e gastas. Método já está tradicionalmente ligado a
objeto. O caminho nunca pode vir de
fora do agir do corpo e da obra. E, por isso, cada arte exige caminhos
apropriados e dentro de cada arte cada obra, pensando sua poética, sem deixar
de incluir as outras artes e as outras obras, no horizonte que a caminhada
(leitura ou narrativa) descortina e ilumina. Acentue-se logo que obra não é
objeto. No fundo, fundo mesmo, é corpo vivo. Quando raspamos as tintas dos
hábitos e conceitos o que nos resta? Restam-nos as questões. Criação é questão.
Obra é questão. Caminho é questão. Corpo é questão.
E em que horizonte acontecem essas questões? É
um horizonte que não pode ser restrito a uma cultura, seja ocidental, seja
oriental, seja culta, seja popular, enfim, seja de que povo ou época for. E,
nesse sentido, há adjetivos que precisam ser raspados com mais força e determinação:
primitivo, instintivo, bárbaro, atrasado, supersticioso, mágico, pois são
resultado de teorias já totalmente ultrapassadas e dicotômicas em relação às
produções culturais de todas as épocas e povos. Com essas qualificações se
perde o que seja o humano em seu corpo e obra. Pode haver qualquer produto
cultural sem o dedo do humano? Impossível. Nenhum adjetivo tem a força de
determinar uma criação, um caminho, um corpo, uma obra. Determinar quer dizer
aqui fundar conhecimento, compreensão e sentido. E mais: valores. Adjetivos ou
atributos acidentais são expedientes fáceis para deixar de pensar e tematizar
as questões. E estas são a essência do corpo e da obra de arte. Tais questões
acontecem sempre no horizonte de uma articulação e integração essenciais. Essa
articulação e integração é o que desde sempre se denominou poética. Ela não pode ser reduzida a uma teoria, simplesmente
porque ela acontece sempre na dinâmica de uma tripla questão: Qual é a
referência que há: 1 - entre a experiência poética; 2 – e a experiência humana;
3- e a experiência de mundo no horizonte da realidade? Esse
inter-relacionamento entre a criação poética, a experiência humana e o
pensamento é o fundo em que acontecem as obras de arte e é no seu horizonte que
o corpo chega a ser corpo, manifesta-se na sua corporeidade. O corpo enquanto
obra poética passa a ser o lugar da circulação de energias criativas em
contínua e permanente realização. Então se dá o sentido do viver na
experienciação de ser, tendo como dinâmica de compreensão o sentido, a
linguagem, a verdade da cultura/humano enquanto terra e mundo. O hábito
positivista de tudo reduzir a algo que pode ser medido ou “tocado” conduz a uma
incompreensão vital e radical do que seja energia: nela estão congregadas três
dimensões indissociáveis: matéria (mãe, vida), força impulsionadora (tempo) e
sentido (afeto, daí podermos falar em energia erótica). Nesta dimensão, a cultura chinesa – bem diferente da
maioria das concepções ocidentais - concebe o corpo fazendo parte do universo,
integrado e interligado pela ação de três energias: 1 - A energia
que recebemos de nossos ancestrais; 2 - A
energia que adquirimos pelo ar e alimentos, que circula internamente; 3 - E a
energia protetora, que circula mais externamente. Isso é cultivar experienciando-se.
Isso é a essência da dança do universo, enfim, da dança musical, poética. E
todo cultivo pressupõe que toda obra de arte ou corpo se integre nas contínuas
e diferentes experienciações ou caminhos de realização, plenificação e
iluminação na verdade do que se é e recebeu para ser. Portanto, para a Poética
ou Criação, o mais importante é que ela se torne a experienciação criadora da
condição humana. As três questões que a tudo regem e se fazem presentes em tudo
independem de modelos, teorias, paradigmas, culturas, épocas, religiões,
disciplinas, posições políticas etc. Todas estas as pressupõem. Elas podem
gerar hábitos deformadores e excludentes. Falta-lhes então o caminho do diálogo
de uma dialética aberta e libertadora, concreta, vital. São questões e enquanto
questões elas são prévias a tudo isso. Questão não é conceito. Este gera os
conhecimentos que fundamentam nossos hábitos e certezas de verdade. Já as
questões acontecem na regência do pensar, pois nele vigora sempre a
experienciação de uma verdade poético-manifestativa. Por quê? O que a palavra grega
para experienciação nos diz e quer sempre dizer, embora os hábitos cotidianos e
seus significados comunicativos encubram seu sentido profundo? A palavra
portuguesa experiência e experienciação provêm da palavra grega: eks-peras, ou seja: eks: para fora, para o aberto e livre; -peras: limite, finitude. A
palavra experiência tornou-se uma palavra técnica para indicar a atitude
científica de comprovação objetiva dos
conhecimentos do que se teoriza em relação à realidade. Ou então se reduz ao
significado de qualquer vivência. Teoria diz aí uma certa visão e seu
conhecimento que podem ser comprovados, isto é, medidos e calculados. Isso não
se pode negar. Porém, o conhecimento de tal visão e suas experiências partem de
um real estático e fora do tempo, quando, em verdade, ele não cessa de
acontecer. Nenhum cálculo científico inclui o tempo em seu acontecer,
impossível de redução a uma medição ou cálculo. Acontecer não é só mover-se,
mas sobretudo deixar vigorar o sentido de ser, o grande esquecido nas
concepções científicas e estéticas dos sistemas críticos vigentes. Não há como
medir e calcular o sentido do tempo, pois então tempo é ser: ser e tempo. A
palavra-chave aí é “redução”. Esta pode ser medida, não, porém, o tempo em seu
acontecer de sentido, pois então este é energia ontológica, silêncio do sentido
de sua voz, plenitude de movimento ou repouso. As três questões são referências
obrigatórias e como elas, na nossa vida, em nosso educar, em nossos projetos,
se relacionam com a ex-periência? O que aí se decide para cada ser humano, para
cada cultura e para cada época? Quando a experiência se torna experienciação? O
que ela tem a ver com verdade, sentido, linguagem, mundo, ético, poético? Na
experienciação o ser humano se abre para uma escuta do que é e o impulsiona a
ser. Nela ele não é sujeito-criador. Nem é objeto de conhecimento tanto a obra
quanto o corpo. Nela, cada um age, mas na medida em que se deixa tomar pelo
sentido do agir do ser, que não se pode jamais confundir com o fazer, restrito
aos entes e suas relações e produções, dependente sempre de um sujeito. No
fazer dá-se uma força de correlação entre sujeito e objeto, já teoricamente
definidos. Ora, a realidade não pode ser reduzida a uma teoria. Se teoria é o
que se vê, daquilo que vemos vemos muito pouco. E aquilo que não se vê em tudo
que olhamos e aquilo que nem se dá a ver é muito, muito maior, pois a realidade
é contínua acontecer. Nesse horizonte, toda experienciação nos remete para
nossa finitude diante do que para nós é mistério infinito. “Para nós” diz aí:
embora finitos somente nos experienciamos como finitos porque já vigoramos
inauguralmente no não-finito. E deste é que nos falam nosso corpo e as obras de
arte no que lhe é essencial. Em virtude disso, toda experienciação será sempre
poética e irredutível a mera sensação estética. Por isso, nelas somente
comparecem as questões. E criação e caminho se tornam um desafio poético
integrado de realização infinita, pois é deste infinito que nos advém o sentido
do que somos, ou seja, nosso corpo enquanto obra de arte, num permanente
aprender e desaprender para tornar a aprender e desaprender... Se, de um lado,
não nos fazemos a partir dos conhecimentos das experiências objetivas
epistemológicas ou estéticas, por outro, somos essencialmente uma procura de
ser o que já desde sempre somos. E tal procura exige de nós o agir poético,
onde este diz pensar o que nos impulsiona como energia de ser e nos dá sentido,
exigindo de nós um agir ético, ou seja, que se torna um apelo de linguagem.
Neste horizonte, linguagem nada tem a ver com código, mas se torna a linguagem
da unidade e sentido, no operar das energias que nos impulsionam continuamente
a ser poeticamente: criação, caminho, corpo.
Bibliografia
CAIEIRO, Alberto / Fernando Pessoa. Poesia. 2. ed. São Paulo: Cia. das Letras,
2004.