04 junho 2010

Presença e forma

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Aquilo que não havia, acontecia.(Rosa: 1967, 33. Conto: “A terceira margem do rio”)


Em todas as cogitationes, o ego cogito é para Descartes o que já se
re-presenta pro-posto e im-posto, sendo o vigente, o inquestionado, o
indu-bitável, o que, cada vez, está no saber, o certo e sabido em
sentido próprio... o que tudo põe em referencia a si e deste modo se
contra-põe a todo outro... Ego cogito é cogito: me cogitare.
(Heidegger, 2002: 64)



Toda a modernidade se inaugura desde o momento em que o homem com a razão se torna o sujeito, o centro de toda e qualquer representação da realidade. Esta só passa a ser realidade no especular. Estabelecer e determinar isto será a verdade da modernidade. Ter certeza desta verdade será simplesmente fazer da razão crítica (speculum) a medida da realidade, da representação da realidade. A representação enquanto verdade será o pensar que se pensa (crítica-espelho) enquanto medida da certeza. Por isso, a questão do especular na imagem-questão o espelho tem sido recorrente na Poética da modernidade. Poética diz aí não um novo conjunto de regras, mas um novo caminho em que o ser se destina enquanto verdade. É a época poética. A modernidade será a verdade do especular, a verdade da realidade enquanto representação. Estas representações, enquanto especular, assumem as mais diversas formas, do literário-retórico ao político, do psíquico ao social, do científico ao estético. Na modernidade tudo é representação, tudo é especulação. E é enquanto especulação-crítica que a realidade se torna a objetividade da subjetividade, da especulação. Esse é um largo passo na caminhada do Ocidente. Porém, o Ocidente é uma dobra, pois há um outro Ocidente na modernidade. A outra modernidade é a poética. Nela também acontece o especular, mas em lugar de ser a verdade da representação, o espelho será o ambíguo caminho do próprio. O espelho será o pensar enquanto ec-sistência e destino.
Uma vez que o especular é, no fundo, o especular-me, segundo Descartes, este se torna um caminho para fora que tanto mais avança quanto mais se adentra. E aí podemos apreender o que em essência é propriamente a forma não retórica e meramente formal. Tomamos como referência o conto de Guimarães Rosa O espelho (Rosa, 1967: 71-78). Mas não nos detemos especificamente num diálogo de escuta denso e cerrado com o que aí é especulado. Estas reflexões são como que a propedêutica para toda especulação poética e ao mesmo tempo uma tematização da infertilidade e inutilidade da mais usada categoria para determinar o poético: a forma.
A cerrada e densa narração que o narrador faz em O espelho, na realidade não é senão uma viagem invertida: não da superfície para o centro, mas do centro para a superfície embora pareça o contrário, pois ele pro-gride tensa e calmamente do que o espelho lhe mostra para adentrar o que, de antemão, pro-cura, que não é, então o superficial, mas a plenitude de realização em sua essência inaugural e originária. Pro-cura o abismo.
Rosa diz respondendo à pergunta do crítico alemão Günter Lorenz: “Você é um pensador, um místico?”


Somos tipos especulativos, a quem o simples fato de meditar causa prazer... Chocamos tudo o que falamos ou fazemos antes de falar ou fazer... E também choco meus livros. Uma palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias... Temos de aprender outra vez a dedicar muito tempo a um pensamento... Os livros nascem quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras (Lorenz, 1991: 79).


Note-se como Rosa descarta todas as falsas e aparentes idéias e conceitos de criação poética ao centralizar a criação não na imaginação ou na elaboração elaborada e retórica das formas, mas condensa tudo, todo o tempo necessário, e é muito, na linguagem, melhor, na palavra. E o que ele faz (poeien)? Choca as palavras. Esse verbo é uma imagem-questão pela qual declara abertamente em que consiste esse chocar ao dizer: “Os livros nascem quando a pessoa [poieta] pensa...”. É no pensar que se concentra todo ato poiético, vulgarmente denominado criativo. (Devemos nos desfazer da idéia metafísica de criador/criação, causa e efeito, de origem judaico-cristã). E ele dissocia o ato poético das formas, pois afirma categórico logo em seguida: “o ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras”. Toda forma é lúdica e técnica, mas jamais a poiesis se resume a essa determinação da obra de arte pela técnica, ou seja, pela forma lúdico-estética ou meros formalismos retóricos.
Se agora pensarmos que o próprio nos advém sempre enquanto linguagem – a quarta dimensão do tempo – Rosa choca as palavras em que cada próprio é. E o vigorar do próprio é a linguagem, pois o é (o sendo do Ser), se dá Essencializando-se enquanto linguagem e enquanto verdade.
E, evidente, choca as palavras no conto O espelho, poderíamos até dizer, especialmente neste conto, pois nele trata da questão originária do especular. Especular é pensar. Todos os contos de Primeiras estórias são primeiras porque são questões originárias. Esse chocar é uma viagem invertida, porque ao chocar, na verdade, ele quer que a forma externa do próprio (o “eu” que se olha e pro-cura no espelho), aquilo que recebeu forma vá sendo adentrado num chocar, mas não para desmontar e analisar, camada por camada até achar a causa, a forma, demonstrando a constituição da obra, mas para no especular que é o chocar, a partir da essência do próprio, ele se vá manifestando no que é, no próprio. Presencializa-se de dentro para fora. Toda presencialização é um advir do nada para o ser, sendo o Nada o acontecer do silêncio para a fala, sendo o silêncio o acontecer do Ser para o sendo, sendo o Ser. Tudo que vemos, em verdade, só vemos porque já originariamente vigoramos no que não se dá a ver. Toda escuta de uma voz só é possível porque já desde sempre vigoramos no silêncio. Toda presencialização é a verdade da não-verdade. O personagem-questão retira camada por camada para que assim a essência apareça como o eclodir do que no chocar, pensar enquanto referência da essência do ser humano ao Ser, deve aparecer, a linguagem agindo e vigorando. Ele só retira para deixar eclodir o próprio no seu desvelamento, na sua verdade (e não apenas deixar aparecer a aparência, como fica bem claro no conto de Machado O espelho, onde a identidade da representação social acabou por encobrir o próprio (Machado, 1962: 345-352) ). E assim a viagem dolorosa e demorada do retirar as máscaras, a viagem do narrar quer narrar para deixar o narrar manifestar o inaugural, o que se choca no narrar: deixar eclodir o que o narrar enquanto especular não cria nem dá forma, mas manifesta o que o vigorar do próprio por si e em si faz aparecer, desvela. Nesse sentido, narrar é sempre o especular que faz eclodir o próprio em ex-perienciações. Isso é a presença.
A palavra ex-perienciação forma-se do grego eks-peras. Peras diz em si o que no eclodir chega ao limite. Já o eks- indicia o que já desde sempre dá o impulso para fora, para além, no e para o aberto, isto é, o não-limite. Porém, o narrar traz em si o saber do que é. Narrar expererienciando-se é saber-se no eclodir enquanto acontecer poético. É chegar a ser o que é. A isto o que cada próprio é é que os gregos denominaram morphé. Esta palavra indica, portanto, um vir de dentro para fora e nunca um impor limites a partir de algo externo e fixo. Morphé diz eclosão do que é, desvelamento enquanto verdade de realização. Morphé é presença. Para o grego e para cada sendo nunca pode haver morphé sem télos, isto é, sem eclosão ou desvelamento em sua plenitude de realização. Isso é o consumar enquanto pensamento a presença. Jamais morphé é forma funcional e causal, isto é, o que cumpre uma finalidade, forma de ser do utensílio: a forma imposta de fora e para algo de fora. No utensílio a forma é a sua finalidade. Como a obra de arte não tem finalidade nem funcionalidade ela não tem forma. Presencia, desvela a realidade, que não cessa de velar-se, retrair-se. À presencialização da realidade no que ela é, sendo, é o que se chama télos, a realidade se dando em sentido enquanto realização. Se não há forma muito menos há matéria. O que na obra de arte se elabora não é matéria, é a terra se dando em mundo, é corpo-presença. Na obra de arte a terra se corporifica, ela é energeia. Só há matéria no utensílio, na medida em que esta deixa de ser a realidade se manifestando e sendo, para tornar-se função da finalidade causal, dentro de um sistema de relações. Matéria passa a ser o que tem serventia, o servir a uma causa. Esta é a essência da causalidade instrumental. Porém, a própria matéria é escolhida de acordo com a finalidade e a forma a ser formada. A forma formante é sempre a forma em função do causal e do funcional dentro de um sistema de relações e funções. O formante diz do atuar e agir tendo em vista a finalidade e serventia ou utilidade funcionando, servindo perfeita e continuamente à causalidade, determinada por um sistema enquanto representação da realidade. O formante da forma é o sistema funcionando. Se a morphé, a presença, desvelando presencia, a forma e matéria representam as funções e finalidades da realidade reduzida a um sistema de significados, de onde lha advém o poder. A obra de arte é sem-poder, porque vigora no querer do poder, seu elemento.
Então retirar (as camadas) pelo narrar, como faz Rosa no conto O espelho, é pro-curar pelo narrar o que subjaz na aparência para deixar aparecer o que o próprio é em sua essência originária, o “isto” que ele é, e tanto mais é quanto mais é sendo, acontecendo, não o sendo da forma de narrar, mas o sendo do que narrar não é e só parece que é, para deixar se desvelar o que vigora. Quando o narrar retira o que parece que é no sendo, tanto mais o que é o sendo em seu vigorar vai-se dando os limites sem forma, o sem forma da presença, a própria vigência do corporal, pois vai aparecendo não mais o que parece nas máscaras, mas o que aparece e é em sua verdade, não sendo a verdade algo de fora, mas o contínuo vigorar no desvelar-se, no presentificar-se do presencializar-se. Toda obra de arte é presença. “E as máscaras, moldadas nos rostos? Valem, grosso modo, para o falquejo [desbaste] das formas, não para o explodir da expressão, o dinamismo fisionômico” (Rosa, 1967: 71). O físio-nômico diz em sua formação: a lei da physis. Mas a lei da physis é originariamente desvelar-se e velar-se.
E o narrar enquanto palavra se torna um narrar inaugural da linguagem, não sendo esta nada mais do que o sendo sendo o que é em sua essência originária, no isto que cada sendo é, isto é, acontecendo poeticamente. Sendo é desvelamento, é presença do que não cessa de ausentar-se, no retrair-se. Narrar especulando é o ambíguo jogo do retirar para deixar aparecer o que o narrar enquanto especular, isto é, pensar, não pode dar, o que a forma do narrar enquanto representação não pode dar, nem o sujeito pode dar. Dar forma à narrativa é um negar a própria forma para que apareça a figura a partir do vigorar do próprio e este vigorar do próprio se torna o outro narrar, aquele que surge pelo contínuo estar além das formas, enquanto ex-perienciações, pois sendo um narrar inaugural que consiste no eclodir do vigorar nos limites do manifestar-se. A tal referência denomina-se pensamento, o chocar as palavras. Estes limites não limitam, pois eles são postos não de fora, mas im-postos pelo eclodir, pelo tender ininterrupto à realização, à plenitude, do ser sendo e tornando-se realidade, presença. É o isto de cada sendo experienciando-se no seu tender a partir do próprio, de sua essência originária na plenitude de realização, sendo o que é no e pelo acontecer. É nesse sentido que podemos dizer que a palavra alemã, usada por Heidegger, Da-sein diz presença, mas enquanto esta no e enquanto pensar é verbal, isto é, é sempre uma presença entre-acontecendo. Da-sein é Entre-acontecer do presencializar-se da presença em seu Ser.
E assim o especular que retira os limites externos se transfigura e se torna o próprio especular-pensar que deixa o narrar inaugural inaugurar o isto de cada próprio num acontecer poético.
O que aqui parece muito abstrato, embora, enquanto acontecer poético, seja o con-creto, pode-se tornar mais experienciável, enquanto ensaio de dizer o que só cada sendo pode experienciar, se lançarmos o leitor e seu sendo numa imagem-questão: uma galinha chocando os ovos. (Seguindo a sugestão da própria imagem-questão dita pelo autor na entrevista). A presença da galinha com seu calor acaba por destruir, desfazer a forma do ovo. Mas não é a galinha com seu trabalho que cria o ovo nem as novas formas eclodindo do ovo no que ele é. Se o chocar destrói as formas do ovo, em termos de língua/palavras nada mais diz do que abolir as fronteiras dos lugares-comuns, da banalização da linguagem pelo seu uso habitual, cotidiano, cheio de formas retóricas e empobrecedoras, ainda que, muitas vezes, estéticas nas formas, onde se anestesiam os leitores que se procuram no consumo das sensações e não procuram o que os constitui em seu ser. Todo chocar é uma disputa mortal entre as máscaras do eu (forma) e a vigência do sou (presença).
E aqui se acaba a pretensão da modernidade em determinar a realidade por seu poder de representação e dar formas à representação. Como eu posso representar algo se antes este algo não se deu a ver? Dar-se a ver, pôr-se, ocupar uma posição, diz-se em grego: thesis, do verbo títemi. De thesis veio tema. Tema é, em verdade, o que já se deu como questão para ser tematizada. Aí acaba o poder da retórica e da sofística em querer moldar de fora o que só se pode realizar a partir do que é próprio.


O universo não é uma ideia minha.
A minha ideia de universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos.
A minha ideia de noite é que anoitece pelos meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.
(Caeiro, 2004: 129)


Independentemente do meu pensar, do meu representar, a noite anoitece con-cretamente. O cogito: me cogitare não produz nem a realidade nem o pensar, pois este, no con-creto, é o consumar a referência de realidade e realização. “A minha idéia de universo...” só “é uma idéia minha” na medida em que resulta, depois de eclodir no pensar, “na técnica de escrever”. Assim como o ovo da galinha eclode con-cretamente, sendo e acontecendo no vigorar de sua essência originária, sendo o calor do corpo da galinha a imagem-questão do pensar que acontece no ser humano na sua referência ao Ser e se torna então, por tal referêncica, poieta. Todo poieta é poieta da poiesis, que se desvela, presencia enquanto linguagem e verdade. A minha representação do ovo da galinha nascendo não passa de um representar externo, de um saber sobre a constituição orgânica e até genética do ovo, da técnica pela qual a galinha faz o ninho. Isso não é decisivo, embora tenha sua importância. O decisivo é partir para o chocar e deixar-se tomar pela espera, gestada no calor do silêncio. Mas todo este acontecer já é presença, e tempo. De repente surge o pinto, a obra de poiesis. É o kairós. É a gestação presencial do Ser que no silêncio de seu vigorar se dá retraindo-se; se presencia, velando-se. Toda presença é desvelamento que se vela. Portanto, que se manifesta enquanto ausência-presença.
Toda forma é uma representação de quem vê de fora. O ovo em si-mesmo não cessa de acontecer, representando-o ou não o representando. O universo acontece independentemente de eu dar uma forma ao universo, isto é, uma representação. Mas as formas de representação são múltiplas, por isso, tende-se a confundir a presença com uma forma de representação. Diz o Nobel de Química, Roald Hoffmann: “Mesmo que exista uma estrutura que permeie a realidade, existem 36 meios de representá-la”. E comentando a citação, diz Marcelo Gleiser: “Aqui já vemos uma noção de pluralidade do conhecimento: existem muitos meios de construir conhecimento sobre o mundo – e a ciência não é o único” (Gleiser, 2009: 3). Confunde-se o desvelar enquanto presença com a possibilidade de construir conhecimento sobre o mundo, sobre a própria presença. Construir conhecimento sobre é dar forma à realidade, onde ela se reduz às formas de conhecimento. E tais formas só são reconhecíveis na medida em que se enquadram numa teoria, num suporte, num paradigma, tendendo a afirmá-lo e assim se reduzirem às finalidades que tais paradigmas estabelecem para a realidade. Nesse caso ou as formas são formas pelas formas, puramente retóricas, ou são formas que têm a função estética ou ideológico-moral. Elas não manifestam sentido, impõem o significado inerente ao paradigma, consignado na representação. Já a presença consuma a realidade enquanto sentido poético, ou seja, o ético advindo no e com o próprio, com a essencialização da verdade e da linguagem. Toda presença é manifestadora e vigorante de um poder poiético, isto é, ético. O ético é o querer poder, vigorando a partir do seu elemento: o Ser. Quando a realidade se manifesta a partir dela mesma, não há representação, não há forma. Há, de fato, desvelamento, presença, enquanto o vigorar do originário. Como este vigorar não é um vazio niilista, à eclosão não denominamos forma como se fosse representação, mas presencialização. E então não há diferença entre matéria e forma. Há a própria realidade realizando-se, tornando-se e dando-se enquanto presença, verdade, desvelamento. (Um vazio vazio e niilista é o falatório sem o vigorar do silêncio, sem o vigorar do originário. Por isso para ter e haver música não basta dar forma aos sons, é necessário o necessário eclodir em musicalidade. Por isso, diz Píndaro: a necessidade é mais do que o conhecimento, a representação).
Se agora voltamos ao ovo, constatamos que as novas “formas” do ovo se dão a partir do vigorar do que no ovo já é, já vigora. Ser é vigorar. Vigorar é sendo e jamais representar. É da essência originária do ovo que está operando em verdade a sua verdade e no operar eclode no que é, desvelando-se em seu próprio, sendo o que é, é que surgem os limites. São os limites da medida. Na poiesis e na linguagem sempre vigora a medida do Ser, do Sagrado. Tais limites são limites que não impõem uma forma, são limites de experienciação de vida na qual a vida se doa enquanto presença, pela qual, muito ao contrário de se impor limites formais vai se manifestando no isto que o ovo é, vai tendendo à plenitude de realização, até o ovo se tornar pinto, franga, galinha. E esta encontra a sua plenitude quando totalmente autônoma em relação à galinha-mãe se torna por sua vez mãe e põe ovos. Mas estes também se libertam dela, pois já trazem dentro de si o que futuramente serão. É o destino enquanto zoé/vida. Se considerarmos que cada galinha é um sendo/bíos, aquilo que constitui sua essência originária (zoé/vida) não se esgota em vigorar nela e levá-la à eclosão de seus limites e medidas (bíos/vida). Isso é a verdade do sendo, de cada sendo-ovo-galinha. Por isso, os deuses sempre alertaram o humano para a hýbris, a desmedida. É que o sagrado, não o sujeito, é a medida.
Porém, há uma outra realidade que nunca aparece, mas sem a qual não há sendo-ovo-galinha. Ele também não está fora em algum lugar privilegiado para não se sabe, nem quando nem porque nem como, descer no sendo-ovo-galinha. Ele só vigora em cada sendo-ovo-galinha, sem o qual nenhum sendo-ovo-galinha é, enquanto presença-ausência, mas con-creta. Ele é sempre o velado de todo desvelado. Ele é o limite do não-limite. Ele tanto mais se dá quanto mais se retrai. Retrair não diz aí não ser realidade, mas ser simplesmente a realidade que se deixa realizar em cada sendo-ovo-galinha e que cada sendo não esgota, mas já traz dentro de si não como mera possibilidade, porém enquanto o poder ser, o vigorar em cada sendo, a realidade se realizando na realização de cada sendo-ovo-galinha (arkhé e télos). Não é possibilidade mera, é um vigorar. Este vigorar que não deixa de ser realidade é o ser do sendo-ovo-galinha. Cada ovo-galinha-sendo é um narrar – e não um mero representar do especular que se especula – e o ser de cada e de todos os ovos-galinhas-sendo é o narrar inaugural que não cessa de acontecer e se inaugurar. In-augurar é narrar enquanto acontecer de poiesis e linguagem: do sagrado. Só assim o narrar inaugural diz, é poiético. É a realidade poética. A realidade enquanto acontecer poético é o narrar inaugural, é o Ser. É a Vida (zoé, para o grego). E o especular é o narrar que deixa o narrar inaugural se especular. Especular é especular-se enquanto realizar-se, jamais enquanto representar-se. Especular é espelhar-se, onde esse se não é um pronome apassivador, mas o núcleo do acontecer que alimenta o agir do próprio verbo. É a essência originária do agir que possibilita a cada verbo se tornar verbo, ação.
Isso precisa ser bem compreendido. A essência originária do acontecer poético de todos e de cada verbo nunca é um verbo, uma palavra. É o Ser. Porque o Ser é o verbo de todos os verbos e que qualquer verbo em seu acontecer poético jamais esgota ou nomeia completamente. A essência originária é o próprio Ser se dando enquanto linguagem e poiesis. Dessa maneira nunca podemos reduzir o narrar à ordenação e à sintaxe das orações num discurso (estudadas gramaticalmente ou como o estruturalismo pretendeu um dia: a gramática da narrativa, que seria a narratividade, isto é, uma essência conceitual, representacional e funcional). Isso ainda seria reduzir o acontecer da realidade a formas sintáticas externas, aquelas tomadas pelo discurso. Muito pelo contrário, seria até impossível apreender a sintaxe do discurso se este de antemão e para além da sua forma externa não estivesse vigorando no narrar inaugural da linguagem do discurso pela inaugurabilidade do narrar enquanto poiesis. Também não é uma estrutura estruturante genérica, um código. Por isso, a linguagem é o sentido de unidade que a sintaxe enquanto ordem pode apontar, indicar e até analisar. O sentido vem da linguagem, da essência originária do narrar inaugurável. Querer determinar o sentido do discurso por uma sintaxe formal, social, histórica ou psíquica, seria o mesmo que querer determinar a forma do sendo-ovo-galinha pelo conjunto das circunstâncias externas, sejam naturais, sejam culturais, sejam alimentares, sejam econômicas, em que tanto a galinha quanto o ninho está colocado, posto, acontecendo. Na galinha há um abstrair-se de tudo isso que é externo e circunstancial. Por isso, a presença não depende dos elementos circunstanciais em que a presença se dá. Não há de maneira alguma uma oposição ao externo por um interno. Não. Há um acontecer que faz vigorar as suas próprias circunstâncias. O externo não é jamais a oposição de um limite em relação ao interno. Limite poiético não é isso. Só o limite das formas da representação. Segundo Heidegger: “O limite não é onde uma coisa termina, mas, como os gregos reconheceram, de onde alguma coisa dá início à sua essência " (1).
Claro que o que circum-stancia é importante, como o calor e desvelo da galinha são importantes para o operar do ovo em seu eclodir, mas não são as in-stâncias determinantes do que no ovo acontece. Pelo contrário, elas somente surgem já do vigorar do narrar inaugural, pois este não apenas põe e ex-põe o sendo-ovo-galinha, também reúne no vigorar da linguagem em palavras e proposições, e assim uma tal reunião e unidade constitui o que apropriadamente chamamos mundo. Diz Rosa: “Minha Senhora Dona: um menino nasceu – o mundo tornou a começar...” (Rosa, 1968: 353). Mundo é todo esse acontecer poético da linguagem e da poiesis, enquanto desvelamento ou presença, na qual o homem ao nascer já está jogado. É o que Heráclito denominou como o operar do lógos: tudo é um (Heráclito, 1991: 71, frg. 50). À unidade de tudo/nada podemos denominar: poiesis, tempo, linguagem, memória: Mundo. Ao pensarmos a sintaxe poética do narrar inaugural, podemos pensar, no lugar do sendo-ovo-galinha-sendo, a obra-de-arte-sendo-em-seu-ser, isto é, poiesis. Toda obra de arte em seu ser é o sendo da disputa de Terra e Mundo. Aqui não há forma nem matéria. Disputa é o pensar da poiesis enquanto linguagem e verdade.
Formatados por uma educação formal, retórica, e não poética, somos conduzidos pelas formas aos conteúdos, ao que tradicionalmente se chama, também inadequadamente, matéria. Daí se dizer que o professor leciona uma determinada matéria. Já se pensou o que seria linguagem enquanto matéria? Linguagem só é matéria se a reduzirmos a uma matéria instrumental, ou seja, a linguagem estudada e ensinada pela gramática das formas discursivas. É a linguagem causal. É a linguagem, melhor, o discurso retórico. A linguagem só pode ser instrumental quando reduzida ao discurso retórico. Este é utensílio, presta serventias, pois visa a produzir mensagens, a informar e a convencer. Atualmente fica muito difícil saber onde começam as informações, os conhecimentos e os conteúdos da publicidade, tudo girando em torno da persuasão. Em tudo isso há uma grande mistura de conhecimento, imaginações ficcionais e estéticas. Por isso, tais produções têm forma e podem ser atribuídas a gêneros, reduzindo-se o gênero a uma forma orgânica, daí a confusão entre quem escreve e o que escreve. Aí o critério não é poético, é de gênero, é tanto mais ideológico quanto mais é regido por finalidades, de preferência estéticas e ideológicas, ou seja, construídas dentro da retórica da persuasão. Daí a ambigüidade da palavra publicidade, em tais obras. É que publicidade dizia originalmente, no Iluminismo, toda ação de tornar público. Nesse âmbito toda discussão era regida pelo poder da argumentação, ou seja, tendia e tinha como finalidade a persuasão, essência da retórica.
A obra poética não pertence a nenhuma forma nem a nenhum gênero e jamais quer persuadir. A linguagem da arte, do ser da arte, é manifestação da realidade, é a própria realidade acontecendo enquanto linguagem, sentido e verdade. É poiesis. Porém, desformar, tentando anular a função de um utensílio para declará-lo obra de arte, ainda não é presencializar, como gostam de proclamar as vanguardas e os novos gêneros e formas.
Se não há forma, como acabamos de ver, mas limite de plenitude de realização, num acontecer in-cessante da própria realidade se realizando, dando-se em presença, por isso, como somos distraídos e formatados, para nos acordar, logo no início do conto O espelho, o narrador nos diz: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (Rosa, 1968: 71). Arte é Nada, por isso, a obra de arte sendo, operando, acontecendo, não tem forma nem matéria. Não tem causas final nem eficiente. Há poiesis, que é o vigorar da essência originária. O não-cessar do limite sendo é o acontecer do Ser, da Arte, do Nada. Há sempre no acontecer da realidade, enquanto o próprio operar da obra de arte, um milagre... “que não estamos vendo”, graças às formas que vemos. Diante do destino que é a realidade sendo e acontecendo enquanto milagre e não vemos, não será que temos que nos tornar Édipo? Vendo a cidade e vendo-se só lhe restou uma saída: cegar-se. Aí afirmou o milagre do Nada. Pois só não vendo, porque arrancou os olhos, é que chegou a ver, uma vez que em geral vemos muito, mas do que vemos muito, muito pouco se torna presença. Antes que a realidade fique empestada, não é melhor deixar a Terra ser Terra sendo Mundo, sendo obra de arte acontecendo? O que hoje é a peste da Terra e do Mundo não é a causalidade desenfreada e dominante? Não é a sociedade de consumo de bens, de discursos, de imagens, só possível pelas formas retóricas? Não é a ficção dominante representação retórica e formal? Não é esta a questão da contemporaneidade? Diante da peste, não é que as pessoas não possam casar e ter filhos. O incesto está na exclusividade e exclusão que ela impõe: a representação causal e formal. Por isso, onde mora a causalidade exclusiva, aí mora o perigo:


Ora, onde mora o perigo
é lá que também cresce
o que salva.


(Hölderlin, in: Heidegger, 2002: 31).


A salvação, todos sabem, é a vigência da realidade poética em sua plena presença, sem formas nem causalidade: desvelamento, existência, destino: poiesis. Forma e presença.


GLEISER, Marcelo. “Tensão criadora”. In: A folha de São Paulo. Caderno Mais, 18-10-2009.
CAEIRO, Alberto. Poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
HÖLDERLIN, Friedrich. In: HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 3. e. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
---------------------------- . Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: Guimarães Rosa. Col. Fortuna Crítica. 2.e. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 67-97.
---------------------------. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 134.
ASSIS, Machado de. Obra completa, v. II. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1962.
OS PENSADORES ORIGINÁRIOS – Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1991.

Um comentário:

Unknown disse...

Caro Prof. Manuel: Há 15 anos publiquei o livro "Alquimia do Encontro" onde narro o entre-viver, viver no entre das coisas... Fiquei agradavelmente surpresso com a identidade em nosso pensar. Por isso já lhe mandei um e-mail pois quero seu contato... Meu e-mail: josef@prolibera.com.br