Prof. Manuel Antônio de Castro
É na discussão da questão do Humano/Essencialização (ec-sistência) e Razão/Animalitas que se coloca a questão do corpo enquanto humano e do Humano enquanto Corpo. Já na página 40 da Carta Heidegger se desfaz da interpretação da justaposição metafísica da anima/mens/pessoa e diz: “A metafísica pensa o homem a partir da animalitas. Ela não o pensa na direção de sua humanitas”. A direção da humanitas está relacionada/referenciada à sua historicidade (ec-sistência/destino). É enquanto historicidade/Geschick que Heidegger pensa a ec-sistência e esta enquanto o mover-se na abertura ou Clareira/Verdade do Ser. E se atinge então o humano enquanto ec-sistência: “Só se pode dizer ec-sistência da Essência do homem, isto é, do modo humano de “ser”, pois somente o homem, até onde alcança nossa experiência, foi introduzido no destino da ec-sistência. Por isso também a ec-sistência nunca pode ser pensada como uma espécie particular entre outras espécies de seres vivos, suposto, naturalmente, que foi destinado ao homem pensar a Essência de seu ser e não, apenas, fazer relatórios sobre a natureza e a história de sua constituição e de suas atividades. Assim, na Essência da ec-sistência, se funda também o que, em comparação com o “animal”, se atribui ao homem, como animalitas. O corpo do homem é algo Essencialmente diferente de um orgnismo animal” (Heidegger: 1967: 41). Nessa citação longa há que destacar: “... somente o homem” e nenhum outro sendo, “até onde alcança nossa experiência”: Para Heidegger não se trata de estabelecer uma hierarquia em relação às coisas e aos outros entes, mas partir da constatação dada, “até onde nossa experiência alcança”. Por isso diante das coisas e dos outros entes resta o respeito e a admissão de nossos limites. Isto não invalida de maneira alguma a historicidade (Geschick) enquanto ec-sistência. Daí afirmar, respeitados nossos limites, que “... somente o homem ... foi introduzido no destino da ec-sistência”. Aqui na ordem do humano e da sua posição mais importante ou tão importante quanto, está a afirmação de que a ec-sistência é a constatação de que ele e somente ele “foi introduzido no destino...”. Então a questão destino se torna a questão decisiva. E não se pode pensar a ec-sistência ou o humano em sua historicidade se não se pensar o seu destino. É no destino e como destino que se deve pensar a obra de arte na medida em que nela se dá, acontece, a Essencialização da Linguagem, a Essencialização da Verdade. Hà uma incompatibilidade radical, na interpretação metafísica do logos enquanto razão, entre racionalidade e destino. É que o destino não é analisável nem acessível a qualquer pesquisa científica. Mas será que o destino, por não ser racional, é irracional? E Édipo? Será que o inconsciente e a libido, no linguajar psicanalítico, por não serem racionáveis, no sentido de serem redutíveis a uma causa racional, são irracionais? E se tivermos Eros, segundo o mito de Ordeu? Aí se vê facilmente o suporte da anamalitas no próprio conceito de razão. É que o racional é um atributo do substantivo animal.
Daí que a questão do humano, Essencialmente, se re-duz, isto é, é con-duzida e tornada a levar (re-) à sua pro-veniência: o destino, diante do qual todo agir humano, e pode haver humano sem agir?, se vê determinado e lançado no agir do destino (concertar). Por outro lado, não se pode ver de maneira alguma o destino como o que anula o humano e reduz o homem a algo totalmente determinado, seja pelas forças históricas, seja pelas biológicas, seja pelas psicológicas, seja pelas familiares (genos), seja pelas sociais, seja pelas econômicas, seja pelas informacionais e do conhecimento, seja pelas de gênero. Não. O próprio do ser humano, isto é, do humano, é a locanda, ou seja, como Heidegger diz: “Chamo ec-sistência do homem o estar na clareira do Ser. Esse modo de ser só é próprio do homem” (Heidegger: 1967: 41). A clareira do Ser é a própria Essencialização do Sentido e Verdade do Ser. Ao nascer e por nascer ser humano, ele já está jogado no aberto da Clareira do Ser. Essa abertura é que se denomina Ec-sistência, que é a tradução da palavra alemã Dasein, usada por Heidegger em Ser e tempo, para denominar essa abertura e significa originalmente existência. Mas não se trata da existência individual, o existir de cada um. A abertura, a ec-sistência, é o desvelamento em que vigora cada sendo, não dizendo, portanto, respeito a algum indivíduo. Abertura é o desvelamento do Ser em cada sendo, opondo-se nisso a um conceito geral em que poderia ser entendida essa abertura ou a uma instituição. Em verdade, só podemos pensar o indivíduo em oposição a instituição. Isso não acontece com abertura, ec-sistência. Foi pensando nesse desvelamento em que vigora todo sendo que Emmanuel Carneiro Leão traduziu Da-sein por Pre-sença. Esta é algo inerente a todo ser humano, embora não seja um conceito geral, pois a presença é sempre algo vivo, concreto, pregnante, forte, e que atinge diferentes ec-sistências. Isso é o desvelamento, a abertura. Preferi traduzir Da-sein por Entre-ser porque quis realçar o acontecer que toda presença, toda ec-sistência é. Reunindo dois termos-chave de Heidegger: Da-sein e Ereignis. É também nesse sentido que é inerente a toda ser humano o diá-logo. Se bem observarmos, abertura é o mesmo que mundo e o radical de diálogo é o logos, ou seja, mundo, abertura, desvelamento. Mas jamais podemos pensar o desvelamento, a abertura, isoladamente, ela sempre é um acontecer enquanto época, isto é, se ela marca uma suspensão, o acontecer desvelante, este só acontece na medida em que todo desvelamento ou abertura, ou clareira, sempre se dá no vigorar do velamento, assim como a clareira é sempre um suspender-se da floresta. A floresta se suspende, se retrai, como floresta para deixar o desvelamento, a clareira aparecer, tornar-se fenômeno. Em geral as obras de arte e a própria vida do ser humano estão muito dominadas pelas instituições, havendo com estas uma grande disputa. Sair das normas, do habitual, das normas institucionais é extremamente difícil. O que parece ser originalidade é, em verdade, aparência do que já está instituído. Daí que deixar o próprio aparecer e ser é algo extremamente difícil. Leiam-se os contos de Rosa e Machado: O espelho. É essa, em verdade, a dificuldade de aparecer uma obra de arte originária, de uma nova época poética acontecer. Mas dentro da época poética são muitas as facetas em que se dá o desvelamento. Constatamos isso ao percebermos como alguém se destaca na medida em que tem uma forte presença.
A clareira, a presença, não é algo dependente da história social, da consciência-inconsciente, do biológico-genético. Não é algo sócio-institucional nem algo orgânico-genético. Pela análise do código genético jamais se chegará à ec-sistência de alguém, à manifestação histórica do seu destino. No entanto, há numerosas teorias querendo determinar a obra de arte apelando para tais elementos circunstanciais, contextuais e conjunturais. O poético-epocal é sempre conjuntural, mas não cronológico ou historiográrico, é poético-epocal no sentido de configurar a época enquanto desvelamento. Isso é o contemporâneo. A maior dificuldade em apreender o contemporâneo são as instituições, a linguagem cotidiana, as repetições, os valores morais impositivos e instituídos, os conhecimentos já estabelecidos, onde se pede repetição do já sabido. Sem sabido não há consumo pois o consumo é, em geral, a persuasão para a gratificação estética do já desejado e esperado. Não há lugar para o inesperado, para a escuta, para o agir do silêncio. A música, quando originária, não persuade, porque é surda.
Porém, a clareira, a abertura, a ec-sistência é algo constitutivo do ser humano. Esse prévio-próprio-constitutivo, o ser e estar aberto na e para a clareira/Verdade do Ser é o que constitui, no dizer de Heidegger, a inter-pelação do e pelo Ser. Rosa o diz de uma maneira muito poética num pequeno episódio de G.S.:veredas: “... um menino nasceu. O mundo tornou a começar”. Só nos deixamos inter-pelar quando não há esquecimento do Ser. Todo menino quando nasce ainda está imune aos atributos que irão configurar os mundos. Aí já se esqueceu o Ser.
Daí podermos afirmar, com Heidegger, em relação tanto ao biológico-genético (animalitas) quanto ao racional, partindo do exposto até agora: “Assim entendida, a ec-sistência não é apenas o fundamento da possibilidade da razão, ratio. É também onde a Essência do ser humano conserva a pro-veniência de sua determinação [humanitas]” (Heidegger: 1967: 41). Em virtude disso e do destino da ec-sistência “... também a ec-sistência nunca pode ser pensada como uma espécie particular entre outras espécies de seres vivos, suposto que, naturalmente, foi destinado ao ser humano pensar a Essência de seu ser e não apenas fazer relatórios sobre a natureza e a história de sua constituição e de suas atividades” (Heidegger: 1967, 41). Evidente que a afirmação decisiva aqui é “... pensar a Essência de seu ser...”. Aqui vamos ter um círculo poético decisivo. Se, por um lado, a Essência da ec-sistência é o Destino, por outro, esse Destino tem de ser apreendido e compreendido na tríplice dimensão do que Heidegger pensa enquanto destino, inerente à palavra alemã Ge-schick: estruturar, dispor, enviar (cf. a Apresentação de Emmanuel C. Leão, p. 13 a 15, quando pensa o Destino enquanto Essência da História). É na Essência e pela Essência da História que acontece a época. Porém, esta tríplice dimensão remete para e precisa da ec-sistência, onde ele floresce e doa ao ser humano a Essência da liberdade, instalando assim o círculo poético. Ora, não há círculo sem circular. E então agora cabe a pergunta – em torno da questão do humano: onde e como se dá, acontece o círculo poético? Heidegger já o disse ao trazer para cena a questão da ec-sistência e destino. O seu texto é tão denso que cada palavra tem de ser trazida para cena uma a uma, pois elas se interpelam e se unem numa unidade originária. Diz: “... foi destinado ao ser humano pensar a Essência do seu ser...”. Ao ser destinado, neste destinar-se já lhe é dada a referência necessária. E esta é o pensar a Essência do seu ser. Se bem observarmos agora, o Humano está fundado numa tríplice dimensão: Destino, Ec-sistência, Pensar. É no pensar que o círculo poético circula, acontece a referência. Pensar enquanto vigorar é o próprio agir na medida/meio/elemento do poder do querer. Por isso quando discute a essência do agir e distingue (krinein) o agir causal efetivo, funcional, do agir do pensar, ele afirma duas coisas: 1ª. Quanto ao pensar e referência: “O pensar con-suma a referência do Ser à Essência do ser humano” (Heidegger: 1967, 24); 2ª. “O pensar (das Denken) não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. O pensar age enquanto pensa” (Heidegger: 1967, 25). O poder que se baseia no operar enquanto produzir efeitos é o poder inerente ao sistema, à instituição (o poder do consertar). Já o poder que se funda no agir poético, é um poder do querer do Ser, que se manifesta na autoridade de quem é tomado pelo concertar.
Bigliografia
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
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