27 novembro 2009

Próprio


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Como se dá o próprio? Este dar-se acontece como dobra de destino e história. Mas ela acontece dentro de um conjunto de relações e referências que não se reduzem à simplificação da relação de próprio e meio, próprio e cultura. Pelo contrário, vigora no e a partir da essência do próprio dessa con-juntura complexa que inclui as dimensões: genético-familiares, históricas, sociais, psíquicas, religiosas e criativas. Mas estas não determinam nem configuram o próprio.
O próprio dentro desta con-juntura irrompe sempre num querer poder e tender a e a agir tendo em vista um fim, a sua plenificação, a sua realização. Porém, a ação das dimensões con-junturais exerce todo o seu poder concedendo meios e querendo impor os seus fins. Daí surgem a disputa e os conflitos. Entre os fins conjunturais e o fim do próprio se dá a travessia histórica e destinal. Mas quantos perecem e ficam enleados nas malhas das dimensões con-junturais e seus efeitos e fins? Que preço se paga pela disputa na travessia histórica e destinal? Como acontece a disputa da necessidade de plenificação do próprio e das necessidades que as dimensões con-junturais impõem? Até porque o próprio vigora sempre nos insterstícios oblíquos da presença da realidade na travessia de realização, dentro dos sistemas impositivos do real. Porém, o próprio é sempre o próprio da realidade eclodindo em realizações, as realizações do próprio da própria realidade e não das relações nem dos sistemas. Realidade não é meio natural ou social, não são as conjunturas. Realidade é o vigorar da Essência do próprio. No e como próprio se dá a Essencialização da realidade.
E é aí que muitas vezes o maior inimigo é o "eu", aquele "eu" resultante das tintas com que nos vão pintando os sentidos, com as tintas que os outros e os sistemas produzem e com as quais o "eu" imagina, se projeta e se ilude em pintar o próprio. Este próprio não é um "eu" configurado com tintas que advêm das dimensões conjunturais dos sistemas. O próprio é o irromper histórico do destino uma vez que todo destino é o acontecer do próprio.
O destino não se estrutura de fora nem para fora. Ele se estrutura no disposto que envia e avia no que constitui o próprio. É sua Essência enquanto singularidade. A singularidade é a realização, enquanto travessia histórica e destinal, da Essência do próprio. Esta é a Essencialização do que é no e pelo Ser. Só sendo é que o "eu" se realiza, não como vontade e pessoa ou persona, mas enquanto Essencialização do que é, sendo o próprio. Só se realiza quando é e quando pode dizer "sou". Daí que a linguagem é a eclosão do próprio em sua Essencialização. Linguagem não é meio de nada. Meio é o discurso. Cada língua é a presença manifestante da linguagem. A linguagem é o velado da língua operando, essencializando o próprio.
Não há "eu" singular, pois ele será sempre a composiçaõ de camadas diante dos e para os outros. Será sempre o "eu" da funcionalidade das funções que as conjunturas impõem e compõem. As funções são possibilidades do próprio e não e jamais a sua constituição. Quando o próprio se reduz às funções do "eu", dá-se o impróprio, o insistir na errância enquanto esquecimento da verdade. A verdade é o desvelamento do próprio. Mas não há desvelamento sem velamento. Quando o desvelamento pelo desvelamento acontece, acontece a insistência na errância. Insistir na errância é esquecer o Ser, o velado como a não-verdade de toda verdade. O "eu" sem funções se desmancha e cai no vazio e no tédio, que é o esqquecimento do próprio. E é então que advém a essência da solidão. A solidão acontecendo é a singularidade de só ser e não de ser só.
A singularidade do próprio é o outro em relação aos outros e o outro do "eu". O outro do que é é o Nada dele mesmo. Só assim pode e há singularidade. Só assim pode e há o próprio, o querer do poder do próprio. Este se apropria quando e só quando pode dizer singularmente "sou", sem "eu" ou "identidade" que o determine. Toda identidade se torna então identificação com as circunstâncias culturais. E a determinação da singularidade vem sempre do próprio, do que é. Singularmente sendo o próprio. Então acontece poeticamente o apropriar-se que destinalmente lhe foi dado e presenteado para presencializar-se.
Todo próprio ao Ser sendo vigora enquanto presença. Esta é sempre o desvelamento do que vigora velado. O próprio é a presença do velado, assim como cada ser vivente (bios) é a presença da vida (zoé). Vemos o vivente, não vemos a vida que vigora velada. Sem o vigorar da vida não há vivente. Toda presença é singular. A sua singularidade é o vigorar do velado do próprio. Por isso o próprio é sempre um acontecer poético.

27 setembro 2009

Espelho: o perigoso caminho do auto-diálogo


O caminho do auto-diálogo é perigoso porque nos lança nos limites do agir causal e no não-limite do agir não-causal, da necessidade de ser o que se tem para ter o que se é. O homem, ser da liminaridade, isto é, do ser entre o limite e o não-limite, faz do perigo e do seu agir perigoso um mover-se no frágil véu do abismo do Nada. É no poder renunciar que se deixa tomar pelo poder de ser. Poder não é o poder de realizar possibilidades dentro do agir causal. Poder é deixar-se tomar pelo poder de ser, para realizar o que já se é. E então o caminho é o caminho da renúncia. Renúncia não é penúria. É não ter bens para ter o bem. É fazer da liberdade a necessidade de ser. É renunciar às procuras para fazer da cura a única procura. Cuidar de ser eis a liberdade como necessidade.
Podemos compreender que na liminaridade nos movemos entre dois poderes: o dos conceitos, que sempre tentam trazer para o saber o não-saber, fazendo do saber um poder agir causal, decisivo, conceitual, pelo qual, construindo a ciência e a técnica constrói o real. E há o poder do questionar pelo qual pensando o homem já age, sem conceitos, sem causas, sem efeitos e deixando a realidade e suas coisas advirem ao que elas são, o que significa deixá-las vigorar enquanto questão. No agir do pensar a questão, esta age e pode agir pelo próprio agir do que na questão se dá a pensar. Acolher essa doação é a tarefa do pensamento e da poiesis. Mas isso se faz num diálogo. Dialogar é experienciar o perigo da liminaridade, caminhar sempre no limite do não-limite, no ordinário do extra-ordinário, na essência do homem em sua referencia ao Ser. O caminho do questionar deixando as questões serem questões é o pôr-se a caminho da linguagem, do pensamento essencial, do pensamento poético. É que viver da e na liminaridade se tornou não simplesmente viver, mas uma tarefa poética. Porém, isso não se faz sem o perigo do auto-diálogo. O perigo do auto-diálogo está não em fazer do espelho um especular do agir causal, transformador e de efeitos, de procura incessante de bens. O perigo do auto-diálogo está em fazer do espelho um especular que abra a ação do ser-humano a partir de sua essência como o necessário e não como o preciso. Não se trata de precisar algo, a realidade, a liminaridade, mas de precisar do auto-diálogo enquanto uma tarefa perigosa de se jogar no abismo, onde ser e necessidade são um e o mesmo. O perigo do caminho do auto-diálogo é o caminho de se estar sempre a caminho da linguagem, como o único essencial e necessário. É trazer para o perigo do auto-diálogo do espelho o lema dos Argonautas: Navegar é necessário, viver não é preciso. Habitantes da nau da linguagem, só nos resta uma coisa única e necessária: navegar, fazendo do caminho da viagem o caminho do auto-diálogo, onde todo caminhar já nos envia para o envio do espelho, onde o que se vê e acolhe e sabe e pensa é o próprio, o mesmo. Navegar é o singrar na Nau da linguagem rumo ao originário, o Ser enquanto princípio, para que a viagem se torne um caminho em direção ao fim, enquanto realização e plenitude da origem, o próprio enquanto o mesmo. Auto-dialogar é necessário, viver é sem precisão.
Quando dialogamos, nota-se que nosso conversa se encaminha facilmente para as lembranças, ou seja, aquilo que somos a partir do que nos ficou na consciência. Assim nossa vida se passa entre aquilo que ficou das muitas vivências guardado na memória e se lembra enquanto con-sciência. E assim nossa vida se move nesses conteúdos da consciência e é com eles que construímos nosso eu, aquilo que conhecemos e lembramos do que fomos sendo. Mas nosso eu não se constitui unicamente do que nos lembramos. Também ele se constitui do que vivemos e não lembramos mais. É o que Freud vai chamar das camadas do subconsciente e do atuar do inconsciente. Então o que somos é visto dentro dessa dinâmica da consciência e inconsciente. Porém, aí se coloca a questão: nosso eu, aquilo que somos, se resume aos conteúdos do consciente, do subconsciente e do inconsciente? Já notamos aí que essa pergunta pergunta e coloca em questão o que somos, determinado pelo saber da consciência. Até onde o ser que somos é mais do que simplesmente os conteúdos da consciência? E como adentrar essa questão?
Evidentemente fazendo da questão o penoso caminho de penetrar nos interstícios da consciência, no sentido geral de conhecer e saber. É que o conhecer vai remeter para a palavra grega tekhné em seu duplo sentido de conhecimento e de conhecer instrumental. E até onde o ser que somos, nosso sendo, se resume também ao saber? Saber é aquilo que somos para além do simples conhecer, ou seja, nosso ser sendo para além da medida da razão, medida de todo conhecer inerente à consciência. Mas já estamos entrando por caminhos que são veredas da questão, enquanto esta é o caminho da dobra de ser e pensar, no dizer de Parmênides, na sentença III: “... to gar auto noein estín te kai einai”, “...pois o mesmo é pensar e ser”. Em grego vamos ter noein. Como traduzi-lo para o pensar de nossa língua? Até onde ele diz em grego o que na posteridade ficou reduzido à medida da consciência, ou seja, a razão? E por que a razão se tornou a causa eficiente de todo sendo, de todo ente?
Os caminhos do Ocidente são complexos e é necessário ir adentrando os seus desvios e atalhos. Um dos atalhos que o Ocidente realizou e se perde nas brumas do agir causal é o atalho que privilegiou a tradução da palavra grega lógos por razão. Que apelo comum havia tanto em lógos quanto em ratio? E será que se atentou também para o que as diferenciava? É aí que a questão se faz questão e não meramente um interstício oculto dos conceitos e dos conhecimentos. Aí a questão se torna aquilo que, enquanto o mesmo, nos convoca e provoca ao pensar, ou seja, ao questionar. E por que, posteriormente, se identificou o conhecer com a razão? Porque em grego há uma proximidade entre: nous, lógos, tekhné, episteme? No entanto, sabemos que um dos sentidos mais fortes de lógos sempre foi e será linguagem. Então se coloca a questão, mais do que uma simples pergunta: O que há de comum entre razão, ou conhecimento, e razão, ou linguagem? Será que é a mesma coisa? Ou serão dimensões do mesmo, de que nos fala Parmênides? E então dentro do vigorar da questão ainda se coloca a pergunta mais decisiva: O que há de comum entre ser, conhecer ou pensar e linguagem, ou seja, qual a referencia entre on, nous, lógos, ratio e linguagem? São estes os fios em que se entre-tece a questão do eu e de sua identidade. Para que a identidade não se torne um simples conceito geral e de generalidades, mesmo quando quer afirmar as diferenças, pois é impossível falar de diferenças sem ter uma unidade, uma medida, e sem ter uma diferença que seja a identidade de todas as diferenças, porque então será a identidade das identidades, é necessário haver uma unidade. Essa é a grande procura dos pensadores gregos. E Parmênides já o diz na sua sentença III: “... pois o mesmo é ser e pensar”. Podemos desdobrar: O mesmo é ser. O mesmo é pensar. Se agora pensamos que o mesmo se torna o sujeito das pro-posições, mas que esse mesmo, como sujeito, se funda no é, compreenderemos, porque se o mesmo é o sujeito das duas proposições, também o é comparece como núcleo verbal das duas orações, que nos movemos numa dobra: de ser e mesmo. Trata-se agora de pensar como se dá a referencia entre o sujeito da pro-posição e o seu núcleo verbal: o é.
Sem dúvida nenhuma, como afirma a gramática, fundada na pro-posição e tentando fazer desta o juízo da realidade, o ser não é um verbo fraco. Fraca é a gramática que se fundamenta na proposição enquanto representação, sem pensar o que na proposição já de antemão se dá: o sendo do ser, onde o ser é verbo porque é ação. Trata-se de saber até onde há uma correspondência entre a estrutura do sendo, em grego on, e a estrutura da proposição, composta de dois termos essenciais: sujeito e predicado. O que a gramática sabe do que é essencial? De onde ela retira essa idéia de essência? Da pressuposição de que o on se com-põe de uma essência e de uma aparência, de um sujeito e de um predicado. Mas esta já é a visão do on/sendo a partir da pro-posição, não do vigorar concreto do sendo. Será que o on/sendo é constituído por essa estrutura? Isso é uma su-posição. Ora, a pro-posição, enquanto enunciação do sendo/on, se fundamenta no lógos. Se isolamos o lógos e o pro-pomos como fundamento, então o ser, ou como hoje em geral se fala, a realidade, ou ainda em outra afirmação: a totalidade dos entes, vai ficar dependente e determinada pelo lógos, mas aí compreendido como a representação do sendo/on. E toda representação é representação da essência do sendo/on, na medida em que a essência da representação é a proposição. Se bem observarmos, giramos aí num círculo vicioso, onde a realidade só nos chega como representação e esta como o império da proposição. E esta como o fundamento, do qual o mesmo é o sujeito. Mas se a essência não se fundar no sujeito e, sim, como é evidente, no ser? Como pode haver essência a não ser a partir da vigência do ser? É que a proposição deslocando o fundamento do ser para o sujeito, este se autonomiza de tal maneira que esquece o que o funda: o ser. Pois sem ser não há sujeito, ou seja, nenhuma essência. Ora se não há sujeito ou essência sem o ser, isto diz e proclama e evidencia que o ser não é um verbo fraco. Muito pelo contrário: o Ser é o verbo de todos os verbos. Sem ser não há realidade.
Dada a posição moderna, que estabelece como fundamento a razão crítica, mas só pensa o fundamento e não o fundar, isto tem de ficar bem claro: Quando se emite, enuncia, um juízo crítico como pro-posição, a posição da proposição enquanto juízo, afirmação e determinação de sentido, sem o qual não é possível falar de diferenças e conhecimento, só é possível porque já o on/sendo se deu a ver no e como fenômeno e sentido. Sem o mostrar-se e aparecer não há a menor possibilidade de se tomar posição, seja ela qual for. Se bem notarmos, surge então a questão de que não há só um on/sendo, há uma infinidade, há uma multiplicidade. O ver não só vê a multiplicidade (vigência das diferenças), caso contrário não haveria ver, haveria uma sucessão de sensações sem sentido, vê já dentro de uma unidade. Se não houvesse unidade, como poderia ver diversidades e diferenças se quem vê não se vê? Esta unidade não pode ser dada pelo sujeito, mas só pode advir do próprio ser, vigorando no mostrar-se e retrair-se. É aqui que temos que voltar à sentença de Parmênides e não à posição moderna da razão crítica, pois aqui se faz necessário uma crítica da razão, mas sem também fundar a consciência critica na crítica da consciência, pois caso contrário, apenas haverá uma inversão. Se retomamos a sentença de Parmênides e onde nela ficamos, compreenderemos que não só o ser se dá enquanto on/sendo, mas ao mesmo tempo, ou seja, dentro do vigorar do mesmo, já se dá também o noein. Porém, temos que pensar não só o ser a partir do noein, e o mesmo enquanto o mesmo de ser e de noein, mas que esse mesmo só vigora no e enquanto é. “Enquanto” diz aí a referencia de ser e noein ao tempo. O mesmo é, enquanto é. O é, enquanto tempo, é o mesmo. É o tempo que possibilita, enquanto vigorar do ser, o mesmo ser o mesmo.
Se agora voltamos ao desdobramento da sentença de Parmênides que fica: O mesmo é ser. O mesmo é pensar, notaremos que pensar e ser, dentro da estrutura da pro-posição, parece que tanto ser quanto pensar são predicativos do mesmo. Estes predicativos são modos de o mesmo se dar. Pensar e ser fundamentam-se no mesmo, segundo a pro-posição. Porém, esta é enunciado do on/sendo. Então ser e pensar são o mesmo dentro do âmbito da proposição. O mesmo, enquanto sujeito, fundamenta tanto o ser quanto o pensar. No entanto, o sujeito, como sujeito, é a essência do ser enquanto ele na pro-posição nos advém no é. Portanto, o é da proposição diz, enuncia o mesmo enquanto a vigência do é, isto é, do ser, pois não há vigência possível de qualquer essência a não ser a partir do ser. O que está agora em questão são duas coisas: de onde nos advém a unidade de mesmo e ser, e de ser e pensar? Também podemos dizer: De onde nos vem a unidade de proposição e on/sendo? Certamente não é da proposição, pois esta já é a posição que advém para a frente da vigência histórica, na medida em que ela é proposição e não simplesmente o on/sendo, pois eles se diferenciam. De cada on/sendo podemos notar concretamente sua densidade, suas cores, seu peso, seu valor em meio às relações reais do mundo das coisas e dos homens. Um on/sendo pode cheirar e ter sabor. Isso nenhuma proposição enquanto representação tem. Cada proposição ainda não passa de uma representação que recebe sua validade do on/sendo, pois uma sentença, uma proposição, por ser representação, por ser um produto da consciência, é desprovida dessa concreticidade. Basta dizer, para exemplificar, que com a sentença: Esta peça de ouro de cem gramas é verdadeira, ainda que afirme uma representação verdadeira, com ela não posso comprar nada. Só a peça real, concreta, pode ter um valor de compra. Ou outro exemplo: Com a proposição: Esta casa é espaçosa e bonita, porque não passa de uma representação, ainda não posso morar nela. Só posso morar na casa concreta, que aliás, outra pessoa pode achar grande demais, custosa de manter e até feia. Os juízos sobre a realidade concreta podem variar. Em si e em repouso, a coisa, cada on/sendo, se retrai e se nos torna inacessível em seu repousar em si. Nosso acesso a elas são as representações, mas concretamente não se pode viver de representações. Isso apenas quer dizer que a proposição precisa do on/sendo e que este jamais pode ser reduzido à proposição, enquanto esta ficar apenas no estatuto da representação. Pode o lógos, a linguagem ser mais do que um meio e instrumento de representação? Eis aí a questão da Poética enquanto questão da linguagem.
Isso diz que temos que remeter o ser e o pensar dos predicativos das proposições: O mesmo é pensar e O mesmo é ser, para o sujeito O mesmo, mas este não pode vigorar sem o ser sendo, enquanto vigorar do ser em cada e em todo é. Mas para ser tal vigorar, o é de cada proposição não pode se tornar um verbo fraco em virtude do poder do sujeito, aqui neste caso, do mesmo. Pelo contrário, é impossível o mesmo vigorar na proposição como sujeito sem o vigorar do é, isto é, do ser. É nesse sentido que o ser enquanto é é o ser de todos os verbos e é o fundar do sujeito no que este se enuncia enquanto fundamento. Como se dá então a dobra de sujeito – o mesmo – e é, o fundar de todo sujeito? Vejamos: o mesmo enquanto sujeito só pode vigorar enquanto sujeito, isto é, ser o sujeito da proposição, da enunciação, enquanto recebe seu vigorar do é, enquanto este é o fundar do fundamento que é o sujeito. Já notamos perfeitamente que se o sujeito fundamenta, enquanto essência, só é essência enquanto essência do ser, pois é este e só este que funda o fundamento do sujeito e, portanto, da proposição enquanto enunciado e enunciação. Como questão a Poética se move no fundar. Portanto, temos de pensar tanto a essência da ação quanto a da linguagem no vigorar do fundar.
Em nossa vida cotidiana vivemos das proposições e nos posicionamos e temos pontos de vista ou perspectivas e as enunciamos nas mais diversas situações, ou seja, espaços e tempos. Sabemos que o espaço, onde já desde que nascemos estamos jogados e nos movemos, é constituído de três dimensões: altura, profundidade e largura. Porém, o saber da ciência constatou que há uma quarta dimensão do espaço: o tempo. Sem este não é possível se mover no espaço e suas três dimensões. A proposição espacial se nos dá porque o tempo já reúne as suas três dimensões, caso contrário, viveríamos num espaço que não se constituiria num mundo de coisas e pessoas múltiplas e diversas, de possíveis relações e até de mudanças. O espaço sendo espaço é o tempo acontecendo. Daí o tempo ser a quarta dimensão do espaço. Toda proposição é ao mesmo tempo uma pro-posição espacial – posição – e uma pro-posição temporal – pro, que diz o vir à frente, o acontecer do tempo. Então trata-se de agora pensarmos o tempo. Ou seja, aquele enquanto do sujeito, do mesmo, enquanto é. Esse enquanto é é a referencia de tempo e ser. Que referencia é essa? Sabe-se de há muito que o tempo também tem três dimensões: passado, presente e futuro. Será que o tempo também tem uma quarta dimensão? Ou as três não têm entre si unidade, são uma sucessão de multiplicidade e diversidade sem possível unidade? Isso é impossível, pois se “isso” acontecesse não poderia nem aqui e agora estar perguntando. Se pergunto e pergunto isso, quer dizer que há um sentido que a tudo dá unidade, que há constitutivamente uma unidade. Essa unidade se dá numa evidencia simples, aquilo que ainda é enquanto o vigorar da dobra de ser e pensar: a questão. Toda questão é e não é, sabe e não sabe. Acontece que a questão não é algo que a consciência põe. Pelo contrário, nós somos postos na e pela questão, pois já vivemos e nascemos, amamos e morremos, e nos movemos na questão como unidade e vigorar de tudo que é e se sabe, se dá e se retrai. A questão não é posta pela pergunta do eu, do sujeito. O eu é que é posto pela questão. Por exemplo, para perguntar, já tenho que estar vivendo, me experienciando no vigorar do tempo.
Enquanto questão, o eu, em sentido fundamental, é constituído não pela consciência, mas pelo saber do tempo. Só por o tempo já estar vigorando antes da consciência é que o eu pode ser constituído pela consciência. Sabemos que o tempo se dá em três dimensões: o passado, fonte das lembranças e configurador do eu, enquanto aquele que sabe o que foi; o futuro, o que ainda não se é e não se sabe nem se pode saber, porque o que não é também não pode ser sabido, e pelo presente. Este é a vigência do passado naquilo que ainda não passou, mas se faz presente como ausência do que ainda será. Todo presente é, ao mesmo tempo, uma ausência presente e um presente ausente, de tal modo que o passado não é só o que se faz presente na consciência, mas o que também, tendo passado, se esquece. Se não houvesse esquecimento nosso eu transbordaria de lembranças e não poderia em princípio viver no repouso do que já fomos e do que ainda seremos. Por isso, o presente é o que não cessa de acontecer. É este acontecer que foge à consciência enquanto consciência, pois o acontecer não é fundado pela razão crítica, sujeito transcendental. O presente é a unidade de passado que passou e não passou e do futuro que é o futuro do passado, o que ainda está para ser. Que unidade é essa? Ela não se constitui pelas possibilidades do futuro, ela já contém em si o que vigorando sempre enquanto presente é ao mesmo tempo futuro e passado. O presente vigorando entre passado e futuro é a memória. Enquanto memória ela é o que foi, o que é, o que será. A memória é o ser vigorando. E como se constitui em unidade a memória ou o ser vigorando? Quando assim perguntamos só podemos perguntar porque a memória do ser já se nos ofereceu como pergunta. Só podemos perguntar porque já vigoramos no ser, na memória do ser. É que o ser, a memória, é questão. É que a questão não é apenas saber e não-saber, ser e não-ser, ela é também a unidade de saber e ser, de não-saber e não-ser. E só por ser unidade é que a questão pode advir à pergunta. Advir à pergunta é advir à linguagem, a partir da memória. Memória é unidade e sendo unidade é linguagem. Linguagem, enquanto unidade, não é, em primeira instância, fala ou elocução. Só se fala na e a partir da linguagem. Então podemos dizer que a quarta dimensão do tempo é a memória, e esta é a unidade do tempo enquanto o tempo se faz linguagem. É. O tempo é já diz, originariamente, linguagem, unidade.
As representações das proposições são falas possíveis da linguagem. Linguagem é lógos. Lógos é mundo. Quando a sentença órfica diz que o homem é o “dzoion logon ekhon”, já diz que o homem se constitui enquanto homem, porque já está lançado na linguagem, na abertura, no mundo, ou seja, a transcendência que faz o homem homem, isto é, “dzoion logon ekhon”, mundo. Esse é o lugar da essência do homem na sua referencia ao Ser. Lugar diz aí mundo, enquanto a referencia da Essência do homem ao Ser. Lugar, mundo, linguagem, jamais disse, diz ou dirá uma faculdade do homem. Assim como o homem é constituído pela questão, o que é, assim também o perguntar é constituído pel questionar. Por isso, de tudo que é e está sendo, só o homem pergunta, porque já está vigorando no questionar, no ser. Questionar é ser tomado e já se mover nas questões. Questionar é o difícil e perigoso caminho do homem para o saber e não-saber, para o ser e o não-ser. É que nesse caminhar acontece a referencia da essência do homem ao ser, isto é, a linguagem. Por isso a essência do homem é estar sempre a caminho da linguagem. É que a linguagem fala, não o homem, o homem só fala quando responde e corresponde ao chamado e apelo da linguagem. O que aí diz responder e corresponder? Como pode haver resposta se já de antemão o homem em sua essência não estiver aberto para a fala da questão, do lógos, da linguagem da memória, da memória do ser? Não é disso que nos fala o pensador Heráclito quando na sentença 50 traz essa questão para o pensamento da escuta? “Auscultando não a mim, mas ao Lógos, é sábio reunir no dizer do mesmo: tudo um”. Na ausculta do lógos acontece a unidade das diferenças. Por que o lógos, enquanto vigorar do silencio, na fala unificante e mundificante da linguagem, é a unidade das diferenças, o tudo um? O verbo légein – de onde se forma lógos -, em sua proveniência originário, no indo-europeu articula quatro sentidos: pôr e depor, depositar, expor e propor; reunir, dando sentido ou unidade às diferenças postas e expostas.
Como falar de diferenças se elas já não se movessem no sentido da unidade? Ter unidade é mover-se no sentido. Uma justaposição de tijolos ainda não é uma casa. Eles se tornam casa quando se reúnem numa unidade: a casa. Esta como unidade é prévia aos tijolos. Prévia diz aí a abertura do homem para o sentido da unidade, do lógos. A unidade acontecendo é o sentido. O sentido acontecendo é a linguagem. Légein tem o sentido de dizer. Todo dizer diz a partir e na vigência da linguagem, da unidade, do sentido, da reunião de tudo que é posto. Linguagem só tem algo a ver com língua porque o dizer, o pronunciar uma sentença, o enunciar a palavra, o verbo, usa a articulação do órgão bucal para produzir sonoridades, a língua. Mas alguém que não fala, que é mudo, pode se mover no sentido da linguagem, no sentido da sonoridade da musica, na linguagem dos gestos na dança, na unidade de sentido do mundo das cores. Légein, enquanto pôr, reunir, dizer, mundifica. Légein é mundificar. Mundificar é pôr, reunir, dizer.
E o que o espelho tem a ver com o eu, com o auto-diálogo, com o perigoso caminho do auto-diálogo? Essas são as questões que nos colocam dois contos famosos de dois autores geniais, intitulados em ambos: “O espelho”, Machado de Assis e Guimarães Rosa. Neles o eu, para além da consciência, se põe a caminho da questão. O eu existe? Se existe, o que é o eu? Não haverá o perigo de nos pormos a caminho do eu como o não-eu, como o eu que é e que só é no abismo do não-ser? E que é o eu enquanto consciência diante do abismo do Nada? O eu não passa de um acontecer do Nada? Não nos adverte Rosa logo no início de seu conto: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” ? (Rosa: ). E se o abismo for a terceira margem, a outra margem do eu? Então o eu encontra o seu elemento: o sou do Ser? Como afirmar o eu sem o sou? Então o eu não nos advém na consciência. Onde ele nos advém? Será no auto-diálogo? O que é o auto-diálogo?
O on/sendo antes (tempo) de ser objeto da pro-posição já vigora no tempo enquanto questão. Isto diz: o on/sendo é antes de ser proposição um entre on/sendo e me-on/ não-sendo. Que entre é esse? Ele é o mesmo de einai e noein, na medida em que ele é o Nous, o vigorar do ser no noein. Como entre temporal o lógos é a quarta dimensão do tempo. O Nous, enquanto entre, é o espírito e o lógos, é o intus-legere, o entre-lógos, o diá-logo..
Se o Nous é o pensamento, o Lógos é a linguagem. Então do ponto de vista da quarta dimensão do tempo, este enquanto ser, temos que ver como se dá a referencia de pensar e linguagem. Mas não podemos ver sem tornar presente a referencia, se antes não saímos da determinação do eu enquanto agir do sujeito, entendendo aí como sujeito a razão enquanto consciência, subconsciência e inconsciente, pois aqui ainda se trata de determinar o consciente a partir da consciência como a sua negação – in-consciente -, como uma outra face da consciência, vista pelo lado da negação. Aí negar é um outro modo de afirmar, como num movimento dialético, necessária a negação como passo decisivo para a constituição do espírito. O espírito é a consciência da realidade mediada e superada pela negação e afirmação da negação na síntese. A negação é a mediação necessária da antítese para surgimento e afirmação final da síntese. A especulação atingiu aí o seu saber absoluto. De especular se forma a palavra espelho. O eu que sabe e sabe que não sabe, e que sabe que sabe e que não sabe. É nesse “e” que une, que conjunta, que vigora o especular, o espelho. O eu absoluto se torna o ser que sabe e o saber que é: o que é racional é real e o que é real é racional. Como sair deste círculo férreo da dialética do espírito, da especulação, do espelho? Não saindo, mas adentrando cada vez mais, para além e aquém da especulação, do espelho. Trata-se de pôr em questão o especular, a mediação.
Mediação é sempre o caminho entre a saída e a chegada. E se a chegada já for desde sempre a saída, se o télos já desde sempre for a arkhé em sua plenitude de realização? Então não haverá nem negação nem síntese, mas tão-somente o caminho como um pôr-se a caminho do próprio, como o caminho do lógos, como o perigoso caminho do auto, o próprio, e do lógos, como o fundar, reunir, dizer e mundificar de pensar e ser. Pôr-se a caminho é caminhar. Mas se o caminhar não for do sujeito, mas o próprio deixar acontecer do agir, do ser, do on/sendo no e a partir do ser? Caminhar é aqui agir, mas então de que agir se está falando se não for o agir do sujeito? E há um outro agir? Não é o sujeito que pratica sempre a ação? Quando assim perguntamos ainda não saímos da proposição e da gramática. Porém, a proposição é já proposição do on/sendo e do lógos. Como se dá a referencia de on/sendo e lógos? No e pelo agir. Mas então será o agir do on/sendo e não do sujeito da proposição, ou seja, daquele que fala e enuncia. Será a fala da linguagem do ser. Cabe ao sujeito para se tornar sujeito, eu, escutar a fala do sou. Escutar é deixar o vigor do silencio se tornar fala, ação. A fala enquanto ação é o télos de arkhé. Escutar é deixar o ser agir, tornando-se linguagem. Isto é pensar.
Quando não falamos sobre a consciência, mas agimos na e com a consciência, porque nem sempre tudo que fazemos, o fazemos a partir da consciência, se coloca como questão a essência do agir. Esta ultrapassa o agir da consciência, embora a maior parte de nossas ações se dêem dentro do campo da consciência, ou seja, do eu agindo no âmbito do conhecer. O eu agindo e produzindo efeitos é o que chamamos geralmente de causalidade. Mas há também um agir não causal. É o agir poético. Como este se coloca na sua referencia ao eu, compreendido enquanto consciência? O agir causal da consciência é o agir intencional, que, de alguma forma, define o agir autoral. O agir poético não é um agir da consciência nem um agir autoral, logo não é um agir intencional. Como assim?
Heidegger no início da Carta sobre o humanismo, e já vemos que vamos ter a questão do agir ligada à questão do humanismo e do humano, diz: “De há muito que ainda não se pensa, com bastante decisão a Essência do agir” (Heidegger, 1967: 23). E distingue em seguida o agir causal do agir não causal. O que este é? “A Essência do agir, no entanto, está em con-sumar. Con-sumar quer dizer: conduzir uma coisa ao sumo, à plenitude de sua Essência” (Heidegger, 1967: 24). Este é o agir não causal, pois não está dependente de um efeito, de uma finalidade, de uma intenção da consciência nem muito menos restrito ao exercício ou prática de uma função dentro de um sistema, pois toda função efeito pressupõe um sistema onde tal aconteça. Trata-se no con-sumar de um agir poético. É que todo agir poético diz respeito sempre ao que é essencial. “Por isso, em sentido próprio, só pode ser con-sumado o que já é. Ora, o que é, antes de tudo, é o Ser” (Heidegger, 1967: 24). O eu enquanto consciência se realiza enquanto um saber que sabe, ou seja, um cum-scire. E como o eu se realiza na sua referencia ao que é, ao sou do Ser, pois o que antes de tudo é é o Ser? O eu se realiza numa referencia, a re-ferencia da Essência do homem ao Ser. E em que consiste esse realizar? “O pensamento con-suma a referencia do Ser à Essência do homem. Não a produz nem a efetua”. Caso isso acontecesse seria um agir do sujeito produzindo um efeito, ou seja, um agir causal. “O pensamento apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser” (Idem, p. 24). O que nos foi entregue pelo próprio Ser é o que nos é próprio, o que cada um é. De próprio se formou em português a palavra propriedade. Esta não diz bens, mas a essência do que é próprio. Próprio se diz em grego: to autós. Bens já é uma derivação das relações do ser humano com as coisas e com os outros humanos, num agir causal.
Mas há uma diferença radical aí entre propriedades como ter e o próprio enquanto ser. Podemos ter bens, mas não podemos ser os bens. Ser só se pode ser o próprio. A nossa propriedade nos advém desde que somos o que já desde sempre somos. Nesse sentido, o que nos é próprio, o que já desde sempre somos, é o que se chama, em grego, Moira, nosso próprio, nosso quinhão do ser. A tradução tradicional para o português é destino. Este, portanto, não depende de uma ação causal, não é o resultado do agir do saber das intenções da consciência. Não é um eu da consciência e o resultado de ações causais, por isso, o que cada um é, o seu próprio, independe do meio e das influencias de ordem social ou psíquica. Esse é o eu da consciência. O eu do próprio é muito mais, é não causal, é o que somos. Con-sumar o que somos é uma tarefa poética, isto é, não causal. A poiesis consiste propriamente em apropriar-se do que é próprio, do que cada um é. A poiesis é pensamento, pois no pensamento se con-suma a referencia da Essência do homem ao Ser. No e como pensamento se dá e se restitui a referencia do Ser à Essência do homem. E como acontece a restituição, que nunca é um efeito ou a realização de algo dentro de uma relação causal? A restituição acontece enquanto uma ação da poiesis, dentro de uma ação poética. “Essa restituição consiste em que, no pensamento, o Ser se torna linguagem” (Heidegger, 1967: 24).
Agora podemos retornar à sentença III de Parmênides: “ ... pois o mesmo é pensar e ser”. A referência aqui entre pensar e ser está no mesmo. Mas agora já podemos compreender e apreender o alcance desse mesmo. Este é o agir originário da poiesis, pelo qual o pensar se desdobra numa restituição em que o ser se torrna linguagem. O pensar é o pensar do ser na e enquanto linguagem. O pensar é o pensar do mesmo na e enquanto linguagem. O mesmo, em todo on/sendo, é o ser e o ser se pensa no mesmo enquanto linguagem. O mesmo não é a mesma coisa, assim como a linguagem não é a mesma fala, o mesmo discurso, a mesma palavra, a mesma obra, a mesma época, o mesmo destino. O mesmo é o acontecer poético inaugural, porque o mesmo é o acontecer do próprio enquanto linguagem.
Assim cada eu não se dimensiona pela consciência, mas radica sempre no próprio do ser enquanto linguagem. Ora, isso é o que nos diz o espelho, se por espelho compreendermos o lugar do especular, do pensar. Lugar aí é mundo, é linguagem, é unidade, é memória. Assim no especular do espelho temos um caminho a fazer, um perigoso caminho, o do auto-diálogo. Neste, temos o caminho do próprio enquanto pensar do ser que nos é próprio. Mas o pensar do próprio e não o raciocinar da consciência é a restituição do que recebemos para con-sumar, a referencia de nossa essência ao ser. E em que consiste esta tarefa poética? E por que ela é perigosa? Porque não é um agir que nós decidimos. É um agir que acontece enquanto restituição, oferenda do que somos ao originário de nossa proveniência: o ser. Nessa oferenda se con-suma nosso destino. E se con-suma porque essa oferenda, enquanto pensamento e enquanto poiesis, se torna linguagem do Ser. “A linguagem é a Casa do Ser. Em sua habitação mora o homem” (Heidegger, 1967: 24).
O ser humano se apropria do próprio no perigoso caminho do auto-diálogo. Se auto, diz o próprio, dia-logo diz o quê? Lógos é a linguagem e linguagem do Ser, do próprio. O auto-diálogo nos joga e solicita, enquanto escuta de ação poética, a entrega à linguagem do Ser. É na e enquanto linguagem que podemos nos apropriar do que nos é próprio. Porém, há o dia-. O que este diz na e a partir do pensamento da linguagem? Dia- diz dois, enquanto dobra: o sendo do ser e o ser e pensar. O pensamento não se torna consciência. No pensamento, o Ser se torna linguagem: lógos. Diá- diz ainda o entre, a dobra. O espelho é um caminho, o caminho da linguagem, mas pode-se tornar um descaminho, onde não aconteça o auto-diálogo, mas a aventura perigosa do desvio da consciência, do agir causal, da representação, da fuga do destino, onde o conhecer não realize o ser, mas se queira dar um ser pelo e no conhecer. Então o dia- pode-se tornar o espelho enquanto o através de, onde este se torne instrumento da consciência, da afirmação do conhecer e exercício da liberdade enquanto vontade especulativa, de afirmação do sujeito e construção da realidade, em que se escreve a história e esta se prescreve como a realidade futura, o eu da consciência histórica e social. A identidade do eu enquanto ação da consciência histórica. Perigo diz limite. Todo caminho caminha entre os limites e as formas. As formas da consciência podem tornar-se o perigo sempre perigoso da consciência do eu e do eu da consciência. Será então o eu da consciência enquanto representação histórica. Para evitar este perigo é que se coloca a questão do espelho enquanto caminho. Um caminho que pode ser da consciência ou um caminho da linguagem, o caminho do silencio da terceira margem.

21 agosto 2009

Originário e época: o círculo poético

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Trata-se da questão da relação do círculo com a dobra, onde vamos ter a época. Todo método se funda no círculo poético da época. Diz Cláudio Hummes: “Quando no início da metafísica eu pergunto sobre o seu ponto de partida, eu já sei – como condição de possibilidade de perguntar – qual é o sentido de uma pergunta, como a pergunta se diferencia de uma resposta; já sei algo sobre o que é um conceito, pois é ele quem dá conteúdo à minha pergunta; já sei algo sobre a lei da contradição, pela qual a pergunta recebe um sentido uniforme para todos os que me ouvem; já sei algo sobre a relação entre linguagem e expressão do conteúdo de minha pergunta etc.; quer dizer, já sei implicitamente muitas coisas da lógica, sem nunca tê-la estudado sistematicamente” (Hummes: 8).
Disse João Pinto Moraes: “Nosso coração é uma terra que ninguém habita”. Podemos fazer a glosa: O coração do homem é terra que ninguém habita. Ou ainda: O coração do homem é linguagem que ninguém fala. Ou ainda: O coração do homem é fala que ninguém escuta. E por isso não cabe na compreensão, na lógica do mostrar-se e demonstrar-se. É que aí habitar é muito mais do que ocupar um espaço num tempo. Habitar é fundar lugar, a tensão de coração e habitação, é tornar-se o originário do coração. E o coração como originário faz do ser o noein e do noein o ser, que é o coração vigorando como terra e habitação, assim como o noein é o vigorar do ser.
O ser, que é o coração, nenhum eu pode habitá-lo, só abismalmente o próprio sou do eu. Por isso, o eu se defronta com o abismo do sou no que o eu é. O eu pode ser uma ilusão, o sou jamais. O coração é muito mais do que a compreensão, pois também abriga e se torna a não-compreensão, não como simples negação, mas como o não-limite de todo limite, como o inacessível de todo acolhimento e da proximidade de toda distancia. O coração é muito mais do que a compreensão porque é fonte de toda compreensão, assim como o silêncio é a fonte de toda fala. O coração nunca se pode tornar um conceito. Ele, ao ser “terra que ninguém habita”, é a concretização da questão, em que o mistério se dá como presença. A questão é algo que nos tem e jamais pode ser reduzida a conceitos.
O sou do eu nunca pode ser ocupado por qualquer outro sou. Caso isso acontecesse algum sou seria anulado, deixaria de ser, porque todo sou é único e abismalmente solitário. A solidão do eu é o sou, na medida em que todo sou é sou do ser. Só por sermos é que somos solitários. Mas é uma solidão que acolhe e plenifica quando o ser torna-se para nós o sou. Nessa solidão, o outro só pode ser acolhido amorosamente como o não-eu do eu, como o não-sou do sou, mas jamais se pode tornar outro sou que não o que ele é, ou seja, ser ocupado e habitado pelo que não é. O coração viverá como terra que ninguém habita, a solidão de só poder ser o que ele mesmo não-é. E é deste não-ser que haure o vigor de ser coração e poder viver sem ser possível qualquer coração-habitação que tenha outro habitante que não o que ele é. O amado será um inquilino como o próximo, ainda que sempre como o mais próximo. Este é o paradoxo do amar, só vigorar na proximidade, mas isto não é uma questão de individualismo e isolamento. É a nossa condição de jamais podermos ser senão o ser que somos e só como proximidade podermos ser o amado.
A proximidade não é negativa, mas a possibilidade máxima de poder afirmar no amar a diferença que é o amado. Amar não é anular, mas afirmar originariamente aquele que sendo me é o mais próximo. Só assim podemos co-habitar na proximidade do coração. Amar é co-habitar o coração. A proximidade é mais do que compreender o outro, é aceitá-lo como o que é e não pode deixar de ser. Paradoxalmente o coração não é apenas receptivo, mas tende à apropriação, confundindo muitas vezes o que é próprio com tudo que é. E assim tender a se apropriar de tudo que se deixa apropriar, mesmo que este apropriar seja tomar posse do coração do amado, não deixando que o amado seja o amado, mas o que já não é nem pode ser, por ser propriedade do coração que pretensamente se tornou o habitante do coração do amado. E em algum momento chegará a hora da verdade: “Nosso coração é terra que ninguém habita”.
Nessa afirmação está toda a lógica e não-lógica, ou seja, a causalidade do que se diz e do que eu compreendo quando se diz. Porém, ao mesmo tempo, está o que não cabe na lógica, isso que no coração não é habitável. Esse coração que ninguém habita é como o silêncio impenetrável e jamais redutível a qualquer fala ou gesto, é como o eu irredutível naquilo que o eu é, isto é, o eu que eu sou, mas igualmente o sou que o outro é. Esse coração que ninguém habita é o abismo da solidão e o não-limite do limite da lógica e da própria compreensão.
No limite, apreender o não-limite é que constitui propriamente o método poético. O fazer poético da obra de arte. Por isso, à arte vai corresponder o pensamento. Tanto no pensamento como no poético vamos ter sempre uma dobra que se desdobra arrastando consigo a causalidade para a não-causalidade, que funda toda causalidade, ou seja, é a questão indo além e aquém do conceito. Quando se pergunta e se dá uma resposta, esta só pode vir como resposta porque já está dentro da pergunta e por isso mesmo não esgota o poder de perguntar da pergunta, como um rio que perdesse o contato com sua fonte ao se constituir numa corrente. Até onde o arkhé/arkhonte é um retorno à fonte no seu chegar ao mar (arkhé significa princípio, o arkhonte, o príncipe, o que comanda e está sempre à frente)? Há retorno aí? Não é aqui que surge a dobra da arkhé da correnteza do rio se tornar pleno e realizado como rio em sua chegada ao mar? E onde a chegada não significa ter atingido qualquer finalidade causal, mas simplesmente ser sem porquê, ter reencontrado ao final o seu elemento, (uma chegada como a da vida à morte), não o fim, um fim que não é fim como finalidade, mas a reentrada no seu elemento, o elemento que alimenta a fonte de onde o rio se originou e o acompanhou em sua caminhada. No mar o rio se dissolve ou se reencontra com sua origem que nunca o abandonou como o originário que não cessava de originá-lo? A questão é a fonte que alimenta o rio da pergunta e a trajetória da resposta como conceito.
Na questão que gera a pergunta, a resposta não é algo externo ao que na pergunta se pergunta nem efeito de uma causa. O originário, a fonte, é o Mesmo, mas não é a mesma coisa da resposta, daí que seja necessário retornar à resposta para pensar nela o originário, para pensar nela o não-pensado, e, pensando, dar nova resposta. Não é um retornar que reinicie a caminhada do já percorrido, do já respondido, mas é um retornar ao originário que nunca deixou de vigorar na resposta, por isso mesmo nenhuma resposta esgota o que a origina, apenas houve um desdobrar que não cessa de se desdobrar. Acontece como disse Heráclito: nunca entramos duas vezes no mesmo rio. Na realidade, entramos e não entramos duas vezes no mesmo rio, isto é, entramos duas vezes e mais e sempre no originário do rio, mas como nossa condição é o limite do não limite, como limite não entramos nunca duas vezes no mesmo rio que não cessa de fluir e de tornar o limite não-limite, em que o originário não cessa de originar.
É este o círculo poético. Neste, cada resposta é a obra, ou seja, o que como arte se faz presente e vigora na obra, que é ao mesmo tempo o mesmo e não é a mesma coisa. Esse mesmo jamais pode ser um conceito, uma teoria, um suporte. É o próprio mistério do vigorar da arte na obra de arte. Eis o motivo porque a arte é um enigma e qualquer teoria-sistema uma nescidade. Assim podemos dizer que as respostas à pergunta da questão é que constituem as épocas, mas não é nas suas formas que vamos compreender e apreender a questão que as origina e as faz vigorar Será nas suas formas, como o pensado, que vamos tornar a pensar o não-pensado, a nos abrirmos em escuta do vigorar do mesmo. Prender-se às formas e classificá-las é perder o essencial, puro formalismo causal. Ler dialogando com as obras é estar sempre pensando no pensado o não-pensado.
A época é o que se dando como resposta se suspende, isto é, se retrai como o não-pensado da pergunta originada na questão do questionar. Este é o vigorar da questão. Época como suspensão é o vigorar do que se dá, fundamenta e se presenteia retraindo-se. O que se faz presente traz em si o vigorar da ausência como o próprio vigor do que se dá e está presente. Só podemos pensar uma sucessão de épocas se ficarmos presos às formas da resposta como o pensado, o criado, vendo nelas uma sucessão causal, formal. E será pior ainda se reunirmos as obras em suas diferenças numa uniformidade formal. Época não é jamais reunião de formas sem diferenças e vigor poético.
Mas se notarmos bem, o que na questão nos move e promove como ausculta não é a resposta, mas o que na resposta se retrai e nos atrai: o não-pensado e o não-criado, ou seja, o originário, que não cessa de nos mover como a fonte move o rio, como a morte move a vida. Porque não é só a vida que não cessa de fluir, nela e com ela fluímos sempre em contínuo processo. O não-pensado e não-criado e não ex-perienciado é a terra não-habitada do coração, que é a linguagem das línguas. As épocas configuram a realidade como mundo, mas este, como resposta, é motivo para tornar à questão, isto é, para nos abrirmos para a ausculta do que na resposta da questão não foi habitado, pois se tornou língua da linguagem, limite do não-limite. Só assim somos o que somos como diferenças e não-limite. Coração sem habitante.

Bibliografia

HUMMES, Cláudio. Metafísica. Mimeo, 1964.
João Pinto de Moraes é um homem simples, com primário, 84 anos, pai de minha esposa, Elenice. Sentença ouvida por ela e guardada com o desvelo de filha.

31 julho 2009

Estética: liberdade e necessidade



Toda Estética vigora na e a partir da essência do agir. Porém a essência do agir é um enigma que se dá, com certeza, numa dobra. O trágico do ser humano é que faz da dobra um duplo e assim acha que pode determinar a essência do agir pelo seu querer, manifesto na sua vontade. Sem o poder do não-querer, o destino, não há a vontade de poder querer. A essência da Poética é a essência do agir enquanto dobra: o vigorar óriginário de todo sendo do ser. A essência da Estética é a essência do agir enquanto duplo: fundamento e fundado, sujeito e fruição estética do objeto. A Estética é a astúcia da razão humana de achar que pode ultrapassar o fundamento racional pela racionalização do sentir. Seja no sentir, seja no raciocinar, ainda se move na causalidade, que é sempre medida lógica, isto é, racional, causal. O que é isto a causalidade?
Não se pode pensar a essência do agir poético, o da dobra, esse agir em que consiste nosso viver permanente e de todo instante, sem pensar a essência da necessidade, da possibilidade e da verdade. Só assim se pensa a dobra e não o duplo, só assim se pensa a liberdade originária. “Viver é nascer, crescer, amadurecer e morrer a todo instante. Vivendo, os homens vão experienciando a paixão de viver e aprendendo com esta experienciação. Pensar é a disciplina, a ascese e o ordenamento desta paixão” (Leão, 1997: 145). No e com o pensar o agir poético se torna ético. Não se pode pensar a essência do agir pelo sentir do agir, tantas vezes confundido com o sentir da agitação, seja dos sentidos, seja da razão. Aqui está todo o equívoco da Estética: achar que pode fundar o querer sentir no querer da vontade, ou seja, do sujeito, entendido desde Descartes, Kant, Hegel e Nietsche, depois, os epígonos como fundamento. Daí que toda a subjetividade se fundamenta na causalidade. Quem põe em questão a causalidade é Heidegger. Mas para compreendê-lo é necessário abrir-se para o pensar e acompanhar com ele toda a trajetórica causal da filosofia ocidental. Com Hölderlin ele retoma a não-causalidade como o destino. Daí a famosa afirmação de Hölderlin: "Apolo me feriu". Depois a loucura, como para Édipo a cegueira. A essência do agir causal é que fundamenta a Estética. A essência do agir não-causal funda a Poética. Fundar não é fundamentar.
Quando duvido só posso duvidar porque ajo a partir do radicar na essência do agir enquanto o não-querer de todo querer. Todo duvidar radica na essência do agir. Só deixamos de agir quando um outro agir nos toma e do qual nada podemos falar. Para agir essencialmente não basta viver, é necessário ser o que se vive e age. Portanto, trata-se sempre de pro-curar a essência do agir. Não é algo que podemos fazer ou não. É uma necessidade, mesmo que a ignoremos, pois em toda de-cisão já estamos previamente de-cidindo a partir da essência do agir como necessidade. Ser livre é abrir-se para a essência originária do agir, do ético-poético, do pensar. E isto inclui o que nos parece mais livre: a vontade de nosso querer. Eis porque pensar a essência do agir é pensar necessariamente a essência da necessidade e da liberdade. Não basta seguir os impulsos do querer da vontade. Só somos verdadeiramente sendo a partir de e com a essência originária: é a nossa necessidade essencial.
Mas justamente todas estas questões já se movem (essência da ação) na questão da linguagem (essência do sentido, da verdade e do ético). Somos livres para falar, mas não somos livres diante da linguagem, a partir da qual e só a partir da qual necessariamente é que podemos querer e falar. Há, pois, uma liberdade do querer ou não querer falar, mas esta liberdade radica na necessidade de sempre querermos a partir da linguagem como necessidade, mesmo quando queremos não querer. Não podemos limitar a linguagem à fala, pois ficar em silêncio é já radicar na máxima potencialidade da linguagem de todo sentido e fala. Ficar em silêncio é recolher-se ao ser do silêncio, de onde surge a compreensão, radicada, portanto, numa abertura de pré-compreensão, advinda no pensar do ser. Há, portanto, uma liberdade do querer ou do não querer falar, mas esta liberdade radica (originariamente) na necessidade de sempre querermos a partir da linguagem como necessidade. O poder inerente a toda liberdade radica num poder mais radical inerente ao que é o poder do poder falar, ou seja, da linguagem. O poder é a fonte do querer como possibilidades. Por outro lado, o querer é já desde sempre o vigorar do poder. Por ser o vigorar é que podemos sempre questionar. Mas só podemos questionar porque já estamos vigorando desde sempre nas questões assim como estamos já necessariamente vigorando na linguagem. O poder da linguagem é o poder do questionar: o vigorar das questões. Essa necessidade é que funda a liberdade em que já podemos querer e assim exercer nossa vontade, a que chamamos nosso livre exercício do agir, nossa liberdade. Esta, portanto, se origina da liberdade essencial, isto é, da liberdade que se funda na essência do agir. Este fundar-se é a necessidade essencial.
Ruy Castro, no jornal Folha de São Paulo, do dia 29-07-09, p. 2, trata dos viciados em crack, numa pequena crônica intitulada: Dependência e morte. No agir dos viciados se trata sempre da essência do agir, da essência da liberdade, da essência da necessidade, da essência da verdade e do agir ético. A contradição da liberdade, da essência do agir, manifesta-se num poder aparente, que aparece muito bem na situação (que exige já e desde sempre uma de-cisão sobre a essência do agir) que ele descreve: “Os dependentes (de crack) – surpreendidos pelos agentes sociais – não querem ir para o albergue porque sabem que lá não há crack e, para eles, ficou im-possível (grifo meu) viver sem crack. Na verdade o im-possível é viver com crack...”. A dobra de liberdade e necessidade fica bem clara aí no duplo emprego da palavra im-possibilidade (um emprego que radica na e a partir da linguagem e não a partir de uma semântica, pois aqui não se trata de uma situação semântica e formal. Nela se decide a essência do agir e da liberdade. Eis os limites da gramática e suas divisões, e da retórica). Note-se como o poder do querer e o poder do não-querer aparecem aí de uma maneira ambígua e essencial. O poder das possibilidades está contraposto duplamente e num des-dobramento, através da dupla negativa, que ora diz uma coisa ora diz outra totalmente oposta. A palavra é a mesma, mas o poder da linguagem é aí o poder da própria realidade, verdade e necessidade. É que o in/não de im-possibilidade radica no nada. Se esta palavra assusta, digamos, no poder do silêncio. Este tanto é positivo como é negativo, como fica bem claro no exemplo concreto e irrefutável do escritor, porque aqui querer refutar essa realidade é uma nescidade. Ambos os im-possíveis radicam no mesmo. Esse mesmo, sendo como é radical, radica no dobra e tensão de vida e morte. O viver me dá a aparente (porque aí aparece) liberdade do querer da vontade. O limite de tal liberdade (limite necessário) se encontra diante de algo que é mais radical: o morrer. Daí o título preciso: Dependência e morte. E esta é, para o querer, a im-possibilidade de todas as possibilidades. O paradoxo real e não apenas formal ou semântico e retórico da liberdade da vontade fica evidente e irrefutável: “...impossível viver sem crack”. Usando o crack, o viciado para viver mais e continuar esteticamente gozando o viver (eis os limites da estética) usa sua livre vontade. Para tal é “...impossível viver sem crack”. O impossível aparece, se dá como necessidade, mas como é ligado ao viver, parece e aparece como uma liberdade da vontade, da estética.
Porém, a morte irá nulificar tal vontade, tal querer estético, porque aquela não está escolhendo livremente viver. Estará necessariamente negando a vida e a liberdade que ela oferece para se lançar no fato de que “...impossível é viver com crack”. A liberdade em sua essência é negada porque o que seria ato livre se torna um fato irreversível, necessário. Quando o fato precede e determina o ato, deixa de haver liberdade essencial, deixa de haver a essência do agir. Há, portanto, o agir dos fatos e o agir dos atos. Que temos que falar é um fato, que podemos falar é um ato. Em todo ato de fala quem vigora sempre é a linguagem, falemos em que língua (fato) falemos. Quando nos recolhemos à linguagem do silêncio, podemos estar querendo negar alguma fala, mas esta fala não provém de nosso poder, mas do poder que o silêncio enquanto linguagem, já tem e diz. Tanto que podemos deixar o silêncio falar em muitas outras situações, em muitos outros atos: o silêncio dos inocentes, o silêncio dos condenados. Se não fosse o poder do silêncio nossos atos não teriam sentido. Todo ato e fato provêm da essência do agir. E como podemos deixar o silêncio falar em muitos e diferentes atos, isso diz que não estamos presos a fatos, como é o caso do viciado em crack. Ele não tem escolha, pois lhe é “...impossível viver sem crack”.
Ao resistir ao crack e à vontade estética de querê-lo como algo necessário, tal necessidade de resistir e de renúncia é que é a verdadeira liberdade e essência do agir. E assim é que na renúncia como liberdade necessária é que se dá a essência do agir. A renúncia não tira, dá. Aqui está o limite e contradição de toda estética. Pois na essência do agir o que decide não é o querer da vontade, uma vez que a essência do agir é o agir, não a partir da vontade, mas do agir da essência. Essência é o vigorar do que é em tudo que é. Este tem seu agir no vigorar do ser e não no agir do sujeito, pois o que o “eu” é é determinado pelo ser e não pelo “eu”. Quando digo “eu sou”, o alcance desse “eu” está na estrita dependência e determinação necessária do “sou”. Até para dizer “eu não sou”, só sendo o não-ser é que o “eu” pode se afirmar como é o que não-é. Ser é a necessidade essencial de todo “eu” (de todo sendo). Quando o “eu” se dimensiona pelo ser, então, o “eu” é e, sendo, é livre, porque ser é a essência da liberdade, da ação. A essência é o vigorar do ser.
Como se vê, há sempre uma dupla necessidade, uma dupla possibilidade, uma dupla liberdade. Porém, esta “dupla” existência real, onde todo ficcional poético (“O poeta é um fingidor” Pessoa, em “Autopsicografia”) encontra seu fundar, nos lança sempre na dobra de verdade e não verdade. Se considerarmos que vivencialmente a não-verdade se dá sempre como errância, mesmo quando temos como horizonte a essência do agir, ela deixará de vigorar na dobra, quando em lugar da errância a substituímos pelo erro e, assim, criamos uma oposição à verdade como ideia absoluta (inerente a todo sistema, seja ele qual for e em que época for), que não leve em consideração a errância ou existência que sempre vigora na dobra de verdade e de não-verdade. Não podemos julgar a verdade e não-verdade por um critério de verdade prévio, pois se assim for, estaremos vigorando e agindo de acordo com fatos prévios e não estaremos deixando vigorar o agir, o agir ser. Ele sempre se dá na dobra de não-verdade e verdade e só no agir é que podemos distinguir e julgar (krinein como criticar distinguindo, discernindo) o alcance da errância como verdade e não-verdade. Então a duplicidade se move sempre numa oposição e dicotomia que tanto pode acentuar, ou a ideia absoluta como modelo prévio do agir, ou a finita contingência de nossas escolhas, como é o caso do usuário de crack (e de todas as drogas, inclusive as estéticas ditas belas e sempre agradáveis, pois toda estesia pode ser o caminho mais rápido para a anestesia). A estesia tem sua medida no ético-poético e não no estético. A dicotomia não leva em consideração a proveniência e vigência da necessidade, da possibilidade e da verdade. Não leva em consideração a linguagem de toda língua, no sendo, o sentido do ser, este a necessidade essencial do agir. Só na dobra vigorante em todo ato, o sentido do ser como sentido da linguagem se torna tanto mais poético quanto mais ético. Sendo o poético-ético o vigorar do ser ao dar-se como linguagem. Neste sentido, estamos poeticamente sempre a caminho da linguagem. E, portanto, tal caminho será tanto mais ético quanto mais poético. Caminho diz, portanto, o agir a partir do sentido da linguagem como sentido do ser. Sentido em seu sentido constitutivo diz o caminho originário de onde se parte e aonde já desde sempre se chega. O caminho enquanto sentido é o destino, nosso destino. Enquanto caminho de necessidade e liberdade nosso destino, isto é, para o quê já desde sempre estamos destinados é o apropriar-nos do que nos é próprio: o que somos. Ser é verbo e não uma substância prévia, daí que apropriarmo-nos do que nos é próprio é sempre um eclodir no e pelo agir. Nesse sentido, destino é um consumar, um eclodir enquanto realização de plenitude. A plenitude acontece enquanto o pensar, que é a ascese da paixão de viver. A plenitude incorpora toda possível estesia na paixão do consumar, isto é, do levar ao sumo, onde razão, paixão e sentir são um e o mesmo. Os gregos chamaram a esta realização de plenitude télos. Télos é, portanto, não apenas todo agir causal, mas o levar à plenitude o que se é. O agir enquanto essência não é um agir enquanto meio para chegar a um fim (télos) dependente da causalidade. Enquanto télos, todo agir já se realiza enquanto o vigorar do que nos é próprio, nosso destino, não havendo, portanto, uma duplicidade entre o agir e o télos, entre o meio e o fim (télos). É na plenitude de ser que se ultrapassa toda causalidade. A causalidade não pode ter o fim em si, deve nos doar a confiabilidade do viver. Em todo ato o vigorar já vigora em sua plenitude, mas como esta não é um fim, mas uma consumação, a essência do agir tem sua medida no agir da essência, daquilo de quem recebemos nosso destino: o ser. Ser é verbo, o vigorar de todo agir. Ser então é a necessidade necessária.
Tudo isto diz que viver, mais do que deixar correr a vida e se deixar levar num querer da vontade, se torna uma tarefa poética incessante (tautologia), onde a dobra se desdobra e o homem se torna humano. É o pensar como experienciação da paixão de viver. Por isso, já nos disse Caeiro que pensar é amar. Em nada disto consiste a Estética, limitada à necessidade da causalidade. A estética não funda é fundada pela Poética, porque a Poética radica na essência do agir, é a essência do agir. É também o que Rosa considera ser a travessia – uma tarefa poética. Esta se dá no entre de nada e tudo. Dando-se no “entre”, toda nossa tarefa poética enquanto vigorar da necessidade, da liberdade e da verdade, consiste num acontecer poético onde no ordinário se dá o extra-ordinário: “Ethos anthropou daimon: a morada do homem, o extra-ordinário”. Heráclito, sentença 119.
Se é impossível viver sem crack e é impossível viver com crack, para o viciado, podemos agora dizer: Se é impossível viver só com o ordinário é porque é impossível viver sem o extra-ordinário. Eis aqui a liberdade e necessidade essencial. O ordinário da estética não me dá jamais o extra-ordinário do ético-poético, da liberdade e da necessidade essencial do agir. A Estética não passa de uma modalidade da causalidade subjetiva, em que se fundamenta a vontade de quem se lança nas vivências subjetivas, dando a impressão falsa de uma liberdade que responde e corresponde à necessidade de ser.
Em poética não basta conhecer. É necessário ser o que se conhece. Ser o que se conhece é apropriar-se do que é próprio. Este próprio é o que recebemos como destino, a Moira dos gregos.
Em poética não basta sentir. É necessário ser o que se sente.
Ser o próprio que se é, eis a essência do agir.

Bibliografia

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Definições de filosofia. In: Rev. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 130 / 131: 145, jul.-dez.,1997.

30 julho 2009

Entrevista sobre o livro: Arte, corpo, mundo e terra


Eis as minhas respostas à entrevista feita pelo jornalista Bruno Franco, do Jornal da UFRJ / Coordcom, a propósito do livro que organizei e foi publicado pela Editora 7letras: Arte: corpo, mundo e terra.
Olá professor Manuel.

A Coordenadoria de Comunicação da UFRJ gostaria de divulgar o livro Arte: Corpo, Mundo e Terra, editado pelo senhor, no seu boletim eletrônico Olhar Virtual, na seção Entrelinhas. Para tal, o senhor poderia nos responder a algumas perguntas?


Qual a proposta do livro Arte: Corpo, Mundo e Terra?

Fundamentalmente são duas. Primeira, fazer um exercício concreto de interdisciplinaridade. Para isso foram convidados diferentes professores de diferentes disciplinas. Isso poderá ser visto facilmente pelo índice temático. Essa é a proposta central da POÉTICA: ela congrega todas as manifestações artísticas, sendo, portanto, uma POÉTICA ORIGINÁRIA, onde se reúne e une poesia e pensamento. A POÉTICA nada tem a ver com normas e gêneros como modelos a priori. A segunda diz respeito a algo mais profundo ainda: mostrar que a arte está muito além do modo sofístico, retórico e metafísico de a entender e de classificar as obras de arte. Obra de arte não é organismo formal ou ideológico. Obra de arte é um corpo vivo. E como corpo vivo manifesta a vida enquanto terra e mundo. É o modo diferente e originário de compreender a arte. Esse é o grande desafio da POÉTICA.

O que motivou a escolha de corpo, mundo e terra como focos temáticos para os ensaios?

Esta pergunta já foi um pouco tematizada na resposta anterior. Acrescentaria que o emprego aí de terra nada tem a ver com o conceito de planeta. Isso pode ser visto bem quando é tratada a ecologia, melhor, a poético-ecologia. A ecologia não diz respeito como é normalmente divulgado à natureza. A oposição de natureza e pólis tem origem na paideia sofista e foi continuada pelo movimento da modernidade como a oposição de natureza e cultura. Isso gerou uma compreensão da natureza muito superficial. Quando, por exemplo, se fala da natureza do processo político, da natureza humana, nota-se facilmente como o sentido banal de natureza não dá conta desses sentidos. É que natureza é algo diretamente ligado à essência do ser homem. Daí ser impossível pensar a ecologia sem pensar a essência do homem. E a essência do homem é a linguagem. E a linguagem é mundo. Ora, as obras de arte é que manifestam o próprio do homem: a linguagem, isto é, mundo. Nesse sentido, a essência da pólis é a promoção e realização do próprio dos cidadãos, isto é, é a tarefa essencial da pólis. A essência da polis é a essência do diálogo, porque todos somos reunidos pelo lógos. Daí a essência da polis e sua tarefa primordial ser: a de educar o ser humano, todo ser humano. Educar diz aí o que a palavra desde a sua origem latina diz: conduzir para fora, para a manifestação o que cada um já traz dentro de si como próprio. Portanto, a arte é essencialmente essa promoção. Logo, ela é essencialmente uma tarefa política, ecológica, ética e poética. Mas infelizmente o político ficou muito limitado ao jogo do poder como ideologia. Originariamente, o político é mais radical, é mais complexo. Por isso, nenhum sistema dá conta das tarefas essenciais do que é o político como educação do ser humano para o que lhe é próprio.

Há um viés heideggeriano na obra?

A pergunta é oportuna. Uma das tarefas inovadoras da POÉTICA é também proclamar que não há autor sem obras. E, portanto, o que interessa são as obras. Agora imagine que as obras são alimentos. Cada um que as lê se nutre das reflexões que desenvolvem e contêm. Esse é o alimento que nutre o ser humano enquanto linguagem, pois somos essencialmente diálogo. Quando nos alimentamos não nos alimentamos de adjetivos: heideggeriano, junguiano, marxista, hegeliano, cartesiano, kantiano etc. etc. Alimentamo-nos das questões cultivadas, chocadas nas obras. Essa alimentação faz eclodir, aparecer, o corpo no que ele tem de PRÓPRIO. Seu corpo metaboliza o que come para manifestar o que é próprio de cada corpo. O mesmo acontece com a leitura das questões das obras. Cada leitor deve fazer uma metabolização, senão será algo que ele não é. E a alimentação tem que ser boa, que alimente mesmo. O ser humano para ser o que lhe é próprio tem que se mover e alimentar de QUESTÕES. Só com as questões é que crescemos e acabamos por nos apropriar do que nos é próprio. Quem mais, e todo mundo reconhece isso, pôs em questão as questões essenciais do ser humano em todos as suas dimensões no século vinte, foi Heidegger. A título de exemplo, veja a questão da técnica. E os jovens são naturalmente questionadores. E só o questionamento renova os lugares-comuns e os "ismos". Qualquer "ismo" ou adjetivo é a negação do questionamento. Mas não se pode questionar com as palavras dos outros. É necessário apropriar-se como se fosse um alimento desses pensamentos e metabolizá-los, para que cada um manifeste o que lhe é próprio. Para isso é necessário questionar e dialogar. Todo grande autor e criador é um questionador. E é das obras deles que gosto de me alimentar. Além de Heidegger, citaria Platão e, no Brasil, o grande pensador-poeta: JOÃO GUIMARÃES ROSA. Este frequenta muito mais meus ensaios do que o próprio Heidegger, isto é, suas obras me provocam tanto ou mais do que o próprio Heidegger. Mas o uso de qualquer adjetivo para classificar alguém é sempre IMPRÓPRIO (só se a pessoa for alienada e pseudo-cópia de alguém). Todo grande autor quer fazer de seus leitores pessoas que pensem e jamais sejam cópia do que eles dizem. Eis o que diz Rosa em Grande sertão: veredas:
“Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém...”
(Rosa, 1968: 347)
Como vê o próprio Rosa aconselha que jamais sejamos: heideggerianos, marxistas, kantianos, platônicos etc. não pode nem convém. Seria a mais radical e mortal alienação.

A arte seria capaz de trazer a alétheia, a revelação do Ser, enquanto manifestação das múltiplas presenças do Divino?

Os gregos tinham duas palavras fundamentais para VIDA: ZOÉ E BÍOS. Bíos é cada ser vivo. E zoé é o vigor vital que possibilita cada ser vivo. Não vivemos sem a zoé, mas esta não se extingue quando um ser vivo deixa de viver, ou como belamente disse Rosa, desvive. Porém, a zoé não está nunca separada de cada ser vivo, de todos os seres vivos. Cada bíos, cada ser vivo, vive no e a partir da zoé. Zoé é o Ser e cada ser vivo é um sendo. Porém, nem todo ser vivo fala da zoé, do próprio ser vivo. Falar de é já se mover na linguagem. E mover-se na linguagem é todo aparecer como mundo e sentido. Mundo é a vida enquanto sentido. E isto é o Ser. A manifestação da zoé em cada ser vivo, ou seja, do seu sentido, é que constitui o que chamamos de artístico (corpo, terra e mundo). A manifestação da zoé em cada ser vivo é o que os gregos chamaram de alétheia. Ela é a verdade porque essa manifestação se torna linguagem e sentido, ou seja, terra e mundo, realidade. E isso é que é arte. Arte nada tem a ver com forma estética ou ideológica. Isso é formalismo sofístico e retórico que diz respeito aos utensílios. Os gregos chamavam ao vigor de manifestação, em diferentes e múltiplos e riquíssimos seres vivos, de presença e manifestação do divino, ou seja, de theoi. As manifestações do sagrado, isto é, da zoé, se dão de muitas maneiras: são "theoi", isto é, deuses. Não é que haja muitos deuses, mas que há muitos modos e maneiras de o sagrado se manifestar. Não é sagrada e divina a riqueza das vidas e da vida? O sentido do sagrado é manifestado nas obras de arte. Isso é que os gregos chamavam de alétheia. Mas ele também se pode manifestar nos mitos, nas obra de pensamento, nas diversas religiões. A vida em toda a sua riqueza não é um mistério? Quem o nega? Não o simples e complexo ato de viver, mas o seu sentido. Isso é o sagrado, o divino. Isso é o Ser se manifestando. Algum bíos esgota a vida? Algum sendo esgota o Ser? Então o grande mistério consiste num fato muito simples: tanto mais a vida se manifesta em múltiplos e incontáveis "bioi", tanto mais a vida se retrai e vela em seu poder de sempre vigorar em novas vidas. A a-létheia diz, portanto, a manifestação que tanto mais se manifesta quanto mais se vela. E isso é que permite que a vida/zoé seja inesgotável e indecifrável, numa palavra, algo divino. Por isso, toda obra de arte resiste a todas as interpretações e ao tempo cronológico. Ela é memória do tempo, da vida, do ser, de zoé. É que nela vigora a zoé, o divino, o sagrado. Mas é pela zoé que continuamos vivos. Arte é vida, é zoé, um vigor que não cessa nunca de vigorar e fazer acontecer a história e a vida.

Como a poesia pode retomar o seu papel no desafio de decifrar os mistérios do mundo?

Só a razão e os conceitos querem decifrar algo. Decifrar é achar uma regra, uma lei em que tudo fique previsto como causalidade e função. Achar as leis da natureza e da vida, eis a pretensão da razão. É util esse esforço, mas não é tudo, porque a vida e a natureza não se reduzem a causalidade e funções. Já pensou se todos nós fôssemos reduzidos a funções. Estas são necessárias e importantes, mas não são tudo. Vivam as diferenças!!! Viva o insólito, a beleza, o impossível, o inesperado, a pura amizade, a doação sem porquê do amor. Por isso mesmo o saber causal e funcional é um deciframento muito volátil e passageiro. Qual o conceito que decifra o que é a vida/zoé? A poesia não quer, nunca quis decifrar nada. Pelo contrário, quer deixar o nada vigorar. Guimarães Rosa no conto "O espelho" diz: "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo". Aí o sujeito (se de sujeito se pudesse falar) do verbo acontecer é o NADA. A arte nos joga no NADA ACONTECENDO, isto é, a zoé sendo em cada ser vivente, em cada bíos. O perigo está em vivermos a vida apenas no nível do bíos como função, esquecendo o que é essencial e é a fonte de toda a vida: zoé, o ser, o sagrado, o milagre, no dizer do pensador-poeta: Rosa. Eis aí o mistério e os mistérios do mundo. É algo de onde não pára de nascer o novo e o diferente e o que está para além de qualquer função e causalidade. O mistério é por isso mesmo a essência da felicidade, porque só a zoé pode dar a plenitude da vida.

Em que medida realizar o corpo seria realizar o ser humano?

Corpo não é organismo. Corpo não é matéria oposta a alma e a espírito (razão). Corpo é o humano se realizando. O que é então o humano? O humano é a vida (bíos)/sendo se dimensionando pela zoé/ser.O humano é a essência do que é próprio a todo ser humano. E o que lhe é próprio é a zoé/ser. Por isso, cada obra de arte verdadeira é um corpo-vivo. Quem insiste nesta questão da arte como corpo vivo é Platão no diálogo FEDRO, que trata da essência do humano ligado ao amor e ao sagrado. Mas a grande questão de Rosa também é o humano do homem. Realizar esse humano é fazer a travessia.

A Terra tem menos a ver com os seus recursos materiais e tangíveis do que com o lirismo transporto em uma obra de arte?

A leitura da terra como dispositivo de recursos naturais é uma leitura da sofística retórica e metafísica, encarnada na ciência moderna como império da técnica e da causalidade. Por isso, esta não fala apenas da terra como recursos naturais, também reduz o humano, no que lhe é próprio, a meros recursos humanos. Veja, tudo se torna recurso. Recurso é algo que pode exercer alguma função dentro de um sistema causal. E todo sistema é causal. O humano poder ter diferentes funções. É importante e faz parte de sua essência esse poder ser, mas reduzi-lo a FUNÇÕES é negar o que há de mais próprio no ser humano: sua liberdade não-funcional nem causal. Por isso, o humano só é essencialmente político quando se realiza em todas as suas potencialidades e não fica reduzido a funções técnicas e ideológicas. Nisso a educação, e mais ainda a universidade, está falhando. Lirismo é uma classificação das obras de arte a partir de gêneros. Classificar é uma tarefa sofística e retórica, baseada na causalidade de algum sistema e fundamentado na técnica enquanto medida causal. Toda técnica é usada para causar algo, daí a necessidade de classificar. Mas isso não diz respeito à POÉTICA, SÓ À TÉCNICA DE FAZER OBRAS. Terra, essencialmente, é zoé/ser, é um criar contínuo, isto é, gerar vidas novas e conduzi-las à plenitude de realização. Essa é a tarefa poética. Por isso, o ser humano quando tem uma determinada vivência diz a todo momento: sou isto, sou aquilo, isto é, vivo isto, vivo aquilo, mas onde o viver se dá como linguagem e sentido, isto é, corpo, obra de arte.

Como fazer para distinguir o mundo como questão e o mundo como conceito?

Muito simples: quando se adjetiva o mundo temos os conceitos. Por exemplo: mundo antigo, moderno, medieval, religioso, pagão, católico, cristão, oriental, ocidental, político etc. etc. Quando o ser humano se experiencia como linguagem e sentido, então temos mundo enquanto questão. Por isso a linguagem é a quarta dimensão do tempo. E se tempo é linguagem, e é, é mundo. Eis porque mundo jamais pode ser reduzido a conceitos. Questão não é algo que alguém pode ter ou não. Todo ser humano quando nasce já nasce dentro e a partir das questões. Já nasce na vida, que é questão, no tempo, que é questão, no mundo que é questão etc. etc.

O livro conta com artigos seus e também de outros docentes da UFRJ?

Sim. Foi uma escolha proposital para acentuar a interdisciplinaridade e, assim, apontar para uma universidade que está ainda por vir. Uma universidade nova, realmente nova, que não apenas faça do ser humano um recurso humano, mas seja o lugar de uma nova paideia, uma peideia poética, uma peideia que leve ao cultivo e ao apropriar-se do que é próprio a cada ser humano e que, portanto, seja essencialmente política. O próprio é a vida que cada um recebe para ser vivido e que em todos os seres vivos é diferente. O próprio é a afirmação mais radical das diferenças a partir e dentro do mistério da zoé, da vida, do ser. Uma universidade que oriente para a diversidade é a sua missão essencial. Claro que deve também desenvolver em cada ser humano suas potencialidades funcionais, mas não pode parar aí, como acima já explicamos. Daí a necessidade da interdisciplinaridade.


Um grande abraço, aguardarei retorno. Bruno
Eu é que agradeço pela oportunidade.Um grande abraço.Prof. Manuel
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14 abril 2009

A Poética e a medida

 
www.dicpoetica.letras.ufrj.br

O ser humano e a realidade movem-se numa dobra misteriosa: mudam e permanecem. Rosa no maravilhoso conto “O espelho” afirma: “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (Rosa, 1967: 71). Embora muitas vezes nos pareça que está tudo parado, que há somente repetições, o autor vai justamente afirmar o contrário: há sempre algo acontecendo como milagre. Que milagre é esse? O milagre do mudar e permanecer. Estes constituem uma dobra e não e jamais uma dicotomia. Lançados na dinâmica do tempo é mais fácil, aparentemente, optar pela mudança. Digo aparentemente, porque é aquela mudança superficial e oposta a toda permanência. Dualizar o real é a atitude mais normal e corrente. Apreender a dinâmica do real em seu acontecer é o mais difícil, pois nos parece que há muita repetição, havendo a aparência de que os dias são iguais, de que as pessoas são sempre iguais, de que a noite e os dias são sempre iguais, enfim, de que não mudamos. Embora...

Retrato

Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro
nem estes olhos tão vazios
nem o lábio tão amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil;
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

(Meireles, 1987: 84)

A mudança é certa, simples, fácil. Mas não é tudo. Temos que ter o cuidado de não separar o como é dos atributos do que é, não podemos esquecer que o que é é sempre um sendo do ser. Para isso, há o espelho, o entre sendo E Ser. Houve, constata entristecida, uma perda na experienciação do sendo enquanto vivências estéticas atributivas. Não é a perda de algum bem descartável. É a perda da vida essencial. É a perda do que lhe é próprio, certo, inconfundível: a sua face. O que é a face aí poeticamente referenciada? Não são as idéias sem o eidos? E ela, nós, nos perguntamos: Em que espelho? Não basta viver, deixar a vida fluir, num dedicar-se exaustivo ao que muda e passa, às novidades, às modas, às curiosidades sem a cura do próprio, à ânsia de curtir externamente a vida no e pelos atributos. É necessário a ânsia do espelho, onde temos um encontro marcado com nossa face. Então a vida deixará de ser apenas vida vivida e se tornará no e com o espelho a vida experienciada. Não há nem deve haver uma dicotomia entre vida vivida e vida experienciada. As duas estão unidas indissoluvelmente no espelho, no “entre”. De “entre” vem interior. Este não é nem deve ser o subjetivo oposto ao objetivo, ao exterior. Não deve ser a oposição dual de corpo e alma, terra e céu, vida e morte, mortalidade e imortalidade. E assim por diante em todas as dicotomias. Não. O entre enquanto espelho é a medida. O “in” de interior é o “in” do entre. Este é o que somos e que jamais pode ser confundido com nosso “eu” oposto ao que cada um é, a cada sou. O sou é que funda o “eu”. Sou aí é verbo. Na substantividade do eu perde-se a verdadeira face. No delírio incessante das pro-curas externas ou interno-subjetivas, mutáveis e passageiras, colhemos uma perda, porque não quisemos ser, só ter o que não somos, quando a medida é o atributo. Ser é realizar o “eu” pelo “sou”, porque aí estaremos sendo o Ser do sendo: nossa verdadeira e própria face. Realizar aí é o verbo da historicidade e não das meras experiências estéticas. A renúncia ao passageiro e descartável não tira. Dá. É a pobreza livre e essencial, a medida. Dá porque nesse dar dá-se o Ser do sendo: o que nos é próprio, a medida. E então a mudança não se torna algo externo nem interno. A mudança é sempre a presença do simples, do certo, do fácil. O nada é a simplicidade do Ser. É que mudamos para permanecer no originário, plenificando nosso sendo. Plenificar diz aí realizar a medida do Ser, quando então a forma deixa de ser o limite para ser mais: o não-limite de todo limite. O não-limite de todo limite é o humano do ser humano.

Perceber a mudança profunda é o mais difícil, como nos diz poeticamente Cecília Meireles. Mas ela acontece. Em verdade, a realidade está sempre mudando. Tirar duas fotos iguais é impossível, ou como diz o mesmo Rosa: “Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes” (Rosa, 1967: 71).

Se só houvesse essa mudança irreversível e contínua, o ser humano e a própria realidade seriam impossíveis. Justamente por isso mesmo a questão da vida como mudança e crescimento tem como contrapartida algo que permanece e é sempre certo: a morte. Mas o que é a permanência enquanto morte? Na morte cessa a mudança? Mas também cessa a vida? Nesta dobra se coloca a questão maior. Se o tempo é vida, também o tempo pode ser permanência? Ou: o tempo pode ser mudança e permanência? Não é por isso que falamos frequentemente em a-temporal? Que falamos em eternidade? Não é esta um tempo que muda durando sempre, eternamente? A mudança, a própria vida nos joga numa angústia abismal. Movemo-nos já desde sempre num abismo. Viver a mudança é bom, muito bom, mas ela tem um encontro marcado, a cada instante de mudança irreversível, com a angústia da permanência, da eternidade. O que é isto – a eternidade? De que posição e horizonte falar de eternidade? Mas será que só se pode compreender e apreender a permanência como eternidade? E de que posição falar de eternidade, nós que estamos irreversivelmente mudando? Como falar de fora do tempo, que não cessa de fluir e mudar? Como falar de fluir e mudar se não houver posição, isto é, limite e relação? Só porque somos finitos é que no horizonte projetamos a eternidade. Adotar o ponto de vista da eternidade é fácil porque é conceitual, mas não será num operar como a avestruz, enfiando a cabeça na terra e fazendo como se a realidade não continuasse fluindo? Adotar a dicotomia de corpo e alma, numa posição de negação ou afirmação, também muda alguma coisa em relação à questão? Em ambos os casos não se está ignorando o milagre da questão? Não é isto que nos diz Rosa, quando afirma: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.

Mas a questão da permanência não vive só nesse âmbito extremo, a presença irreversível da morte como a permanência certa. Até porque a morte não é algo que um dia vai chegar. O grande mistério é que ela desde que nascemos já chegou, só fazemos como se isso não fosse verdade, como se a vida é que fosse algo certo, imediato e permanente. Sim, a vida como vida também tem uma permanência. Que permanência é essa da vida, da realidade? Essa permanência é real e tudo o que fazemos já o fazemos dentro de um horizonte de permanência. Se a vida muda, e muda, também constatamos que sabemos que muda e que esse saber permanece como referência até para sabermos que a vida está mudando, pois se a vida só fosse mudança nem saberíamos que haveria mudança, porque não teríamos nenhuma possibilidade de referência, relação e limite.Compreender a medida, a questão, é diferenciar e discernir referência, relação e limite. Mas só podemos discernir porque já nos movemos na medida do criticar (krinein). É a medida da Poética: o que se manifestando se vela. Então a questão da permanência e mudança passa pelo saber. Porém, já nos advertiu Parmênides na sentença III: “ O mesmo é saber e ser”. A questão de permanência e mudança passa pelo ser e pelo saber, mas enquanto são o mesmo. Que é isto – o mesmo?

O mesmo de mudança e permanência foi sempre a grande questão para o ser humano e ele a procura desde que é ser humano, isto é, ser ser humano é já estar lançado nesta procura. Sabermo-nos em segurança é apreender e compreender o que é regular e previsível. E isto na relação conosco mesmo, com os outros e com as coisas. A regularidade do comportamento de tudo é o que nos dá certeza e confiança. Por outro lado, tudo que foge a padrões previsíveis de normalidade, tudo que é inesperado e incontrolável é sempre visto com muito medo. Viver é viver no império da medida, da lei, do padrão. Talvez isto cause estranheza também, frente ao livre agir. Mas se pensarmos um pouco em nosso cotidiano veremos que todo ele está estruturado em cima de comportamento regulares. E estas regularidades é que guiam nossa vida. Imaginemos que saímos de casa e ninguém segue as leis do trânsito. Seria impossível viver. E assim em tudo. Até a sucessão das estações e dos dias e da noite. Enfim, tudo está estruturado por leis, por padrões de ação. Mas tais leis e normas são uma construção humana ou são algo inerente à realidade, à natureza, seja a nossa própria natureza interna, seja a natureza de um modo geral? A regularidade deste cotidiano, a realidade enquanto os fatos visíveis, não é a realidade determinada pelas relações sociais enquanto funções? As funções são o funcionar do sistema enquanto sistema. Se mudar o paradigma do sistema mudam as funções das coisas, das formas. Função é convenção. No Japão o branco indica luto. No Ocidente isso é função da cor preta. Função ou forma é uma lei de relacionamento causal num sistema.

Todos os fenômenos são regidos por leis. Porém, estas existem na medida em que se fundam num conhecimento. E este precisa de posições, perspectivas e horizontes, enfim, precisa de limites e relações. Além destas há também as referências. Em nossas vidas tomamos ou deveríamos tomar sempre como princípio do agir, das escolhas, alguma ou algumas referências. Mas em geral somos guiados pelas funções ou formas de relacionamento. É que toda função serve para algo, tem uma finalidade. É dentro desta perspectiva que se pergunta sempre: Qual a função da arte? Ter função é servir para alguma coisa dentro de um sistema causal. Isto causa aquilo. A obra de arte é sem causa, é sem por quê. A obra de arte é obra de arte porque opera. Ela não causa nada porque não explica nada, daí a inutilidade de toda análise explicativa:

..........................................................
Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
...............................................................................
(Caeiro, 2004: 109).

As referências constituem as medidas do agir, do viver e do procurar, do questionar, dialogar e experienciar. Nas referências não há causas. Há metábole da realidade.

Mas qual é a medida essencial da vida? O que sempre atormentava os heróis trágicos em seu agir – a questão - era a hybris, a desmedida ético-poética. O que é a medida para que possamos chegar a agir na e pela des-medida? A medida não pode ser compreendida em abstrato: uma norma, um princípio, um conceito. Esse foi o equívoco que sempre desorientou a metafísica sofística e a crítica na modernidade. É que a medida se tornou a medida do homem. Esse isolamento da medida acabou por sobrepor à realidade a realidade da idéia, do princípio, da lei, do gênero etc. que deu origem, no exercício da crítica, ao julgamento, ou seja, o estabelecimento de princípios ideológicos, estético-formais, sofístico-retóricos, morais, onde fundamenta o julgamento. E isso é o que predomina em geral.

Porém, se nos voltarmos para a vida na sua riqueza, constataremos que ela não é algo abstrato. Temos sempre presente e no presente e como presente um “sendo”. Viver é sempre estar sendo, para além e aquém de formas e limites, das perspectivas do horizonte, porque o horizonte é a dobra do ver e não e jamais o duplo enquanto proposição do sendo, onde se reúne formativamente, não o sendo e sua manifestação de limite de não-limite, mas o sujeito com seus atributos. É o juízo estético-proposicional e não o deixar-se tomar pela medida da palavra poética. Toda palavra poética se dá enquanto diálogo do lógos e percepção originária (dia-noia) do nous. Pois, como nos diz o pensador Parmênides: “Ser e perceber são o mesmo” (Frag. III). Perceber é pensar e pensar é amar, porque “Amar é pensar ” (Caeiro, 2004: 98). Ao sendo os gregos denominaram “on”, o particípio presente do verbo einai. Este sendo foi recebendo traduções no latim que nos afastaram dessa simplicidade do misterioso estar sempre sendo. No sendo tudo se concentra. Mas o que rege esse sendo é a sua medida, ou seja, o que no sendo é sendo é a sua medida. E então os pensadores originários pensaram essa medida como anagké (necessidade). Mas se do ponto de vista da medida temos uma medida que se torna aquilo que o sendo enquanto sendo tem como medida, podemos dizer que a medida do sendo é a moira (o quinhão, o próprio em relação ao genos). Nesse sentido, a medida é anagké, enquanto esta é uma arché, aquilo que vigora na moira e no genos, enquanto o sempre vigente como o que permanece na mudança e é, ao mesmo tempo, a própria mudança. Mas uma tal medida como moira acontece já enquanto Genesis: nascimento, origem genética, não enquanto forma e limite. Todo nascimento já traz a sua moira, ou seja, a sua medida.

Tentar compreender o sendo é lançar-se na compreensão da moira. Mas é uma compreensão que não consiste num exercício abstrato. Muito pelo contrário, compreender aí é realizar a moira enquanto o que é próprio, como já nos advertiu Parmênides: “O mesmo é ser e compreender”. Então compreender sendo e sendo na compreensão é achar o horizonte, a partir da medida da moira (a dobra do sendo), da krisis, do julgamento como critério, como medida. E o horizonte ou medida do sendo vivente é a moira.

Pensar a medida é pensar a moira. Pensar é trazer ao krinein (questionar, criticar, discernir, dia-logar) a moira do sendo. Sendo o sendo o desdobrar-se da moira, já o próprio sendo é o horizonte do krinein (questionar), ou seja, já a moira é a possibilidade de krinein (questionar enquanto dialogar).

Em última instância trata-se de na questão da medida, em que já sempre nos movemos e nos move, pensar a moira, o que como medida é a medida do que nos é próprio. A moira do sendo vai estar ligada ao limite, à relação, tendo a posição, a perspectiva e o horizonte como componentes, implicados sempre na medida como referência. A medida como referência, ou seja, a moira, é a referência de permanência e mudança. A medida é sempre questão e como questão foi dando origem a diferentes critérios, até porque sendo a medida do sendo a moira, não há uma medida para o sendo uniforme e abstrata ou seja, a medida da forma. Toda forma é forma da não-forma, do não-limite. É que esse “não” não é entitativo, vigora no nada, o véu do Ser do sendo. Retomamos Rosa: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.

O critério recebe muitos sinônimos no percurso ocidental, mas é fundamental atentar sempre para as questões em que se move um tal vocabulário e não se perder nos desvios dos conceitos, mas ser renitente e disciplinado no retornar sempre às questões, que são sempre originárias. A disciplina pede o permanente avio dos envios das questões, para achar a via como caminho (metá-hodos) em que o próprio do real se dá como o sempre permanente e atual. Nesse entre-laçamento comparecem: sendo, limite, critério, medida, dobra, travessia, amor, todos vigorando no “entre”, fonte e foz de toda mudança e permanência. O “entre” é a terceira margem do rio acontecendo. O espelho como terceira margem é o espelho, a medida.

O discernir, voltando-se para ele próprio, criou diversas palavras que indicam uma posição, seja teórica, seja epocal: critério, idéia, teoria, princípio, essência, cânone, paradigma, suporte, padrão, regra, forma, lei, medida. Estas diversas posições originam-se de uma de-cisão ou pela dobra ou pelo duplo. É possível não de-cidir? Isto quer perguntar se é possível nos movermos no real sem o limite. Mas o que funda o limite para que possa haver uma de-cisão? Nesse quê está toda a questão de: poética, crítica e real. Nesse quê está todo o operar da verdade enquanto sentido do agir. Pro-curar esse quê é fazer o que sempre toda a filosofia fez: deixar-se tomar pelas questões, isto é, deixar-se tomar pelo “taumadzein”. Deixar-se tomar, pôr, posição, perspectiva, horizonte, limite e medida, eis o âmbito do caminho em que já estamos sempre jogados. Deixar-se tomar para tomar posição é já se abrir no aberto para a escuta e a visão do que se dá a ver e a ouvir. Não é nossa perspectiva que o dá. Só por se dar é que podemos ver e ouvir. A esta posição os gregos denominaram teoria, que não é a teoria da ciência e da perspectiva. A teoria da perspectiva não é a perspectiva da teoria: o que alguém por ver narra. O operar da obra de arte é mais do que o narrar do narrador. Não há narrador sem o que na perspectiva se dá a ver, sem o que na obra opera: a verdade da não-verdade. Ou como nos diz Rosa no conto “O espelho”, repetindo a citação: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. Ver o milagre é a possibilidade do narrar e dar forma à perspectiva. Porém, isto nunca é uma de-cisão do narrador. É que então o operar não é o operar da forma, mas do milagre que não estamos vendo. É este não ver como milagre que possibilita o ver do autor e dos leitores, uma vez que o narrar é o vigorar do dialogar. O lógos é a palavra poética. Então tanto ouvir como ver já se movem no krinein. Portanto, qual o âmbito do krinein?

Krinein é o questionar acontecendo como dialogar. É que no questionar a questão é o originário (permanente e atual). Portanto, o krinein é a pro-cura do originário, é a pergunta pelo originário como fonte de todo krinein, ou seja, como o critério pro-curado: a media do sendo, do genos da moira. Daí que no krinein como medida se pro-cura o originário como fonte de toda verdade. Mas a fonte e verdade de toda verdade é a não-verdade. Esta é que dá o horizonte da krisis, ou seja, do julgamento, da de-cisão, onde o valor ético-poético (este é a medida ou critério da krisis, da proposição) é a proclamação e afirmação da verdade, porque tem como medida o originário em que se dá a questão do questionar, na pergunta. Mas perguntar pela verdade do julgamento é perguntar pela realidade e não simplesmente pelo verdadeiro da proposição, enquanto coesão e coerência. Para além destas existe também o paradoxo e a metáfora, que são muito mais do que meros recursos retóricos.

Pensar tal critério não consiste numa simples escolha de teoria, suporte, arquétipo, paradigma, cânone, idéia, princípio, essência, padrão, regra, lei. Estes podem variar no tempo como posições formais, ideológicas e estéticas. Tal critério será sempre externo, funcional, operacional-causal e explicativo. E será avaliador para classificar, admitir ou negar. Na escolha do critério, o que somos como a possibilidade de nos apropriarmos do que nos é próprio já nos implica e, portanto, não pode ser apenas externo nem, dicotomicamente, só interno. Desse modo, um critério nunca serve para estabelecer relações e formas de juízo avaliativo. Na relação já vigora uma intencionalidade que se mede pelo critério, sendo este prévio. Disso resultarão sempre conceitos, traduzindo universais abstratos. Como critérios universais abstratos (conceitos) é que surge o variado vocabulário de interpretação sofístico-retórica e metafísica da realidade: teoria, suporte, arquétipo, paradigma, cânone, idéia, princípio causal, essência, padrão, regra, lei, fundamento, causa, perspectiva, símbolo, alegoria.

Somos, cada um é, um sendo, um entre-acontecimento poético-apropriante. Todo sendo vige nesse horizonte vivo e originário. Portanto, como sendo há sempre uma referência de arché e telos, de zoé e bios. É o con-creto poético (que nada tem a ver com a experiência dos fatos ou estética). Em termos de pensamento poético, cada sendo é a afirmação e realização do que é próprio (autopoiese). Este auto é a medida.

Mas então qual é concretamente o critério se não é nem pode ser aquele da relação? O critério deve ser aquele em que já se move desde sempre o sendo, todo sendo enquanto referência: a de genos e moira. Pensar o critério da referência é pensar o critério originário. Neste, o sendo sempre acontece como questão e não e jamais como conceito, porque na questão sabemos e não-sabemos, não abstratamente, mas con-cretamente, experiencialmente no círculo poético de desvelamento e velamento. Se o krinein é questionar, o critério é a questão. E a questão originária, enquanto entre-acontecer poético-apropriante, é sempre a referência de Ser e essência-originária do humano. É a questão da dobra em que se dá a moira do genos.

A tradução tradicional de moira é destino. Mas o que compreender como destino enquanto a medida da dobra de ser humano e Ser? A moira não diz apenas um destino pessoal, aquele quinhão que cada sendo recebe. Toda moira provém originária e concretamente de um genos. E este, como Gênesis, diz do nascer em que se dá toda a physis. Porém, não podemos esquecer que a physis ama velar-se. A própria physis se dá uma medida: o amar. O amar é o a-ser-pensado: o critério, a medida. Então moira se funda numa medida que nos mede como questão não só pessoal e social, mas igualmente epocal, ou seja, como destino histórico. Toda época enquanto destino histórico é o acontecer poético da realidade. Por isso, todo sendo já traz em si o que enquanto destino lhe é destinado e, ao mesmo tempo, a sua relação e referência com o que historicamente se dá. É a memória destinal enquanto a dobra da physis, cujo originário poético é o amar. É a medida poética enquanto a poética da medida. Esta acontece nas e como obras poéticas, em todas as obras de arte, porque é seu originário.
Bibliografia

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 3.e. Rio de Janeiro, José Olympio, 1967.
MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar: 1987.
CAIEIRO, Alberto (Fernando Pessoa). Poesia. São Paulo, Cia. das Letras, 2004.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002.