28 outubro 2008

O "Trans-" , o "Inter-" e o conhecimento

O “Trans” e o “Inter”

Manuel Antônio de Castro

Abaixo transcrevemos um ensaio que nos fala de transdisciplinaridade. É um convite à reflexão e ao aprofundamento de questões que dizem respeito à ciência. Até onde tais reflexões nos levam a aprofundar as questões em torno da referência do ser e do ser humano enquanto obra de arte?
É isso que propomos. Primeiro o ensaio de Basarab Nicolescu. Depois algumas observações minhas. Trata-se de pensar a questão que hoje a todos aflige: como num mundo fragmentado e de corações e mentes fragmentadas ir além ou aquém do saber que funda a realidade na modernidade?

UM NOVO TIPO DE CONHECIMENTO - TRANSDISCIPLINARIDADE

Basarab Nicolescu

Físico teórico do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (C.N.R.S.).
Fundador e Presidente do Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares (CIRET).
[...]
A metodologia da transdisciplinaridade

c. A lógica do Terceiro Incluído
O desenvolvimento da física quântica, assim como a coexistência entre o mundo quântico e o mundo macrofísico, levaram, no plano da teoria e da experiência científica, ao aparecimento de pares de contraditórios mutuamente exclusivos (A e não A): onda e corpúsculo, continuidade e descontinuidade, separabilidade e não separabilidade, causalidade local e causalidade global, simetria e quebra de simetria, reversibilidade e irreversibilidade do tempo etc. O escândalo intelectual provocado pela mecânica quântica consiste no fato de que os pares de contraditórios que ela coloca em evidência são de fato mutuamente opostos quando analisados através da grade de leitura da lógica clássica. Esta lógica baseia-se em três axiomas:

1. O axioma da identidade: A é A;
2. O axioma da não-contradição: A não é não-A;
3. O axioma do terceiro excluído: não existe um terceiro termo T (T de "terceiro incluído") que é ao mesmo tempo A e não-A.

Na hipótese da existência de um único nível de Realidade, o segundo e terceiro axiomas são evidentemente equivalentes. O dogma de um único nível de Realidade, arbitrário como todo dogma, está de tal forma implantado em nossas consciências, que mesmo lógicos de profissão esquecem de dizer que estes dois axiomas são, de fato, distintos, independentes um do outro. Se, no entanto, aceitamos esta lógica que, apesar de tudo reinou durante dois milênios e continua a dominar o pensamento de hoje, em particular no campo político, social e econômico, chegamos imediatamente à conclusão de que os pares de contraditórios, postos em evidência pela física quântica, são mutuamente exclusivos, pois não podemos afirmar ao mesmo tempo a validade de uma coisa e seu oposto: A e não-A. A perplexidade produzida por esta situação é bem compreensível: podemos afirmar, se formos sãos de espírito, que a noite é o dia, o preto é o branco, o homem é a mulher, a vida é a morte?

O problema pode parecer da ordem da pura abstração, pode parecer interessar apenas alguns a lógicos, físicos ou filósofos. Em que a lógica abstrata seria importante para nossa vida de todos os dias? A lógica é a ciência que tem por objeto de estudo as normas da verdade (ou da "validade", se a palavra "verdade" for forte demais em nossos dias). Sem norma, não há ordem. Sem norma, não há leitura do mundo e, portanto, nenhum aprendizado, sobrevivência e vida. Fica claro, portanto, que de maneira muitas vezes inconsciente, uma certa lógica e mesmo uma certa visão do mundo estão por trás de cada ação, qualquer que seja: a ação de um indivíduo, de uma coletividade, de uma nação, de um estado. Uma certa lógica determina, em particular, a regulamentação social.

Desde a constituição definitiva da mecânica quântica, por volta dos anos 30, os fundadores da nova ciência se questionaram agudamente sobre o problema de uma nova lógica, chamada "quântica". Após os trabalhos de Birkhoff e van Neumann, toda uma proliferação de lógicas quânticas não tardou a se manifestar. A ambição dessas novas lógicas era resolver os paradoxos gerados pela mecânica quântica e tentar, na medida do possível, chegar a uma potência preditiva mais forte do que a permitida com a lógica clássica.

A maioria das lógicas quânticas modificaram o segundo axioma da lógica clássica: o axioma da não-contradição, introduzindo a não-contradição com vários valores de verdade no lugar daquela do par binário (A, não-A). Estas lógicas multi-valentes, cujo estatuto ainda é controvertido quanto a seu poder preditivo, não levaram em conta uma outra possibilidade, a modificação do terceiro axioma: o axioma do terceiro excluído.

O mérito histórico de Lupasco foi mostrar que a lógica do terceiro incluído é uma verdadeira lógica, formalizável e formalizada, multi-valente (com três valores: A, não-A e T) e não-contraditória.

A compreensão do axioma do terceiro incluído — existe um terceiro termo T que é ao mesmo tempo A e não- A — fica totalmente clara quando é introduzida a noção de "níveis de Realidade". Para se chegar a uma imagem clara do sentido do terceiro incluído, representemos os três termos da nova lógica — A, não-A e T — e seus dinamismos associados por um triângulo onde um dos ângulos situa-se num nível de Realidade e os dois outros num outro nível de Realidade. Se permanecermos num único nível de Realidade, toda manifestação aparece como uma luta entre dois elementos contraditórios (por exemplo: onda A e corpúsculo não-A). O terceiro dinamismo, o do estado T, exerce-se num outro nível de Realidade, onde aquilo que parece desunido (onda ou corpúsculo) está de fato unido (quantum), e aquilo que parece contraditório é percebido como não-contraditório.

É a projeção de T sobre um único e mesmo nível de Realidade que produz a impressão de pares antagônicos, mutuamente exclusivos (A e não-A). Um único e mesmo nível de Realidade só pode provocar oposições antagônicas. Ele é, por sua própria natureza, auto-destruidor, se for completamente separado de todos os outros níveis de Realidade. Um terceiro termo, digamos, T’, que esteja situado no mesmo nível de Realidade que os opostos A e não-A, não pode realizar sua conciliação.

Toda diferença entre uma tríade de terceiro incluído e uma tríade hegeliana se esclarece quando consideramos o papel do tempo. Numa tríade de terceiro incluído os três termos coexistem no mesmo momento do tempo. Por outro lado, os três termos da tríade hegeliana sucedem-se no tempo. Por isso, a tríade hegeliana é incapaz de promover a conciliação dos opostos, enquanto a tríade de terceiro incluído é capaz de fazê-lo. Na lógica do terceiro incluído os opostos são antes contraditórios: a tensão entre os contraditórios promove uma unidade que inclui e vai além da soma dos dois termos.

Vemos assim os grandes perigos de mal-entendidos gerados pela confusão bastante comum entre o axioma de terceiro excluído e o axioma de não-contradição. A lógica do terceiro incluído é não-contraditória, no sentido de que o axioma da não-contradição é perfeitamente respeitado, com a condição de que as noções de "verdadeiro" e "falso" sejam alargadas, de tal modo que as regras de implicação lógica digam respeito não mais a dois termos (A e não-A), mas a três termos (A, não-A e T), coexistindo no mesmo momento do tempo. É uma lógica formal, da mesma maneira que qualquer outra lógica formal: suas regras traduzem-se por um formalismo matemático relativamente simples.

Vemos porque a lógica do terceiro incluído não é simplesmente uma metáfora para um ornamento arbitrário da lógica clássica, permitindo algumas incursões aventureiras e passageiras no campo da complexidade. A lógica do terceiro incluído é uma lógica da complexidade e até mesmo, talvez, sua lógica privilegiada, na medida em que nos permite atravessar, de maneira coerente, os diferentes campos do conhecimento.

A lógica do terceiro incluído não abole a lógica do terceiro excluído: ela apenas limita sua área de validade. A lógica do terceiro excluído é certamente validada em situações relativamente simples, como, por exemplo, a circulação de veículos numa estrada: ninguém pensa em introduzir, numa estrada, um terceiro sentido em relação ao sentido permitido e ao proibido. Por outro lado, a lógica do terceiro excluído é nociva nos casos complexos, como, por exemplo, o campo social ou político. Ela age, nestes casos, como uma verdadeira lógica de exclusão: bem ou mal, direita ou esquerda, mulheres ou homens, ricos ou pobres, brancos ou negros. Seria revelador fazer uma análise da xenofobia, do racismo, do anti-semitismo ou do nacionalismo à luz da lógica do terceiro excluído.

Conclusão:
Sem uma metodologia a transdisciplinaridade seria uma proposta vazia. Os Níveis de Realidade, a Complexidade e a Lógica do Terceiro Incluído, definem a metodologia da transdisciplinaridade. Só se nos apoiarmos nesses três pilares metodológicos poderemos inventar os métodos e modelos transdisciplinares adequados a situações particulares e práticas.

Referências
- Gibbons, Michael et al., The New Production of Knowledge - The Dynamics of Science and Research in Contemporary Societies. Londres, Sage: 1994.
- Nicolescu, Basarab O Manifesto da transdisciplinaridade. São Paulo, Triom: 1999. Tradução do Francês por Lúcia Pereira de Souza.
- Site do Centro Internacional de Pesquisa e Estudos Transdisciplinares (CIRET): http://perso.club-internet.fr/nicol/ciret/ .

Oservações para diálogo.

Manuel Antônio de Castro

A substituição da disciplina pela trans-disciplina ainda não saiu do âmbito moderno e metafísico do “como saber crítico”, porque ainda fica na renitente insistência científica e lógica de querer reduzir a physis à cultura (ao como se sabe, como se faz, como se sem te, como se crê, como se cria). Só sairemos da cultura e seus produtos quando compreendermos que cultura e natureza não se opõem, mas também não formam uma síntese.

Notemos que o autor fala de “modelo” ou método para incluir o T (o terceiro excluído). É sempre a idéia metafísica causal da realidade, onde se busca determinar o terceiro como “algo” passível de “modelo”, a que preside uma “medida” ou “critério”. No horizonte deste critério, a realidade pode ser “conhecida”, é passível da aplicação de um método para depois intervir (prática, aplicação) na realidade.

A questão da realidade se torna o problema de achar uma “nova” medida, uma nova verdade, pois o “critério” sempre determina, nessa visão, a verdade da realidade e a realidade da verdade.

Mas qual é a questão da realidade? Ela já está colocada na sentença 123 de Heráclito: Physis kryptestai philei (O desvelar-se ama velar-se / A realidade apropria-se no velar-se). Nunca poderá haver uma “medida”, um critério para o kryptestai, senão deixará de ser kryptestai (physis). Ele pode ser acolhido no amar. Mas haverá algum dia medida ou critério para o amar? E isso não é muito bom? Não é bom que as diferenças não tenham nunca uma medida? Não ter medida é não ater controle. Caso contrário, ainda seriam diferenças? No entanto, podemos acolher sempre as diferenças. Caso contrário, também deveríamos afirmar que há uma dicotomia radical entre as diferenças. Então o que pro-curar? O que nas diferenças é o seu vigor, não para determiná-lo e medi-lo, mas para deixar que ele opere e vigore. E assim deixe as diferenças serem diferenças, porque movida pelo mesmo de todas as diferenças: a identidade (possibilidades de ser). Mas agora não mais a formal e lógica, de que fala o ensaio acima, no início. A obra de arte é a identidade, como diálogo possível, de todas as diferentes leituras. Mas o que é o dia-logo?

Então deveremos no lugar da transdisciplinaridade pensar o “entre” de toda “inter-disciplinaridade”. O que é esse “entre”? Um neutrale tantum, o mesmo de que nos fala o pensador Parmênides, na sentença VII: “O mesmo é pensar e ser”. Quando colocamos estas questões, devemos estar atentos ao fato de que elas já são a vigência do krinein, de um criticar não apenas racional e do como conhecer, mas a própria realidade em sua disputa originária (Sentença 53 de Heráclito): De todas as coisas a guerra [polemós: disputa] é pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros livres.) (Cf. a interpretação de M. Heidegger in: Ser e verdade, p. 97 a 136. Petrópolis, Vozes, 2007).

Devemos compreender, a partir da vigência do krinein, que a realidade sempre se vela. Quando vemos o dia, não vemos o sol em sua presença como tal, vemos o manifestar-se de sua presença, mas em que ele mesmo como sol, não pode ser visto. Quando ele, em sua luz, se retrai temos a noite. Mas nesta ainda não temos o sol em seu velar-se. Temos como velamento a presença do sol, como o que não pode ser visto tanto em presença como em ausência. Notemos, no entanto, que não há aí fundamento e fundado, pois sem o sol e sua presença vigorante não há noite nem dia. Portanto, não podemos reduzir o sol a T (terceiro excluído), passível de um novo modelo de conhecimento, passível de um critério, de uma medida. A noite e o dia do sol, são, no dizer do pensador-poeta, Guimarães Rosa, veredas do grande ser-tão. Um tão como tao que nos convoca ao diá-logo, como o mesmo de todas as falas e escutas: as veredas, veredazinhas. Mas estas são Sabedoria para poucos, diz ele: os doidos. “Ao doido doideiras digo”. É a sabedoria de que nos fala outro pensador-poeta: Platão, no dia-logo: Fedro. Então tal sabedoria não é mais o simples saber, é amor.

Cf. meu ensaio: “Interdisciplinaridade poética: o “entre”. In: Rev. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 164: 7/36, jan.-mar., 2006.

O homem e a questão


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Toda questão é um chamado da voz do extraordinário para que o ser humano, escutando-o, chegue à realização de sua humanidade: a vigência do sagrado. O ser humano é uma questão enquanto a vigência do extraordinário: a questão, o sagrado.

24 outubro 2008

A menina e a bicicleta: arte e confiabilidade


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Toda obra de arte é originária. Ela não é a-temporal. Pelo contrário, é o tempo em sua densidade máxima, porque na obra de arte acontece poeticamente o tempo da memória. É isso o que nos diz a palavra originário. A dificuldade em compreender e apreender o originário de toda obra de arte está em que nosso olhar já está a priori armado com algum suporte ou paradigma estético-formal ou ideológico salvacionista, para achar a sua função ou para classificá-la. E poderia ser de outra maneira? Não estamos já desde sempre jogados numa determinada perspectiva espácio-temporal? Só aparentemente. Originariamente quando olho não vejo o que meus olhos olham. Vejo só o que se dá a ver nos meus olhos. Essa é a diferença entre originário e origem. O que vejo, aparentemente, tem origem nos meus olhos. A luz na qual vejo o que olho já é um dar-se originário que possibilita toda visão, todo olhar. E sem a qual os olhos não vêem por mais que meus olhos olhem. Suportes e paradigma não constituem nem as obras de arte nem a luz que originariamente possibilita ver. O sendo de toda realidade é a luz de desvelamento em que todo velamento entre-acontece. O entre-acontecer de desvelamento e velamento é a própria verdade poética da realidade doando-se em Mundo e retraindo-se na Terra. Obra de arte nada tem a ver com formas e matérias. Estas assinalam o horizonte do utensílio em sua utensilidade, vista na luz do desvelar da obra de arte. Por quê? Porque causa é causa na medida em que a ela algo se deve: o utensílio em sua utensilidade.

Certamente tudo isto soa muito estranho para quem está formatado no ordinário dos conceitos correntes e não tem mais o espanto que toda obra de arte inaugura para quem está aberto para ele. O espanto é o entre-acontecer do extraordinário. É o entre-acontecer da obra poética. O poético é o entre-acontecer do espanto que toma de assalto os poetas e pensadores essenciais. Um outro nome originário para espanto são as musas.

Martin Heidegger é o pensador originário da obra de arte. Querer classificar seu pensamento como mais uma teoria estética da arte, entre as numerosas teorias modernas, é não compreender o que de poético traz seu pensamento. Se fosse mais uma teoria estética ficaria ainda nas banais e surradas teorias metafísicas dos suportes formais ou ideológicos cada vez mais fragmentados em novas correntes críticas (que de críticas só têm a aparência). Todo o empenho e desempenho do pensador é propor como penhor a abertura de pensamento para o sentido e o esquecimento do ser. Ser não é um conceito abstrato: são as possibilidades enquanto propriedades que cada um de nós recebe para poder ser no sendo o não-ser. Não é que a metafísica não fale do ser. Não faz outra coisa, ainda que abstratamente. Ela não pensa o ser como acontecer poético, mas como ser dos entes. Estes, substantivados, necessitam de um fundamento: o ser, separado dos fundados, mas no qual se apóiam, sendo aquele a causa destes. Não pode haver dicotomia de fundamento e fundado, porque o ser não é, pois se fosse, seria ente e não ser. Por outro lado, o que antes de tudo é é o ser. Este, como o originário de todo entre-acontecer, de todo sendo sendo o não-ser, é sempre paradoxal. Essa ambigüidade paradoxal presenteia-se e presentifica-se sempre na obra de arte. Mas, então, no lugar de matéria e forma (causas dos utensílios e dos objetos) teremos vazio e figura, terra E mundo. Eis porque não se pode perguntar pelo útil ou inútil da obra de arte, simplesmente porque a obra de arte não é utensílio nem objeto funcional, para operar o sistema e suas finalidades. A arte não tem finalidade para que se pergunte para que serve, qual é o seu “papel”. Todo sistema visa intervir na realidade. Toda obra de arte visa simplesmente desvelar o que ama velar-se, manifestar o que ama retrair-se, como nos lembra o pensador Heráclito na sentença 123: O desvelamento ama velar-se (Physis kryptestai philei). Mas um tal amar é originariamente ser, porque no desvelar-se de todo sendo há o apropriar-se do que é próprio. Isto é ser. Isto é amar. É nesse mesmo horizonte que o poeta-pensador Alberto Caeiro nos diz: Pensar é amar.

Pensar a obra de arte é no mais profundo de todo entre-acontecer crítico-poético pensar a misteriosa realidade (physis) como amor. É claro que pensar nos lembra sempre filosofia. E o que a filosofia tem a ver com o amar? Tudo e nada, pois amar é pensar. Quando a sabedoria se torna amor, então todo amor é filosofia. Filosofar enquanto amor é pensar. E pensar é amar. Arte, poesia, é amar em sentido originário. É que amar não é o mero derramar-se afetivo. É isso e muito mais. É fazer da fonte originária o próprio, é deixar-se apropriar pelo próprio, as propriedades enquanto possibilidades de ser. A obra de arte para que ela opere exige de nós muito mais que uma vivência estética. Solicita o desvelo, a ascese da doação, onde quem doa é a arte, é o amor. O ser não é. Doa-se. E doando-se é, ama. Só podemos ser poéticos, isto é, amar, quando no agir nosso presente e penhor é o amor, a poesia. Então a poesia deve ser o penhor de todos os nossos empenhos. No penhor de todos os empenhos a arte é amor, porque é a conquista da libertação.

Quando Heidegger, libertando-se de toda metafísica estética-formal ou ideológica, nos leva pelos entre-caminhos da poesia, da poética, conduz-nos à fonte de todos os caminhos: o originário. E nos faz isso pensando um dos famosos quadros que o pintor holandês van Gogh pintou, tendo como motivo o repetido apelo poético dos sapatos.

É necessário compreender que é na obra de arte que todo o sentido do utensílio chega a ser o que é. Na utensilidade do utensílio há mais do que funcionalidade e finalidade. Há o humano do homem, o mundo e a terra. À presença do humano no utensílio como mundo e terra, o pensador chama de confiabilidade. Mas quem a manifesta é a obra de arte. Eis o que ele nos diz do quadro de van Gogh:

Mundo e Terra: os sapatos

§46. Da escura abertura do interior gasto dos sapatos
a fadiga dos passos do trabalho olha firmemente.
No peso denso e firme dos sapatos se acumula
a tenacidade do lento caminhar através dos alongados
e sempre mesmos sulcos do campo, sobre o qual
sopra contínuo um vento áspero.
No couro está a umidade e a fartura do solo.
Sob as solas insinua-se a solidão do caminho
do campo, em meio à noite que vem caindo.
Nos sapatos vibra o apelo silencioso da Terra,
sua calma doação do grão amadurecente
e o não esclarecido recusar-se do desolado
inculto terreno do campo de inverno.
Através deste utensílio perpassa a aflição sem queixa
pela certeza do pão, a alegria sem palavras da renovada
superação da necessidade, o tremor diante do anúncio
do nascimento e o calafrio diante da ameaça da morte.
À Terra pertence este utensílio e no Mundo da camponesa
ele está abrigado. A partir deste pertencer que abriga,
o próprio utensílio surge para seu repousar em si.

A confiabilidade e o utensílio

§47 – Mas tudo isto talvez apenas observemos no utensílio-sapato do quadro [de van Gogh]. Pelo contrário, a camponesa apenas calça os sapatos. Como se este simples calçar fosse tão simples. Todas as vezes que a camponesa, à noite, num cansaço forte mas saudável, encosta os sapatos e no ainda escuro amanhecer novamente os pega, ou nos feriados passa por eles, então ela sabe tudo isto sem os observar e contemplar. O ser-utensílio do utensílio consiste certamente na sua serventia. Porém, esta mesma repousa na plenitude de um ser essencial do utensílio. Nomeamos isso a confiabilidade. Em virtude desta e através deste utensílio, a camponesa é admitida no apelo silencioso da Terra. Em virtude da confiabilidade do utensílio, está certa do seu mundo. Para ela e para os que estão com ela e são à sua maneira, Mundo e Terra somente estão aí dessa maneira: no utensílio. Dizemos “somente” e nisso erramos, pois a confiabilidade do utensílio doa ao mundo simples o seu abrigo e assegura à Terra a liberdade da sua constante afluência.(Martin Heidegger: A origem da obra de arte. Tradução: Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo da Silva)

A confiabilidade e a bicicleta

No entre obra-de-arte “E” utensílio vigora a confiabilidade. Ela assinala o ser essencial do utensílio. Implicitamente, nestas reflexões, há uma diferença radical entre utensílio e objeto. No vigor desse entre, enquanto confiabilidade, o utensílio é a porta de admissão ao apelo silencioso da Terra, desvelada e aberta no entre da obra-de-arte. Uma admissão que dá a certeza de Mundo, do nosso mundo. A certeza enquanto confiança é a confiabilidade proveniente do ser essencial do utensílio que doa ao mundo, simples em sua originariedade, cotidianamente a nossa acolhida, e assegura à Terra a liberdade de sua permanente manifestação. Para mim e para todos que respondem e correspondem ao apelo, sendo da mesma maneira, Mundo e Terra somente estão aí, na confiabilidade do utensílio. À confiabilidade do utensílio não basta a objetividade rácio-funcional do objeto. Há um pacto de fé, em que a realidade se dá como uma reunião que reúne ser humano, terra e mundo. É a con-fiabilidade.

Ao entre obra-de-arte e utensílio, Heidegger denomina Verlässlichkeit: confiabilidade. O que é? Eu creio que é mais do que a simples funcionalidade e, com isso, mais do que a certeza do funcionamento, como quando se pega uma bicicleta para ir brincar na praça ou encurtar o caminho entre a casa e o trabalho. A confiabilidade não está só e sobretudo no utensílio, no seu perfeito funcionamento. Nessa perspectiva, ainda só se decide ou espera que tudo dê certo, que tudo funcione e, nesse sentido, tudo está entregue à técnica, aos conhecimentos técnicos, ao sistema, ao operacional e sua cuidadosa conservação. Claro que isto é fundamental e imprescindível. Imagine-se que um avião em pleno vôo não funcione. Morte à vista. No entanto, quando Heidegger fala da confiabilidade algo se torna tema de reflexão. O quê? O que na confiabilidade é mais do que o funcionamento e a operacionalidade. O quê?

A menina e a bicicleta

Era uma menina de quatro ou cinco anos. No aniversário, ganhara uma bicicleta. Evidente, com rodinhas. Como se sabe, a bicicleta tanto funciona com ou sem rodinhas laterais. Ela é funcional. Mas para funcionar precisava da menina assim como a menina “precisava” da bicicleta. É nesse duplo “precisar” que se abre o múltiplo campo da confiabilidade como “entre”. O utensílio não precede esse “precisar”. Ele o realiza ou não nas mais diferentes situações. Mais. O utensílio como resposta ao “precisar” é a manifestação do que no precisar se precisa. O quê? Nesse precisar de um lado nos defrontamos com necessidades – sejam essenciais, sejam criadas -, e inventamos os utensílios para responder, atender e vencer as necessidades. A invenção não é algo puramente subjetivo, independente do ser do utensílio e de que ele consiste. Atender a e vencer as necessidades, é nesse sentido que o utensílio se torna funcional. A necessidade está em relação direta com a utensilidade e vice-versa. Porém, nesse duplo precisar, de outro lado, comparece algo que está além dessa utensilidade: a afirmação do que somos como afirmação da liberdade frente à necessidade. Nós precisamos ser livres e afirmar cotidiana e utopicamente nossa liberdade. A utopia, concretamente, é essa libertação. É a realidade enquanto verdade e mundo.

Quando a menina começa a usar a bicicleta com as rodinhas, estas são úteis porque lhe possibilitam andar sem cair. É só pedalar. A utilidade das rodinhas está acoplada à utilidade das rodas da bicicleta. É então que surge a necessidade de se libertar das rodinhas para a plena utilidade da bicicleta e a manifestação de seu ser enquanto libertação. É um precisar essencial. Esse libertar significa a afirmação do que é, das possibilidades do que cada um é, frente às possibilidades da funcionalidade da bicicleta no que ela é. A confiabilidade se funda no vigor dessa dupla possibilidade de ser no sendo.

Umas não anulam as outras, embora sempre as possibilidades de ser precedem necessariamente as que aparentemente são as primeiras, as possibilidades da funcionalidade, tanto que ser se pode atualizar e realizar de muitas maneiras e não só e apenas no andar de bicicleta. Poder ser é a possibilidade de ser na medida em que o ser é a possibilidade de ser enquanto poder. Nosso mundo se entretece nas múltiplas possibilidades dos múltiplos utensílios. Afirmar essas possibilidades inerentes ao ser humano e para ser humano, na sua relação com as possibilidades do ser da bicicleta – dos utensílios – é que é a confiabilidade. É o confiar em si, no que é e pode ser: livre. A confiabilidade é a presença constante da afirmação da liberdade frente à necessidade tanto externa: andar de bicicleta, livre, solta, sem a necessidade das rodinhas; quanto interna: a alegria de poder “manejar”, manipular o utensílio de acordo com o alegre e grantificante jogo, e o exercício e a realização das suas possibilidades de ser livre: ser menina com o ser da bicicleta.

Quem se der ao trabalho de parar e observar uma criança se libertando da presença das rodinhas e, concentrada, mas firme e confiante, começar a dominar a bicicleta, atualizando suas possibilidades, porém, muito mais as possibilidades que estão dentro dela, de cada um de nós, constatará a essência do utensílio: a confiabilidade. São pequenas quedas, novas tentativas, titubeios, paradas, retomadas, avanços, paradas, desequilíbrios, retomadas, uma luta firme pela afirmação de ser sendo, libertar-se, concretamente, pois tem confiança. Ela conseguirá. É questão de tempo. Consegue. Então, são arrancadas, freadas, voltas, corridas, curvas, aceleração, livres descidas ladeira-abaixo, concentrados esforços ladeira-acima, suave bater do vento no rosto, irromper no aberto da clareira da terra, olhar confiante em si e na sua relação com a bicicleta: a livre sensação de realização do que é: sendo alegre e livre e confiante no entre da Terra firme e a clareira aberta do Céu. Luz e desvelamento: libertação.

Isto ela só pode fazer porque tudo isso brota do confiar que lhe advém das possibilidades de ser. Por isso, quando se ensina a uma criança a andar de bicicleta, recomenda-se: não olhe as rodas, olhe para frente, esqueça os pedais, pedale, pedale, não pense na bicicleta, aja, pedale, seja poética. Não é pensando nas partes da bicicleta e suas funções, não é pensando se pode andar ou não, não é pensando nos outros que ela vai andar. É concentrando-se em si e nas suas possibilidades, no entre que reúne e põe em ação as possibilidades da bicicleta com as suas, dando-lhes sentido e realização. O sentido dessas possibilidades ela já o tem, que são as livres possibilidades de ser livre, que, já desde sempre, lhe foram doadas. Ela não as apreende e nem aprende olhando para fora nas circunstâncias. É um momento originário e originante, mágico e manifestante: sair andando, correndo, afirmando a liberdade sobre e com a necessidade.

A bicicleta, o utensílio, não está, não é, em função de um sistema. Seu sendo não se dilui na impessoalidade de um organismo, de uma rede de meras relações, sejam elas de que natureza forem: sociais, psicológicas, morais, religiosas etc. Sua coisidade como utensilidade está integrada na verdade do que a criança é enquanto é exercício de realização e afirmação: Livre, confiante, realizante de um mundo que a configura ao configurá-lo, um mundo enquanto realidade como realização de possibilidades realizadas. E a bicicleta manifesta também suas possibilidades realizando as possibilidades da criança. E então ela também chega a ser o que é pela sua integração num mundo que eclode a partir da manifestação da terra no ser da criança: no que ela pode ser pelo que ela é, e no que ela é pelo que ela pode ser. Confiabilidade. É o ser se manifestando em seu sentido: mundo e verdade. Verdade e realidade. Confiabilidade e libertação.

Quando um operário, que mora longe da fábrica ou da escola, pega sua bicicleta e faz o percurso mais rapidamente, esta ainda está realizando tanto as possibilidades que lhe são inerentes como as do operário. Porém, querer reduzir a bicicleta a essa utilidade é esquecer o que ela é em si e que o operário, além de ser operário, em primeiro lugar, é também possibilidades, e que estas não se reduzem à sua função de ser operário. Para pegar e utilizar a bicicleta na repetição automatizada do cotidiano, o operar do operário traz em si – ainda que latente – a confiabilidade, a possibilidade de ser em funcionamento. Ele a manifestou e conquistou quando como qualquer criança – ou posteriormente – teve o desafio de, a partir de si, “domar” a bicicleta e fazer vigorar o que lhe é essencial: a libertação. O operar do operário opera e só pode operar na vigência de suas possibilidades de ser, isto é, ser enquanto é um ser que manifesta seu ser na vigência e manifestação da liberdade. Obra-de-arte: techné e poiesis.

E assim o ser humano se vê sempre num “entre”, num “E” tão fundamental quanto abismal. Entre as necessidades essenciais – ser, manifestando-se como livre e funcional – ser, manifestando as possibilidades do utensílio enquanto doação de Terra e Mundo. É um “entre” único e fundamental. Quando esse “entre” deixa de vigorar, surgem as dicotomias tanto em relação ao essencial quanto em relação ao funcional. Tanto em relação aos outros quanto em relação às coisas, enquanto utensílios. Tanto em relação às palavras quanto em relação às coisas. É porque não há palavras sem coisas e coisas sem palavras. Se isso acontece é o duplo de conceitos e palavras e não de palavras e coisas. É epistemologia. As palavras E as coisas não são as palavras e os conceitos. Aquelas não podem ser objetos de nenhuma epistemologia. Só estes.

A obra-de-arte é o não-utensílio e por isso jamais se pode exigir dela ou reduzi-la à funcionalidade, porque a obra de arte é o próprio do homem se manifestando no que é: seu humano, seu Entre-ser no Entre-seres. Como obra-de-arte, o ser humano experiencia a libertação enquanto o que é e o faz experienciando o que é enquanto tempo, verdade, mundo e sentido originários. Em coisas simples. Como andar de bicicleta, jogar bola, construir uma bicicleta, uma casa ou estar disponível para o outro. Confiabilidade. Entre a obra-de-arte e a utensilidade do utensílio: Confiabilidade.

Já o utensílio e o ser humano formam um tempo, verdade, mundo e sentido circunstanciais diretamente relacionados ao operar do sistema e organismo enquanto corpo. Mas estes também vigem no “entre”, não fosse o ser-humano, um entre-acontecer. A ausência do vigor do “entre” é que cria as dicotomias, pelas quais se querem explicar ou este por aquele ou aquele por este (na velhíssima dicotomia e duplo metafísico e falsa questão: O que é primeiro a galinha ou o ovo?), ou ainda a incompatibilidade de um e outro. Todo primeiro pressupõe um segundo. Todo originário não pode pressupor nada porque é sempre presença, realização, acontecer: consumação do que é nas possibilidades de ser no como é. Libertação.

O utensílio e suas funções estão diretamente ligadas à forma, à matéria e às explicações causais eficientes. Tudo reduzido e reunido na causa final: a funcionalidade determinada pela finalidade. Mas como pensar a causa a partir da confiabilidade, do entre obra-de-arte E utensílio, do entre Terra E Mundo? Como e a partir do quê a causa pode causar, ser causa? Como e a partir do quê a bicicleta pode ser “causa/coisa”?

A obra de arte, sem funções, deixa-se atravessar e constituir pela Terra sendo Mundo e pelo Mundo sendo Terra, numa disputa amorosa de manifestação e desvelo no entre retrair-se e velar-se misterioso do poder fazer da necessidade a afirmação da liberdade. Sendo e não ente. Este, perdendo o vigor verbal do ser, substantivou a realidade que é sempre entre-acontecer.

No limite instável, mas discernível do não-útil e do útil, do não-funcional e do funcional, está sempre um entre. Um entre misterioso que une possível e disponível, necessário e livre. Ser menina E ser bicicleta: a menina e a bicicleta. É a confiabilidade: o a-ser-pensado.

01 outubro 2008

Crítica e realidade: teoria, sistema, disciplina


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Quando Antônio Cândido defende a idéia de que a literatura é um sistema, o que essa idéia pressupõe para o crítico nisso se basear? O que imediatamente fica claro é o fato de que para chegar a essa formulação, esta só é possível dentro dos quadros da modernidade. Qual o princípio básico que rege toda a modernidade?
A consciência crítica, isto é, a razão crítica, encontra nessa formulação de A. Cândido o desdobramento do que ela estabelece como princípio. Desde o início se soube que a ciência nascia e nasceu sob o lema da intervenção em todos os aspectos da realidade. Pelo princípio da intervenção, a natureza como tal é esquecida e se torna o objeto de uma intervenção teórica, que desdobrada em saberes epistemológicos, criou as disciplinas. Estas têm, portanto, como princípio, um sistema de conhecimento com uma finalidade: a intervenção funcional. Esta intervenção não tem limites e não se restringe somente à dita natureza, mas a todos os âmbitos da realidade, aí incluídas as relações humanas e o próprio ser humano. O princípio, no fundo, se move numa nova concepção da realidade, do social, do homem, automaticamente entram aí todas as produções do ser humano, não se excluindo a própria arte. Se a faceta principal é a funcionalidade, tudo se torna instrumento para conseguir os fins da funcionalidade. Tudo, de algum modo, deve ser incluído nesta instrumentalidade. A partir desta tudo se torna recursos: naturais e humanos. Mas será que a essência originária da realidade, do ser humano e da arte é o reduzir-se a recursos? Veja-se bem, não se nega essa faceta, mas a redução a recursos. As questões maiores da vida e do humano podem ser reduzidas a recursos? Podemos notar facilmente a íntima relação entre a nova ciência e os recursos. Mas devemos também notar que quando tudo se reduz a recursos, surge aí, naturalmente, o valor que um recurso como possibilidade de intervenção e circulação no sistema produz. Todo valor influi e tem conseqüências no sistema de relações sociais. Mas quando o valor surge de seu poder de interferência, de intervenção funcional na realidade, todo o seu âmbito de sentido fica reduzido à funcionalidade. Isso acaba por corroer os valores do humano como tal. Transformar esse valor funcional em capital foi uma conseqüência natural e necessária do princípio da intervenção funcional, senão não há como distinguir, criticamente a funcionalidade e operatividade dos recursos. Cria-se um círculo vicioso entre a operatividade e as novas descobertas da ciência aplicada, pois, no fundo, toda nova ciência é essencialmente ciência aplicada. A ciência passa a retroalimentar-se dos próprios recursos que ela cria tendo em vista a aplicação, a intervenção, a renovação, as novas descobertas, onde uma supera a outra. Essa superação tende a redundar numa maior funcionalidade e, conseqüentemente, numa maior valor de circular e uso. Isto pode acontecer na arte? Não há como. Cervantes não supera Sófocles. Mas a arte não é regida pelo princípio da intervenção. Ela não intervém na realidade, ela manifesta a realidade como realidade, isto é, em mundo. Daí a impropriedade da aplicação dos critérios de forma e conteúdo para análise, classificação e conhecimento das obras de arte. E como fica aí, então, a crítica? Esta é a questão. É ela que cria o próprio padrão de avaliação das obras ou o padrão deve vir das próprias obras?
Mas não há funcionalidade sem sistema de relações. É neste horizonte que há uma correlação entre crítica e sistema. Embora a teoria e conhecimento científicos se queiram universais, isso não nega a mudança, pois ela é pressuposta pela teoria intervencionista, pela imposição de um conhecimento à própria realidade. O mais interessante é que esses conhecimentos se põem e defendem uma objetividade em relação à realidade, quando, em verdade, ela não passa do âmbito da teoria como conhecimento da realidade. Mas um conhecimento onde a própria realidade enquanto physis já foi deixada de lado, já foi esquecida. Porém, será que podemos esquecer o que não pode ser esquecido, pois sem ela não vigoramos no que nos é próprio. Esquecê-la é nos esquecermos. E não será essa a crise ética profunda em que estamos mergulhados? Como viver bem se vivemos esquecidos do que somos?
A intervenção sofre mudança e transformações, mas não o princípio de formulação da intervenção. Até porque a teoria interventiva pressupõe a funcionalidade, que é sinônimo hoje da competência. Pode o artista ser, nesse sentido, competente? Não, porque a criação não é uma questão de competência, mas muito mais e essencialmente uma questão de auto-escuta e de auto-diálogo. Todos somos convocados e provocados a nos tornarmos artistas, a fazer da vida uma obra de arte.
É dentro desse quadro interventivo e funcional que, naturalmente, a teoria do ente (sendo) como matéria e forma se torna o padrão para todas as áreas de conhecimento ou disciplinas. A essa determinação não fogem nem as artes enquanto teorias ou correntes críticas ou literárias. Ou ainda como vanguardas. Podemos notar facilmente que há uma correlação imediata entre o conhecimento funcional e o domínio da técnica, mas não mais no sentido grego. Pode-se notar também como o próprio fazer artístico se torna de antemão uma corrente/teoria artística ou literária. Mas assim como a natureza, enquanto physis, foi esquecida e tornada objeto de intervenção também o fazer poético como tal foi esquecido e foi determinado pelas teorias prévias. Matéria e forma jamais nos conduzirão à experienciação do que seja a obra poética, a obra de arte. Elas são determinadas pela finalidade, isto é, pela funcionalidade. E esta é própria do utensílio, jamais da obra de arte. Esta, já nos disseram os gregos, tem um “telos”, um “fim”, mas não uma finalidade, pois o “telos” grego quer dizer consumação, plenificação de realização e sentido, ou seja, é o princípio (arché) em vigor de plenitude. É a manifestação da realidade em sua verdade. Obra de arte é manifestação de mundo enquanto sentido e verdade da realidade, ou seja, mundo eclodindo.
Para o princípio de intervenção, a literatura, para ser literatura como tal, só o pode ser se se constituir num sistema. Podemos observar que os mais diversos conhecimentos científicos são sempre interventivos. Mas sobretudo também os das chamadas ciências humanas. Qualquer teoria sociológica mostra seu grau de verdade na proporção da possibilidade da intervenção político-social. E isto sempre em nome do ser social do ser humano. A contradição entre a realidade social em seu acontecer poético e as teorias vem do fato de que estas querem, em nome da intervenção, estabelecer, determinar e controlar o acontecer da realidade, como se a realidade fosse a teoria ou as teorias da realidade, sejam elas sociais, psicológicas, históricas, literárias etc. Se a teoria fosse a realidade não haveria tanta mudança de teoria e tantas teorias dentro de uma mesma disciplina. Isso apenas prova como a realidade enquanto acontecer poético e de mundo fica esquecida e é sempre mais do que qualquer teoria ou sistema. E que é isso – o que se esquece e a realidade teimosamente se nega a entregar? Por que ela se recusa, esgueira e dissimula?