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Os limites do mundo são os limites da linguagem. Wittgenstein.
A linguagem fala, não o homem. O homem só fala quando corres-
ponde à linguagem. Heidegger.
Linguagem e língua
O alcance de toda leitura está diretamente ligado ao alcance da atuação e compreensão do que é linguagem. Para deixá-la atuar, temos que nos abrir para a sua fala, exercitando a escuta. Para compreendê-la, temos que afastar qualquer pretensão conceitual e tomar profunda consciência de que ela é essencialmente uma questão.
No entanto, muitos são os conceitos de linguagem que dizem mais respeito ao que é língua e o seu estudo sistemático remonta aos sofistas através da invenção da gramática. A linguagem propriamente dita como questão sempre fez parte de todo fazer mítico-poético. Basta lembrar o mito de Hermes, cujo nome significa verbo, daí ser um deus mensageiro que se constitui na própria mensagem. A linguagem está diretamente ligada a outros dois termos correntes que também apresentam múltiplos conceitos, quando tratados pelas teorias gramaticais e lingüísticas: língua e discurso. Como questão a linguagem é a mãe de todas as línguas e discursos.
Aqui interessa-nos o questionamento e compreensão da linguagem na sua referência com o concreto exercício da leitura e da interpretação. Toda língua se move no âmbito da linguagem e diz mais respeito ao uso dos signos verbais. Embora o signo verbal seja fundamental não se pode confundir simplesmente a linguagem com a palavra circunscrita às línguas. Há também a linguagem musical, pictórica etc. A linguagem verbal também é muito variada, de que é prova a existência das muitas línguas. Cada língua é a manifestação concreta da linguagem, o rito de sua efetiva realização. Todas as línguas, como ritos, dizem o diferente, mas como linguagem dizem sempre o mesmo, embora não digam as mesmas coisas. Só porque a linguagem diz sempre o mesmo é que um mesmo homem pode falar diferentes línguas, traduções podem ser feitas e haver a tradição viva da memória.
As línguas pressupõem a existência da linguagem como possibilidade de sua operação. Não há uma separação entre linguagem e língua, pois elas formam uma dobra de identidade e diferenças como seu desdobramento. Assim como toda língua se dá numa tensão de significantes e significados, a linguagem se dá numa tensão de fala e silêncio. O desdobrar-se desta dobra de fala e silêncio realiza-se no diálogo. A existência de diferentes linguagens está diretamente ligada à variedade de manifestações da realidade em seu sentido e verdade. A realidade é múltipla, por isso também o é a linguagem, porque não há realidade sem língua, que é a linguagem em seu vigor de manifestação.
Linguagem e língua constituem uma dobra, sendo impossível a sua separação. No entanto, podemos apreendê-las em duas instâncias bem distintas, embora não sejam, em-si, separáveis. Quais são? Quando pensamos a linguagem E a língua como sintaxe, na verdade, com esta palavra pensamos o próprio ordenamento da realidade em mundo. O que é mundo? Não há mundo sem linguagem, porque então ele e ela nos remetem para o sentido e verdade da realidade manifestando-se em realizações. Quando compreendemos a realidade como conjunto de realizações então o apreendemos como mundo realizado, ou seja, o real. Temos já aí as duas instâncias: a realidade se realizando como linguagem, que constitui o mundo e o real como mundo constituído. O mundo constituído não é algo estático nem separado do mundo se constituindo, mas são diferentes. O mundo se constituindo se dá como linguagem poético-manifestativa. O mundo constituído consiste num sistema de relações em que a linguagem em seu poder manifestativo se retrai para ser reduzida ao seu poder de inte-relacionar: os homens entre-si e o homem com os todos os demais entes. Neste caso temos a linguagem instrumental. Sua instrumentalidade consiste numa abstração em que fica reduzida ao produzir as relações funcionais em que se mantém o mundo constituído como sistema. Pela abstração a linguagem passa a ser compreendida como código. A linguagem poético-manifestativa produz mundo. A linguagem instrumental re-produz o mundo. Estas duas dimensões não são separadas, mas efetivam diferentes possibilidades que constitutem originariamente o próprio da linguagem como linguagem na sua concretização enquanto línguas.
A linguagem como palavra
As reflexões que se seguem privilegiam a linguagem verbal e esta ainda na sua forma escrita, porque estão voltadas para o complexo exercício da leitura da escrita. Porém, a leitura como leitura é mais. Não há leitura sem escuta. Mas toda escuta pressupõe uma fala.Toda leitura se exerce na apreensão da realidade enquanto manifestação do que ela é pela palavra. Ela é e não é linguagem, pois esta se presentifica na palavra como fala e escrita, ao mesmo tempo que se retrai como linguagem.
A palavra é uma força misteriosa e ambígua. Ela deixa entre-ver sua ambigüidade ao apreendermos o jogo misterioso em que se entre-tece. Palavra se forma de um prefixo grego para-, que significa junto a, entre; e do radical oriundo do verbo grego ballo, que significa jogar, lançar, pôr, originando inicialmente para-bola. Esta reduziu-se e formou palavra. Em si, indica o que se põe e coloca e joga entre. Todo “entre” é ambíguo e poético-ontológico.
O jogo do entre das palavras dá origem à sintaxe. Dentre as classificações gramaticais, ela exerce uma função nuclear, porque não se pode falar de língua e suas categorias sem a constituição de um sentido e mundo como lugar. A palavra sintaxe, de origem grega: syn, com, e tacsis, ordem, já compreende a língua como estruturação da realidade num ordenamento significativo. Quando tal acontece temos um discurso, que é a tradução latina de logos, no sentido de oração.
Ele compõe-se do prefixo dis- e do radical –curso, que deriva do verbo currere: fluir, o correr e decorrer do tempo. No dis-curso, o tempo se faz linguagem, não apenas no sentido gramático-formal, mas enquanto também conforma e expõe a ordem social em instituições que configuram a memória de um povo histórico. O discurso é o cursar histórico do homem estruturando-se como tempo no finito de seu não-finito, gerando o presentificado como presentificante do presentificável. Daí a ligação entre discurso, tempo e memória. Os conceitos de língua e discurso, nas suas versões gramaticais, têm a sua origem nos conceitos filosóficos gregos, que apreendem e definem a realidade de uma maneira essencialista e metafísica. Por isso não dão conta do vigor manifestativo da Linguagem poética.
Linguagem poético-manifestativa.
Meu lema é: a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não
fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive.
Guimarães Rosa (Entrevista a Günter Lorenz).
Nós não sabemos o que a linguagem é nem carecemos de saber, porque ela não é, dá-Se. E dando-se, é. Tudo que dizemos saber e não-saber o dizemos pela fala já sempre presente da linguagem: ela tanto nos fala e nos atrai quanto se retrai para o seu mistério. A nós cabe a escuta. Em sua essência e concretude, a linguagem é a identidade das línguas, assim como as línguas são a diferença de toda identidade. Não há identidade sem diferença nem diferença sem identidade.
A característica fundamental da linguagem poético-manifestativa é a ambigüidade poética. Esta acontece quando a realidade se constitui em mundo. Na ambigüidade poética é a própria realidade que se manifesta ambigüamente. Ela se dá enquanto se retrai, se oferece ambiguamente como dia e noite, vida e morte, linguagem (Logos) e natureza (Physis).
Toda obra de arte radica na ambigüidade poética e teríamos como exemplo, entre outros, a famosa tragédia de Sófocles Rei Édipo. No personagem Édipo, como imagem-questão, a realidade comparece em sua mais radical ambigüidade. Quanto mais ele se julga o mais inteligente dos homens tanto mais é paulatinamente diminuído, até reconhecer que é o que Nada sabe. E quando não mais vê, porque arrancou os olhos, então é quando mais sabe e “vê”. Como disse Hölderlin: adquiriu o terceiro olho. Inicialmente pensa que o homem é a solução do enigma (e disso se vangloria e por isso recebe o poder), para finalmente ficar sabendo que o homem não é a solução de nada, mergulhando no mais profundo e insondável abismo do mistério da realidade. Normalmente só se cita o enigma do homem em suas três diferentes fases de manifestação, mas há um outro enigma, complementar ao primeiro e normalmente não citado, que a esfinge lhe coloca, e onde a ambigüidade é a resposta. Diz ele: “São duas irmãs. Uma gera a outra. E a segunda, por seu turno, é gerada pela primeira. Quem são elas? “A luz e a escuridão”, diz Édipo. “A luz do dia, clareira aberta no céu, gera a escuridão da noite, que, por sua vez, precede a luz do dia” (Mitologia, 554). No homem, a realidade se dá ambiguamente como luz e escuridão, saber e não-saber, dia e noite, vida e morte, querer e não querer, verdade e não-verdade, ser e não-ser. Esta é a ambigüidade poética, é a realidade se dando e manifestando como linguagem no homem, em seu sentido mais radical.
Numa tentativa de pôr em evidência a questão que é a linguagem, vamos distinguir nela dois aspectos: instrumental e poético-manifestativo. É uma tentativa de levar o leitor a se abrir para o enigma e o vigor de toda obra de arte, para que abrindo-se para a escuta de toda fala da linguagem, no silêncio de sua fala, gere um diálogo de escuta fecundo, de que as diferentes e possíveis interpretações sejam o sinal efetivo. Interpretações não do leitor em sua pseudo-subjetividade, mas da verdade da obra de arte no vigor do seu operar manifestativo como linguagem poética. Só assim o homem se manifesta naquilo que lhe é próprio, porque abrindo-se e escutando o que se retrai em tudo o que o atrai, cada leitor se descobrirá apropriando-se do que lhe é próprio, onde radica a essência de sua liberdade. Porque a arte, enquanto obra, opera libertando. Ao distinguirmos linguagem instrumental e poética, tentamos levar o leitor a perceber os níveis de realização da linguagem e não a criar mais dicotomias.
Auscultemos o que nos diz a poesia:
A rosa
A rosa é sem por quê
Floresce por florescer
Não quer saber de si
Nem se alguém a vê
(Angelus Silesius)
Se a rosa é sem por quê, isso quer dizer que não há causa nem conseqüência, ou seja, não há uma funcionalidade nem uma finalidade. O poema da rosa e a rosa do poema não servem para nada no sentido de ter alguma utilidade. A rosa vale pelo que é simplesmente.
O que somos também não pode ser determinado pelo olhar dos outros nem pelo que está na moda ou pelo que predomina como demanda de consumo no contexto social. O outro, sempre presente no diálogo que todos somos, não é determinante para aquilo que somos e não somos, mas o sinal visível e externo da afirmação de nossa diferença. O outro não pode ser a minha medida, senão nos medimos por algo que nos é estranho. Mas ele deve compartilhar, pela com-paixão, a aventura de sermos no apelo abismal de todo diálogo. No diá-logo, o Logos, como linguagem, poética reúne o ser e não-ser que cada eu e cada tu é. A relação entre eu e tu se dá como compreensão e não como conhecimento racional e representacional (expresso numa pro-posição). O eu encontra no tu uma afirmação e negação: o eu não é o tu e por isso é o eu, mas, por sua vez, o tu se posiciona diante do eu como eu, tornando o eu também um tu, pelo qual o tu também se afirma e nega, afirma-se como eu diante de um outro eu que então se tornou um tu, ou seja, tanto o eu como o tu são e não são. Nesse jogo de referências se dá o diálogo intersubjetivo em que a relação eu e tu se torna o lugar de eclosão de ser e não ser em que consiste toda subjetividade (no sentido do que cada um é). No diálogo, a medida não é o eu nem o tu, e, sim, o Logos de todo dia-logo que reúne o ser e o não-ser de cada subjetividade e de cada identidade. O outro que é o tu nunca é o Outro que ainda não somos, mas somos sempre o Não-ser, num jogo de negação e afirmação, de identidade e diferença, de manifestação e velamento, de doação e retraimento. Só somos sendo, em permanente devir, por isso somos e não somos. Daí que a linguagem poética não é o consenso dialogal pelo qual o horizonte vivencial se reduz à anulação da tensão entre ser e não-ser, pela opção por uma identidade abstrata, consensual, comunicativa, circunstancial, contextual, onde se perde o sentido e fundamento de toda tradução possível e tradição historial, reduzindo o acontecer poético à linearidade discursiva de causas e conseqüências. A linguagem só pode ser entendida como social quando é reduzida à funcionalidade comunicativa e informativa. O ser é esférico e horizontalmente vertical. E todos nos vemos sendo no circular esférico e ao mesmo tempo vertical, porque ascensional e descensional. Não é isso o que faz a árvore na tensão de copa e raízes?
Por isso, ser poeticamente não é pro-curar ou achar um porquê, mas florescer e desabrochar cada um em plenitude. Nisto consiste o fim (telos) sem finalidade, porque telos quer dizer: consumar, levar à plenitude o que nos é próprio, ou seja, o que nos foi dado para ser. O telos é a própria verdade e sentido da realidade eclodindo, desvelando-se. Ao contrário, na linguagem instrumental, o fim não é a verdade, mas a persuasão medida e determinada por uma finalidade a ser atingida objetivamente e pré-estabelecida idealmente. Ela não liberta, anula as possibilidades de ser. A persuasão, não assimilada e adotada livremente, leva ao consumo desnecessário, à aparente satisfação, à mistificação, às opiniões, às crenças ideológicas, à possibilidade do domínio do olhar do outro. O outro se torna a nossa medida e isso nos aliena, nos afasta do que somos. Tal ocorre quando a pessoa não escolhe livremente, mas opta por alguma dessas de-cisões, motivada por algo que lhe é externo. Na sociedade da informação, a formação, em geral, passou a ser a aquisição de conhecimentos enquanto instrumento funcional. Na sociedade de consumo ser é só ter algo: conhecimentos (informações), emprego, profissão, dinheiro, bens, função nas relações do mundo constituído, objeto do código comunicativo. A linguagem instrumental está sempre em função de alguma coisa que lhe é externa, seja na relação do eu com o outro, seja na relação de cada um com o mundo e com os objetos que o constituem.
A sociedade de consumo ignora e esquece a sua origem: a linguagem poética. Tal esquecimento faz do homem pós-moderno um desenraizado, porque sem memória e sem país natal (todos nascemos por sermos e para sermos a nossa origem). Esse é o nosso grande drama: a dispersão, a falta de referências, a presa fácil no jogo dos interesses de mercado, da atração por uma hiper-realidade que nunca se realiza no simulacro das representações, da triste descoberta da mais profunda solidão na balbúrdia e falatório dominante da comunicação. E, no entanto, cada um anseia tão profundamente o viver simples, livre e feliz, porque a linguagem poética mora em nós e nos emite sinais permanentes de sua presença.
A linguagem poética nunca se dissocia nem das coisas nem das pessoas. Por isso diferencia-se da sócio-instrumental. Aquela sempre implica uma verdade que não é a opinião, mas a eclosão do que cada um é, do que é uma comunidade humano-histórica. A linguagem poética dá um sentido. O sentido é o caminho tanto pessoal como da comunidade histórica enquanto sentido do agir. Pelo agir gera-se um caminho que é o sentido e verdade da realidade.
A verdade se torna verdade na medida em que a ação eclode como linguagem poética. Esta manifesta, pois, a verdade e sentido de cada um inserido numa comunidade, à medida que ela produz as obras poéticas. São estas que se tornam a memória de um povo, pois não indicam um passado que passou, mas um passado que dá o sentido e verdade do futuro no presente, através das interpretações, enquanto novos e possíveis caminhos. Ao contrário do informar e do conhecer racional (científico), o compreender é o deixar-se surpreender pelo vigor de todo interpretar, apreendendo-se cada um enquanto fazendo parte de uma comunidade humano-histórica que tem seu vigor na memória da linguagem poética. É então que se dá o diálogo pleno, no qual o Logos do diá-logo se torna o lugar de afirmação e manifestação do que cada um é e não-é. A linguagem poética, por ser a fonte de todo sentido e verdade, torna-se o horiazonte no qual pode ocorrer e dar-se a linguagem sócio-instrumental.
A linguagem poética faz do leitor um intérprete. Este não é um consumidor, mas um agente que se liberta pela ausculta e correspondência ao apelo da linguagem poética das obras de arte. Com ela não se conhece algo. Nada lhe é externo nem interno. Nela, nunca há persuasão nem objetivos externos nem finalidades e mensagens, pois não é uma medição ou instrumento funcional ou sistema de signos. As coisas, as pessoas chegam a ser o que são na medida e na proporção em que se manifestam como linguagem. Por isso a linguagem poética não gera crenças ideológicas, opiniões, ideais. Nunca é passível de um ensino e aprendizado, só de aprendizagem. Leva cada um à experienciação da vida em sua tensão de ser nos limites os não-limites, de surpreender no ordinário o extraordinário e inesperado. Não gera o prazer medido dos consumidores dos produtos disponíveis e oferecidos pelo mercado, sejam estéticos, sejam materiais. Deixa cada um acontecer. O livre acontecer é a essência da linguagem poética. Ser, enquanto Linguagem poética, significa articular os três significados fundamentais que aparecem nas etimologias que formam o verbo ser: 1°.surgir; 2º. viver; 3º. permanecer. Ser significa lançar-se no círculo do vigor de surgir, viver e permanecer para se con-sumar. Con-sumar é levar ao sumo, à plenitude. A linguagem poética enquanto identidade concreta concretiza e funda o mundo das diferenças. Nestas vigora a memória poética, que dá a cada um a sua identidade, na medida em que faz eclodir cada um poeticamente como diferença. A linguagem poética é o vigor da comunidade humano-histórica, enquanto memória do ser, onde cada cultura e cada época encontra o seu sentido e verdade.
Ser e linguagem poética se co-pertencem e se auto re-ferenciam. A memória poética não diz de um recordar o passado, mas do vigorar do passado no presente como possibilidade de futuro. O futuro será o que desde sempre já se é. A memória do ser é o tempo se plenificando, pois nada há fora do tempo. Por sermos temporais, o tempo não pode nos ser externo, como se fosse possível viver fora do tempo. O tempo, a história e a memória só podem eclodir como linguagem poética. Ela é o tempo, a história e a memória eclodindo como sentido e verdade do ser.
Ser não é verbo de ligação, em que se liga um sujeito a um predicado. Ser também não é algum ente especial localizado fora do tempo e do espaço, a-temporal, abstrato, ideal. Viver é ser enquanto puro livre eclodir. A linguagem poética manifesta o mundo enquanto mundo. Mundo é o eclodir do ser (surgir, viver, permanecer) enquanto linguagem poética. Mundo como linguagem poética é o instituir a realidade como verdade e sentido. Linguagem poética e mundo são o ser (surgir, viver, permanecer) enquanto sentido e verdade da realidade. A realidade que se realiza como mundo é o livre jogo de manifestação da linguagem poética como sentido e verdade.
A linguagem instrumental
A interpretação do Logos como linguagem instrumental se torna mais clara no decorrer e eclosão da Modernidade, embora tal interpretação do lógos tenha começado já entre os gregos através dos sofistas, inventores da gramática. Com a predominância do conhecimento sobre o ser (Descartes, Kant), todos os ob-jetos do conhecimento para a Ciência passam a ser construções racionais (Logos=razão), através das pro-posições críticas. A linguagem instrumental encontra na Ciência a sua plenitude, pois a palavra instrumental provém do verbo latino struere que significa organizar e instituir os elementos num todo, numa ordem, numa sintaxe. Este todo surge como ob-jeto, na medida em que é lançado (jeto) diante do (ob) sujeito através da pro-posição crítico-racional. O ob-jeto é a o-posição ao sujeito gerada pela pro-posição como ex-posição do conhecimento do su-jeito (sub-jectum). O objeto é uma construção do sujeito crítico-racional através da linguagem, ou seja, o conjunto dos objetos (real) são o resultado instrumental do exercício da linguagem enquanto expressão do conhecimento crítico-racional (Logos). Falta à Razão (Logos) dar conta da dis-posição, que é a abertura constitutiva do homem para o ser. Hoje, este caráter instrumental e científico-racional de interpretação do Logos acabou por se impor a todas as percepções teóricas do real, contaminando toda a vida cultural nas suas mais diversas e diferenciadas versões da realidade. A linguagem instrumental é de tal maneira onipresente que, em geral, nada se faz sem que se pergunte de antemão: Para que serve isto, para que serve aquilo? Qual a intenção? Qual a mensagem? Nem sempre nos damos conta de que o querer achar utilidade em tudo provém da interpretação instrumental do Logos e da coisa, na medida em que reduzem as possibilidades da linguagem a essa funcionalidade.
O mais interessante de tudo isso é que a própria instrumentalidade acabou por penetrar na essência do conhecimento como um duplicar teórico, pois fruto de de-cisão que cindiu Ser e Razão, natureza e cultura. Disso resultou, em nossos dias, que os meios de comunicação são o grande poder de controle da sociedade. A produção e circulação de bens de informação chegam a ser mais importantes que as produções industriais. O conhecimento torna-se informação e esta não gera uma sabedoria, mas um produto de consumo banal e descartável (experimente ler um jornal de uma semana atrás para experimentar como é descartável). A informação torna-se uma mercadoria e como tal é determinado seu preço. O valor/preço é o de mercado. Mas este valor, determinado pelo mercado, é mascarado pelo valor de conhecimento ou valor cultural (achar-se superior, importante é ter muitos conhecimentos ou coleções de livros na sala, é soma quantitativa e desconexa das partes, faltando-lhe a compreensão).
A linguagem instrumental, desdobrada nos vários meios de informação, pois instrumento é meio, faz da socialização dos conhecimentos (necessária e fundamental) uma aparência onde predomina o comercial e quantitativo sobre o qualitativo. Veicula-se o que vende e não o que é necessário para a formação e desenvolvimento das pessoas. Em si, a veiculação não é negativa, o problema são os conteúdos. As informações e os conhecimentos tornam-se meios, instrumentos. Quando não são isso, não são reproduzidos porque não vendem.
A linguagem instrumental tornou-se um código, um sistema de relacionamento funcional das partes no todo, reduzindo cada pessoa a uma função. Temos então o círculo da comunicação e informação, onde a linguagem fica reduzida a um meio e canal de comunicação e informação. É a linguagem revestida das opiniões do senso comum e dos conteúdos ideológicos, onde ocorre um profundo esvaziamento das palavras. Mais paradoxal é querer substituir uma ideologia por outra, em nome da redução da realidade a uma verdade: a do sistema que se quer impor. A realidade que se torna sistma deixa de ser realidade em vigor de acontecer poeticamente. Passa a haver uma dicotomia entre linguagem e realidade, e esta só nos chega como conjunto de representações já estabelecidas e valendo por si. Não se vive no diálogo a realidade, mas a sua representação enquanto código lingüístico.
Entre o eu e o tu não se faz presente a linguagem com seu poder manifestador, mas só enquanto código comunicativo do mundo vivido e já representado. O código pré-existe ao eu e ao tu determinando-os, anulando toda força do diálogo. Há só diálogo aparente, porque não se faz presente a linguagem poética enquanto força manifestadora do eu e do tu nas suas identidades e diferenças, no drama vital de ser e não-ser. Na sociedade comunicativa não mais se pergunta o que cada um é, o que cada coisa é, mas “para que serve?”
A linguagem instrumental é conceitualmente denonimada código. O traço fundamental deste é se constituir numa identidade abstrata. Ele é a base de todas as relações num sistema, que são possíveis porque a linguagem fica reduzida à sua funcionaldiade e instrumentalidade abstrata. A instrumentalidade tem diferentes graus de manifestação na sua complexa relação com a realidade enquanto real constituído como mundo já dado. Eis alguns.
O equívoco. Na vida cotidiana de cada leitor, o uso corrente da linguagem em sua aparente transparência é o mais determinante. No entanto, o ato de comunicação ou informação mais simples dá margem a contínuos mal-entendidos ou equívocos. Esta palavra se forma do latim aequivocus (aequus, semelhante, voco, chamar): que tem significações semelhantes e, por isso, se presta a mais de uma interpretação. A nossa relação com a linguagem é complexa, porque a realidade que ela nomeia e manifesta é também complexa. Isso torna difícil o mais simples diá-logo e qualquer leitura pode ser problemática e equívoca. Nem é necessário apelar para o significado metafórico, o equívoco aparece freqüentemente na literalidade. Esta, por seu aspecto abstrato e universal, tende a ser tomada pela linguagem. Contudo, isto é ilusório. Mais importante que a literalidade é a ideologia, a qual, em parte, determina para que direção um sujeito/receptor vai encaminhar a sua interpretação/significação, havendo sempre vários caminhos possíveis. Só podemos estabelecer esta relação porque a linguagem não é o espaço da literalidade e da certeza, mas sim do equívoco. Neste se incluem os atos-falhos, de origem muitas vezes inconscientes. Entre linguagem literal e mundo também não se dá uma relação direta e precisa: há o campo do desejo, da imaginação, da ilusão, da emoção, do sentir e da razão. Mas o que nisso há de fundo sócio-ideológico e de apelo ontológico? Nessa multiplicidade de relações, em que o outro é sempre uma projeção do eu de cada um, a partir da sua conjuntura e da janela pela qual vê o mundo, se desenha o que chamamos imprecisamente de subjetividade. Onde começa e termina o eu? Qual a sua consistência? Qual a sua identidade? O que é subjetivamente o corpo? Quando o horizonte da subjetividade e do corpo é a linguagem? Como incorporamos a sua equivocidade? A aparente subjetividade encontra nas formações discursivas o lugar do que poderíamos chamar de ideologia, onde um imaginário social projeta o horizonte do que aparentemente somos, ou pior, deveríamos ou deveremos ser. É o jogo da linguagem e seus equívocos. Quando fazemos da leitura uma interpretação do que somos, é na questão da linguagem que se decide o sentido da leitura e nosso sentido e verdade.
A ambigüidade.
Ah, a dualidade das palavras! Guimarães Rosa.
(Entrevista a Günter Lorenz)
O equívoco tem como sinônimo o ambíguo. Mas a ambigüidade vai incorporar dimensões que vão mais além do equívoco. Ambigüidade compõe-se do prefixo latino ambi, que significa: de ambos os lados, ao redor de, no entre, e do verbo agere: agir, impelir. Formou-se então o verbo ambigere, que significa: tratar alguma coisa de ambos os lados, duvidar, hesitar, projetar criticamente num entre. A formação da palavra pressupõe uma oposição consistente e uma mediação, ou seja, um movimento de identidade (mediação) e diferença (oposição), na apropriação da realidade pela linguagem. A mediação é o âmabito do “entre”, de que se nutre toda ambigüidade. No circular do ir e vir surge a dúvida, a hesitação: é a ambigüidade como possibilidade de todo criticar. A ambigüidade é a dinâmica de manifestação e ocultamento de tudo que é e não é enquanto tempo e sentido na compreensão. A ambigüidade é a unidade sempre tensional de ser e não-ser, de língua e linguagem, de rito e mito, de caos e cosmos. A esse “E “ sempre presente corresponde o “entre” em seu vigor. As possibilidades do “entre” eclodem e movem o poder criticar, isto é, o discernir e diferenciar em que a realiade ambiguamente se dá.
O recurso à formação e etimologia das palavras quer realçar justamente o poder ambíguo das palavras em sua relação com a realidade. O sentido mais corrente de cada palavra, além de se prestar a equívocos, pode ocultar ambigüidades de que toda palavra é portadora. A mutabilidade da linguagem em sua aparente definição e estabilidade se torna um traço essencial de toda obra de arte. Se toda linguagem poética é ambígua nem toda ambigüidade é necessariamente poética. Isto nos leva a discernir e distinguir duas modalidades de ambigüidade.
1 – A ambigüidade semântica. Trata-se do simples fato de que as palavras podem apresentar mais de um significado. São polissêmicas. O contexto resolve algumas ambigüidades semânticas, ao menos numa primeira leitura. Muitas vezes, o texto poético articula mais de um significado, originando diferentes interpretações. As palavras, dentro de um texto, tendem também a se organizar em campos semânticos, possibilitando a escolha dentre os diferentes significados. Este fato delimita às vezes as possibilidades de interpretação, não se tornando, contudo, o traço decisivo para uma interpretação poética. Esta ambigüidade pode-se fazer presente nos diferentes textos, mesmo naqueles que se caracterizam pela claridade e objetividade dos conceitos e conhecimentos. Por isso também a linguagem instrumental se inscreve na amigüidade semântica.
2 – A ambigüidade retórica.
... descobri que a poesia profissional, tal como se deve mane-
já-la na elaboração de poemas, pode ser a morte da poesia
verdadeira. Guimarães Rosa (Entrevista a Günter Lorenz).
Aqui entram todas as figuras e demais recursos retóricos que vão do paradoxo à ironia. Como podemos ver, esta ambigüidade inclui a anterior. Em geral, o tratamento retórico da linguagem é confundido com o tratamento poético. O assunto é complexo, mas há uma distinção fundamental. A retórica tem por fim último a persuasão, ou seja, implicitamente esta ambigüidade tem um fim, inscrevendo-a na linguagem instrumental. Normalmente, sua finalidade é o envolvimento tanto emocional como racional do leitor/ouvinte, provocando o belo estético e o agradável, e assim possibilitando a quebra da sua resistência, para que a força da linguagem opere a realização dos fins que precedem toda elaboração retórica. Por isso, em geral, espera-se de toda obra de arte uma intenção, uma mensagem. Esta seria boa e bela, para distingui-la dos envolvimentos meramente retóricos que visam a um fim de antemão determinado. Por essa estratégia foi aberta a possibilidade de interpretação da obra de arte como algo que educa (forma para o bem, e transmite os valores e conhecimentos verdadeiros, bons) ou distrai (belo, divertimento). A obra de arte não tem mensagem nenhuma, ela desvela a realidade, mundifica. A linguagem poética é a própria realidade dando-se como linguagem. Na realidade, a ambigüidade retórica acaba por se sobrepor ao e reduzir o poético a um jogo retórico, onde as palavras perdem sua consistência e se tornam objeto de um jogo vazio de formas (determinadas pela funcionalidade e finalidade prévias). É a palavra esvaziada de todo o seu vigor e densidade poética.
Isto gerou ao longo da trajetória da cultura ocidental o entendimento formal e discursivo (embora ambíguo) da obra de arte, daí poder tratá-la como objeto, ainda que discursivo-lingüístico, e ser objeto de uma análise, determinando, ao mesmo tempo, o conhecimento das obras poéticas pelas formas, atreladas que estão sempre à idéia de utensílio ou instrumento. A classificação das obras em estilos de época e suas características, e o estudo das formas parte deste pressuposto. Achar e classificar as características retórico-formais acaba se tornando o caminho normal para a definição e distinção das obras de arte (e nisto, equivocadamente, consiste o ensino da arte). As histórias das artes partem destes pressupostos e, em geral, se resumem ao levantamento, classificação e diferenciação de tais recursos retórico-formais, numa seqüência linear e meramente historiográfica e até causal. No jogo temporal das formas, sejam formadas, sejam formantes, a linguagem poética fica reduzida a uma instrumentalidade e funcionalidade formais, ainda que se afirme que tais obras são objetos estéticos. A obra de arte passa a ser determinada pela funcionalidade estética.
Como tal a arte não tem história, só as obras em suas formas e datas de aparecimento, consideradas então equivocadamente como objetos da história. “Conhecer e interpretar” as obras de arte consiste nesse exercício retórico-formal. Isto é o tradicionalmente ensinado. Passa a dominar a conjuntura histórico-autoral. O lugar da conjuntura do leitor passa a ser simplesmente passiva e de memorização dos dados históricos, pseudamente objetivos. O leitor mesmo, com seu horizonte histórico e as questões que o absorvem, é simplesmente deixado de lado e desconsiderado. Podemos ver como, em tal circunstância, a obra de arte se torna mero objeto de uma análise e classificação retórico-formal, algo sem vida e sem vigor. Onde o operar de toda obra? Não opera. Onde o acontecer de toda obra? Não há.
Num outro sentido, o perigo está em deixar a obra de arte às intempéries e aleatoriedades do impressionismo dos leitores e suas subjetividades, onde toda dinâmica e vigor histórico inerente a toda obra se perde. De fato, cada um vê o mundo da sua janela. Ocorre que o mundo não é o que cada um vê, mas o que acontece. E só porque a realidade acontece é que pode ser vista. A linguagem é a realidade acontecendo como fala e visão. A linguagem fala, não o leitor. Este só interpreta como escuta do que já se ofertou como presença e retração.
A linguagem instrumental e o social
A conceituação de linguagem como um produto social está diretamente ligada ao círculo da reprodução e sua forte presença. Na velha e sempre presente dicotomia indivíduo/sociedade, esta sempre parece prevalecer. Um indivíduo sem uma sociedade e cultura que o identifique parece uma abstração, algo impossível de existir. O estudo das sociedades e culturas existentes ou já desaparecidas parece reforçar essa tese. Só se fala das pessoas na referência às suas culturas. As culturas e as sociedades que as encarnam se constituem em sistemas de identidade e valores ideológicos que se tornam o horizonte dentro do qual as pessoas se realizam. Como se a cultura, qualquer cultura, pudesse prescindir do humano, fundamento de toda cultura. Mas essa visão resulta da teoria positivista do século XIX, pela qual o homem seria um produto do meio, da raça e do momento. Daí ao determinismo histórico-ideológico foi um passo.
Nas artes resultou no Naturalismo e Realismo. A ciência se tornou o veículo do conhecimento e verdade de uma tal realidade, manifestados em princípios universais. Conhecer o indivíduo era conhecer o sistema do qual fazia parte. Mas um tal sistema só existe abstratamente. O modelo científico-positivista aplicado às línguas resultou na concepção da linguagem como códigos. O estudo da língua no seu funcionamento sincrônico enquanto sistema de signos de representações levou a um conceito estrutural e funcional-instrumental da linguagem. A concepção da realidade como o conjunto dos fatos dados, positivos, não levou em conta a dinâmica da realidade e seu processar-se histórico, enquanto memória e tradição histórica, enquanto permanente acontecer.
O século XX inaugura diversas tendências de superação do positivismo, pela problematização de funcionamento do sistema social, pois a relação concreta entre os socii e os sistemas é complexa e de maneira alguma redutível a uma relação totalmente passiva nas condutas sociais. Nestas, sempre se fazem presentes os valores. Mas como compatibilizar os valores já instituídos com as aspirações novas dos socii? O mundo vivido não dá conta do mundo das vivências comportamentais, tornando problemática toda teoria baseada em princípios universais abstratos. Contudo, a vivência comportamental de valores pressupõe a sua aceitação por parte do grupo, dos socii. Uma tal aceitação, tácita ou explícita, se move num consenso que só pode ser gerado onde existem relações intersubjetivas, pensa-se. O método científico aplicado aos fenômenos da natureza não pode ser o mesmo aplicado aos fenômenos sociais. Aqui interferem sempre os valores de vivências, experienciações e aprendizagens, e as relações intersubjetivas.
O conhecimento científico, baseado na consciência transcendental, não dá conta da intersubjetividade. Em conseqüência, é necessário ampliar o conhecimento do sistema social por meio de uma teoria das condições intersubjetivas de toda comunicação. A sociologia se vê na dependência de uma teoria da intersubjetividade, como possibilidade de toda investigação sociológica concreta. A razão tomou o centro de toda atividade de conhecimento na Modernidade, combatendo o mito, mas acabou por se tornar ela mesma um “mito”. A razão moderna, baseada no paradigma da filosofia da consciência, entra em crise, e com ela a subjetividade. Em lugar da razão e verdade como conteúdos e valores absolutos e universais, tornam-se procedimentos, resultante do jogo consensual na interação do indivíduo com o mundo dos objetos, com a vida interior e com os outros. É necessário levar em conta a intersubjetividade como base da razão e da verdade. Com isso o conhecimento racional dá lugar à compreensão. Mas a introdução desta só é possível fazendo-se uma crítica da consciência.
A razão e a subjetividade não têm sua base no sujeito epistêmico como o postulou Kant, mas sim na organização intersubjetiva dos falantes, na relação dialógica dos membros da sociedade, na ação concreta da procura de um sentido compreensivo do que cada um é e não é, do que a sociedade é e não é. Nesta perspectiva, só se pode falar em razão dialógica, pois resulta de um mundo cultural vivido pelos atores lingüisticamente competentes, expressando o que pode ser elaborado e querido por todos. A verdade e a razão deixam de ser valores absolutos e passam a depender do consenso vivido pelos falantes num determinado contexto, pensa-se. A vida social é o resultado de um consenso, onde a ação comunicativa pela linguagem é fundamental. A vida social é um jogo onde as regras são fixadas consensualmente pelas intersubjetividades enquanto possibilitadas pelo diálogo, pelo discurso. Na inter-subjetividade a grande questão está justamente na abertura que o “inter” já traz para as subjetividades. E não são estas que determinam o “inter”. O “inter” ou “entre” já constitui uma pré-compreensão que possibilita a inter-compreensão das subjetividades. Por isso, a linguagem não é um produto da sociedade, pelo contrário, a sociedade é que é um produto da linguagem, entendida como possibilidade compreensiva de dodo diálogo. É que em todo diálogo quem fala e reúne os falantes é o Logos (linguagem). A linguagem tem uma função mediadora na constituição do significado do mundo e dos eventos histórico-sociais, pois só há sentido dentro de uma relação intersubjetiva, pensa-se. Este entendimento da linguagem como razão dialógica, comunicativa não pode ser um consenso. Por um motivo muito simples: o diálogo leva ao consenso, mas para haver diálogo precisa haver a linguagem. Não é ele que funda a linguagem. Claro que há aí uma dobra dialogal.
Há outros modos de encaminhar o entendimento e compreensão da linguagem. Hoje, a filosofia da linguagem ocupa cada vez mais o centro da reflexão. Ela sucede, na modernidade, à questão do ser, do sujeito, da história, do inconsciente, da existência. Contudo, os encaminhamentos ainda se movem, em geral, dentro de um questionamento epistemológico, onde o saber precede o ser.
Nesse horizonte, a linguagem poética não tem vez. É necessário retomar uma reflexão ontológica onde conhecer o que é implica em ser o que se conhece. Para tanto é necessário repensar a dialética da intersubjetividade e suas possibilidades, onde o diálogo pode-se dá como pro-cura e afirmação da diferença e não como seu lugar de abandono e anulação pelo consensual. E mais essencial ainda é auscultar o logos que funda todo diá-logo. A escuta é muito mais importante do que geralmente se acredita. Nestas dimensões, continuar falando de linguagem social não passa de bem montadas racionalidades vazias e abstratas, a que nenhuma realidade social, em nenhum tempo e comunidade, corresponde.
A realidade, a linguagem e a língua
O ser humano é uma doação da linguagem. Sempre se movendo na linguagem em sua ânsia essencial de ser o não-ser, busca incessantemente o horizonte de seu mistério e presença como escuta de sua fala. A escuta exige de nós uma entrega e caminhada. Esta nos leva à fala da sua escuta para melhor escutá-la. É quando a palavra se torna o vigor de seu desvelamento e velamento como língua. Porque a palavra é o vigor desse “entre” que identifica e diferencia fala e silêncio, desvelamento e velamento. E assim surgem algumas das mais importantes reflexões dos pensadores. Transcrevo a seguir uma dessas reflexões, proposta em 12 de outubro de 1971, por Emmanuel Carneiro Leão. Nela, a linguagem aparece como questão frente à língua.
A linguagem é o mais concentrado modo de ser da realidade. Na linguagem o real se mostra em si mesmo com plenitude de liberdade. O real se realiza numa variedade infinda de modos, níveis e graus de mostrar-se. Há até a possibilidade de o real mostrar-se como algo que em si mesmo não é. Neste mostrar-se, o real aparece como se fosse. É o parecer e a aparência. A linguagem possui uma tal vitalidade que articula, ao mesmo tempo, tanto um sim como um não: o mostrar-se em si mesmo como sim e o mostrar-se em si mesmo como não. O Ente e a Essência são modalidades positivas, o parecer e a aparência são modalidades negativas de linguagem.
A linguagem, tanto no modo de manifestação positiva quanto no modo de manifestação negativa, nada tem a ver com os signos, indícios, indicação e denotação. O indício denota o que não se mostra em si mesmo, refere-se a algo que não é linguagem. Signo não diz o mostrar-se em si mesmo, mas um anunciar, um indicar uma coisa que não se mostra, nem como ela é, nem como ela não é, mediante outra que se mostra. Signo é, pois, o não mostrar-se. Mas este não do signo não se identifica com o não da linguagem, isto é, com o parecer e a aparência. Pois o que não se mostra também nunca poderá aparecer e, por conseguinte, parecer. Signos são metáforas, alegorias, sintomas, índices, indicações, embora cada um o seja à sua maneira.
Todo signo só pode indicar em razão do mostrar-se de alguma coisa. Este mostrar-se não é, em si mesmo, um signo. Todos os signos só são signos na dependência da linguagem. Quanto se diz, portanto, que a linguagem é um sistema de signos, não se define, mas se pressupõe a linguagem, e com a desvantagem de encobri-la, reduzindo-a à língua.
Esta ambigüidade poética de linguagem, língua e signo fica um pouco mais compreensível, mas não é redutível ao raciocínio lógico, pois exige a abertura para o vigor do pensamento e para o agir da póiesis, se nos lembrarmos do fragmento de Heráclito:
Physis kryptestai philei.
A natureza ama velar-se.
A excessividade poética apropria-se no velar-se
A natureza se diz em grego physis e esta vem do verbo phyo, que significa tudo que se nasce, se torna, aparece, se faz presente numa excessividade múltipla, diversa, contínua, enfim, poética. Porém, ela é ambígua porque tanto mais se dá nessa excessividade poética quanto mais ama velar-se no vazio e no nada, retrair-se no silêncio. Não podemos aí deixar de prestar atenção ao ama. Ele nos joga no jogo do amor, um entre em que sempre somos e não-somos, nos aproximamos e distanciamos, somos nós sendo o outro que nós mesmos somos e não somos. Nesse jogo do entre é que nos apropriarmos do que nos é próprio. Isso é amor. A ambigüidade da linguagem é, assim, a própria pro-cura em que o que pro-curamos é o amor, o cuidado de sermos em plenitude, mas esta só nos vem como morte, que não é o fim, mas a plenitude do princípio no silêncio do mistério.
Para melhor apreender a questão do aparecer e da aparência, da ambigüidade do real, confira os parágrafos: 106-112 e 129-133 de A origem da obra de arte, de Martin Heidegger.
3 comentários:
Ótimo texto, Manuel.
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