04 julho 2007

Mundo e vocabulário





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Abrindo um dicionário vamos ver que a palavra vocabulário se usa em muitas acepções: 1ª. O conjunto de palavras de uma língua; 2ª. O conjunto de palavras em certo estágio e momento histórico da língua; 3ª. O conjunto das palavras especializadas em qualquer campo de conhecimento ou atividade. Então tem como sinônimos: terminologia, nomenclatura; 4ª. O conjunto das palavras usadas por um autor em sua obra; 5ª. Nome do livro que contém essas palavras em ordem alfabética. Neste sentido o nome mais comum é dicionário.

Platão ao falar da obra diz no diálogo Fedro, 264, c: -Socrates: ´Allà tóde ge oimai se phánai `´an dein panta logon osper dzoion sunestánai, soma ti echonta auton autou oste mete akephalon einai mete apoun, allá mesa te echein kai akra, préponta allelois kai toi oloi gegrammena.
A tradução francesa diz: Tu admitirás pelo menos isto, eu penso: todo discurso deve ser constituído como um ser vivo; deve ter um corpo que lhe pertença, a que não falte nem a testa nem os pés, e apresente um meio e extremidades, escrito de maneira a estabelecer uma justa proporção entre eles e com o conjunto.
A tradução portuguesa diz: Eis, portanto, um ponto de que não discordarás: todo discurso deve ser formado como um ser vivo, ter o seu organismo próprio, de modo a que não lhe faltem, nem a cabeça, nem os pés, e de modo a que tanto os órgãos internos como os externos se encontrem ajustados uns aos outros, em harmonia no todo.
O grego fala em “logon”, e ambos os tradutores usam “discurso”. Mas o que entender aí por discurso, eis a questão. Dependendo deste entendimento é que será feita posteriormente o entendimento da obra e do vocabulário. De qualquer maneira, Platão é bem explícito ao dizer que ele “deve ser constituído como um ser vivo”. Só que em grego temos a palavra dzoion, que não indica qualquer ser vivo, nem é um gênero. O que é dzoion? Logo depois vem a terceira palavra decisiva, estreitamente liga e correlacionada às duas anteriores: “deve ter um corpo que lhe pertença...”. A tradução portuguesa já optou por “organismo”. Mas de maneira alguma é organismo. Isso já é um entendimento que trai o pensamento platônico. Soma, em grego, é corpo. O vocabulário desta passagem nuclear do diálogo Fedro se concentra nessas três palavras: logon, dzoion, soma. Como traduzi-las? É aí que entra a questão do presente ensaio: o vocabulário. O entendimento do que é vocabulário, em se tratando de uma obra poética, é decisivo. É no horizonte de tal entendimento que se vão traduzir as palavras essenciais. Mas então devemos traduzir usando o dicionário ou atentando para a dinâmica da obra em que são inseminadas as palavras que constituem o vocabulário? Dependendo da atitude, as traduções serão completamente diferentes. Mas talvez pareça que vamos cair num círculo vicioso. Para entender a dinâmica poética da obra temos que entender as palavras essenciais da obra nessa dinâmica e para estabelecer essa dinâmica devemos partir das palavras essenciais. Só haverá círculo vicioso se procedermos sem o apelo de pensamento em que toda língua fala essencialmente. É o caso dessa passagem de Platão no diálogo Fedro. Tomadas as três palavras essenciais em grego, elas já nos dão algumas pistas sobre o que aí é pensado. Mas para sairmos do aparente círculo vicioso é necessário pormos em suspenso o que a gramática nos ensina sobre a língua, noção que subjaz ao raciocínio aparentemente vicioso. E se seguindo o que Platão diz a propósito do “logon” como sendo uma “dzoé” e um “soma”, não será a visão gramatical que deve ser trazida, mas a do pensamento poético.
A tradução dicionarizada de “dzoé” e “soma” é clara (embora podendo enganar): “vida” e “corpo”. Neste horizonte, o “logon”, enquanto “discurso” não pode ser entendido gramaticalmente como pertencendo a uma língua como “código” abstrato. A língua é um “corpo vivo”, numa primeira e fundamental aproximação. Ocorre que em grego temos duas palavras para “vida”: bios e dzoé. E dizem algo bem distinto. Se bem observarmos, o que se entende por “logon” vai depender, em última instância, do que se entende por “dzoé”, e não o inverso. Refletindo sobre o âmbito de vigência da palavra “dzoé”, diz Heidegger: “Podemos, no entanto, observar que a língua grega, sobretudo a língua de Homero e Píndaro ...” (Heidegger, 2002: ). Heidegger refere-se não a uma língua grega da gramática, geral e abstrata, mas a uma língua grega viva, qual corpo vivo, que é diferente dependendo das obras dos grandes autores, como os dois citados. Então não podemos partir para o entendimento do vocabulário das grandes obras partindo de um vocabulário dicionarizado geral, mas temos que apreender e compreender o vocabulário da língua como algo vivo, como um corpo vivo, que tem a sua dinâmica própria dentro do todo corporal vivo que cada obra constitui. E então o que é obra não pode ser entendida de jeito nenhum como um organismo (seja obra de poemas, seja obra narrativo-ficcional), conceito geral do que se entende por gramática e lingüística, e no seu horizonte a língua, que deixa de ser viva, para ser um corpo morto, um esqueleto. À obra como corpo vivo procuro denominar mundo e vocabulário. Ao propormos o entendimento de vocabulário nesse horizonte de língua como corpo vivo não podemos nos submeter ao raciocínio abstrato gramatical, mas exige uma escuta de pensamento poético que nos advém na vigência e dinâmica da própria obra. É o que Platão chama nessa passagem de “logon”.
Desde Heráclito esta palavra é riquíssima e enigmática. Não se trata, pois, de uma “obra” entendida como o não sei o quê, pois não podemos confundir “obra” nem com suporte material, escrito ou oral, nem com o discurso entendido gramaticalmente ou até ficcionalmente. Fica patente para Platão que o “logon” é um “soma” do “dzoion”. Quando Heidegger se refere à língua grega de Homero e de Píndaro, onde Homero e Píndaro, por suas obras, é que constituem o grego vivo, ou seja, no dizer de Platão, o “logon” como corpo vivo, temos que considerar a língua como algo vivo, como um corpo vivo e não como um código abstrato com significados e sentidos congelados, fossilizados, dicionarizados. O mesmo devemos dizer de Platão e é nesse horizonte de língua como corpo vivo que devemos traduzir e compreender a obra de Platão. Heidegger nos leva a compreender que a língua deve ser compreendida como algo vivo, como corpo, e não como um código, ou seja, o que somos como corpo é a própria língua. Por quê? A língua não é um código, um organismo, mas memória viva e poética. Por isso não há “apenas” o hommem, mas o homem “humano”. Este “humano”, a ser conquistado e realizado é o “soma” como língua/linguagem/memória e história que se faz poeticamente. E é como corpo que a língua é mundo. À língua como corpo vivo que é mundo é que denomino vocabulário. Surpreender numa obra o seu vocabulário não é uma tarefa gramatical, nem semântica, nem lexical, nem sintática. É poética enquanto corpo vivo, mundo. Para isso devemos distinguir três sintaxes: 1ª. Gramatical; 2ª. Retórica; 3ª. Poética. Porém, só a partir do que seja a sintaxe poética é que podemos entender o que se entende na língua grega de Platão, e no dizer de Heidegger, de Homero e de Píndaro, por “soma”, “logon”, “dzoion”.
Mas a tradição ocidental esqueceu essa sintaxe originária e substituiu-a pela gramatical e retórica. Com isto prevaleceu a concepção da língua como código e da “obra”, enquanto “discurso” como “organismo”. E foi dessa maneira que, traindo o próprio pensamento de Platão, se traduziu e entendeu “soma” por organismo. Mas é claro que há uma diferença radical nesse entendimento. O “soma” de que fala Platão passou a ser entendido, enquanto organismo, como um “ente” composto de matéria e forma, como qualquer utensílio é constituído. Porém, quando Platão reflete sobre a “obra” jamais a pensou no horizonte de um “utensílio”, com seus aspectos formais e materiais (causas material e formal) ou com seus aspectos de finalidade utilitária (causa final).
Toda obra enquanto “soma” tende a um fim, em grego, telos. “Costuma-se traduzir telos por meta, fim, finalidade. Todavia telos não diz nem a meta a que se dirige a ação, nem o fim em que a ação finda, nem a finalidade a que serve a ação. Telos é o sentido, enquanto sentido implica princípio de desenvolvimento, vigor de vida, plenitude de estruturação. Assim o telos, o sentido, de toda ação é consumar a atitude, é o sumo desenvolvimento do vigor em sua plenitude”. (Leão: 1992: 156). Entendendo telos neste horizonte, não podemos nunca separar corpo-homem-humano de corpo co-letivo, de corpo-Terra, ou seja, Mundo.

Dentro desta postura de pensamento, não podemos confundir vocabulário com nomenclatura. Nesta prevalece uma gramática conceitual bem estruturada e definida nos seus significados, em que um aprendizado prévio e sua memorização é o pressuposto para sua aplicação, na medida em que tal nomenclatura resulta de uma ou mais teorias. Isso ocorre com as diferentes disciplinas. A cada uma corresponde uma certa nomenclatura. Já o vocabulário das obras poéticas em seu sentido não resulta de teorias prévias, mas é a própria língua viva se fazendo corpo-mundo de uma maneira inaugural e única, onde não é possível um mero aprendizado, senão um trato de reflexão e exercício de pensamento que, como diálogo, nos lance numa aprendizagem das questões que se infiltram nos interstícios das palavras cotidianas da língua em sua concreticidade, de tal maneira que a língua surja, como corpo vivo que é, em novas realizações. Quando isso acontece, podemos falar de um vocabulário que constitui tal e tal língua na língua de tal e tal obra.
Há aí uma mistério muito grande, porque tal ou tal obra não é algo que se justapõe aos falantes e leitores, mas estes vivem no desafio de, pelo diálogo, realizarem-se como corpo vivo enquanto a língua que é esse corpo vivo. Por isso uma obra poética compõe-se de questões: imagens-questões, personagens-questões, eventos-questões, narração-questão e narradores-questão.
O corpo língua e o corpo que cada leitor procura no diálogo de leitura ser são um e o mesmo. Esse corpo vivo que cada leitor é, em seu deixar-se atravessar pela língua viva, não se distingue e se distingue do corpo vivo que é a língua enquanto corpo, ou seja, o corpo vivo que é a língua e que é cada leitor sendo diferentes são um e o mesmo. Para este mistério é que nos remete a palavra grega dzoion. Ao corpo vivo de cada ente, cada unidade viva, os gregos denominam bios. À vida que vigora em todo corpo vivo, os gregos denominam dzoion. O que é dzoion? Na palavra dzoion há sempre um apelo de pensamento. Por isso o dzoion é sempre poético e não um conceito geral abstrato como um conceito genérico de diferentes espécies. Em seu mistério a obra-de-arte é radicalmente uma “arte-culinária”, onde a etimologia de “culinária” diz o que faz eclodir. Considerando que somos um corpo, não um organismo, não há distinção entre o “material” e o “intelectual” e o “afetivo-sentimental”. Somos uma unidade corporal enquanto corpo-mundo. Nesse sentido toda obra de arte é um “alimento” que precisa ser “metabolizado” pelo diálogo. Em seu mistério, a obra além de servir de alimento é também catálise, ou seja, em sua presença somos transfigurados sem que a própria obra-de-arte se consuma, mas atravessados pelo mundo que nela vigora somos consumados. A obra enquanto verdade de desvelamento produz em nós a nossa eclosão como mundo. É que todo desvelamento já é em-si mundo. Então o real nos advém como verdade e o sentido de nossa vida, como corpo-mundo, se realiza como sabedoria: é a experienciaçao ética da vida. Aos nos tornarmos corpo-mundo, o homem que somos se torna homem humano. Nesse horizonte, o humano é o logos reunindo em torno de si todos os seres do real enquanto tempo-memória, ou seja, mundo. É nesse sentido que o homem é homem enquanto logos.
Por isso, o logon a que se refere Platão no diálogo Fedro não pode ser traduzido como “simples” discurso nem soma pode ser traduzido como organismo. Em todo o diálogo há um forte apelo de pensamento que as traduções baseadas nos dicionários das gramáticas não conseguem apreender. Para que o apelo de pensamento nos advenha em sua vigência e dinâmica é essencial pensarmos a obra no horizonte do vocabulário, se pensarmos este no horizonte da obra enquanto Mundo e Terra.


Porém, o vocabulário diz muito mais, naquilo que ele contém e comporta. Isto se não olharmos apenas as palavras no seu aspecto dicionarizado e formal. Ele está diretamente ligado à questão fundamental do mistério e da realidade. Estas duas palavras são enganadoras, pois o que aí se quer dizer precede e excede em muito o que elas tanto evocam como manifestam. Evocar e vocábulo têm a mesma “raiz indo-européia *wek.w, que indicava a emissão de voz com todas as forças religiosas e jurídicas que delas resultam” (Ernout e Meillet, 1979: 754). É neste horizonte poético-etimológico-originário que todo vocábulo já constitui mundo.
O vocabulário tanto está em função de mistério e realidade quanto não está. Isto é, o vocabulário nunca dá conta do que aí se quer nomear. E um vocabulário é um conjunto de nomes. Esse conjunto é que nos configura aquilo que chamamos de realidade. Mas o que é a realidade sem esse conjunto de nomes? Pela pergunta de alguma maneira já estamos fora do conjunto senão nem poderíamos perguntar. Por outro lado, mesmo perguntando, precisamos desse vocabulário senão não caminhamos.
Diante disso, por detrás de todo vocabulário há não só uma realidade mas também e concomitantemente um caminho e uma caminhada. Na caminhada de cada vocabulário há o desenho de uma realidade, ou seja, a cada vocabulário corresponde uma realidade. Por isso, podemos falar em vocabulário quando o seu conjunto de nomes nos apresenta uma realidade. Disso se conclui que há tantas realidades quantos são os vocabulários. Isto é verdade e acontece nos mais diferentes níveis e na sucessão das épocas. Dentro de uma mesma época pode haver diferentes vocabulários, mas enquanto época eles estarão interligados por esse vocabulário mais geral, no sentido de que não é particular, mas concreto e co-letivo. Então uma época começa a mudar quando um novo vocabulário começa a se impor. Talvez nenhuma época seja mais exemplar do que a Idade Média nesse caso. Um vocabulário bem específico a configura e até os pretensos fatos dessa época são lidos, colhidos e organizados já dentro dos limites desse vocabulário, normalmente contraposto ao vocabulário moderno e, pior, lido no horizonte deste. É o império da historiografia com seus falsos pressupostos cronológicos e míopes.
O que não pode ser esquecido é que o vocabulário ao nos circunscrever um determinado real não quer isso dizer que tenhamos já toda a realidade, ou que ela seja toda determinada por esse vocabulário. A realidade é bem mais dinâmica e nem todos são determinados pelo vocabulário. Há outras realizações que convivem entre si e em relação à realidade geral de uma maneira muito dinâmica, múltipla e ambígua. O acesso às diferentes realizações em sua criatividade está condicionada, em parte, pelo próprio vocabulário. Este tende a excluir essas manifestações. É que o vocabulário em sua amplitude tende num primeiro momento a manter uma tensão entre questões e conceitos. Como estes tendem mais a se impor em detrimento da dinâmica das questões eles imprimem à realidade o seu caráter abstrato. E acabam por circunscreverem uma realidade abstrata em detrimento da realidade viva. Esse caráter abstrato do vocabulário é que perdurará na lembrança, nos registros e nos estudos. Vai aparecer uma tripla relação: 1ª. Realidade e vocabulário; 2ª. Vocabulário e lembrança; 3ª. Lembrança e história. Nesta dinâmica de realidade, real e realização subjaz uma quádrupla referência: 1ª. Realidade e tempo; 2ª. Realidade e memória; 3ª. Realidade e linguagem; 4ª. Realidade e póiesis. Mas estas referências remetem para a realidade na dimensão não só dos conceitos mas sobretudo das questões. Tudo isto precisa ser estudado e aprofundado.
A questão é ambígua. Então podemos ver os vocabulários tanto do lado dos conceitos quanto do lado das questões. Por isso vai haver uma tensão no interior dos vocabulários e entre os vocabulários. A sucessão das épocas sofre aqui um questionamento. Até onde a historiografia das épocas nada mais é do que uma leitura a partir de um determinado vocabulário? E poderia haver uma leitura que não fosse dentro de um determinado vocabulário? Somos reféns do vocabulário?
Cada vocabulário de época é constituído por conjuntos de outros e diferentes vocabulários. Como se dá a articulação entre estes vocabulários? O que os une, o que os diferencia? Tudo isto tem de ser pensado a partir da quádrupla referência. A título de exemplo: por mais que haja diferentes épocas, uma memória as reúne. Diríamos aqui que o vocabulário as reúne também? Assim como estamos estabelecendo uma diferença entre questão e conceito também deveríamos dizer que há uma diferença tensional entre linguagem e língua no interior do vocabulário. Vista do ponto de vista dos conceitos, cada época com seu vocabulário corresponde a uma visão de mundo, a uma teoria da realidade. Mas vista do ponto de vista das questões, não teríamos aí simplesmente uma visão de mundo, porque as questões, como os conceitos, não podem ser reduzidas a uma teoria da realidade. Mas esta distinção não depende já de uma teoria da realidade? Na medida em que toda teoria da realidade pressupõe a realidade da qual se origina e sobre a qual se projeta uma teoria, deveremos dizer que sempre a realidade é mais do que a teoria e até mais do que a soma de todas as teorias e, portanto, do que todas as realizações de realidade.
O desdobramento de uma época em diferentes vocabulários é um fenômeno que surge fortemente com a modernidade. Será que esta pode ter uma fonte única ou comum a todos os vocabulários? Aqui temos algo estranho. A realidade inerente à época chamada modernidade, vista de cada vocabulário, parece ser diferente e ao mesmo tempo esse vocabulário oferece uma realidade diferente e, assim, temos a convivência de diferentes realidades configuradas por cada vocabulário dentro da mesma época. Como isso é possível? É que esses vocabulários devem ter e têm algo em comum, uma fonte comum. Qual? Responder a esta questão é complicado, porque, se têm uma fonte comum, e parece que têm, nem por isso todos os vocabulários têm os mesmos objetivos, embora algo de comum, que nasce na mesma fonte, os acompanhe e guie para os diferentes fins. Cada vocabulário se baseia sempre no fato de se propor como sendo científico e verdadeiro. Isso se gera a partir do famoso corte epistemológico. Isso não impede visões diferentes e até contraditórias da realidade. Gera-se então uma luta, uma vez que cada vocabulário – até certo ponto configurado pelo e dentro do corte epistemológico – quer ser a proprietária ao defender a posse verdadeira da realidade. Não se dão conta de que se trata não mais da realidade verdadeira, mas do vocabulário verdadeiro, enquanto nomenclatura. Nesta atitude, o vocabulário-nomenclatura acaba por se colocar no lugar da realidade e a luta pela realidade se torna a luta pela imposição de um vocabulário. E nem notam que a própria realidade se esvai e retrai nos interstícios dos vocabulários-nomenclaturas. É que o vocabulário não passa a essa altura de uma representação da realidade. Os exemplos são muitos: a nomenclatura filosófica do iluminismo, a nomenclatura esquerdista, moldada no horizonte do positivismo, a nomenclatura naturalista, as diferentes nomenclaturas dos estilos de época, as nomenclaturas das religiões, consubstanciadas nas diferentes “teologias” etc. etc.
A essa altura como falar ainda da realidade? É aí que aparece a questão do mistério. Eis algo complexo. É que o mistério em diferentes versões também se tornou posse de um vocabulário. E haveria algum modo de chegar ao mistério sem vocabulário? Sim, desde que consideremos a referência profunda que há entre questão e conceito, entre linguagem e vocabulário, entre tempo e póiesis, entre realidade e mistério, entre vida e morte.
A grande dificuldade de ler e entender Heidegger provém de uma pretensão radical: a de re-ler o Ocidente, considerá-lo como um todo o esquecimento do sentido do ser e reunir esse esquecimento dentro do vocábulo metafísica. Esta, enquanto esquecimento do sentido do ser, misteriosamente, seria o destino epocal do ser em seu esquecimento. A metafísica presidiria a esta dupla unidade: 1ª. A de cada época; 2ª. A das épocas. Embora seja uma teoria que extrapole uma determinada realidade ao querer reunir e explicar a todas, não passaria, em última instância, de uma teoria mais ampla e até mais fundamental? Pode essa teoria se pôr de um ponto de vista absoluto? Não. Essa foi a pretensão hegeliana e, com ela, a pretensão marxista.
Então qual é o alcance de sua pretensão e o que ela muda em relação a todas as outras teorias? Heidegger evoca constantemente uma passagem de Nietzsche ao referir-se este à poesia e ao pensamento (será que esta imagem já está em Hölderlin como o tronco de duas árvores que comungam o mesmo solo?): a de duas montanhas vizinhas onde moram o poeta e o pensador. Heidegger abandona cada vez mais a pretensão de estabelecer um vocabulário novo para configurar a sua visão da metafísica e o esquecimento do sentido do ser. Notou perfeitamente que apenas se criavam insterstícios novos dentro do já estabelecido vocabulário ocidental metafísico. É uma tentativa. O certo é que cada vez mais traz para cena o poeta e o pensador e se distancia de um vocabulário específico. Ele passa a jogar cada vez mais com as questões em tensão com os conceitos. E então algumas questões passam a ser reiteradamente visitadas e reelaboradas. A essa altura ele já se dera conta da tensão entre mistério e arte, porque é a tensão de realidade e verdade.

- citação de A origem da obra de arte
- a questão do destino e mistério
- vocabulário e técnica
- vocabulário e arte
- a imagem-questão


Bibliografia

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar II. Petrópolis, Vozes, 1992.
PLATON. Phèdre. 3.e. Trad. Paul Vicaire. Paris, Les Belles Lettres, 1995.
PLATÃO. Fedro. 5.e. Trad. Pinharanda Gomes. Lisboa, Guimarães, 1994.
ERNOUT, A. et MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine. Paris, Klincksieck, 1979.

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