11 março 2007

Grande ser-tao: a travessia

Grande ser-tao: a travessia

Prof. Manuel Antônio de Castro – Titular de Poética – F. Letras - UFRJ
www.travessiapoetica.com
http://travessiapoetica.blogspot.com


Vivendo se aprende, mas o que se aprende, mais, é só a fazer maiores perguntas (Rosa, 1968: 312).

Arte e vida

A arte, toda arte, é alimento para que cada um faça da sua vida uma obra de arte. Porém, há uma questão, que é o maior desafio em nossas vidas. Qual? Fazer da arte vida. É neste horizonte de fazer da arte vida que se coloca a questão radical para cada um de nós: nossa travessia.

O autor, a obra e o leitor

Um autor sem obra não é autor. Há uma tendência muito grande em nos prendermos à vida do autor e às circunstâncias em que sua obra nasceu. Tudo isso é muito perigoso, pois pode nos desviar da obra, do operar da obra. Obra vem do termo latino opus, ligado ao verbo operari, ou seja, operar, trabalhar, agir. Obra, em si, diz o que opera, o que age. Neste agir e por este operar não só surge o autor, o poeta, mas também o leitor. Nós não lemos o autor, o poeta, mas, sim, a obra e é ela que opera, age e não e jamais o autor. No famoso poema Autopsicografia, Fernando Pessoa diz:

O poeta é um fingidor.

Igualmente podemos dizer: O leitor é um fingidor. É a obra que faz o autor, é a obra que faz o leitor. E é a arte que faz a obra de arte. E qual é a relação entre fingir e obra? O fingir da obra não é, evidentemente, um mentir, um inventar coisas imaginadas e irreais. Se são coisas imaginadas e irreais não há obra. O que há, se não há obra? Há coisas imaginadas e irreais, coisas e sentimentos subjetivos e individuais. Mas, então, quando há obra? Se cada um não se coloca em sua individualidade, quando há obra? Obra não é o que resulta dessa exposição subjetiva? Não é. Obra, já dissemos, é o que opera. Obra não é o livro editado ou o poema ou o conto depois de escrito num papel. Hoje pode ser simplesmente um arquivo num computador ou gravado num cd. Nada disso precisa ser escrito, pois podemos simplesmente ouvir. E a escrita deixou de ser escrita, pois foi gravado em linguagem de computador, onde só aparecem os números zero e um. Mas podemos observar um fato realmente importante e aparentemente novo: A obra nos chega e se faz real e presente como linguagem e fala. A obra consiste de linguagem e fala. Que linguagem? Que fala?

A linguagem
Numa palestra em 1954, Heidegger disse: “A linguagem fala, não o homem. O homem só fala quando corresponde à linguagem”. Na medida em que a obra, toda obra poética, é feita de e como linguagem, a obra opera falando. Cabe ao autor escutar, cabe ao leitor escutar. A escuta da fala da linguagem é que constitui o fingir, a ficção, o poema. A linguagem escrita, melhor, língua ou a linguagem (símbolos) matemática do computador já é o resultado de uma escuta. Há, pois, duas falas: a do autor, enquanto escrita, ou a do leitor, enquanto leitura, e a fala da linguagem enquanto vigor do operar, enquanto poiesis. Autor e leitor só falam a partir de fala da linguagem constituída em obra. A singularidade e originalidade de cada autor e da sua obra está na escuta da linguagem. Porém, cada autor, escutando, deve escrever numa determinada língua. E são tantas as línguas! A mãe-mulher também pode ser mãe de muitos filhos e nem por isso deixa de ser mulher e mãe. A linguagem é a mãe de todas as línguas.

As questões

A questão não quer provar, quer provocar.
A questão quer o não-saber de todo saber.
A questão, mergulhada nas águas correntes, ansia pela fonte, proveniência do
que elas são.

O leitor que abre Grande sertão: veredas vê-se logo envolvido num emaranhado de questões, achando, quando se concentra na leitura, que caminha numa selva selvagem e estranha. Diante de tanta questão há leitores que simplesmente desistem. Isso é natural. É que somos instruídos para os conceitos e queremos achar tudo claro. O conceito é o delimitar preciso de uma idéia dentro de uma teoria. As palavras conceituais tendem a ser unívocas. Se digo verde, tem de ser verde, e não amarelo, vermelho ou outra cor. Porém, a realidade não cabe nessa univocidade das palavras conceituais. Se olho para uma encosta cheia de árvores, vejo muitas variedades de verde. O conceito é pobre para dizer e manifestar essa riqueza excessiva do real. O mundo é muito mais rico e alegre e vivo e poético. Quem traz para o mund,quem manifesta essa riqueza excessiva do real é a palavra poética. E ela ainda se torna mais poética quando se nos dá como imagem-questão. Na imagem-questão o não visível do visível se manifesta inauguralmente. Porém, não são apenas as árvores ou outra qualquer coisa que se apresenta nessa riqueza, também as pessoas. Elas são mutáveis, esquivas, ambíguas, dissimuladas. E não só as pessoas, também os acontecimentos. O mesmo acontecimento visto por pessoas diferentes e ao mesmo tempo tem versões diferentes. E não é apenas uma questão de perspectiva ou teoria. É mais. Diz Caeiro:

O universo não é uma idéia minha.
A minha idéia de universo é que é uma idéia minha.

Esse mesmo acontecimento age dentro de nós e sofre um estranho trabalho da memória, de tal maneira que tempos depois esquecemos alguns aspectos e, por outro lado, o reinventamos de maneira diferente. Ou fica de vez jogado para o sótão do insconsciente da memória. É que a memória não é só o consciente, mas também o inconsciente. E do inconsciente quem fala não somos nós, mas a memória enquanto linguagem. Quando se juntam as coisas, as pessoas e os acontecimentos então todo o real se nos dá num mundo mutável, rico, estranho, poético. É o que Rosa não cansa de dizer e mostrar em Grande ser-tão: veredas. Temos aí a ficção poética. Esta se faz de imagens-questões, personagentes-questões, eventos-questões, narrador-questão, enredo-questão. Então a obra de arte como tal e como um todo é um acontecer poético.
Mas em nosso viver cotidiano como nos advêm as questões? Aparentemente quando começamos a perguntar. Mas não perguntamos para ter as questões. Pelo contrário. Só perguntamos na medida em que somos convocados e provocados pelas questões. Por nascer e ao nascer já somos jogados nas questões, de tal maneira que, como doação das questões, vivemos sempre num entre: entre nascer e morte, entre ser e não-ser, entre eros e thanatos. Se agora voltarmos ao começo e relermos a citação de Rosa, veremos que viver é um aprender, mas só se aprende mesmo é a fazer maiores perguntas. Só pergunta, se for uma verdadeira pergunta, quem questiona. Grande sertão: veredas é a ficção poética onde se tecem e entretecem as grandes questões, pois estas é que nos levam, no viver a vida como vida experienciada, “a fazer maiores perguntas”.
Daí que a vida aparece em Grande sertão: veredas como uma imensa teia da vida, onde quem faz a teia são as questões. A vida enquanto questões. Atravessar essa teia é o grande desafio do viver, pois viver é muito perigoso. Podemos nos perder nos descaminhos labirínticos da rede, nos buracos que sempre nos espreitam, nos enlaçamentos dos nós. Podemos ficar nas “veredas tortas” e nas “veredas mortas”, nos entre-cruzamentos. Podemos simplesmente ficar sem rumo, sem sentido, como Zé Bebelo, confiante demais no poder da razão. Podemos ficar sem finalidade, enredados nas múltiplas solicitações das funções ou profissões em que somos usados para a rede funcionar. A função profissional deixa de ser função na travessia para se tornar a própria finalidade e sentido de vida. E neste funcionamento a própria obra de arte se vê analisada e envolvida e reduzida a formas e funções. A função para ser função só pode se constituir de conceitos. Os interstícios dos conceitos são as questões. Na rede são os buracos que unem e reúnem as linhas e nós da rede. É a rede-vida, o corpo-vida. A rede é uma doação do vazio, assim como a vida é uma doação da morte. A travessia da morte para a vida são as questões, da vida para a morte são os conceitos, porque funcionais e orgânicos.
Grande sertão: veredas é uma intrincada selva de questões. Pois as questões também formam uma selva. A pergunta abre uma clareira nessa selva. Toda pergunta é querer ver claro a selva da vida, pois sabemos que vivemos na espera da sua plenitude: a morte. A morte é o vazio onde se move e tece a teia da vida. Vivemos nesse E de vida E morte como um entre sempre pro-visório.

A arte e a imagem-questão

Os grandes poetas só são poetas porque se surpreendem e apreendem acossados pelas questões, pelas grandes questões. Mas suas veredas são densificadas pela sedução e sabor da linguagem de toda poiesis. Seus caminhos e descaminhos são o canto encantatório da memória: o que foi, é e será. Sua Linguagem é a Palavra, como questão-poética. Cada Palavra-imagem-questão traz em si o sentido e a verdade manifestativa. Por isso não precisa das proposições como lugar da verdade lógica e científica. Cada Palavra, quando poética, é núcleo de múltiplos sentidos e possibilidades de revelação. Diante da riqueza ofuscante e da ressonância sem limites da linguagem do silêncio, eles movem-se na fonte inaugural das palavras-imagens-questões. Uma imagem é sempre um dizer sonoro do silêncio. O apropriar-se (amar) é a imagem-questão-poética. Poiesis é radicalmente apropriação enquanto amar. Toda imagem se torna imagem-questão na medida em que nela age, se concentra e consuma a ambigüidade da realidade (“on”/”res”). A imagem como questão é um entre, um entre-imagem-questão onde a realidade (“on”/”res”) se apropria como realidade. É o que nos provoca e invoca a pensar sempre o frag. 123 de Heráclito: O desvelar-se apropria-se no velar-se. O apropriar-se é o “lugar” (imagem-questão-entre) de convergência e divergência da physis enquanto desvelar-se e velar-se.
Em vista disso, jamais pode ser conceituada. Imagem-poética é sempre questão. A imagem-questão, como a linguagem, não é, dá-se. E, dando-se, é. Por isso a obra de arte, enquanto operar de poiesis, não é ente, opera. E operando é. Como a linguagem, é doação do ser. Por isso a imagem-questão não é ente, a obra-de-arte não é ente, como a verdade (aletheia) não é ente. Em vista disso a verdade (aletheia) não pode ser um paradigma, um ethos-valor-moral. Enquanto imagem-palavra, a imagem é linguagem e, como a linguagem, não-é. A imagem-palavra-poiesis não pode ser nunca determinada como um ente, porque não se lhe pode atribuir um limite. E não se lhe pode atribuir um limite porque é a própria poiesis poietizando, e isso é o ser se doando como desvelamento e velamento. A imagem-questão é poiesis de experienciação e nunca este ou aquele ente. Riobaldo, como imagem, não é, porque Riobaldo é personagem-questão, enquanto é imagem-poético-manifestativa de questões, é imagem-personagem-questão. Na obra de arte tudo é questão: as imagens, os personagens, os eventos, a narração, o narrador ou narradores, o tempo, o lugar. Como imagem e verbo toda obra de arte é a dinâmica poética (tautologia) de manifestação do real em sua verdade. Hermes, Palavra, Verbo, Imagem, Verdade são poiesis.
A escuta erótico-amorosa da linguagem poética do silêncio se tece e entretece mergulhando tanto mais nas profundezas, como raiz, quanto mais eclode no livre aberto de toda abertura e clareira apropriante e manifestante das questões. A imagem-questão não é nem pode ser reduzida a uma figura de linguagem, seja retórica, seja gramatical. Nela vige e vigora uma ambigüidade poético-ontológica, fonte inaugural e originária de tempo e mundo, memória e linguagem, possibilitando sempre novas leituras e interpretações.
Cada texto poético não é como tal um ente ao lado do que propriamente é um ente, p. ex., algo dotado de código genético ou funcionalidade, como sendo isto ou aquilo, este ou aquele utensílio. Então os textos, melhor, as obras-de-arte, que são obras porque operam, se constituem de imagens-questões. Por exemplo, “Campo”, no ensaio de Heidegger “O caminho do campo”, é uma Imagem-questão. “Sertão” e “veredas”, em Grande sertão: veredas, são imagens-questões. Que questões essas imagens nos colocam? Aí é só começar a pensar, dialogando com a fala da obra-de-arte. E então podemos ligar, por exemplo, "campo" a lugar, a mundo, a Terra, a Céu, aos mortais, aos imortais. Para fugir da terminologia retórico-metafísica usamos a denominação: Imagem-questão, ou seja, uma questão (que nós não temos, mas que nos tem) dita, centralizada e condensada na imagem escolhida. Todos os mitos são figurados em imagens-questões. Na literatura, Diadorim, Mme. Bovary, Capitu, Dom Quixote, Édipo, Riobaldo etc. são imagens-questões. Estas se entre-tecem com o poder ambíguo-verbal da metá-fora, ou seja, literalmente: um conduzir (fero) no e pelo vigor do "entre" (metá). A imagem-questão é ambígua e retira sua ambigüidade do "entre", na medida em que a linguagem é a própria manifestação do Da-sein como Entre-ser. O poder e vigor da imagem-questão está no fato de que congrega: tempo, linguagem, memória, verdade, narrar. Por isso ela repousa, como quietude enquanto tempo ontológico, "entre" o ser escrita e o ser lida, dialogada, entre o ser vista, pensada, figurada e o ser narrada, mas onde ela, ao ser experienciada como escuta do que somos e não somos, ambigüamente se retrai em sua fala silenciosa. A imagem-questão é um modo concentrado e verbal de poiesis, enquanto narrar. Como tal, concentra a fala de toda escuta e aguarda o desvelo poético da leitura do leitor, aberto à escuta do logos ou à fala da Memória enquanto Musas. Nesse horizonte toda leitura só é leitura se houver diálogo. Quando o diálogo acontece, dá-se no leitor uma aprendizagem. O que é aprendizagem? A apreensão da "Cura" como fonte de todas as questões que essencialmente fundam o ser humano como Entre-ser. A imagem-questão não é uma figura de linguagem. É um acontecer. Por isso o “deus”-imagem caminho se diz em grego Hermes, enquanto imagem-questão da essência do agir, pelo qual chegamos a ser o que somos. Hermes é a própria palavra que funda o lugar, o ethos. Toda linguagem que revela o real como verdade o revela e funda como caminho e lugar. Como Hermes, diz sempre a verdade, mas não toda a verdade. Hermes é o verbo ambíguo de desvelamento e velamento. O lugar, em útlima instância, é o próprio ser se manifestando tanto mais quanto mais se vela, enquanto mundo e linguagem: clareira. Por isso, o caminhar é a travessia "entre" o velado/silêncio/vazio E o desvelado, a excessividade poética e o vazio excessivo.

O método: o diálogo

O método de leitura que propomos é o diálogo. Este é o caminho proposto em Grande sertão: veredas. Todo ele se estrutura num diálogo paradoxal, onde, eu, você, cada leitor é solicitado insistentemente a acompanhar todas as profundas reflexões do personagem-questão Riobaldo. Na obra o leitor/ouvinte não fala, mas escuta. O quê? Quem? O que em todo diálogo fala. A voz da obra de arte: a linguagem. O diálogo como escuta da linguagem é a poiesis falando.
No diálogo e como diálogo estamos já desde sempre no ser-tao. Tao é o caminho como as veredas da vida enquanto sentido e verdade da morte.

A travessia

Travessia vem do latim trans-verto, que significa o verter-se e o figurar-se no percurso do viver. A imagem-questão da travessia, como um imã, atrai e congrega todas as demais questões. É que só na travessia o homem chega ao que o faz humano. Por isso, na obra, depois do longo, envolvente e questionante diálogo de autor e leitor, resta uma certeza: “Existe é homem humano. Travessia” (Rosa, 1968: 460). O que é a travessia? Esta é a questão para a qual convergem todas as outras, todas as indagações, todas as dúvidas, todas as procuras. E é a grande questão porque é nela que se dá a conhecer ou não o que é o ser humano. Perguntar pelo ser humano é perguntar pela travessia. É isso que Rosa diz: “Existe é homem humano. Travessia”. É na travessia que o homem se torna humano. Por que na travessia o homem se torna humano? O que é então o humano? Quando o homem é humano? Isso só podemos saber, se chegarmos a saber, no decorrer da travessia. E cada um faz a sua travessia (aprendizagem). Mas o que faz o homem ser homem humano? Sem dúvida nenhuma o ser. E então já estamos diante não apenas de uma, mas de duas grandes questões: o ser humano (a travessia) e o ser. Que ser? O ser-tao. É nessa ambivalência que se congrega todo o percurso da obra como indagação e questionamento. E se o leitor notar bem, isso já nos foi indicado pelo título: Grande sertão: veredas. Ser-tao e veredas são os dois núcleos. Veredas indicam pequenos riachos em meio ao ser-tao, ou seja, são os caminhos possíveis da travessia.

A travessia e o agir

Se em travessia, o radical “vessia” provém do verbo vértere, que significa, verter, tomar figura, realizar, já o prefixo trans diz o que se dá através de, no agir e ir além, no se mover nas veredas e como vereda, como caminho. Mas o ir além, o agir pressupões a ação. O que significa a ação para que nela e com ela se dê uma travessia? E não só isso, mas muito mais importante, para que nesse agir o homem se torne humano?
O que nós sabemos sobre o agir? Achamos que não há necessidade de refletir sobre o agir, porque até para refletir já estamos agindo, para viver já estamos agindo. Para que querer saber? Nem o próprio saber prescinde do agir. Portanto, melhor que saber é agir, achamos. Acontece que podemos confundir simplesmente o agitar com o agir. A travessia como agitação pode ser bem diferente da travessia como agir. E pode até haver travessia no agitar? Podemos nos tornar “homem humano” no agitar? Ou não nos poderemos tornar des-humanos?
Ao querermos saber o que é o agir não estaremos “aparentemente” fazendo uma tentativa vã, como que querendo morder o próprio rabo, constituindo necessariamente um círculo, pois só já agindo podemos ir em demanda da essência do agir. De fato, isso pode-se tornar um exercício racional que nos desvia do envio e avio da questão. Para mostrar isso Rosa criou o personagem-questão: Zé Bebelo.

A travessia e os três telos

“Telos” é uma palavra grega que recebeu algumas traduções que podem levar a equívocos, quando se trata de tentar entender o que o “on” é ou, na visão biológica de hoje, a “unidade”. A palavra grega é o partícipio presente do verbo einai, ser. Uma tradução literal e verbal seria sendo. Em virtude da interpretação de cada sendo (“unidade”), no sentido de que tem dentro de si um vigor que lhe é dado pelo verbo ser, enquanto tal vigor é o que sub-está para que cada unidade manifeste “o que é” n“o como é”, ou seja, nas suas características, tal entendimento se deu em grego como hypostasis, que foi traduzido para o latim como sub-estar, ou seja, sub-stantivo. O “on” como verbo se entendeu como substantivo. Só que na interpretação e sua respectiva tradução se perdeu, em geral, o sentido verbal. O que é este sentido verbal? Verbo significa ação. O que é ação? Essa é a questão das questões. Aristóteles já disse que “em toda ação vive um empenho por algum bem” (Apud: LEÃO, 1992: 156).

A integração de penhor e bem constitui e perfaz o sentido, to telos, do empenho na dinâmica da ação. Costuma-se traduzir telos por meta, fim, finalidade. Todavia telos não diz nem a meta a que se dirige a ação, nem o fim em que a ação finda, nem a finalidade a que serve a ação. Telos é o sentido, enquanto sentido implica princípio de desenvolvimento, vigor de vida, plenitude de estruturação (Leão, 1992: 156).

Toda ação traz, pois, em si não só o vigor do que é mas também no telos um desdobrar-se no como é. A integração harmônica do que é no como é é o que chamamos unidade. Porém, podemos falar de três telos.

1º. A vida como “unidade” e seu telos

Hoje, a biologia considera cada ser vivo como uma “unidade”. As descobertas mais recentes trouxeram uma nova visão do ser vivo. Ele não é mecânico nem o produto de um meio. Pelo contrário, em cada “unidade” há um código genético comum a outros seres vivos da mesma espécie e, ao mesmo tempo, totalmente único. Por tradição só damos nomes diferentes aos seres humanos, para marcar a sua singularidade, mas, de fato, cada ser vivente, cada “unidade” também deveria ter um nome único. Quem convive com animais sabe como eles são únicos, daí darmos nomes que os identificam, isto é, que mostram sua identidade como diferença na uniformidade conceitual da espécie. Em seu meio e em relação à espécie de que participar mais diretamente, cada “unidade”, na medida em que vive, também age e, nesta ação, se empenha por um bem. Exatamente como o disse Aristóteles. Ou seja, cada ser vivo tem também um telos. Para expressarem a realização deste telos, os biólogos passaram a falar em auto-poiese. São duas palavras gregas que dizem que há um fazer que realiza o que é próprio, portanto, criativo, novo, diferente. Mas uma tal autopoiese apenas realiza o que já está dado no código genético. Ele já contém em si o seu telos, o seu bem e seu sentido. Constituir-se como bem e sentido não é isto o que tradicionalmente se diz mundo e linguagem? Tanto isto é verdade que se diz que cada ser vivo é constituído por seu código genético. A palavra código provém de um modo lingüístico de entender a linguagem. É o código genético linguagem? O que é linguagem? Como saber o que é língua e seu código sem saber o que é linguagem?
Tradicionalmente classificou-se o ser humano na escala dos animais, pois diz-se que ele é um animal racional. O que o distingue dos outros animais é a razão. Esta palavra de origem latina foi a tradução da palavra grega logos, que tem muitos sentidos, mas na tradição ocidental o mais usual é razão. Mas logos é radicalmente linguagem. E só por ser linguagem é que pode ser compreendido como razão. Quando hoje a biologia através do estudo do código genético chega à conclusão de que há em cada ser vivo autopoiese, a distinção tradicional perde a sua base. Isto não pode aqui e agora ser aprofundado, mas é algo realmente fundamental que recoloca a questão do que é o ser humano. Rosa se coloca, nesse sentido, ao caracterizar o ser humano como travessia, numa posição poética inaugural a respeito do que seja o ser humano. Por isso indagar e pesquisar na sua obra o que é travessia torna-se algo realmente fundamental. Saber o que é travessia não é fácil, porque o ser humano, como “unidade”, é também constituído de um código genético e, como código genético, realiza uma autopoiese. Podemos confundir esta com a travessia? Sim e não.

2º. Telos: o ser humano e a moira

O traço fundamental da Modernidade é a fundação do ser humano como sujeito, enquanto este sujeito é o exercício da razão. Ao se construir e ao construir racionalmente a realidade, fundando as ciências, algo imemorial no ser humano foi confrontado: a sua memória mítica. A compreensão do ser humano a partir dos mitos foi considerada i-lógica, frente à concepção lógica (racional). Note-se que aí se julga a memória mítica de fora do seu âmbito de constituição. O mito é julgado e descartado a partir do logos, reduzido à razão. E o mito sempre falou do ser humano como pertencente a um genos (de onde se forma a palavra moderna genética). Indicava uma família, um gênero (formada também de genos), uma etnia. Como família tinha algo em comum, o genos, mas cada um dentro desse genos recebia um quinhão, a sua “cota” no genos da família. O nome para esse quinhão foi e é: Moira. A tradução mais tradicional não é quinhão, mas destino. Destino é o que a razão, fonte do livre agir do ser humano, não podia determinar nem controlar. Pela visão racionalista, o destino se opõe à liberdade humana. No existir o ser humano deve-se dar livremente a sua essência, o seu genos enquanto seu quinhão. Nessa visão, a existência precede e determina a essência. O existir enquanto o como é deve determinar livremente o que é. O homem não tem um destino, dá-se um destino. Esta foi a utopia moderna. Em parte parece que a biologia pós-moderna vem confirmar esta utopia. Não vem. É um engano. Ela apenas acaba com o positivismo determinista e representacional da Modernidade. O que a biologia afirma é que cada genos não é cópia nem representação. O genos de cada unidade é sempre uma autopoiese, algo novo, único. Porém, esta autopoiese consiste em realizar o que o genos já determinou e prevê. Mas não confundir com cópia nem com reprodução. Cada autopoiese é uma “unidade”, uma singularidade. O como é da autopoiese não é diferente d”o que é”, enquanto código genético. Assim como há mundo e linguagem em cada autopoiese também há, de certo, uma certa liberdade, liberdade esta inerente ao código genético e não a um livre agir em relação a seu código. Noutros termos, em certo sentido, podemos dizer que cada unidade tem uma moira, um destino. A questão agora é, tendo em vista Rosa: Podemos considerar a autopoiese uma travessia? Que cada um é também uma “unidade” e tem um código genético, isso é tranqüilo. Que não somos o produto do meio nem uma representação ou cópia de algo que nos é externo, também é tranqüilo. Isso vem desdizendo tudo o que se disse do ser humano no percurso ocidental e metafísico. Mas ainda não avançamos nada em direção ao que seria a travessia. Mesmo gêmeos unicelulares, apesar das numerosas semelhanças, acabam por fazer uma travessia diferente. A questão da clonagem está em saber se um ser humano clonado teria necessariamente a mesma travessia da unidade da qual foi clonado. Então a questão é: O que a travessia traz e dá que o código genético como é entendido até agora não dá? Ou seja: O que é a travessia? Na declaração de Rosa: “Existe é homem humano”, temos dois duplos núcleos: 1º. Existe e é; 2º. Homem humano. Podemos considerar o primeiro núcleo: “existe ... homem”; e o segundo: “é ... humano”. O existir diz aí o homem enquanto é dotado de um código genético como as outras unidades e que manifesta o que é em o como é, ou seja, no ex-istir. Nesse sentido, toda unidade existe e, por isso mesmo, pode-se dar uma autopoiese. No que existe, cada unidade é. Mas nem toda unidade é humana. Em que consiste o humano da unidade homem? Não advirá este humano na travessia? Perguntar, pois, pelo humano é perguntar pela travessia.

3º. Telos: A travessia enquanto homem humano

É importante compreender que a travessia não constitui algo que se vem somar ao homem, ou seja, o humano é inerente ao homem, mas que manifesta dimensões que o homem como unidade e autopoiese ainda não contém. Fazer esta diferença como linguagem, mundo e uma certa liberdade ainda não dá conta, porque isso é inerente a toda unidade, mesmo que em diferentes graus, mas que, no fundo, se fazem presentes. Então resta a questão: como advém e se constitui a travessia? O que aqui e agora vamos tentar é um exercício de pensamento poético. Como leitor, vamos dialogar com Riobaldo e pôr-nos à escuta. Pensar para nós não é raciocinar, onde se procura conceitualmente estabelecer uma verdade representativa e adequacional a uma realidade que se racionaliza em conceitos. Pensar é mais que raciocinar. Em Grande sertão: veredas, a diferença está entre Zé Bebelo (a raciocinar) e Riobaldo (o pensar). Para isso não ficaremos restritos à vida, embora jamais possamos prescindir dela. Um conceito só se potencializa realmente se se deixa engravidar pelo paradoxo. Os paradoxos são os interstícios dos conceitos. Muitos são os paradoxos da vida, mas o único realmente fundamental e até vital é a morte. Dizer que a vida é um paradoxo é deixar eclodir a questão da morte. A morte é o interstício da vida. A palavra interstício forma-se do verbo latino: intersistere, que significa pôr-se no entre. Já o pará-doxo é o ensino e aprendizado do entre. A morte surge como paradoxo da vida porque nos joga originariamente no entre vida E morte. O pensamento é questão porque nos joga já desde sempre no paradoxo da vida E da morte. Por isso, pensar é deixar acontecer no saber da vida o não-saber da morte. O pensamento é sempre questão porque pensa o paradoxo da vida e da morte. O pensamento é poético quando pensa o paradoxo do sentido da vida no abismo do sentido da morte. Pensar o sentido é pensar o telos poético. O primeiro e o segundo telos sempre se dão no âmbito da vida, do código genético como vida, como unidade vital. No terceiro telos advém a morte como paradoxo da vida.
A morte como paradoxo da vida é a possibilidade de travessia como terceiro telos. É o que vamos pro-curar.

A vida vivida e a vida experienciada

A vida vivida é o código genético enquanto o que é no como é. E a vida experienciada?

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossêgos, estou de range rêde. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito ... viver é negócio muito perigoso ... (Rosa, 1968: 11).

Riobaldo é uma personagem-questão. Como ficção é personagem de questões e não quer representar ninguém, nem ficcionalmente. Enquanto figura que fala, age e pensa é a poiesis se fazendo questão. Nessa passagem central dentro da obra poética, vemos claramente que estamos diante da questão do duplo Riobaldo, que é a duplicidade de qualquer leitor. Um duplo não paralelo, mas poeticamente circular (de ser o que é no horizonte e vigor do ser). É o que fica claro no primeiro período acima. Há um primeiro Riobaldo que vive a vida no seu fazer e agir: “De primeiro, eu fazia e mexia ...”. É a vida vivida como sertanejo, nas suas andanças de jagunço pelo ser-tão. Na vida sendo vivida ainda não se tinha aberto para os “prazos”, porque a vida imediata o tomava completamente. Era como um peixe vivo no “moquém”. O que é “moquém”? É uma grelha de varas que serve para assar ou secar o peixe ou a carne. Certamente, o moquém é aqui uma imagem-questão do viver o trivial onde a vida se vai dissecando sem chegar a viver as suas possibilidades de plenitude, de travessia. Por isso, ele logo acrescenta: “ ... quem mói no asp’ro não fantaseia”. É um agir inerente ao código genético como o agir e viver de qualquer ser vivente, onde as ações se sucedem em pro-curas e empenhos de bens que não são o bem. É um viver no cotidiano e prosaico “asp’ro” para superar as necessidades, os “pequenos dessossegos”. A vida vivida apenas manifesta “o que é” n”o como é”, sem ainda se dar travessia. Para esta ocorrer é necessário tomar posse dos “prazos”. O que são os “prazos”? Prazo é um tempo determinado; espaço de tempo durante o qual deve realizar-se alguma coisa. Esse sentido dicionarizado não consegue apreender aqui toda a sua força poética, pois trata-se de uma imagem-questão. Qual questão essencial nos traz essa imagem? Todos nós nascemos com um “prazo”, o entre-tempo determinado pelo nascimento e pela morte. Nesse entre-tempo alguma coisa deve ser realizada. O quê? O destino como travessia. Para tal não basta viver é preciso algo mais, é necessário fazer da vida vivida uma vida experienciada. Nisso consiste o destino como travessia. O que é a experienciação? Ela ainda não se dava porque como diz ... pensar não pensava. Não basta viver, é necessário pensar. Mas o que é o pensar? Pensar é deixar-se ser tomado pela morte como sentido do vigor de eros. Eros e Thanatos é a possibilidade de experienciação de todas as nossas experienciações. Experienciar a morte como morte no viver é a possibilidade de fazer a travessia e cumprir os prazos, o destino. No arrocho das aporias do cotidiano, como ele diz que vivia: “Vivi puxando difícil de difícel”, não sobra tempo para “fantasiar”. Nessas condições, ainda não eclodiu o poder que é próprio do ser humano: o poder fantasiar. O sentido atual de fantasiar é tanto imaginar como vestir uma fantasia. Porém, a palavra vem do grego phantasia. É um substantivo formado do verbo phaino, que significa manifestar, daí também a palavra fenômeno. Fantasiar é poder manifestar o quê? Fantasiar diz imaginar e vestir uma fantasia. Os dois sentidos não se excluem, integram-se. Revestir-se de uma fantasia como imaginar (isto é, apropriar-se do que é próprio) é realizar a travessia enquanto destino.
Como isto ocorre? Como há dois Riobaldos, também há duas vidas: a vivida e a experienciada. A vivida é inerente ao código genético. Já a experienciada é inerente ao genos como Moira. Porém, esta não consiste simplesmente em viver, mas em apropriar-se do que é próprio enquanto travessia. E o que nos é próprio? O que nos é próprio é o ser. Não simplesmente o ente como vida vivida, mas o ente enquanto ser na vida experienciada. Na vida experienciada não é o ente o sujeito. Não. Ela consiste em deixar-se ser tomado pela morte como sentido e vigor do viver. Fazer a travessia é deixar-se ser tomado pela morte. Então o morrer não é um fim, um término da vida, mas a vida potencializada pelo não-ser, pelo nada, pelo vazio, no vir-a-ser em que consiste a travessia como destino. Esse vir-a-ser é sempre um ser-do-entre, um entre vida e morte. Onde a medida do ser é o não-ser, onde a medida da vida é a morte. Nesta experienciação não há mais dois Riobaldos, mas um único trans-figurado por um outro agir. Aos dois Riobaldos correspondem dois agires, onde um busca, no fundo, o outro para o manifestar numa realização única enquanto travessia. O que vigora aí, portanto, é a tensão abismal do “entre”, enquanto o “mesmo’.
Aos dois Riobaldos corresponde uma mediação, de dupla medida. A dupla medida é inerente a nosso ser ambíguo, como ser-do-entre. Ultrapassado o horizonte dos “pequenos dessossegos, estou de range rêde”. O que a imagem-questão rede nos quer provocar a pensar? Na rede acontece a quietude do silêncio do pensar. O que é pensar?

Sabemos que pensar vem de pensum, particípio passado do verbo pendere. Significa, portanto, pendido, pendurado. Formou-se, já em latim, o substantivo pensum, que diz em sentido derivado a tarefa, o encargo e, em sentido próprio, a quantidade de fio de lá que se pendura para a tarefa de tecer e fiar durante a luminosidade de um dia ... A concentração da articulação da tecelagem remete sempre, de alguma maneira, para além dos fios, para a tessitura, para a totalidade de integração que a tessitura realiza em silêncio (Leão, 1999: 246).

Riobaldo se entretece como pensamento no silêncio da quietude da rede. E o que ele entretece ao se entretecer? Diz: “E me inventei neste gosto, de especular idéia”. Especular vem do verbo latino speculare, que diz pensar no sentido de re-fletir. Por siso o verbo deu origem à palavra espelho, o que reflete quem ou o que se olha, mas como imagem, onde o espelho não é a imagem nem quem ou o que se olha, mas a mediação. Por outro lado, devemos dizer que os três se im-plicam. O que no especular ele re-flete? Refletir é fazer emergir na reflexão a medida, onde a reflexão é a própria medida, na medida em que se procura a medida do que é próprio. Medida aí não e jamais é paradigma. Então a reflexão só aparentemente é um exercício de quem reflete. Nessa ação, quem age é tanto quem reflete como tanto o que se procura na reflexão: a medida. No especular o que advém é o eidos/idéia, mas quem a doa é a medida do especular, o que medéia o especulador na busca do que é em sua reflexão. Especular é um saber do ser, mas tanto um como outro são doação da medida. Por isso, a medida é o não-ser do ser enquanto se doa no vir-a-ser do que especulando se especula. Especular é sempre se experienciar na ambigüidade do entre, o espelho. Mas o que move, o que se pro-cura no empenho do especular, pois a toda ação corresponde um penhor? Diz: “O diabo existe e não existe? Dou o dito”. Estamos diante de uma questão: do diabo. Note o leitor a complexidade do dito. Trata-se do diabo, mas dele: a) se afirma; b) se nega; c) se pergunta negando e afirmando. Aonde nos querem levar os paradoxos? Ao ser-tao do ser-tão. Por quê? Diabo se compõe de dia-, que significa entre; -bo é lançar, jogar. Diabo, portanto, é o vigor do mediar, do caminho, o ser enquanto tao.

Os três ser-tões

Na obra de Guimarães Rosa, o sertão é o lugar onde o povo vive sua sina, seus sofrimentos, paixões e alegrias. O sertão é o umbigo do mundo. Por isso Rosa não escreveu sobre o sertão, mas a partir do sertão, porque antes de tudo ele é um sertanejo, isto é, o homem do ser-tao. Por isso todos somos ser-tanejos. É bom que o leitor se lembre que esse escritor mineiro antes de se tornar um cidadão do mundo exerceu três profissões que ajudaram a entender como o sertão é amplo, bonito e triste, e verdadeiro, lugar de experienciação da vida e da morte. É que ele vivenciou o sertão como médico do interior: na então Vila da Conquista, hoje Itaguara, interior de Itaúna. Disso lhe veio uma profunda experienciação do sofrimento. Por conjuntura política, participou da revolução de trinta e dois, como médico do exército. Isso lhe deu uma profunda experienciação da proximidade da morte. O destino, tornando-se diplomata, o lançou na construção dos diálogos entre os povos, levando-o a uma profunda experienciação da consciência como diálogo. São essas três experienciações essenciais que se fazem presentes em Grande sertão: veredas. São essas experienciações, como ser que temos que ser, que constituem as veredas e travessias dos sertões. Pois podemos falar, para tornar mais acessível aos leitores o seu diálogo com a obra, de três ser-tões.
O sertão é o grande tema da sua obra mais admirada: Grande sertão: veredas. Nela, o sertanejo Riobaldo narra as aventuras e desventuras de sua vida, revelando as muitas facetas do Sertão como paisagem natural, paisagem humana, paisagem religiosa e, sobretudo, como lugar do mistério. A separação que a seguir fazemos é somente para facilitar ao leitor a escuta da fala da poesia e dialogar melhor com o apelo que nos advém nas muitas falas de Riobaldo como personagem-questão. É que o ser do sertão sempre se faz presente em tudo, no todo que somos.

O sertão geográfico

Qualquer leitor brasileiro com um mínimo de formação geográfica identificará imediatamente a sua localização. Aliás, o próprio narrador faz alusão freqüente à sua localização, a lugarejos, vilas, cidades etc. que constam do mapa de Minas Gerais, do sul da Bahia, bem como dos campos-gerais de Goiás. Onde se localiza o sertão? Guimarães tem uma noção de sertão bem ampla e profunda. “Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então em toda parte não é dito sertão?... O sertão está em toda parte” (Rosa, 1968: 9)
Neste mundo, a bela e simples “natureza” chama a atenção de Riobaldo com suas plantas e bichos. “Aí foi em fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão do milho. Tresmente: que com o capitão-do-campo de prateadas pontas, viçoso no cerrado: o aniz enfeitando suas moitas; e com florzinhas as dejaniras. Aquele capim-marmelada é muito restível, se dobra logo na brotação, tão verde-mar, filho do menor chuvisco” (p.24). Também os pássaros e animais comparecem com seus nomes populares. “Beiras nascentes do Urucuia, ali o povi canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no revoredo, o saci-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rola-vaqueira... e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom era ouvir o môm das vacas devendo seu leite” (p. 24). Estes aspectos do sertão não são decorativos, eles envolvem o sertanejo em seu mundo e ser, levando-o à convivência e à integração com a Mãe-Terra. Assim é que um passarinho e uma flor adquirem um sentido especialmente afetivo-amoroso: “Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhas, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim – a galinhalagem deles” (p. 111). Este par amoroso vai ter seu complemento numa bela e perfumada flor que de acordo com o momento muda de nome: “Casa-comigo... Dorme-comigo... liroliro” (p. 146). Por aqui se vê que tudo co-participa da travessia do homem humano. Outros “elementos” do sertão têm uma grande importância como o vento, os rios e as veredas. Esse sertão “natural e geográfico” compõe o âmbito e palco onde os homens vivem seu destino. É a mãe-terra.
Um levantamento minucioso dos nomes desses lugares trouxe, no entanto, grandes surpresas. Ao lado de numerosos nomes constantes nos mapas geográficos, outros são pura “invenção” do autor. Por isso, para além de um mundo “cientificamente geográfico”, há muito mais um “mundo poético”. Na sua obra o geográfico se torna uma geopoética, onde há uma confluência de Ser-tão e Terra. Trata-se então de um mundo mítico, imemorial, onde há uma profunda ligação de todos com a paisagem, as árvores, os pássaros, todos os animais, todas as plantas, é uma ligação mítico-poética de mundo onde todos se irmanam numa grande aventura da vida: é o mundo. É nesse sentido que temos em Grande sertão: veredas não tanto um espaço geográfico, mas um lugar mítico-poético. O personagem-questão que efetiva esta profunda ligação é Diadorim, na medida em que ele é a alma e corpo telúrico de Riobaldo, ou seja, de cada um de nós.

O sertão como mundo-humano

O Sertão é a morada do homem. Por isso o sertão humano se mostra difícil e mutável. A luta do homem é a luta do sertão. “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa...” (p. 374); “O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca...” (p. 443); “O sertão é do tamanho do mundo” (p. 59): “O sertão é sem lugar” (p. 268). “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo” (p. 121). Guimarães Rosa nos fala de um sertão histórico e de um sertão como mundo poético. O histórico, quando se passam as andanças e aventuras de Riobaldo, é anterior à chegada do “progresso”. É o sertão onde os bandos de jagunços exerciam um poder que fugia à autoridade constituída e ao mesmo tempo protegiam e eram protegidos pelos grandes fazendeiros. Era um sertão onde a palavra e a honra eram cumpridos à risca, mas que por outro lado fugia à separação e à distinção estabelecida pela lei. Por isso, há referência a três leis. Para o jagunço não havia a ordem e a desordem, o bem e o mal. Tanto que relata: “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinho de metal...” (p. 17). O sertão está radicalmente ligado à condição do homem como essência do humano. Não é, pois, o sertão sócio-histórico o principal, mas trata-se da aventura humano do homem. Noutra passagem acrescenta: “O sertão tem medo de tudo” (p. 237). Os habitantes do sertão, ou o sertão humano, não são apresentados a partir de preconceitos culturais, como matutos ou qualquer outra qualificação cultural. Pelo contrário, surpreende neles seres humanos que têm seu saber e sabor, seus ódios e seus amores, sua coragem e seu medo, enfim são seres do sertão, seres da condição humana, nós. Uma pesquisa meramente sociológica nada saberá falar deste sertão poético-humano. Mas essa é uma das facetas mais importantes da obra. Rosa não escreveu uma obra sociológica, mas poética. E é nesse horizonte que devemos dialogar com ela. Pois aí não se trata de qualquer mundo poético subjetivo, ou seja, de Guimarães Rosa, mas de todo leitor que atenda à provocação, como leitor atento, das falas de Riobaldo enquanto questões nossas.
Mas o que é mundo? Não se trata aqui de querer qualificá-lo com qualquer adjetivo: regionalista, sertanejo, mineiro, ficcional, primitivo, latifundiário etc. etc. Será que ao acrescentarmos a mundo um adjetivo, não partimos do pressuposto de que já sabemos o que é mundo? No entanto, não sabemos. A Terra eclodindo, manifestando-se no humano, é o homem da Terra (ser-tão) sendo ser-humano. É desse humano do homem como mundo que se constitui o segundo ser-tão, mas jamais separado do primeiro. O mundo é o ser se dando em seu sentido. Nele todos estamos integrados nas veredas da história e nas radicais experienciações de eros e thanatos.

O sertão sagrado: a poiesis

Na medida em que o sertão é humano surge outra dimensão que marca sua presença de início ao fim: o sertão sagrado. Com este, um tema central: a existência e presença do diabo. O longo início do romance mostra como o sertão está povoado pelas muitas estórias em torno do diabo, de que são também testemunho os inumeráveis nomes a ele atribuídos. Exatamente para evitar nomeá-lo, porque do contrário, a força do nome provoca a sua presença temida. Por outro lado, o diabo é a concretização do poder, daí a preocupação central e a dúvida de com ele se poder selar um pacto. Que poder advém no pacto? O poder do sagrado.
O que é o sagrado? Não podemos confundir o sagrado com o religioso. Ele é mais. Ele é um mistério. Ele é o próprio Ser-tão. O homem ocidental experienciou de seis modos diferentes o sagrado: no mito, no religioso, na poesia, no místico, no pensamento, na metafísica. Essas seis facetas do sagrado percorrem profundamente Grande sertão: veredas.
O diabo é figura-questão do poder do sagrado. Por isso, ele está ligado ao nome, ao verbo, à palavra. Mas então trata-se do verbo e palavra poética, indicando este adjetivo muito mais que uma simples qualidade de certas composições em versos. Não. É o próprio ser~tão se manifestando poeticamente, é o vir à luz do ser no agir dos poetas. Poiesis significa ação de sentido. Isso fica evidente no momento do pacto. O personagem-questão, ou seja, o próprio poeta, invoca o diabo para que haja um pacto. E como ele o invoca, na hora decisiva? Ele in-voca Lúcifer. Esta é uma palavra latina que diz: aquele que é portador da luz. A luz emergindo do caos é o ser se fazendo mundo pelo poder do sagrado, ou seja, pelo que é o portador da sua luz. É nessa e dessa luz que se origina a travessia do homem humano.
Pelas múltiplas manifestações e experienciações possíveis do sagrado, isto é, do
Ser-tao, já podemos notar que o ser-humano tornando-se humano, ao se deixar atravessar pelo sagrado, nunca consegue dizer, isto é, manifestar o sagrado, só experienciá-lo. O diabo é um anjo anunciador e mediador. A tais experienciações é que Rosa denomina tao/veredas. É que o ser-tao é tão grande, é tão misterioso, é tão abismal, é tão o Nada, que nós já desde sempre só nos podemos mover: “- No-Nada” (p.9).
Este Ser-tão misterioso do sagrado nos convoca a pensar o narrador Riobaldo dirigindo-se a nós, a nós leitores, na seguinte fala:

Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção (p.79).

Nesta fala, leitor, sou eu, é você que é conclamado a se abrir para esse mistério que : “Ninguém ainda não sabe”. Mas há “veredas, veredazinhas”. Atravessá-las só é possível pela abertura pelo diálogo-poético de escuta do Ser-tao.
Os três ser-tões são um só. Como disse Heráclito no fragmento 123: “Tudo é um”. Mas nós somos seres-humanos e o humano é de difícil escuta e conquista. Voltados para o aprendizado de conhecimentos geográficos, sociais, políticos, poéticos etc. etc., acabamos por nos perder em meio às múltiplas veredas de atividades mundanas e conhecimentos funcionais. É a rede e mundo funcional. Tudo isso é muito importante na nossa vida. Mas temos um encontro marcado para o pacto: o deixarmo-nos ser atravessados pelo poder do sagrado, pelo poder poético. Poético diz sempre o que é próprio da poiesis.
É este o apelo que nos faz, ao longo de toda a obra Grande sertão: Veredas, o personagem-questão: Riobaldo. Ele é a voz do poético.
Grande sertão: veredas não tem idade. Seu ser-poético são suas questões. E estas não têm tempo. São imemoriais. Elas se manifestando são o ser-humano se humanizando. Elas têm a idade do homem porque são elas que o constituem ser-homem-humano. Essa é, portanto, a idade de Grande sertão: veredas. O sertão é o lugar poético-telúrico do ser humano. Grande sertão: veredas é uma Gaia-poética.

Bibliografia

ROSA, J.Guimarães. Grande sertão: veredas. 6. e. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar II. Petrópolis, Vozes, 1992.
--------------------------------- . O pensamento a serviço do silêncio. In: SCHUBACK, Márcia S. C., org. Ensaios de filosofia. Petrópolis, Vozes, 1999.

Um comentário:

Hercília Fernandes disse...

Boa tarde, Prof. Manuel.

Excelente artigo! Estava buscando compreender o conceito de télos e, até então, nenhum escrito na Net estava me convencendo. Seu texto traz novas perspectivas, para mim, sobre o conceito de télos na mímeses grega.

Ademais, essa discussão sobre o "ser-tão" é bastante inspiradora. Parabéns.