11 março 2007

Pequenos ritos

Quem procura não encontra
se deixa de esperar
o inesperado que já achou:
acontecer poético do silêncio.

A questão e os conceitos

A questão e os conceitos – 11-01-07

Prof. Manuel Antônio de Castro

A resposta à pergunta é, como cada autêntica resposta, a saída derradeira do último passo de uma longa seqüência de passos questionantes. Cada resposta somente conserva sua força como resposta enquanto ela permanecer enraizada no questionar. Heidegger, in: O originário da obra de arte, § 158.

Quem desconfia, fica sábio... Guimarães Rosa, in: Grande sertão: veredas, José Olympio, 1968, 107.

A realidade: entre a questão e o conceito
A palavra portuguesa conceito formou-se do latim conceptus. Esta liga-se ao verbo concipio: tomar no conjunto, recolher; conceber; compreender. O sentido predominante é o filosófico: representação de um objeto pelo pensamento, por meio de suas características gerais, através de um processo de abstração, daí definição. Porém, a palavra conceito é usada em diversas acepções: noção, idéia, pensamento, opinião, julgamento, avaliação.
Ela é a base da epistemologia ou teoria do conhecimento. A palavra latina procura traduzir diferentes e complexas palavras da filosofia grega, gerando reduções e imprecisões: logos, eidos, ousia. Por isso, em latim, é empregada como sinônimo de essência e substância. O conceito diz, portanto, respeito ao esforço de pensamento filosófico grego de apreender e compreender o “on” (particípio presente do verbo einai, ser), o “ente”. Este de maneira alguma diz para o grego algo de abstrato. O “on” (ente), cuja melhor tradução seria “sendo”, é concreto, pois refere-se ao ser acontecendo, sendo. Dessa maneira, o “on” é, em sua concreticidade originária, uma questão que sempre desafiou os pensadores gregos que não cessaram de defrontar-se com ela em seu enigma.
A tentativa de apreendê-lo e compreendê-lo se deu através de três palavras gregas, passíveis de múltiplas compreensões e traduções: logos, eidos, ousia. Na tradução para o latim foram usadas diversas palavras: para logos: verbo, palavra, discurso, “conceito”, razão, proposição, linguagem; para eidos: idéia, pensamento, forma, imagem; para ousia: essência, substância, conceito, idéia. Não esqueçamos que tudo isto é para “dizer” o “on”.
Portanto, isto é muito complexo. E o uso dessas palavras acaba por criar grande confusão. É por isso que o conceito acabou por ser usado de uma maneira geral e indistinta no lugar dessas diferentes e complexas palavras, em que nuances e diferenças essenciais são perdidas. Por outro lado, isso lhe dá um âmbito de aplicação e uso muito grande, onde na maioria das vezes, mais esconde e dissimula do que diz algo de real. No entanto, a palavra é usada com uma regularidade e certeza de algo verdadeiro que assusta e que um mínimo de reflexão crítica desconstrói, isto é, torna questão.
Mas em termos mais precisos de conhecimento, e não mais de realidade enquanto processo de concretização, conceito diz respeito a uma idéia universal que define ou determina a natureza (essência) de uma “entidade” (“on”). É essa essência conceitual que hoje está sendo profundamente revista. Conceito vai indicar as características comuns a um grupo de coisas ou pessoas e, ao mesmo tempo, a sua representação formal. Por exemplo: mulher, brasileiro, casa, fruta etc. O conceito surge pela atividade da razão (logos), através da abstração das percepções, isto é, das qualidades ou atributos. A base do conceito é a representação racional, porém o representado consiste no conceito “objetivo” (aparentemente). A própria idéia ou conceito de representação já parte do predomínio e separação do conhecimento e sua expressão ou enunciado do “on” ou realidade. Não pode haver representação nem descrição de algo não se mostre. Para desconstruir e superar os conceitos banalizados e tornados jargões, em detrimento da realidade (“on”), iniciou-se o movimento fenomenológico ou a “volta às coisas” (“on”). Às vezes pode se formar apenas um conceito mental a que não corresponde um “objeto”, ou seja, é um mero “ente da razão”. Por exemplo: sereia, lobisomem, vampiro etc. Crítica: Supõe-se que haja uma adequação entre o conceito e o “objeto real” para decidir se o conceito é meramente racional ou não. Contudo, já se pressupõe a existência do “real”. Mas esta é a questão: não se sabe o que é o “real”, tanto que se criaram diferentes palavras com numerosos sentidos. E “on” como coisa ou objeto já é uma representação ou descrição epistemológica.
De um lado, podemos destacar o caráter convencional e instrumental dos conceitos. De outro, portadores de significados abstratos, os conceitos servem de operações de classificação e definição. É neste sentido que são largamente usados pela ciência. O seu sentido de necessidade e universalidade que os punha a salvo da mudança contínua da realidade e da historicidade, permitindo um conhecimento verdadeiro (e não mutável), não se sustenta mais hoje. Eles continuam “válidos” dentro de um determinado paradigma científico e de uma determinada teoria. Não pode haver representação ou descrição sem uma teoria ou paradigma prévios Para entendermos isto um pouco melhor é necessário explicar que quando os gregos questionaram o “on”, este se dava já dentro de um questionamento de algo mais essencial: a physis (natureza). Para eles, em primeiro lugar, a physis era ta onta, ou seja, a totalidade dos entes. O caminho natural para compreender e conhecer a physis era o “on”. Reduzido este ao “conceito”, deu-se, naturalmente, o confronto do “conceito” com a physis (natureza: eis outra tradução enganosa e que de maneira alguma capta o que “é” a physis). Porém, constata hoje a ciência, a physis se mostra ambígua e dissimulada frente a todas as teorias e paradigmas. Há sempre um inter-stício, um “entre” inacessível, ou nas palavras de Heidegger: “A natureza, o homem, o acontecer histórico, a linguagem constituem, para as respectivas ciências, o incontornável já vigente nas suas objetividades. Dele cada uma delas depende, mas a representação de nenhuma delas nunca poderá abarcá-lo em sua plenitude essencial... O incontornável assim caracterizado rege e reina na essência de toda ciência.” (HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002, p.54).
Quando passamos de um texto filosófico, psicológico, literário, sociológico etc. para um texto de química, física etc. notamos logo uma grande dificuldade de nos movermos nestes conhecimentos conceituais. Isso advém de um motivo muito simples. É que os conceitos não são apenas expressos racionalmente através das palavras. O racional provém de uma compreensão do logos em que tanto se faz presente o seu sentido de linguagem como também o seu sentido matemático com o uso de números. A reunião de linguagem e números gera a idéia de precisão. Mas fica sempre evidente que o que subjaz como incontornável é a physis enquanto linguagem (não língua nem número). A reunião de linguagem e matemática não se dá apenas nas ciências da natureza (physis). Uma tal reunião é evidente e fundamental na música. Porém, neste caso o incontornável da ciência encontra o seu lugar pleno na arte, onde o conceito dá lugar, naturalmente, as questões. É que a música, sendo arte, não fica presa nem restrita, embora matemática nos seus aspectos técnicos, aos conceitos científicos. Nela, quando arte, ressoa a linguagem e a poiesis enquanto mundo e terra. Entenda-se aí por terra a concreticidade da ressonância (notas numa sintaxe poética ou mundo) do que dando-se se retrai. E não e jamais o conceito de Terra, baseado numa teoria, como planeta. Para pensar esta ambigüidade, já Heráclito, o pensador, assinalou: Physis kryptestai philei / O desvelar-se apropria-se no velar-se (Frag. 123). O incontornável é a ambigüidade do “entre”, o interstício de todo conceito.
Então, em relação aos conceitos, vamos ter dois movimentos: Pelo primeiro, a riqueza e enigma da physis ou realidade é reduzida a paradigmas, teorias e conceitos de que são exemplos as diferentes ciências (tanto da ntureza como do espírito). Pelo segundo, a riqueza e enigma da physis ou realidade, aparece e se manifesta em sua complexidade, pois dos interstícios, do entre dos conceitos emerge, cresce e se configura a realidade como mundo, desvelando e salvaguardando a terra. Demos como exemplo a música, mas isso ocorre em todas as artes. Então os conceitos dão lugar às questões. Nestas há um círculo: Assediado pelas questões (physis, on), o ser-humano empreende a sua compreensão configurando-as nos conceitos. Porém, no caso das artes, eles são uma caminhada que conduz de novo as questões, pois elas se instalam, enquanto poiesis e linguagem, nos enigmáticos interstícios dos conceitos, aquilo que no conceito sempre fica aquém e além, como um entre misterioso, em que se move e mostra o ser homem como humano, ou seja, no que lhe é próprio. Por isso não há o ser-humano e como um atividade possível, entre outras, a arte. O ser-humano para ser o que é é necessariamente artístico. Jogado no entre, o ser-humano se defronta com o que previamente já o constitui e ultrapassa. Nessa travessia é que fazendo artes se faz homem humano.
Partimos do conceito e vimos que este nasce quando o ser-humano se defronta com a questão: O que é a physis? O caminho de resposta o defrontou imediatamente com o “on”. E dá diferentes respostas “conceituais”. Uma das traduções do “on” para o latim foi “res”, dentro da tentativa de apreensão do “on”, através dos transcendentais,
que deu em português “realidade”. Outra tradução foi “causa” ou, em português, “coisa”. Assim como para nós a “realidade” se constitui de “coisas”, para o grego a physis se constitui de ta onta. É o mesmo mas não é a mesma coisa. Para quem quiser aprofundar os conceitos de “on”, remetemos para a primeira parte do ensaio de Heidegger: “A origem da obra de arte”. Defrontar-se com toda a “rede” conceitual é uma condição prévia para se abrir para a obra de arte e para a arte como questão e enigma, é uma condição prévia para sair do encanto mágico-racional dos conceitos científico-metafísicos. No percurso houve os envios da experiência de pensamento da metafísica, mas também a oportunidade para se voltar ao “on” da physis. Para tal é necessário, dentro de todo o complexo conceitual em que se entre-teceu a realidade no seu percurso ocidental, voltar ao on como questão. Nos conceitos há os inter-stícios. Eles são a porta de entrada, pois, se tematizados, nos advém a physis no seu “incontornável”, ou seja, na questão como “entre”.
Para os pensadores, o “on” sempre foi uma questão que se faz presente em suas obras em diferentes formulações. O desvio da questão e o seu aborto acontece quando o conceito representa e substitui a realidade (physis). Essa sempre foi a tentação metafísica, seja transcendental, seja imanente científica. Porém, num rasgo de advertência e pensamento essencial, já Aristóteles nos advertira:

To on legetai pollachós.

Como traduzir sem reduzir a conceitos? Como traduzir auscultando a provocação das questões? Toda língua é uma experienciação da realidade que se dá e retrai como linguagem. A dimensão e medida da “realidade” se dão como experienciação nas possibilidades do “on”. Como traduzir essa oração como unidade de pensamento sem ser infiel à provocação do pensar?
Tentemos:
O ser se dá à experienciação de muitas maneiras.
O ser se dá em muitas experienciações.
O ser é dito em muitas experienciações.
O ente se diz em muitas experienciações.
O que aparece se diz de muitas maneiras.
O que se faz presente se presenteia em muitas experienciações.
A coisa se dá em muitas experienciações.
O real se dá em muitas experienciações.
A coisa se manifesta de muitas maneiras.
O desvelante aparece de muitos modos.

O leitor acrescente aqui a sua “tradução”:
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E Heidegger ainda traduziu:

O sendo-ser torna-se, de múltiplos modos, fenômeno.

(HEIDEGGER, Martin. “Que é isto – filosofia?”. In: Os pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 24).

Diante de tantas possíveis traduções (outras são possíveis) e muitas vezes tão diferentes, com qual ficar? Eis a questão que nenhum conceito resolve. O “on” não pode ser reduzido a algo operacional como o suporta o conceito. O “on” é e será sempre questão. Aproximar-se dela nos convidam as reflexões poéticas e de pensamento presentes nas obras de arte e de pensamento.
Para sabermos o que é a arte devemos, necessariamente, ter em mente a questão: O que é o conceito? Mas perguntar pelo conceito é perguntar, desde o começo grego, pelo “on”. Por que temos que perguntar pelo “on” ao querermos saber o que é a arte? Em primeiro lugar, porque nenhum conceito de arte nos pode dar o que é arte. Por quê? A realidade enquanto conceito não existe, é uma abstração. Nenhum leitor jamais encontrará em sua biblioteca, nas livrarias, um “ente” chamado “arte” como se encontra João, Maria, gato, cão, traça etc. Mas encontrará, certamente, Dom Casmurro, Dom Quixote, Ser e tempo, Rei Édipo etc. Então a pergunta conceitual que é a arte deve necessariamente passar pela pergunta: Que é isto a obra de arte? Para tentar saber o “ente” da obra de arte já devo saber o que é um “ente”? Ou seja, esbarramos sempre numa questão e esta é a questão de todas as questões: O que é o “on”? Agora podemos compreender melhor porque esta pergunta volta sempre, por mais respostas que demos. É que o “on” é o enigma onde toda resposta só é verdadeira resposta se na resposta se re-coloca a questão, a pergunta. E agora podemos bem mais facilmente entender o que é um época, fora dos conceitos estilísticos e formais e ideológicos. Um época é uma experienciação do ser do “on” enquanto resposta. Como o “on” sempre se retrai e vela, toda época, poético-ontologicamente falando, sempre é um desvelar que ama velar-se, conforme já nos provocou a pensar o fragmento 123 de Heráclito (Physis kryptestai philei). Então a época, vista formalmente, pode ser entendida como a sucessão de formas ou respostas, ou como a tensão ENTRE o desvelar-se E o velar-se. Qual a diferença? Na primeira ainda não saímos do plano epistemológico, conceitual, historiográfico. Na segunda, tudo se centraliza na tensão, no entre, onde se dá e se retrai o ser do “on” enquanto tempo originário, isto, na historicidade do homem humano. Nesse dar-se e retrair-se consiste a questão.
Voltando à questão do “on” da arte, podemos agora compreender que a pergunta que pergunta pelo “on” é a mesma pergunta que pergunta pela “obra-de-arte”, enquanto “on”. A epistemologia resolve isso num conceito. Aqui não é possível, até porque o conceito generaliza e o que diz que é obra de arte serve para qualquer obra de arte. E isto é, do ponto de vista da arte criativa é um contra-senso, pois o que caracteriza toda obra-de-arte é sua singularidade inaugural. Este contra-senso (o contra-senso dos conceitos) surge do fato de não se pensar quando olhamos a realidade (“on”) com e através dos conceitos. Achamos muito facilmente que o “on” da obra de arte consiste no seu suporte. O que “é” a obra de arte Dom Casmurro? O papel? O formato de livro? A divisão em capítulos, os personagens, o narrador etc.? Mas aqui já saímos de uma “matéria” como suporte: o papel etc. para o suporte das formas, sem nos darmos conta de que o suporte da forma se não é o papel, cd, fita cassete etc. “é” o “quê”? Voltamos sempre à pergunta pelo “on”? Pensando conceitualmente em matéria (e sabemos por acaso qual é o “on” da matéria?), vamos dizer que ela, no romance, é a linguagem. Claro, finalmente entramos no que é o próprio do romance, Dom Casmurro, e de toda obra “literária” (tb. oral): a linguagem. Ledo engano, porque o que “é” linguagem pode não passar de um conceito. A linguagem de Dom Casmurro é a mesma linguagem de Os Lusíadas? Claro que não, no primeiro temos a linguagem em prosa e no segundo, em verso. São duas linguagens diferentes? Mais, para sabermos a diferença entre prosa e verso já devemos saber o que “é” (“on”) linguagem. Será que sabemos? Quem nos deu a resposta? Fica claro que não podemos de maneira alguma saber o que “é” linguagem se não soubermos o que “é” o que “é” (o “on”). Mas já vimos que o “on” é uma questão e não e jamais um conceito. A boa dedução nos diz que só podemos saber o que é a linguagem se soubermos o que é o “on”, mas como não sabemos, devemos igualmente deduzir que a linguagem é uma questão. Daí: O que “é” Dom Casmurro “é” uma questão e o que “é” a obra-de-arte “é” uma questão. Mais. São questões que só podem ser colocadas no horizonte da questão das questões: O que “é” o “on”?
Parece que tudo se simplifica quando, em vez de perguntarmos pelo “on” da obra-de-arte, perguntamos pelo “on”, por exemplo, de Capitu. Será que alguém um dia viu Capitu andando pelas ruas do Rio? Certamente não, nem mesmo no tempo em que a obra-de-arte Dom Casmurro foi escrita. Se nada de “real” (“on”) corresponde a Capitu é porque ela é “ficcional”. Ela tem uma existência (“on”) ficcional. Será? Partindo do “on” como podemos opor “real” e “ficcional”? A partir de que paradigma, teoria, descritiva ou não, (só se descreve o que de antemão foi proposto para ser visto pela teoria) classificamos e conceituamos “algo” de “real” ou “ficcional”? Ainda estaremos aí no campo e na matéria da obra-de-arte, a linguagem? Qual a relação “entre” forma e linguagem? Podemos notar que a questão: “Qual é o “on” da obra-de-arte? perfaz todos os componentes da própria obra-de-arte. Em vista disso Capitu não pode ser reduzida a um mero conceito, muito menos a uma representação. Por que uma representação seria artística e outra não (no fundo, por que uma linguagem é artística e outra não)? Por exemplo, uma foto qualquer de uma pessoa. Então o que Capitu é no âmbito da obra-de-arte? Insistimos: Essas questões só podem ser respondidas se nos deixarmos atravessar pela questão como tal: O que é o “on”? Concluímos que Capitu originariamente “é” uma questão. Como Capitu é uma manifestação, poderemos dizer que ela “é” uma imagem-questão, uma imagem enquanto personagem-questão. Um outro exemplo poderia nos levar para o âmago verdadeiro da questão. Será que algum dia algum ateniense viu Édipo andando em sua cidade? Será que Édipo já não anda e vive em cada um dos gregos e em cada um de nós, na medida em que ele é o personagem-questão do que em nós nos constitui e nos provoca a pensar e conhecer? O itinerário de Édipo não é, de fato, uma imagem do itinerário possível e o provocação de escuta do que em nós, em cada um de nós, desde sempre, já nos fala como questão? O poder de provocar em nós as questões é o poder da obra-de-arte.
Quando o próprio Aristóteles nos diz: To on legetai pollachós, devemos ser coerentes de dizer que o próprio modo de ele propor a interpretação do “on” é também um modo, “entre” outros possíveis, de dizer o que é o “on”. Portanto, a caracterização das obras de arte dentro do horizonte dos gêneros propostos pelo mesmo Aristóteles é tão-somente uma possibilidade, e jamais pode se tornar paradigma, pois o que ele diz resulta do seu modo de dizer, manifestar, conceituar o “on”. Querer caracterizar os gêneros enquanto obras de arte nas diferentes épocas, atentando só para as formas, é um contra-senso, pois não só o “on” se diz, compreende, manifesta etc. de muitas maneiras, mas ainda, tentando escutar a provocação de Heráclito: O desvelar-se ama velar-se; O desvelante apropria-se no velante; A excessividade poética ama o nada excessivo, ou seja, em grego: Physis kryptestai philei. Sem a época da tensão de ser e ente não é possível jamais compreender a época das formas (estilos, conteúdos, ideologias).
Qual é o “on” da obra-de-arte? Depende do horizonte em que se responde à pergunta: O que “é” o “on”? Disso decorre uma coisa muito simples: O acercar-se das obras de arte munidos de conceitos só realiza isto: o afastamento, o encobrir, o não ver o que na obra de arte desde sempre já opera, dando-se e retraindo-se: o seu ser, isto é, o seu “on”. Por isso é que, numa metáfora, podemos dizer: os conceitos são o aborto das questões. Para ficar mais claro é necessário dizer que quando procuramos conceituar o “ente” da obra de arte, já tomamos um caminho equivocado. A tradução de “on” por “ente” (ou “res”, de onde vem realidade”) já é um modo possível (que o próprio “on” se dá), mas não o único nem o mais percuciente, porque uma tal tradução do “on” grego para o latino “ens, entis” já não traz toda a carga originária inerente à palavra grega “on”, isto é, quando o grego se pergunta pelo “on”, ele o faz no horizonte da experienciação da physis como ta onta (mal traduzindo: os “entes”). Quem, hoje, lendo em português a palavra “ente” mergulha e afunda seu raciocínio e pensamento na physis? E sem a physis é impossível, a não ser conceitualmente, pensar o “on”. Logo, sem pensar a physis é impossível pensar o “on” da obra-de-arte. De outro modo, só é possível pensar o “on” da obra-de-arte mergulhando nas questões e não e jamais simplesmente nos conceitos.
Na sucessão de interpretações do “on” em que se desdobra o Ocidente, hoje pensamos o “on” enquanto coisa no sentido de “objeto”.
Ainda uma observação final. Disto tudo se conclui que, se de um lado, o conceito resulta de uma metodologia prévia: indução, dedução ou reflexão transcendental, a questão se constitui como metá-hodós, método, no constituir-se da resposta, mas como a resposta re-põe a pergunta, o método corresponde ao dar-se e retrair-se do “on”, ou seja, para a questão o método é o próprio “on” se dando e retraindo. É o diálogo, que só acontece dialogando-se. Por isso “ler” uma obra-de-arte é dialogar com o que nela se dá e se retrai, e não e jamais querer ou tentar classificá-la em qualquer conceito ou gênero.
Retomar a reflexão originária do “on”, criticando positivamente e em diálogo, as suas traduções historiográficas e epistemológicas em conceitos, essa é, sem dúvida, a linha mestra das reflexões heideggerianas, ao longo de suas obras e ensaios. Mas tais reflexões só se tornarão reflexões se deixarem de ser dele e se tornarem nossas, pois não podemos ser incoerentes: to on legetai pollachós. Até onde poderemos dizer que pensamos o que ele pensa? Mas ele nunca quis isso, pelo contrário, sempre repetia em seus escritos que mais importante do que o que estava sendo dito era o método, isto é, o lançarmo-nos nas questões e no apelo que desde sempre nos advém do que é digo de ser pensado: O que é isto – o “on”? Por isso, os leitores formatados nos conceitos, ao lerem suas reflexões, não se abrem para as questões nem para o que está em “causa” (já desde sempre o “on”), gerando mal-entendidos e interpretações hilariantes. No entanto, ele não se cansa de os convidar a pensar o “on” (“coisa”). Por exemplo:

“Que é uma coisa?” é a questão “Que é o homem?”. Isto não significa que as coisas se reduzam a um resultado da actividade humana, mas, pelo contrário, quer dizer que o homem deve conceber-se como aquele que, desde sempre, ultrapassa as coisas, mas de tal modo que este ultrapassar somente é possível na medida em que nos remetem para aquém de nós mesmos e da nossa superfície. Na questão kantiana acerca da coisa, abre-se uma dimensão que se encontra ENTRE a coisa e o homem, e cujo domínio se estende para além das coisas e aquém do homem (HEIDEGGER, Martin. Que é uma coisa? Lisboa, edições 70, 1992, p. 231).

Esse “entre” como o “incontornável” da physis nos abre um horizonte mais profundo e complexo do que o horizonte dos conceitos. É o horizonte das questões.

A questão

A questão não quer provar, quer provocar.
A questão quer o não-saber de todo saber.
A questão, mergulhada nas águas correntes, ansia pela fonte, proveniência do
que elas são.
Na medida em que a arte é um enigma, ela se constitui fundamentalmente de questões e jamais pode ser abordada apenas por meio de conceitos.
A emergência do humano do homem e o âmbito de sua atuação e de seu lugar dentro do real – e o enigma do seu destino – são as questões que perpassam todas as culturas em todos os tempos e suas obras de arte. Note-se que a arte, na maioria das culturas, sempre esteve ligada ao sagrado e que seria, por isso mesmo, estranha aos respectivos contextos qualquer redução a processos econômico-comerciais ou a formas e gêneros. Por outro lado, de maneira alguma se pode reduzir o sagrado ao religioso. Este é apenas, ao lado de outras, uma das experienciações do sagrado. Uma das mais fundamentais é nossa realização como experienciação poético-político-dialógica (o político ligado à Polis e não e jamais à Política e à Ideologia). A separação moderna das obras de arte dos ritos dos mitos não lhe retira o que nelas há de essencial: a realização da realidade enquanto terra e mundo. Mas então não estamos diante dos conceitos de terra (planeta) e de mundo com seus diversos predicativos (antigo, medieval, europeu, religioso, oriental etc.etc.) Eles são questões. E do enigma que é o sagrado lhe advêm todas as grandes questões.
Seja como mito, seja como pensamento, o ser humano sempre se questiona sobre tudo isso. Questão vem do verbo latino quaerere, através do particípio: quaestum. Significa fundamentalmente: procurar; desejar; indagar, pensar, examinar; perguntar.
No quaerere há três aspectos e posições fundamentais que se vão fazer presentes em toda questão: 1ª. O pro-curar; 2ª. O pensar; 3ª. O perguntar.
O verbo como tal traz em si o aspecto desiderativo e tendente para, daí o primeiro significado de pro-curar. Porém, o procurar do quaerere não é qualquer procurar, mas é um procurar de apropriação do que lhe próprio, ou seja, a pro-cura de seu ser. Entendendo o procurar neste horizonte, devemos, necessariamente, pensá-lo a partir do mito de Cura. Compreendendo o mito como um conjunto de imagens-questões, temos nesse mito uma profunda e essencial reflexão sobre o ser-humano em sua constituição poético-ontológica, ou seja, em suas questões essenciais.
O pensar não vai, portanto, dizer aí o simples exercício de um raciocínio, que resultaria num conceituar. Pensar é mais que raciocinar. Como nos diz Caeiro: pensar é amar. Ou como nos diz Emmanuel Carneiro Leão: “... pensar é deixar a realidade ser realidade nas peripécias de realização do próprio pensamento” (In: Schuback, 1999: 251). Pensar é deixar acontecer no ordinário o extra-ordinário. Nesse horizonte, pensar é antes de tudo um estado de abertura e de escuta que nos joga no acontecer apropriante do que advém nas e como questões.
O perguntar é a ação concreta de pôr em questão. O perguntar se desdobra em muitas perguntas simples e cotidianas onde nada de essencial acontece, pois são meras curiosidades. Então não temos aí questões. O perguntar que pergunta enquanto questiona se funda na essência do agir, pelo qual se manifesta e de-cide o que somos e não somos. Em um tal agir acontecemos historicamente. É nossa historicidade. É, por isso, o agir poético, a poiesis. Nesta e por esta se manifesta a realidade em seu sentido e ethos, enquanto linguagem, tempo, memória e história. A uma tal manifestação da realidade é o que entendemos por pensar e poietizar. Nele e por ele deixamos a realidade se tornar realidade, ou seja, deixamos acontecer no ordinário o extraordinário. No acontecer quem age e acontece é realidade, assim como no questionar pelo perguntar são as questões que nos têm e precedem. Na medida em que elas acontecem em nosso agir de perguntar chegamos a ser e a nos apropriar do que já desde sempre somos. No perguntar somos possuídos e impulsionados pelas questões e formulamos nas respostas os conceitos. Todo perguntar é, pois, um ser impulsionado pelo pro-curar enquanto pensar e poietizar. No pensar de toda procura acontece o perguntar poético, porque o que procuramos é o que nos move e para onde tendemos nas procuras essenciais: a cura. A cura é a questão enquanto pensamento poético. Pensar poeticamente é perguntar pelas questões que constituindo a realidade nos constituem. Mas se em todo perguntar o que nos move é uma procura e o que se procura é a cura, esta é o que nos constitui. A cura é a realidade para a qual sempre tendemos e pela qual permanentemente perguntamos. As questões da cura são as questões da realidade. Então no perguntar perguntamos pelas questões. Por isso questionar e pôr em questão é a única tarefa do pensamento. Nisso consiste nosso agir pelo qual realizando a realidade acabamos por nos realizar. Tanto nos realizar como realizar a realidade consiste sempre numa experienciação de pensamento poético. Por isso, nosso horizonte de realização, embora passem pelos conceitos, serão sempre as questões. Eis porque não há uma dicotomia entre conceito e questão. O problema está na experiência da metafísica que, optando somente pelos conceitos, tem feito o jogo das dicotomias excludentes e opositivas. Mas em sua essência a metafísica não é excludente nem opositiva, nela se dá o fértil jogo do entre questão e conceito. Daí que em todo conceito vigora um interstício, ou seja, um estar-entre como conjuntura essencial de Entre-ser (Da-sein). É nesse sentido que somos o ser das questões. Nele se dá nossa liminaridade e facticidade. No fundo, a metafísica surge do impulso para pensar o “metá” de toda physis. Tanto podemos pensar esse “metá” como “além” quanto como “entre”. Só porque já desde sempre nos achamos e somos seres do “entre” é que podemos ser seres metafísicos. Há, pois, em toda metafísica, uma ambigüidade radical. Ela pode ser recuperada se começarmos a pensar os interstícios de todo conceito, conforme tentamos fazer no tópico sobre “Conceito”.
A tensão entre conceito e questão é inerente ao próprio perguntar enquanto exercício concreto de perguntar. Por quê? A questão como tal se desdobra em duas dimensões, tomando o ser humano como Da-sein , ou seja, Entre-ser, e este ligado ontopoeticamente ao mito de “Cura”:
1ª. A ação que se dá no Dasein pelo vigor da Cura, pois é ela que constitui o ser humano em sua essência.
2ª. A ação do Dasein em seu agir concreto, impulsionado pelas questões, para o seu desdobramento na vontade de querer saber e não saber. Isso se concretiza na pergunta.
É que toda pergunta exercita um saber e um não-saber, um querer e um não-querer. Porém, tal pergunta como questão origina-se do entre, na medida em que só perguntamos porque não sabermos. Por outro lado, só podemos perguntar porque, de alguma maneira, já sabemos, pois se nada não soubéssemos nem teríamos como perguntar.
As questões não dependem do pensador. Não é ele que tem ou não tem as questões. As questões é que nos têm. Nós, cada um de nós, é uma doação das questões. Elas constituem o que nos é próprio, porém, para serem apropriadas exigem uma dura e assídua experienciação. A sua freqüentação cotidiana se torna uma verdadeira ascese de renúncia, onde a renúncia não tira, dá. Dá o quê? O que nos é próprio, o que somos. A doação da renúncia surge como um anunciar novamente (re-núncia) de modo originário, ou seja, nos envia ao destino, ao que nos é próprio.
Que é isso o que somos? Aqui podemos nos mover numa dupla articulação. (1) No plano do ente: O que é? Pois tudo que é é ente. Ou (2), o que é necessário, movermo-nos no plano do ser do ente. Neste caso, o alcance da resposta será medido não pelo ente, mas pelo ser do ente. Isso significa que a resposta não se dá nunca apenas no âmbito do ser, mas também no plano do ente. Significa isto que a resposta só em parte é resposta, porque ela nunca se dá só no plano do ser, mas também no plano do ente, ainda que enquanto ente do ser. Ou seja, a resposta vai sempre ser paradoxal, pois responde no plano do ente, embora se mova, e só pode se mover, no plano do ser. Porém, não está aqui sendo criada uma dicotomia entre ser e ente? Não. Estão sendo mostradas duas coisas: a) que por ser entitativa, a resposta ainda não alcança todo âmbito da questão; b) mas como o ente é ente e, portanto, só pode viger no âmbito do ser, o que nela se diz é altamente positivo, porque o ente só vige a partir do ser e essa é a dádiva de toda resposta que nos cabe e alcançamos. Contudo, isso de maneira alguma nos deve fazer esquecer que o ente não é o ser e que, portanto, a resposta não dá conta da questão, não dá conta do ser. Não há, pois, aí uma dicotomia, mas uma tensão dinâmica pela qual qualquer resposta já solicita e convoca e recoloca a questão.

Os conceitos

O conceito quer provar, não provocar.
O conceito quer o saber ainda não-sabido, mas jamais o não-saber do saber.
O conceito não quer a fonte, só as águas correntes das entre-margens, não o
entre de toda margem.
Os conceitos como conceitos vão surgir quando a resposta se torna mais importante que a questão, na medida em que a resposta “acha” que dá conta da questão, pois estabelece um conhecimento definido, preciso e exato. Os conceitos tiveram um duplo encaminhamento. Primeiro, eles se tornaram a definição de verdades por oposição ao erro. O seu fundamento foi a verdade lógica. Nasce a filosofia em termos metodológicos de espécies e gêneros, definindo (conceituando) o ser e os entes, as verdades e os erros. E então os conceitos se tornaram a espinha dorsal dos sistemas filosóficos, na media em que estes se sobrepuseram ao próprio real como teorias e abortaram as questões. Com o surgimento da ciência, a partir dos conceitos filosóficos, estes sofrem uma transformação: além dos limites definidos, passa a ser exigidos deles exatidão. E então, além da lógica, introduz-se a linguagem matemática, a linguagem da exatidão e da precisão. A maioria dos conceitos com que se analisam as obras de arte surgiram a partir do paradigma científico. E acabaram por ocultar as questões em que sempre a arte se move e constitui. O conceito traz a idéia de objetividade. Esta, fundada na exatidão da matemática, traz a certeza. Porém, hoje, tudo isso está, de novo, em questão. E o físico Ilya Prigogine defende o fim da certeza (“O fim da certeza”, in: Representação e complexidade. Rio de Janeiro, Garamond, 2003, p. 49-67). No entanto, ele é paradoxal, pois o fim da certeza da ciência apenas se dá em virtude, não das questões, mas de uma nova matemática da complexidade, por isso afirma: “O que quero dizer é que a humanidade está em transição, não há dúvida, e também não há dúvida de que a ciência está em transição” p.49. Essa transição não significa o fim da certeza matemática, daí o paradoxo no título do seu ensaio. Não sei se percebem que é agora a ciência que fica perplexa diante da realidade (“on”). Se a achava “simples” e abarcável pelas teorias e conceitos experimentais ou descritivistas, descobre o que os pensadores originários já desde sempre souberam: to on legetai pollachós: a realidade – o que é – é complexa. Isso a arte (obra-de-arte) também já desde sempre soube: o “on” é ambígüo e paradoxal. Por isso, qualquer teoria crítico-literária ou estética que queira dar conta da arte, isto é, d’isto’ que é arte, ou seja, da manifestação da realidade, não descobriu o que até os cientistas-desocobridores-questionadores já perceberam e procuram con-ceber: a complexidade da realidade. Nas questões somos provocados a pensar além da complexidade o paradoxo da perplexidade e complexidade: o originário “taumadzein” grego:
“No primeiro livro da metafísica (A 982 B12) Aristóteles, seguindo Platão, considera que o princípio de toda filosofia está no espanto e na admiração. É devido à capacidade de espantar-se com o ordinário que, agora e sempre, os homens foram levados a pensar. Se as coisas admiráveis e espantosas têm jogado os homens no questionamento do princípio e fim de todas as coisas, o que é que faz um fenômeno ser admirável e espantoso? O que requer e exige um questionamento? Heráclito responde que todo fenômeno é espantoso e todo questionamento não visa a eliminar, mas a aprofundar a pergunta. Radicalizar significa descer até as raízes, significa expor, no sentido de trazer à tona e fazer aparecer as pressuposições que se escondem nas possibilidades de perguntar e responder. Mas, então, por que há tantas dissimulações de suposições nas perguntas? Por que se dá tanta ilusão de as respostas serem cabais, isto é, de acabarem com as possibilidades e necessidades de perguntar? A resposta de Heráclito é uma só: porque todo questionamento exige transformações no modo de ser de quem pergunta, impondo-lhe aceitar o real em toda a sua realização. Ora, crescer dói na alma e transformar-se traz consigo um sofrimento essencial. Por isso o espanto logo se torna curiosidade e a busca do interessante substitui rapidamente a admiração. Curiosidade é o açodamento de olhar tudo sem ver nada, é a voracidade de saber tudo e não ser nada. E interessante é tudo que mobiliza sofreguidão das trocas e acirra o ritmo do consumo, sem ter de assumir o peso das mudanças, nem a responsabilidade das decisões” (LEÃO, Emmanuel Carneiro. Heidegger e a ética. In: Revista Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 157, 63/77, abr.-jun., 2004, p. 73)
É importante que fiquem claras duas coisas: A arte vive das questões. A ciência vive dos conceitos (mesmo que incertos na sua certeza matemática). Tanto as questões como os conceitos são importantes para o ser humano, como são importantes o cientista e o poeta, como é importante a cotidiana “realidade” e a cotidiana “utopia” (nas e pelas quais se realiza o humano do homem). O indesejável é a tentativa insistente em querer reduzir as questões da arte a conceitos (mesmo que incertos, porém matematicamente precisos). Mais indesejável ainda é que alguns críticos queiram reduzir a arte a conceitos, fazendo o papel de falsos cientistas. Pois nada produzem de científico e reduzem a arte a conceitos abstratos inúteis, que a silenciam.
Os conceitos são determinados pela verdade lógica e matemática. As questões se movem dentro da verdade manifestativa, que é, prévia a toda verdade conceitual. Os conceitos se servem de uma metodologia presa a teorias, determinadas pelas metodologias em que predominam a indução, a dedução e o experimental. São objetivos na medida em que adequam o real às teorias e suas metodologias descritivas ou experimentais. Elas originam as análises descritivas e explicativas.
Os conceitos geram um conhecer passível de aprendizado. As questões, quando experienciadas por cada um, produzem um saber como aprendizagem saborosa do que somos (por isso mesmo, o que não pode ser ensinado).

Jargões

Os jargões são os conceitos sem os interstícios das questões, são os conceitos sem o vigor da memória, são o uso automatizado dos conceitos sem o vigor da história. Os jargões surgem das teorias gerais sem tempo, história e memória.
Os jargões são os conceitos sem a vida em seu pulsar vivo e experiencial.

Os jargões como nomenclatura
As teorias científicas, quando reduzidas a conceitos precisos e medidos, comprimem o real em algo substancial, estático, verídico, genérico, paradigmático e único, de tal maneira que falar do homem e do real fora de uma tal constelação de conceitos ou nomenclatura significa algo de estranho e ilógico, algo de “mítico” e “ficcional”, algo de imaginoso, fantasioso e fantástico. O real dos conceitos é estático e teórico e não leva em consideração o tempo em suas múltiplas facetas. Só há um tempo: o linerar e cronológico, o tempo conceitual da teoria gramatical e da historiografia. Aliás, os conceitos científicos na realidade sempre falam de uma realidade a-temporal, como se pudesse haver algo fora do tempo. Hoje, a ciência mais avançada teoricamente já está descobrindo o tempo (flecha do tempo) e a própria ciência se torna uma “ficção”. O fechamento do real e do homem nos conceitos pode levar as nomenclaturas a se tornarem verdadeiros jargões. Isso ocorre muito com as nomenclaturas das disciplinas científicas, cada vez mais especializadas. Chegam a constituir uma “língua”. Um código especial e específico só acessível aos iniciados. No entanto, diante das pesquisas avançadas e cada vez mais especializadas, fica muito difícil não cair necessariamente numa nomenclatura, senão como dar organicidade aos “novos” conhecimentos? A nomenclatura é um modo de ser jargão. Este, embora necessário para a especialização das disciplinas, não deixa de ser o conceito deturpado, pois aí o mais universal se torna o mais fechado e inacessível. Isso tudo, hoje, com as pesquisas avançadas e a volatilidade de certos conhecimentos, está mudando bem rapidamente, mas a concepção férrea e fossilizada da ciência como verdade continua, embora ela mesma não saiba mais o que é “verdade”, nem real. Falar aí de sabedoria é ainda um contra-senso maior.

Os jargões e os estereótipos

Existe, porém, uma outra forma de jargão, o mais difundido de um modo geral. É quando um conjunto de conceitos passa a ser reproduzido e repetido pelas pessoas sem a menor reflexão e conhecimento do que tais conceitos dizem e implicam. Isso ocorre muito nos sistemas religiosos, filosóficos e científicos. Essas idéias gerais desprovidas de vida se tornam lugares-comuns. Os rituais formais contribuem muito para isso e a insistência na pretensa verdade positivista de que o real é do dado, o posto aí, o “existente”, numa palavra: os fatos. Como se pudesse haver fatos sem o que os faz e sem quem os vê, mesmo para teorizar e experimentar. Aí se geram os fundamentalismos ou as modas teóricas. O estereótipo não se dá conta de que por detrás de todo conceito ou conceitos sempre há uma questão. O estereótipo é a teoria reificada, substantivada, petrificada. Na filosofia, o exemplo clássico é a nomenclatura platônica. Esforço inaugural de pensamento, torna-se, na mão dos discípulos, sistema filosófico, com conceitos cada vez mais definidos, e passa a fazer a festa da metafísica conceitualística. O jargão existencialista também conheceu o seu sucesso. O jargão do marxismo vulgar é outro exemplo clássico. São exemplos claros de estereótipos. Nas artes, os estragos dos jargões estereotipados foi mais duradouro e desastroso. Os conceitos de gêneros, pretensamente baseados em Aristóteles, pois deste não se apreende o vigor do pensamento, são ensinados e repetidos ad nauseam sem a menor abertura para o apelo criativo de toda obra de arte. Esta, reduzida a expressões retórico-gramaticais ou a experimentalismos estético-formais, nas mãos das teorias literárias, sem memória do poético, estéticas ou ideológicas, vive refém dos jargões., dos estereótipos. Baseados numa pretensão científica que nem a própria ciência mais adota, silenciam o vigor da fala de toda obra de arte, fundadora do humano do homem. Essas teorias fundadas nas pretensões conceituais, sem a menor escuta da poética das questões, inerente a todo fazer da arte, nada mais fazem do que repetir os jargões teóricos.
Dominadas por um sentimentalismo e subjetividade vulgares, por um objetivismo objetivo-formal, por um esteticismo diluente e vivencial, as teorias da arte são as que mais têm dificuldade de se livrar dos jargões estereotipados. Jamais as pessoas são levadas a se perguntar pelo “on” da obra-de-arte, ou seja, pelo seu próprio “on”. Nos estereótipos, o real (“on”) vivo e pulsante se torna esquelético, abstrato, asséptico, desvitalizado, representação da representação, simulacro, jogo inconseqüente de palavras vazias, num pretenso conhecer que nada conhece e cada vez mais leva a desconhecer o vigor da obra-de-arte.
Nas questões da arte, para fugir de tais jargões, propomos justamente o caminho das questões. Na segunda metade do século XX sucederam-se diversos ismos-jargões desastrosos em torno dos estilos de época, estruturalês, semiologês, sociologês, psicanalês, feminês etc. etc. O jargão é o esquecimento de que não há questão sem conceito nem conceito sem questão.

Os jargões e os lugares-comuns

Outro tipo de jargão recorrente é o lugar-comum. Há o lugar-comum do falar cotidiano. Este sobrevive na dicionarização. Por este processo vão-se registrando diferentes significados de uma palavra, significados esses de cunho semântico que vivem ao sabor da predominância, num certo momento, de um certo uso. Qualquer apelo poético ou de pensamento de uso do vocabulário torna-se inacessível para o gramático dicioanarista. Guimarães Rosa, poeta-pensador, quando perguntado qual seria a grande obra de sua vida, respondeu de maneira precisa: escrever uma dicionário. Diante do estranhamento do entrevistador, explicou: onde cada palavra seria um poema.

Os jargões retóricos

As questões poéticas sofrem de um assédio bem sutil e destruidor: é o jargão retórico. Em geral, toda arte poética fala apriori de um jargão retórico. O perigo está em que ele está muito próximo do vigor poético, mas este aí não cabe porque é o poético reduzido ao formal. No início do século vinte, os formalista russos o caracterizaram como desautomatização. Acontece que o poético não é o resultado de um jogo entre conteúdo e forma. Isso ainda não passa da mais pura e disfarçada retórica. As especializações hoje estão dando origem as novas formas das palavras com novos sentidos. Nem por isso esses jargões conceituais se constituem em obras de arte. O poético é a manifestação no oridinário do extra-ordinário, onde há um deixar-se tomar e apropriar pelas questões. É o que Heráclito assinalou no frag. 123: physis kryptestai philei / desvelar-se apropria-se no velar-se.


A questão e a essência

A questão do conceito está ligada à questão da essência. Note-se que o próprio conceito só pode ser conceituado, dada a sua variação, no horizonte da questão. O conceito como conceito é uma questão. A essência pode ser considerada do ponto de vista concreto – e então está profundamente ligada à questão da essência como questão – e do ponto de vista abstrato, e então será uma essência enquanto conceito lógico-racional, ou seja, estará dependente de um apodigma lógico, isto é, do enunciado demonstrativo de uma enunciação lógica. O conceito é, então, o composto lógico de enunciado e enunciação. Heidegger diz: “O que pensamos quando dizemos essência? Como essência vale habitualmente aquela opinião comum em que todo verdadeiro coincide. A essência se dá no conceito de gênero e no conceito geral, que representa a idéia única que ao mesmo tempo vale para muitos. Esta essência indiferenciada (a essencialidade no sentido de essentia, a essência, a substância da proposição, os substantivo sem o verbo) é, contudo, apenas a essência não essencial” (O originário da obra de arte, § 96). Heidegger retoma esta questão em “Hölderlin e a essência da poesia”. A anulação da questão está na adoção do conceito como uma idéia que vale para muitos. Nisso consiste o conceito abstrato, diferente do concreto, onde o universal e o singular concrescem, não havendo separação lógica nem formal, porque então a linguagem não é meio, mas faz parte constitutiva do que se manifesta e do como se manifesta. O que é, por ser, nunca pode ser tomado e reduzido apenas a algo abstrato. O que é é em virtude do ser. É dessa “virtus”, desse vigor que se gera todo processar e acontecer e, portanto, tem de ser sempre con-creto e constituir sentido. Nisso consiste a linguagem. Ela é o acontecer com sentido. O que acontece e dá sentido é e só pode ser o ser. O ente do ser só pode ser ente porque no fundo é uma doação do ser. E ser é fundamentalmente verbo. O ser é o verbo de todos os verbos. A palavra latina ens, traduzida por ente, tem em si um valor verbal, pois é o particípio presente do verbo esse. No entanto, predominou, a partir da determinação do ser ou essência através da proposição (onde a ação se deslocou para o sujeito), na tradição conceitualista e essencialista, o entendimento do ente como substantivo, aquilo que tem substância ou essência. A essência é o que é sendo ou o ser enquanto logos, daí que se denominou ao “algo” de cada “coisa”, a sua “razão” ou essência. Ratio (razão) foi um dos modos como os latinos traduziram o logos grego. É ainda nesse sentido que nos referimos à “natureza” de algo, até de cada um de nós. Por exemplo, a natureza humana. É a suprema conceituação essencialista.
O conceito é o cum-cipere do que é enquanto linguagem – o acontecer com sentido. Só porque o “é” acontece é que pode ser compreendido e apreendido no cum-cipere – cum-ceptum. O cum-ceptum é o âmbito do compreendido e do apreendido, do que acontece e se doa enquanto se retrai no que é e no como é. O doado como compreendido e apreendido é o con-ceito do que se retrai e se constitui, portanto, como questão. O que se retrai, o que se vela não é, porém, uma falta de ser que precisaria de uma complementação ou suplementação. Não é falta nem negatividade nem mal nem violência. Pelo contrário, é de uma riqueza tão grande e impensável e incompreendida e inapreendida que consiste precisamente no nada excessivo. Este é sempre o limite E o não limite do limite. Esse E que é um “entre” possibilita a doação e a apreensão e compreensão do que se doa tanto no doado como no retraído. Isto tem duas conseqüências:
1º. Por ser o que se doa, é doado como verdade e, como o que se retrai, é não-verdade. O “entre” é a liminaridade de verdade e não-verdade. O horizonte da verdade é sempre também o horizonte da não-verdade. Mas a verdade e seu sentido provêm da não-verdade e seu sentido. E nisso consiste a decisão tensional do “entre” linguagem e fala, do “entre” silêncio e música, do “entre” repouso e gesto corporal, isto é, da dança. É a verdade ética da não-verdade ética.
2º. Por ser o que se doa, é figurado como o que é isto e aquilo, e como o que se retrai, é o não-figurado, o vazio, o silêncio. Esta tensão do entre precede o par tradicional “matéria e forma”, porque o figurado é figurado do que acontecendo se retrai, é doação do vazio, do silêncio. E como matéria só é matéria deste e daquele figurado na medida em que pela compreensão e apreensão do entre-compreendido é já originariamente doação do que se retrai, do vazio, do silêncio. Essa “matéria” só é matéria enquanto ela só chega a ser esta e aquela matéria, porque é uma doação manifestativa do que se retrai, do vazio, do silêncio. Do Nada. No vazio e no silêncio, pelo vazio e pelo silêncio, a “matéria” chega a ser “esta” e “aquela” matéria, porque para ser “esta” e “aquela” matéria é necessário que elas sejam compreendidas e apreendidas na abertura do entre-compreensão.
As considerações sobre questão e conceito e essência abstrata e essência concreta remetem para um nó em que se debatem todas as teorias estéticas e todas as posições críticas que se limitam a basear-se no conceito, na essência abstrata, no par matéria-forma (concebidas como conceitos abstratos). É o nó da rede dos conceitos e sistemas ou o nós das questões da teia da vida.
A questão do entre-compreensão, para não se tornar algo também abstrato, deve ser concreta e ela se dá no concreto exercício do perguntar, do questionar. Ver para isso meu ensaio em Tempos de metamorfose: “A questão hermenêutica”.

A arte
A arte é um enigma e muitos são os caminhos e as experienciações que conduzem até ela, embora ela mesma se retraia sempre. Ela, como mistério, se inscreve no próprio fundamento de todo ser humano. A arte não é algo que possa acontecer ou não ao ser humano. Este só é ser humano quando se dimensionar pelo originar da arte. O que se interpõe a este horizonte de realização arte/ser humano são os múltiplos conceitos que foram sendo elaborados na tentativa de definir o que é a arte. Inutilmente.
Quando se trata de pensar a arte é que a tensão entre questão e conceito pode-se tornar rica de perspectivas. A poética filosófica e metafísica sempre tratou da arte através dos conceitos. Podemos tratar da arte com conceitos? É muito difícil. Qualquer conceito de arte só diz o que o conceito como conceito alcança e delimita, não o que a arte é. Quando perguntaram a santo Agostinho o que era o tempo, respondeu:
Se não me perguntarem sei, mas se quiser conceituá-lo, não sei.
O tempo é uma questão.
Se não me perguntarem o que é a arte, eu sei. Se quiser conceituá-la, não sei.
A arte é uma questão.

Questão e arte
Ao pensar as questões da arte, temos, antes de tentar qualquer encaminhamento(e nisso já está uma das questões fundamentais, o en-caminhamento), de pensar a própria arte como questão, e com isto, ainda mais anteriormente, pensar a questão como questão.
Quando pensamos a questão como questão, já estamos nos abrindo poético-ontologicamente para a referência pensar/questionar. Como se vê, a primeira de todas as questões é o próprio questionar enquanto dado no pensar e no próprio questionar. E aí não podemos ir mais longe, isto é, a pergunta que pergunta pelo questionar não pode fundar o questionar, mas este, enquanto ato que se dá ao e no ser humano, dá-se primordial e originariamente como agir do questionar. E estes é que, ao se darem naquele que pergunta e questiona, já fundam o agir e o pensar de quem questiona no perguntar. Ou seja, simplesmente o agir e questionar precedem e fundam o próprio ente que age e questiona.
Quando pensamos o questionar, o agir e o nomear, nos aparece o ente-do-ser-homem que não apenas age, questiona e nomeia, mas que também pensa. Ao pensar, os gregos deram o nome: noein (pensar/perceber), em tensão com o legein e o einai. Mas, de novo, não é o noein que possibilita e funda o agir, questionar e nomear. Estes se dão como noein no Da-sein. Na pergunta concreta de cada questão do questionar já se fazem co-presentes o agir e o nomear. O agir e o nomear, como possibilidade e exercício con-creto de cada pergunta, implicam que eles, na sucessão de perguntas e respostas, se constituem como caminho, como per-curso e sentido do agir e nomear, no questionar. Por outro lado, o sentido do questionar, como exercício concreto do perguntar nas dimensões de agir e nomear, funda o caminho (sentido/legein) enquanto noein. Então este não é nem pode ser algo que é acrescentado, agregado como suplementação ou de qualquer outro modo ao questionar, enquanto agir e nomear. O questionar no exercício concreto da pergunta enquanto agir, nomear e noein já pressupõe o caminho (sentido) enquanto noein. Porém, assim como o caminho só se dá no entre-caminhar ambíguo (metá-hodos), o próprio noein só se dá como diá-noia, a ambígua entre-percepção.
O caminho/sentido se constitui, portanto, já originariamente e desde sempre como: palavra, ação, percepção/pensamento e questão. É o que já nos assinala a palavra questão (querer/vontade/sujeito como exercício do verbo/ação da physis/ser enquanto sentido/percepção). Mas na medida em que o questionar implica isso tudo, ou seja: ente/real, caminho (hodós), a manifestação do ser-do-ente, há aí uma aletheia, ou desvelamento, isto é, verdade. Disto resulta visualmente uma figura com as dimensões fundamentais da questão:

Real/Tempo
!
Método ------- ! ---------- Verdade
(metá-hodos) ! (aletheia)
Poiesis
(ação)
O que reúne estas quatro dimensões são a linguagem (logos) e a memória (mnemosine), constituindo assim uma sintaxe poética. São estas as seis dimensões que constituem a questão como tal. Na questão ainda se dão desdobramentos possíveis, mas já no plano simplesmente dos conceitos. Da questão se podem desdobrar as dimensões psicológicas, psicanalíticas, sociológicas, antropológicas, historiográficas etc., mas onde tais dimensões se lêem no horizonte dos conceitos. É nesse sentido que se afirma: a obra de arte explica e manifesta a psicanálise, por exemplo, mas esta não nos leva às questões da obra-de-arte, porque não pensa; conceitua e paradigmatiza.
Numa primeira visão, constatamos que, ao pensar as questões da arte como o que a questão como questão implica, o horizonte em que a arte se move é o da própria questão. Disso resulta que não é a arte que circunscreve as questões. Nelas e por elas a arte se constitui como arte. Ou seja, as questões da arte, numa primeira instância, são as questões do questionar. E então já podemos assinalar que a arte, para ser arte, deve necessariamente se mover no horizonte das questões do questionar, ou seja: o real, o método, a verdade, a ação, a linguagem. Isso numa primeira instância.

A arte e a imagem-questão
Os grandes poetas só são poetas porque se surpreendem e apreendem acossados pelas questões, pelas grandes questões. Mas suas veredas são densificadas pela sedução e sabor da linguagem de toda poiesis. Seus caminhos e descaminhos são o canto encantatório da memória: o que foi, é e será. Sua Linguagem é a Palavra, como questão-poética. Cada Palavra-imagem-questão traz em si o sentido e a verdade manifestativa. Por isso não precisa das proposições como lugar da verdade lógica e científica. Cada Palavra, por ser poética, é núcleo de múltiplos sentidos e possibilidades de revelação. Diante da riqueza ofuscante e da ressonância sem limites da linguagem do silêncio, eles movem-se na fonte inaugural das palavras-imagens-questões. Uma imagem é sempre um dizer sonoro do silêncio. O apropriar-se (amar) é a imagem-questão-poética. Poiesis é radicalmente apropriação enquanto amar. Toda imagem se torna imagem-questão na medida em que nela age, se concentra e consuma a ambigüidade da realidade (“on”). A imagem como questão é um entre, um entre-imagem-questão onde a realidade (“on”) se apropria como realidade. É o que nos provoca e invoca a pensar sempre o frag. 123 de Heráclito: O desvelar-se apropria-se no desvelar-se. O apropriar-se é o “lugar” (imagem-questão-entre) de convergência e divergência da physis enquanto desvelar-se e velar-se.
Em vista disso, jamais pode ser conceituada. Imagem-poética é sempre questão. A imagem-questão, como a linguagem, não é, dá-se. E, dando-se, é. Por isso a obra de arte, enquanto operar de poiesis, não é ente. Como a linguagem, é doação do ser. Por isso a imagem-questão não é ente, a obra-de-arte não é ente, como a verdade (aletheia) não é ente. Em vista disso a verdade (aletheia) não pode ser um paradigma, um ethos-valor-moral. Enquanto imagem-palavra, a imagem é linguagem e, como a linguagem, não-é. A imagem-palavra-poiesis não pode ser nunca determinada como um ente, porque não se lhe pode atribuir um limite. E não se lhe pode atribuir um limite porque é a própria poiesis poetando, e isso é o ser se doando como desvelamento e velamento. A imagem-questão é poiesis de experienciação e nunca este ou aquele ente. Capitu, como imagem, não é, porque Capitu é personagem-questão, enquanto é imagem-poético-manifestativa de questões, é imagem-personagem-questão. Na obra de arte tudo é questão: as imagens, os personagens, os eventos, a narração, o narrador ou narradores, o tempo, o lugar. Como imagem e verbo toda obra de arte é a dinâmica poética (tautologia) de manifestação do real em sua verdade. Hermes, Palavra, Verbo, Imagem, Verdade são poiesis.
“Tipo” é uma imagem-clichê. Como clichê, pode ser uma imagem com dupla força de presença: mostrar o clichê e desfazer o clichê como idéia. Nesse sentido, operará ao nível da poiesis na medida em que, como linguagem poética, desfaz a linguagem como clichê, ou seja, a língua retórico-instrumental e argumentativa, e a institui como poética.
A imagem-questão é a imagem-poética nos con-vocando para a escuta das grandes questões, onde essa escuta é a condição fundamental de todo diá-logo e de todas as interpretações. Na imagem-poética comparece sempre a poiesis como vigor de todo agir essencial e, ao mesmo tempo, o ethos, como linguagem e sentido do ser. Na medida em que é ethos e sentido, a interpretação se torna o horizonte onde se decide o que somos enquanto valor e sentido. Por isso, de ethos se originou a ética. O mito, poiesis originária, se constitui, manifesta com imagens, não retóricas, porém, questões: são as imagens-questões. Todo mito, como a physis, se constitui numa ambigüidade fundamental de rito e mito, isto é, de desvelamento e velamento. Mnemósine é a memória, a mãe de todas as Musas. Verdade é a deusa Aletheia. Sabedoria é Métis. E assim por diante. São imagens-questões. Quando entendermos a linguagem poética dos mitos como imagens-questões, deixaremos que eles voltem a ter o seu vigor originário. As imagens-questões nos mitos concretizam o real se realizando em realizações incessantes de desvelamento e velamento. Nas imagens-questões há uma tensão permanente entre o dito da língua e a ausculta da linguagem que se vela. No trânsito desse transe transam o saber e sabor de toda sabedoria da poiesis como imagens sonoro-visuais, que manifestam o real em caminhos que não conduzem a lugar nenhum, porque o caminho é o próprio real se dando em desvelo velado de realizações. Nesta escuta erótico-amorosa, a linguagem poética do silêncio se tece e entretece mergulhando tanto mais nas profundezas, como raiz, quanto mais eclode no livre aberto de toda abertura e clareira apropriante e manifestante das questões. A imagem-questão não é nem pode ser reduzida a uma figura de linguagem, seja retórica, seja gramatical. Nela vige e vigora uma ambigüidade poético-ontológica, fonte inaugural e originária de tempo e mundo, memória e linguagem, possibilitando sempre novas leituras e interpretações.
Cada texto poético não é como tal um ente ao lado do que propriamente é um ente, p. ex., algo dotado de código genético ou funcionalidade, como sendo isto ou aquilo, este ou aquele utensílio. Então os textos, melhor, as obras-de-arte, que são obras porque operam, se constituem de imagens-questões. Por exemplo, “Campo”, no ensaio de Heidegger “O caminho do campo”, é uma Imagem-questão. “Sertão” e “veredas”,em Grande sertão: veredas, são imagens-questões. Que questões essas imagens nos colocam? Aí é só começar a pensar, dialogando com a fala da obra-de-arte. E então podemos ligar, por exemplo "campo", a lugar, a mundo, a Terra, a Céu, aos mortais, aos imortais. Para fugir da terminologia retórico-metafísica uso a denominação: Imagem-questão, ou seja, uma questão (que nós não temos, mas que nos tem) dita, centralizada e condensada na imagem escolhida. Todos os mitos são figurados em imagens-questões. Na literatura, Capitu, Mme. Bovary, Dom Quixote, Édipo, Riobaldo etc. são imagens-questões. As imagens-questões se entre-tecem com o poder ambíguo-verbal da metá-fora, ou seja, literalmente: um conduzir (fero) no e pelo vigor do "entre" (metá). A imagem-questão é ambígua e retira sua ambigüidade do "entre", na medida em que a linguagem é a própria manifestação do Da-sein como Entre-ser. O poder e vigor da imagem-questão está no fato de que congrega: tempo, linguagem, memória, verdade, narrar. Por isso ela repousa, como quietude enquanto tempo ontológico, "entre" o ser escrita e o ser lida, dialogada, entre o ser vista, pensada, figurada e o ser narrada, mas onde ela ao ser experienciada como escuta do que somos e não somos, ambigüamente se retrai em sua fala silenciosa e silente. A imagem-questão é um modo concentrado e verbal de poiesis, enquanto narrar. Como tal, concentra a fala de toda escuta e aguarda o desvelo poético da leitura do leitor, aberto à escuta do logos ou à fala da Memória enquanto Musas. Quando o diálogo acontece, dá-se no leitor uma aprendizagem. O que é aprendizagem? A apreensão da "Cura" como fonte de todas as questões que essencialmente fundam o ser humano como Da-sein, ou seja, o Entre-ser. A imagem-questão não é uma figura de linguagem. É um acontecer. Por isso o “deus”-imagem caminho se diz em grego Hermes, enquanto imagem-questão da essência do agir, pelo qual chegamos a ser o que somos. Hermes é a própria palavra que funda o lugar, o ethos. Toda linguagem que revela o real como verdade o revela e funda como caminho e lugar (Caminho do campo). Como Hermes, diz sempre a verdade, mas não toda a verdade. Hermes é o verbo ambíguo de desvelamento e velamento. O lugar, em útlima instância, é o próprio ser se manifestando tanto mais quanto mais se vela enquanto mundo e linguagem: clareira. Por isso, o caminhar é a travessia "entre" o velado/silêncio/vazio E o desvelado, a excessividade poética e o vazio excessivo.

A imagem-questão e o vocabulário

É claro que a introdução da questão imagem-questão não resolve todos os problemas do “isto” que é a obra-de-arte. Vista a obra como um todo, concluímos que temos ali uma estrutura, seja lingüística, seja histórico-social, ou seja, noutras palavras, um organismo. Este é o resultado da estruturação em conceitos usando o código língua na sua possibilidade de produzir significados. Mas com esses recursos tanto se pode produzir uma obra de arte como qualquer livro falado ou escrito, seja informacional, científico, jornalístico etc., seja filosófico, teológico, folhetim. O que faz com que a obra de arte seja obra de arte ou o mito seja mito? Aí, embora possamos falar de organismo e estrutura também, devemos dizer que a obra de arte é mais: é um corpo. Para apreender toda a dinâmica da obra de arte como corpo devemos, quanto à obra de arte falada ou escrita, apreendê-la enquanto vocabulário. Remeto aqui o leitor para o meu ensaio Obra de arte, vocabulário e mundo.
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A obra de arte e as questões

As questões se fazem presentes nos mitos e nas obras de arte como imagens-questões. Ler e interpretar os mitos e as obras de arte consiste, numa dimensão de aprendizado, apreender as questões que eles manifestam. O itinerário do pensamento de Heidegger, por influência de Hölderlin, levou-o ao vigor do pensamento mítico-poético. Porém, a questão inaugural em Heidegger é sempre a mesma: o Dasein e o sentido do Ser, enquanto caminho de pré-compreensão, entre-compreensão e compreensão, ou seja, a questão fundamental do itinerário ocidental: o mito do homem e seu destino. Examinemos aquele mito-poético grego onde o mito do homem encontra a sua mais rica formulação: Édipo. Pleno de imagens-questões, a obra de Sófocles e o mito com que a tece, narrativamente entre-tece em suas entre-linhas narrativo-poéticas as questões que desde sempre angustiam e desafiam todo ser humano.

O questionar e o conceituar

A tensão entre questão e conceito ultrapassa e muito o complexo âmbito do saber epistemológico e suas representações. É, certamente, a questão das questões, pois se abre para o lugar do ser humano como e no âmbito do real.
É a questão de poesia E pensamento, a questão da poesia e do pensamento. E como e na poesia e como e no pensamento nos provoca à reflexão, à abertura, à escuta? Mais importante do que tudo o que se diz é o caminho que questão e conceito nos provocam a caminhar ao nos encaminharmos nos descaminhos de todo questionar e conceituar.
Os caminhos e descaminhos de questão e conceito são os caminhos e descaminhos do “entre”. Qualquer arrogância de questionamento ou de conceituação já se torna uma dês-obediência, um distanciamento e uma inacessibilidade aos acenos sempre presentes em todo agir em que o ser humano, agindo, já é agido no e pelo agir do questionar e do conceituar.
A tensão implícita a todo questionar e conceituar é realizar a proximidade e anular a distância de toda “coisa” (“on”), por um lado, e, por outro, manifestá-las. É a tensão “entre” pergunta e resposta. A obediência à “coisa” não se pode tornar a desobediência da fala. Deve-se abrir para a simplicidade ambígua da palavra. Um “deve-se” que não depende da decisão da arrogância, mas da própria “coisa” em seu desvelar velante. Ob-diência diz desde sempre um ir de encontro ao ouvir. A desobediência é um negar-se - enigmático – à escuta do que nos é próprio. É a errância da insistência nos conceitos e nos entes.
Todo querer do questionar já traz inscrita a errância do conceituar na resposta. Atraídos e arrastados pelo questionar que toda pergunta demanda como conceito, erranciamos a partir da “medida” que se retrai no questionar e conceituar, que todo dizer propõe e dispõe.
Constituídos e atraídos pela cura de ser sendo o que somos e não-somos, só nos resta o caminho das procuras de perguntar e responder, de questionar e conceituar.
Obedientes à cura, procuramos o que questionar e conceituar manifestam e ocultam, desvelam e velam. Projetados no “entre” do questionar e do conceituar, colhemos a delimitação conceitual do que como questão não é: o ser do não-ser que nunca seremos, pois, caso contrário, seríamos o não-ser. Impulsionados pela cura do questionar conceituamos: conceituar é preciso. Questionar não é preciso (cf. Antônio Jardim, Música: vigência do pensar poético, Rio, 7letras, 2005).
Arrojados na finitude dos conceitos, procuramos a não-finitude que move e promove todo questionar.
Experienciando cotidianamente a insuficiência de nossos passos conceituais, fazemos e refazemos o caminho do começo da vida vivida como vida experienciada no horizonte do questionar.
Aconchegados ao burburinho dos conceitos, sofremos a paixão da não-ação do silêncio, presença do Nada que nenhuma questão questiona nem conceitua, porque sem fala de proximidade ou distância. Só o diálogo do silêncio no e como silêncio, sem o ruído da fala que questiona ou conceitua. Mas a inevitável procura: o questionar que não quer questionar, sabendo de antemão o contorno insuficiente de todo conceituar e o fracasso inevitável, mas desejável, de todo questionar.
Sem questionar nem conceituar, sem proximidade nem distância, sem vivência nem experienciação, sem finitude nem não-finitude, originariamente lançados no limiar de todo “sendo-entre”, caminhamos o caminho do como para manifestarmos no questionar e conceituar o que já desde sempre somos: a questão do Nada, do velar-se como não-verdade de toda a verdade do desvelar-se. É a questão do Ser como Nada.
O questionar é a identidade da diferença e a diferença da identidade que é o conceituar. O libertar não é um conceito, é uma questão. Vida, Morte e Linguagem não são conceitos, são questões. Entre o questionar e o conceituar existe a medida do questionar e do conceituar enquanto desmedida (hybris) e medida (peras). Nesse “entre” consiste o ser-humano-corpo enquanto liminaridade, daí ser entre-ser entre-seres. Nesse sentido ressurge a Linguagem enquanto sentido da poiesis na arte. Daí a ambigüidade do “ananké”, necessidade de liberdade e liberdade necessária, dupla e ambigüamente precisa (Cf. Jardim, Antônio. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro, 7letras, 2005). Por que o “viver não é preciso”? Porque o viver é morrer e o morrer é e não-é preciso. Por que o navegar é preciso? Como imagem-questão do experienciar ele articula o questionar e o conceituar de todo caminhar: viver E morrer.

Questionar é preciso
Experienciar é preciso
Conceituar não é preciso
Delimitar não é preciso

No-nada, linguagem
No-tudo, sentido
No-entre, poiesis

Fala do silêncio
Nada excessivo
Tudo sempre um

Ver o ensaio: A coisa e o método: o como
Ver o ensaio: O gênero e o conceito
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Grande ser-tao: a travessia

Grande ser-tao: a travessia

Prof. Manuel Antônio de Castro – Titular de Poética – F. Letras - UFRJ
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Vivendo se aprende, mas o que se aprende, mais, é só a fazer maiores perguntas (Rosa, 1968: 312).

Arte e vida

A arte, toda arte, é alimento para que cada um faça da sua vida uma obra de arte. Porém, há uma questão, que é o maior desafio em nossas vidas. Qual? Fazer da arte vida. É neste horizonte de fazer da arte vida que se coloca a questão radical para cada um de nós: nossa travessia.

O autor, a obra e o leitor

Um autor sem obra não é autor. Há uma tendência muito grande em nos prendermos à vida do autor e às circunstâncias em que sua obra nasceu. Tudo isso é muito perigoso, pois pode nos desviar da obra, do operar da obra. Obra vem do termo latino opus, ligado ao verbo operari, ou seja, operar, trabalhar, agir. Obra, em si, diz o que opera, o que age. Neste agir e por este operar não só surge o autor, o poeta, mas também o leitor. Nós não lemos o autor, o poeta, mas, sim, a obra e é ela que opera, age e não e jamais o autor. No famoso poema Autopsicografia, Fernando Pessoa diz:

O poeta é um fingidor.

Igualmente podemos dizer: O leitor é um fingidor. É a obra que faz o autor, é a obra que faz o leitor. E é a arte que faz a obra de arte. E qual é a relação entre fingir e obra? O fingir da obra não é, evidentemente, um mentir, um inventar coisas imaginadas e irreais. Se são coisas imaginadas e irreais não há obra. O que há, se não há obra? Há coisas imaginadas e irreais, coisas e sentimentos subjetivos e individuais. Mas, então, quando há obra? Se cada um não se coloca em sua individualidade, quando há obra? Obra não é o que resulta dessa exposição subjetiva? Não é. Obra, já dissemos, é o que opera. Obra não é o livro editado ou o poema ou o conto depois de escrito num papel. Hoje pode ser simplesmente um arquivo num computador ou gravado num cd. Nada disso precisa ser escrito, pois podemos simplesmente ouvir. E a escrita deixou de ser escrita, pois foi gravado em linguagem de computador, onde só aparecem os números zero e um. Mas podemos observar um fato realmente importante e aparentemente novo: A obra nos chega e se faz real e presente como linguagem e fala. A obra consiste de linguagem e fala. Que linguagem? Que fala?

A linguagem
Numa palestra em 1954, Heidegger disse: “A linguagem fala, não o homem. O homem só fala quando corresponde à linguagem”. Na medida em que a obra, toda obra poética, é feita de e como linguagem, a obra opera falando. Cabe ao autor escutar, cabe ao leitor escutar. A escuta da fala da linguagem é que constitui o fingir, a ficção, o poema. A linguagem escrita, melhor, língua ou a linguagem (símbolos) matemática do computador já é o resultado de uma escuta. Há, pois, duas falas: a do autor, enquanto escrita, ou a do leitor, enquanto leitura, e a fala da linguagem enquanto vigor do operar, enquanto poiesis. Autor e leitor só falam a partir de fala da linguagem constituída em obra. A singularidade e originalidade de cada autor e da sua obra está na escuta da linguagem. Porém, cada autor, escutando, deve escrever numa determinada língua. E são tantas as línguas! A mãe-mulher também pode ser mãe de muitos filhos e nem por isso deixa de ser mulher e mãe. A linguagem é a mãe de todas as línguas.

As questões

A questão não quer provar, quer provocar.
A questão quer o não-saber de todo saber.
A questão, mergulhada nas águas correntes, ansia pela fonte, proveniência do
que elas são.

O leitor que abre Grande sertão: veredas vê-se logo envolvido num emaranhado de questões, achando, quando se concentra na leitura, que caminha numa selva selvagem e estranha. Diante de tanta questão há leitores que simplesmente desistem. Isso é natural. É que somos instruídos para os conceitos e queremos achar tudo claro. O conceito é o delimitar preciso de uma idéia dentro de uma teoria. As palavras conceituais tendem a ser unívocas. Se digo verde, tem de ser verde, e não amarelo, vermelho ou outra cor. Porém, a realidade não cabe nessa univocidade das palavras conceituais. Se olho para uma encosta cheia de árvores, vejo muitas variedades de verde. O conceito é pobre para dizer e manifestar essa riqueza excessiva do real. O mundo é muito mais rico e alegre e vivo e poético. Quem traz para o mund,quem manifesta essa riqueza excessiva do real é a palavra poética. E ela ainda se torna mais poética quando se nos dá como imagem-questão. Na imagem-questão o não visível do visível se manifesta inauguralmente. Porém, não são apenas as árvores ou outra qualquer coisa que se apresenta nessa riqueza, também as pessoas. Elas são mutáveis, esquivas, ambíguas, dissimuladas. E não só as pessoas, também os acontecimentos. O mesmo acontecimento visto por pessoas diferentes e ao mesmo tempo tem versões diferentes. E não é apenas uma questão de perspectiva ou teoria. É mais. Diz Caeiro:

O universo não é uma idéia minha.
A minha idéia de universo é que é uma idéia minha.

Esse mesmo acontecimento age dentro de nós e sofre um estranho trabalho da memória, de tal maneira que tempos depois esquecemos alguns aspectos e, por outro lado, o reinventamos de maneira diferente. Ou fica de vez jogado para o sótão do insconsciente da memória. É que a memória não é só o consciente, mas também o inconsciente. E do inconsciente quem fala não somos nós, mas a memória enquanto linguagem. Quando se juntam as coisas, as pessoas e os acontecimentos então todo o real se nos dá num mundo mutável, rico, estranho, poético. É o que Rosa não cansa de dizer e mostrar em Grande ser-tão: veredas. Temos aí a ficção poética. Esta se faz de imagens-questões, personagentes-questões, eventos-questões, narrador-questão, enredo-questão. Então a obra de arte como tal e como um todo é um acontecer poético.
Mas em nosso viver cotidiano como nos advêm as questões? Aparentemente quando começamos a perguntar. Mas não perguntamos para ter as questões. Pelo contrário. Só perguntamos na medida em que somos convocados e provocados pelas questões. Por nascer e ao nascer já somos jogados nas questões, de tal maneira que, como doação das questões, vivemos sempre num entre: entre nascer e morte, entre ser e não-ser, entre eros e thanatos. Se agora voltarmos ao começo e relermos a citação de Rosa, veremos que viver é um aprender, mas só se aprende mesmo é a fazer maiores perguntas. Só pergunta, se for uma verdadeira pergunta, quem questiona. Grande sertão: veredas é a ficção poética onde se tecem e entretecem as grandes questões, pois estas é que nos levam, no viver a vida como vida experienciada, “a fazer maiores perguntas”.
Daí que a vida aparece em Grande sertão: veredas como uma imensa teia da vida, onde quem faz a teia são as questões. A vida enquanto questões. Atravessar essa teia é o grande desafio do viver, pois viver é muito perigoso. Podemos nos perder nos descaminhos labirínticos da rede, nos buracos que sempre nos espreitam, nos enlaçamentos dos nós. Podemos ficar nas “veredas tortas” e nas “veredas mortas”, nos entre-cruzamentos. Podemos simplesmente ficar sem rumo, sem sentido, como Zé Bebelo, confiante demais no poder da razão. Podemos ficar sem finalidade, enredados nas múltiplas solicitações das funções ou profissões em que somos usados para a rede funcionar. A função profissional deixa de ser função na travessia para se tornar a própria finalidade e sentido de vida. E neste funcionamento a própria obra de arte se vê analisada e envolvida e reduzida a formas e funções. A função para ser função só pode se constituir de conceitos. Os interstícios dos conceitos são as questões. Na rede são os buracos que unem e reúnem as linhas e nós da rede. É a rede-vida, o corpo-vida. A rede é uma doação do vazio, assim como a vida é uma doação da morte. A travessia da morte para a vida são as questões, da vida para a morte são os conceitos, porque funcionais e orgânicos.
Grande sertão: veredas é uma intrincada selva de questões. Pois as questões também formam uma selva. A pergunta abre uma clareira nessa selva. Toda pergunta é querer ver claro a selva da vida, pois sabemos que vivemos na espera da sua plenitude: a morte. A morte é o vazio onde se move e tece a teia da vida. Vivemos nesse E de vida E morte como um entre sempre pro-visório.

A arte e a imagem-questão

Os grandes poetas só são poetas porque se surpreendem e apreendem acossados pelas questões, pelas grandes questões. Mas suas veredas são densificadas pela sedução e sabor da linguagem de toda poiesis. Seus caminhos e descaminhos são o canto encantatório da memória: o que foi, é e será. Sua Linguagem é a Palavra, como questão-poética. Cada Palavra-imagem-questão traz em si o sentido e a verdade manifestativa. Por isso não precisa das proposições como lugar da verdade lógica e científica. Cada Palavra, quando poética, é núcleo de múltiplos sentidos e possibilidades de revelação. Diante da riqueza ofuscante e da ressonância sem limites da linguagem do silêncio, eles movem-se na fonte inaugural das palavras-imagens-questões. Uma imagem é sempre um dizer sonoro do silêncio. O apropriar-se (amar) é a imagem-questão-poética. Poiesis é radicalmente apropriação enquanto amar. Toda imagem se torna imagem-questão na medida em que nela age, se concentra e consuma a ambigüidade da realidade (“on”/”res”). A imagem como questão é um entre, um entre-imagem-questão onde a realidade (“on”/”res”) se apropria como realidade. É o que nos provoca e invoca a pensar sempre o frag. 123 de Heráclito: O desvelar-se apropria-se no velar-se. O apropriar-se é o “lugar” (imagem-questão-entre) de convergência e divergência da physis enquanto desvelar-se e velar-se.
Em vista disso, jamais pode ser conceituada. Imagem-poética é sempre questão. A imagem-questão, como a linguagem, não é, dá-se. E, dando-se, é. Por isso a obra de arte, enquanto operar de poiesis, não é ente, opera. E operando é. Como a linguagem, é doação do ser. Por isso a imagem-questão não é ente, a obra-de-arte não é ente, como a verdade (aletheia) não é ente. Em vista disso a verdade (aletheia) não pode ser um paradigma, um ethos-valor-moral. Enquanto imagem-palavra, a imagem é linguagem e, como a linguagem, não-é. A imagem-palavra-poiesis não pode ser nunca determinada como um ente, porque não se lhe pode atribuir um limite. E não se lhe pode atribuir um limite porque é a própria poiesis poietizando, e isso é o ser se doando como desvelamento e velamento. A imagem-questão é poiesis de experienciação e nunca este ou aquele ente. Riobaldo, como imagem, não é, porque Riobaldo é personagem-questão, enquanto é imagem-poético-manifestativa de questões, é imagem-personagem-questão. Na obra de arte tudo é questão: as imagens, os personagens, os eventos, a narração, o narrador ou narradores, o tempo, o lugar. Como imagem e verbo toda obra de arte é a dinâmica poética (tautologia) de manifestação do real em sua verdade. Hermes, Palavra, Verbo, Imagem, Verdade são poiesis.
A escuta erótico-amorosa da linguagem poética do silêncio se tece e entretece mergulhando tanto mais nas profundezas, como raiz, quanto mais eclode no livre aberto de toda abertura e clareira apropriante e manifestante das questões. A imagem-questão não é nem pode ser reduzida a uma figura de linguagem, seja retórica, seja gramatical. Nela vige e vigora uma ambigüidade poético-ontológica, fonte inaugural e originária de tempo e mundo, memória e linguagem, possibilitando sempre novas leituras e interpretações.
Cada texto poético não é como tal um ente ao lado do que propriamente é um ente, p. ex., algo dotado de código genético ou funcionalidade, como sendo isto ou aquilo, este ou aquele utensílio. Então os textos, melhor, as obras-de-arte, que são obras porque operam, se constituem de imagens-questões. Por exemplo, “Campo”, no ensaio de Heidegger “O caminho do campo”, é uma Imagem-questão. “Sertão” e “veredas”, em Grande sertão: veredas, são imagens-questões. Que questões essas imagens nos colocam? Aí é só começar a pensar, dialogando com a fala da obra-de-arte. E então podemos ligar, por exemplo, "campo" a lugar, a mundo, a Terra, a Céu, aos mortais, aos imortais. Para fugir da terminologia retórico-metafísica usamos a denominação: Imagem-questão, ou seja, uma questão (que nós não temos, mas que nos tem) dita, centralizada e condensada na imagem escolhida. Todos os mitos são figurados em imagens-questões. Na literatura, Diadorim, Mme. Bovary, Capitu, Dom Quixote, Édipo, Riobaldo etc. são imagens-questões. Estas se entre-tecem com o poder ambíguo-verbal da metá-fora, ou seja, literalmente: um conduzir (fero) no e pelo vigor do "entre" (metá). A imagem-questão é ambígua e retira sua ambigüidade do "entre", na medida em que a linguagem é a própria manifestação do Da-sein como Entre-ser. O poder e vigor da imagem-questão está no fato de que congrega: tempo, linguagem, memória, verdade, narrar. Por isso ela repousa, como quietude enquanto tempo ontológico, "entre" o ser escrita e o ser lida, dialogada, entre o ser vista, pensada, figurada e o ser narrada, mas onde ela, ao ser experienciada como escuta do que somos e não somos, ambigüamente se retrai em sua fala silenciosa. A imagem-questão é um modo concentrado e verbal de poiesis, enquanto narrar. Como tal, concentra a fala de toda escuta e aguarda o desvelo poético da leitura do leitor, aberto à escuta do logos ou à fala da Memória enquanto Musas. Nesse horizonte toda leitura só é leitura se houver diálogo. Quando o diálogo acontece, dá-se no leitor uma aprendizagem. O que é aprendizagem? A apreensão da "Cura" como fonte de todas as questões que essencialmente fundam o ser humano como Entre-ser. A imagem-questão não é uma figura de linguagem. É um acontecer. Por isso o “deus”-imagem caminho se diz em grego Hermes, enquanto imagem-questão da essência do agir, pelo qual chegamos a ser o que somos. Hermes é a própria palavra que funda o lugar, o ethos. Toda linguagem que revela o real como verdade o revela e funda como caminho e lugar. Como Hermes, diz sempre a verdade, mas não toda a verdade. Hermes é o verbo ambíguo de desvelamento e velamento. O lugar, em útlima instância, é o próprio ser se manifestando tanto mais quanto mais se vela, enquanto mundo e linguagem: clareira. Por isso, o caminhar é a travessia "entre" o velado/silêncio/vazio E o desvelado, a excessividade poética e o vazio excessivo.

O método: o diálogo

O método de leitura que propomos é o diálogo. Este é o caminho proposto em Grande sertão: veredas. Todo ele se estrutura num diálogo paradoxal, onde, eu, você, cada leitor é solicitado insistentemente a acompanhar todas as profundas reflexões do personagem-questão Riobaldo. Na obra o leitor/ouvinte não fala, mas escuta. O quê? Quem? O que em todo diálogo fala. A voz da obra de arte: a linguagem. O diálogo como escuta da linguagem é a poiesis falando.
No diálogo e como diálogo estamos já desde sempre no ser-tao. Tao é o caminho como as veredas da vida enquanto sentido e verdade da morte.

A travessia

Travessia vem do latim trans-verto, que significa o verter-se e o figurar-se no percurso do viver. A imagem-questão da travessia, como um imã, atrai e congrega todas as demais questões. É que só na travessia o homem chega ao que o faz humano. Por isso, na obra, depois do longo, envolvente e questionante diálogo de autor e leitor, resta uma certeza: “Existe é homem humano. Travessia” (Rosa, 1968: 460). O que é a travessia? Esta é a questão para a qual convergem todas as outras, todas as indagações, todas as dúvidas, todas as procuras. E é a grande questão porque é nela que se dá a conhecer ou não o que é o ser humano. Perguntar pelo ser humano é perguntar pela travessia. É isso que Rosa diz: “Existe é homem humano. Travessia”. É na travessia que o homem se torna humano. Por que na travessia o homem se torna humano? O que é então o humano? Quando o homem é humano? Isso só podemos saber, se chegarmos a saber, no decorrer da travessia. E cada um faz a sua travessia (aprendizagem). Mas o que faz o homem ser homem humano? Sem dúvida nenhuma o ser. E então já estamos diante não apenas de uma, mas de duas grandes questões: o ser humano (a travessia) e o ser. Que ser? O ser-tao. É nessa ambivalência que se congrega todo o percurso da obra como indagação e questionamento. E se o leitor notar bem, isso já nos foi indicado pelo título: Grande sertão: veredas. Ser-tao e veredas são os dois núcleos. Veredas indicam pequenos riachos em meio ao ser-tao, ou seja, são os caminhos possíveis da travessia.

A travessia e o agir

Se em travessia, o radical “vessia” provém do verbo vértere, que significa, verter, tomar figura, realizar, já o prefixo trans diz o que se dá através de, no agir e ir além, no se mover nas veredas e como vereda, como caminho. Mas o ir além, o agir pressupões a ação. O que significa a ação para que nela e com ela se dê uma travessia? E não só isso, mas muito mais importante, para que nesse agir o homem se torne humano?
O que nós sabemos sobre o agir? Achamos que não há necessidade de refletir sobre o agir, porque até para refletir já estamos agindo, para viver já estamos agindo. Para que querer saber? Nem o próprio saber prescinde do agir. Portanto, melhor que saber é agir, achamos. Acontece que podemos confundir simplesmente o agitar com o agir. A travessia como agitação pode ser bem diferente da travessia como agir. E pode até haver travessia no agitar? Podemos nos tornar “homem humano” no agitar? Ou não nos poderemos tornar des-humanos?
Ao querermos saber o que é o agir não estaremos “aparentemente” fazendo uma tentativa vã, como que querendo morder o próprio rabo, constituindo necessariamente um círculo, pois só já agindo podemos ir em demanda da essência do agir. De fato, isso pode-se tornar um exercício racional que nos desvia do envio e avio da questão. Para mostrar isso Rosa criou o personagem-questão: Zé Bebelo.

A travessia e os três telos

“Telos” é uma palavra grega que recebeu algumas traduções que podem levar a equívocos, quando se trata de tentar entender o que o “on” é ou, na visão biológica de hoje, a “unidade”. A palavra grega é o partícipio presente do verbo einai, ser. Uma tradução literal e verbal seria sendo. Em virtude da interpretação de cada sendo (“unidade”), no sentido de que tem dentro de si um vigor que lhe é dado pelo verbo ser, enquanto tal vigor é o que sub-está para que cada unidade manifeste “o que é” n“o como é”, ou seja, nas suas características, tal entendimento se deu em grego como hypostasis, que foi traduzido para o latim como sub-estar, ou seja, sub-stantivo. O “on” como verbo se entendeu como substantivo. Só que na interpretação e sua respectiva tradução se perdeu, em geral, o sentido verbal. O que é este sentido verbal? Verbo significa ação. O que é ação? Essa é a questão das questões. Aristóteles já disse que “em toda ação vive um empenho por algum bem” (Apud: LEÃO, 1992: 156).

A integração de penhor e bem constitui e perfaz o sentido, to telos, do empenho na dinâmica da ação. Costuma-se traduzir telos por meta, fim, finalidade. Todavia telos não diz nem a meta a que se dirige a ação, nem o fim em que a ação finda, nem a finalidade a que serve a ação. Telos é o sentido, enquanto sentido implica princípio de desenvolvimento, vigor de vida, plenitude de estruturação (Leão, 1992: 156).

Toda ação traz, pois, em si não só o vigor do que é mas também no telos um desdobrar-se no como é. A integração harmônica do que é no como é é o que chamamos unidade. Porém, podemos falar de três telos.

1º. A vida como “unidade” e seu telos

Hoje, a biologia considera cada ser vivo como uma “unidade”. As descobertas mais recentes trouxeram uma nova visão do ser vivo. Ele não é mecânico nem o produto de um meio. Pelo contrário, em cada “unidade” há um código genético comum a outros seres vivos da mesma espécie e, ao mesmo tempo, totalmente único. Por tradição só damos nomes diferentes aos seres humanos, para marcar a sua singularidade, mas, de fato, cada ser vivente, cada “unidade” também deveria ter um nome único. Quem convive com animais sabe como eles são únicos, daí darmos nomes que os identificam, isto é, que mostram sua identidade como diferença na uniformidade conceitual da espécie. Em seu meio e em relação à espécie de que participar mais diretamente, cada “unidade”, na medida em que vive, também age e, nesta ação, se empenha por um bem. Exatamente como o disse Aristóteles. Ou seja, cada ser vivo tem também um telos. Para expressarem a realização deste telos, os biólogos passaram a falar em auto-poiese. São duas palavras gregas que dizem que há um fazer que realiza o que é próprio, portanto, criativo, novo, diferente. Mas uma tal autopoiese apenas realiza o que já está dado no código genético. Ele já contém em si o seu telos, o seu bem e seu sentido. Constituir-se como bem e sentido não é isto o que tradicionalmente se diz mundo e linguagem? Tanto isto é verdade que se diz que cada ser vivo é constituído por seu código genético. A palavra código provém de um modo lingüístico de entender a linguagem. É o código genético linguagem? O que é linguagem? Como saber o que é língua e seu código sem saber o que é linguagem?
Tradicionalmente classificou-se o ser humano na escala dos animais, pois diz-se que ele é um animal racional. O que o distingue dos outros animais é a razão. Esta palavra de origem latina foi a tradução da palavra grega logos, que tem muitos sentidos, mas na tradição ocidental o mais usual é razão. Mas logos é radicalmente linguagem. E só por ser linguagem é que pode ser compreendido como razão. Quando hoje a biologia através do estudo do código genético chega à conclusão de que há em cada ser vivo autopoiese, a distinção tradicional perde a sua base. Isto não pode aqui e agora ser aprofundado, mas é algo realmente fundamental que recoloca a questão do que é o ser humano. Rosa se coloca, nesse sentido, ao caracterizar o ser humano como travessia, numa posição poética inaugural a respeito do que seja o ser humano. Por isso indagar e pesquisar na sua obra o que é travessia torna-se algo realmente fundamental. Saber o que é travessia não é fácil, porque o ser humano, como “unidade”, é também constituído de um código genético e, como código genético, realiza uma autopoiese. Podemos confundir esta com a travessia? Sim e não.

2º. Telos: o ser humano e a moira

O traço fundamental da Modernidade é a fundação do ser humano como sujeito, enquanto este sujeito é o exercício da razão. Ao se construir e ao construir racionalmente a realidade, fundando as ciências, algo imemorial no ser humano foi confrontado: a sua memória mítica. A compreensão do ser humano a partir dos mitos foi considerada i-lógica, frente à concepção lógica (racional). Note-se que aí se julga a memória mítica de fora do seu âmbito de constituição. O mito é julgado e descartado a partir do logos, reduzido à razão. E o mito sempre falou do ser humano como pertencente a um genos (de onde se forma a palavra moderna genética). Indicava uma família, um gênero (formada também de genos), uma etnia. Como família tinha algo em comum, o genos, mas cada um dentro desse genos recebia um quinhão, a sua “cota” no genos da família. O nome para esse quinhão foi e é: Moira. A tradução mais tradicional não é quinhão, mas destino. Destino é o que a razão, fonte do livre agir do ser humano, não podia determinar nem controlar. Pela visão racionalista, o destino se opõe à liberdade humana. No existir o ser humano deve-se dar livremente a sua essência, o seu genos enquanto seu quinhão. Nessa visão, a existência precede e determina a essência. O existir enquanto o como é deve determinar livremente o que é. O homem não tem um destino, dá-se um destino. Esta foi a utopia moderna. Em parte parece que a biologia pós-moderna vem confirmar esta utopia. Não vem. É um engano. Ela apenas acaba com o positivismo determinista e representacional da Modernidade. O que a biologia afirma é que cada genos não é cópia nem representação. O genos de cada unidade é sempre uma autopoiese, algo novo, único. Porém, esta autopoiese consiste em realizar o que o genos já determinou e prevê. Mas não confundir com cópia nem com reprodução. Cada autopoiese é uma “unidade”, uma singularidade. O como é da autopoiese não é diferente d”o que é”, enquanto código genético. Assim como há mundo e linguagem em cada autopoiese também há, de certo, uma certa liberdade, liberdade esta inerente ao código genético e não a um livre agir em relação a seu código. Noutros termos, em certo sentido, podemos dizer que cada unidade tem uma moira, um destino. A questão agora é, tendo em vista Rosa: Podemos considerar a autopoiese uma travessia? Que cada um é também uma “unidade” e tem um código genético, isso é tranqüilo. Que não somos o produto do meio nem uma representação ou cópia de algo que nos é externo, também é tranqüilo. Isso vem desdizendo tudo o que se disse do ser humano no percurso ocidental e metafísico. Mas ainda não avançamos nada em direção ao que seria a travessia. Mesmo gêmeos unicelulares, apesar das numerosas semelhanças, acabam por fazer uma travessia diferente. A questão da clonagem está em saber se um ser humano clonado teria necessariamente a mesma travessia da unidade da qual foi clonado. Então a questão é: O que a travessia traz e dá que o código genético como é entendido até agora não dá? Ou seja: O que é a travessia? Na declaração de Rosa: “Existe é homem humano”, temos dois duplos núcleos: 1º. Existe e é; 2º. Homem humano. Podemos considerar o primeiro núcleo: “existe ... homem”; e o segundo: “é ... humano”. O existir diz aí o homem enquanto é dotado de um código genético como as outras unidades e que manifesta o que é em o como é, ou seja, no ex-istir. Nesse sentido, toda unidade existe e, por isso mesmo, pode-se dar uma autopoiese. No que existe, cada unidade é. Mas nem toda unidade é humana. Em que consiste o humano da unidade homem? Não advirá este humano na travessia? Perguntar, pois, pelo humano é perguntar pela travessia.

3º. Telos: A travessia enquanto homem humano

É importante compreender que a travessia não constitui algo que se vem somar ao homem, ou seja, o humano é inerente ao homem, mas que manifesta dimensões que o homem como unidade e autopoiese ainda não contém. Fazer esta diferença como linguagem, mundo e uma certa liberdade ainda não dá conta, porque isso é inerente a toda unidade, mesmo que em diferentes graus, mas que, no fundo, se fazem presentes. Então resta a questão: como advém e se constitui a travessia? O que aqui e agora vamos tentar é um exercício de pensamento poético. Como leitor, vamos dialogar com Riobaldo e pôr-nos à escuta. Pensar para nós não é raciocinar, onde se procura conceitualmente estabelecer uma verdade representativa e adequacional a uma realidade que se racionaliza em conceitos. Pensar é mais que raciocinar. Em Grande sertão: veredas, a diferença está entre Zé Bebelo (a raciocinar) e Riobaldo (o pensar). Para isso não ficaremos restritos à vida, embora jamais possamos prescindir dela. Um conceito só se potencializa realmente se se deixa engravidar pelo paradoxo. Os paradoxos são os interstícios dos conceitos. Muitos são os paradoxos da vida, mas o único realmente fundamental e até vital é a morte. Dizer que a vida é um paradoxo é deixar eclodir a questão da morte. A morte é o interstício da vida. A palavra interstício forma-se do verbo latino: intersistere, que significa pôr-se no entre. Já o pará-doxo é o ensino e aprendizado do entre. A morte surge como paradoxo da vida porque nos joga originariamente no entre vida E morte. O pensamento é questão porque nos joga já desde sempre no paradoxo da vida E da morte. Por isso, pensar é deixar acontecer no saber da vida o não-saber da morte. O pensamento é sempre questão porque pensa o paradoxo da vida e da morte. O pensamento é poético quando pensa o paradoxo do sentido da vida no abismo do sentido da morte. Pensar o sentido é pensar o telos poético. O primeiro e o segundo telos sempre se dão no âmbito da vida, do código genético como vida, como unidade vital. No terceiro telos advém a morte como paradoxo da vida.
A morte como paradoxo da vida é a possibilidade de travessia como terceiro telos. É o que vamos pro-curar.

A vida vivida e a vida experienciada

A vida vivida é o código genético enquanto o que é no como é. E a vida experienciada?

De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossêgos, estou de range rêde. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito ... viver é negócio muito perigoso ... (Rosa, 1968: 11).

Riobaldo é uma personagem-questão. Como ficção é personagem de questões e não quer representar ninguém, nem ficcionalmente. Enquanto figura que fala, age e pensa é a poiesis se fazendo questão. Nessa passagem central dentro da obra poética, vemos claramente que estamos diante da questão do duplo Riobaldo, que é a duplicidade de qualquer leitor. Um duplo não paralelo, mas poeticamente circular (de ser o que é no horizonte e vigor do ser). É o que fica claro no primeiro período acima. Há um primeiro Riobaldo que vive a vida no seu fazer e agir: “De primeiro, eu fazia e mexia ...”. É a vida vivida como sertanejo, nas suas andanças de jagunço pelo ser-tão. Na vida sendo vivida ainda não se tinha aberto para os “prazos”, porque a vida imediata o tomava completamente. Era como um peixe vivo no “moquém”. O que é “moquém”? É uma grelha de varas que serve para assar ou secar o peixe ou a carne. Certamente, o moquém é aqui uma imagem-questão do viver o trivial onde a vida se vai dissecando sem chegar a viver as suas possibilidades de plenitude, de travessia. Por isso, ele logo acrescenta: “ ... quem mói no asp’ro não fantaseia”. É um agir inerente ao código genético como o agir e viver de qualquer ser vivente, onde as ações se sucedem em pro-curas e empenhos de bens que não são o bem. É um viver no cotidiano e prosaico “asp’ro” para superar as necessidades, os “pequenos dessossegos”. A vida vivida apenas manifesta “o que é” n”o como é”, sem ainda se dar travessia. Para esta ocorrer é necessário tomar posse dos “prazos”. O que são os “prazos”? Prazo é um tempo determinado; espaço de tempo durante o qual deve realizar-se alguma coisa. Esse sentido dicionarizado não consegue apreender aqui toda a sua força poética, pois trata-se de uma imagem-questão. Qual questão essencial nos traz essa imagem? Todos nós nascemos com um “prazo”, o entre-tempo determinado pelo nascimento e pela morte. Nesse entre-tempo alguma coisa deve ser realizada. O quê? O destino como travessia. Para tal não basta viver é preciso algo mais, é necessário fazer da vida vivida uma vida experienciada. Nisso consiste o destino como travessia. O que é a experienciação? Ela ainda não se dava porque como diz ... pensar não pensava. Não basta viver, é necessário pensar. Mas o que é o pensar? Pensar é deixar-se ser tomado pela morte como sentido do vigor de eros. Eros e Thanatos é a possibilidade de experienciação de todas as nossas experienciações. Experienciar a morte como morte no viver é a possibilidade de fazer a travessia e cumprir os prazos, o destino. No arrocho das aporias do cotidiano, como ele diz que vivia: “Vivi puxando difícil de difícel”, não sobra tempo para “fantasiar”. Nessas condições, ainda não eclodiu o poder que é próprio do ser humano: o poder fantasiar. O sentido atual de fantasiar é tanto imaginar como vestir uma fantasia. Porém, a palavra vem do grego phantasia. É um substantivo formado do verbo phaino, que significa manifestar, daí também a palavra fenômeno. Fantasiar é poder manifestar o quê? Fantasiar diz imaginar e vestir uma fantasia. Os dois sentidos não se excluem, integram-se. Revestir-se de uma fantasia como imaginar (isto é, apropriar-se do que é próprio) é realizar a travessia enquanto destino.
Como isto ocorre? Como há dois Riobaldos, também há duas vidas: a vivida e a experienciada. A vivida é inerente ao código genético. Já a experienciada é inerente ao genos como Moira. Porém, esta não consiste simplesmente em viver, mas em apropriar-se do que é próprio enquanto travessia. E o que nos é próprio? O que nos é próprio é o ser. Não simplesmente o ente como vida vivida, mas o ente enquanto ser na vida experienciada. Na vida experienciada não é o ente o sujeito. Não. Ela consiste em deixar-se ser tomado pela morte como sentido e vigor do viver. Fazer a travessia é deixar-se ser tomado pela morte. Então o morrer não é um fim, um término da vida, mas a vida potencializada pelo não-ser, pelo nada, pelo vazio, no vir-a-ser em que consiste a travessia como destino. Esse vir-a-ser é sempre um ser-do-entre, um entre vida e morte. Onde a medida do ser é o não-ser, onde a medida da vida é a morte. Nesta experienciação não há mais dois Riobaldos, mas um único trans-figurado por um outro agir. Aos dois Riobaldos correspondem dois agires, onde um busca, no fundo, o outro para o manifestar numa realização única enquanto travessia. O que vigora aí, portanto, é a tensão abismal do “entre”, enquanto o “mesmo’.
Aos dois Riobaldos corresponde uma mediação, de dupla medida. A dupla medida é inerente a nosso ser ambíguo, como ser-do-entre. Ultrapassado o horizonte dos “pequenos dessossegos, estou de range rêde”. O que a imagem-questão rede nos quer provocar a pensar? Na rede acontece a quietude do silêncio do pensar. O que é pensar?

Sabemos que pensar vem de pensum, particípio passado do verbo pendere. Significa, portanto, pendido, pendurado. Formou-se, já em latim, o substantivo pensum, que diz em sentido derivado a tarefa, o encargo e, em sentido próprio, a quantidade de fio de lá que se pendura para a tarefa de tecer e fiar durante a luminosidade de um dia ... A concentração da articulação da tecelagem remete sempre, de alguma maneira, para além dos fios, para a tessitura, para a totalidade de integração que a tessitura realiza em silêncio (Leão, 1999: 246).

Riobaldo se entretece como pensamento no silêncio da quietude da rede. E o que ele entretece ao se entretecer? Diz: “E me inventei neste gosto, de especular idéia”. Especular vem do verbo latino speculare, que diz pensar no sentido de re-fletir. Por siso o verbo deu origem à palavra espelho, o que reflete quem ou o que se olha, mas como imagem, onde o espelho não é a imagem nem quem ou o que se olha, mas a mediação. Por outro lado, devemos dizer que os três se im-plicam. O que no especular ele re-flete? Refletir é fazer emergir na reflexão a medida, onde a reflexão é a própria medida, na medida em que se procura a medida do que é próprio. Medida aí não e jamais é paradigma. Então a reflexão só aparentemente é um exercício de quem reflete. Nessa ação, quem age é tanto quem reflete como tanto o que se procura na reflexão: a medida. No especular o que advém é o eidos/idéia, mas quem a doa é a medida do especular, o que medéia o especulador na busca do que é em sua reflexão. Especular é um saber do ser, mas tanto um como outro são doação da medida. Por isso, a medida é o não-ser do ser enquanto se doa no vir-a-ser do que especulando se especula. Especular é sempre se experienciar na ambigüidade do entre, o espelho. Mas o que move, o que se pro-cura no empenho do especular, pois a toda ação corresponde um penhor? Diz: “O diabo existe e não existe? Dou o dito”. Estamos diante de uma questão: do diabo. Note o leitor a complexidade do dito. Trata-se do diabo, mas dele: a) se afirma; b) se nega; c) se pergunta negando e afirmando. Aonde nos querem levar os paradoxos? Ao ser-tao do ser-tão. Por quê? Diabo se compõe de dia-, que significa entre; -bo é lançar, jogar. Diabo, portanto, é o vigor do mediar, do caminho, o ser enquanto tao.

Os três ser-tões

Na obra de Guimarães Rosa, o sertão é o lugar onde o povo vive sua sina, seus sofrimentos, paixões e alegrias. O sertão é o umbigo do mundo. Por isso Rosa não escreveu sobre o sertão, mas a partir do sertão, porque antes de tudo ele é um sertanejo, isto é, o homem do ser-tao. Por isso todos somos ser-tanejos. É bom que o leitor se lembre que esse escritor mineiro antes de se tornar um cidadão do mundo exerceu três profissões que ajudaram a entender como o sertão é amplo, bonito e triste, e verdadeiro, lugar de experienciação da vida e da morte. É que ele vivenciou o sertão como médico do interior: na então Vila da Conquista, hoje Itaguara, interior de Itaúna. Disso lhe veio uma profunda experienciação do sofrimento. Por conjuntura política, participou da revolução de trinta e dois, como médico do exército. Isso lhe deu uma profunda experienciação da proximidade da morte. O destino, tornando-se diplomata, o lançou na construção dos diálogos entre os povos, levando-o a uma profunda experienciação da consciência como diálogo. São essas três experienciações essenciais que se fazem presentes em Grande sertão: veredas. São essas experienciações, como ser que temos que ser, que constituem as veredas e travessias dos sertões. Pois podemos falar, para tornar mais acessível aos leitores o seu diálogo com a obra, de três ser-tões.
O sertão é o grande tema da sua obra mais admirada: Grande sertão: veredas. Nela, o sertanejo Riobaldo narra as aventuras e desventuras de sua vida, revelando as muitas facetas do Sertão como paisagem natural, paisagem humana, paisagem religiosa e, sobretudo, como lugar do mistério. A separação que a seguir fazemos é somente para facilitar ao leitor a escuta da fala da poesia e dialogar melhor com o apelo que nos advém nas muitas falas de Riobaldo como personagem-questão. É que o ser do sertão sempre se faz presente em tudo, no todo que somos.

O sertão geográfico

Qualquer leitor brasileiro com um mínimo de formação geográfica identificará imediatamente a sua localização. Aliás, o próprio narrador faz alusão freqüente à sua localização, a lugarejos, vilas, cidades etc. que constam do mapa de Minas Gerais, do sul da Bahia, bem como dos campos-gerais de Goiás. Onde se localiza o sertão? Guimarães tem uma noção de sertão bem ampla e profunda. “Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então em toda parte não é dito sertão?... O sertão está em toda parte” (Rosa, 1968: 9)
Neste mundo, a bela e simples “natureza” chama a atenção de Riobaldo com suas plantas e bichos. “Aí foi em fevereiro ou janeiro, no tempo do pendão do milho. Tresmente: que com o capitão-do-campo de prateadas pontas, viçoso no cerrado: o aniz enfeitando suas moitas; e com florzinhas as dejaniras. Aquele capim-marmelada é muito restível, se dobra logo na brotação, tão verde-mar, filho do menor chuvisco” (p.24). Também os pássaros e animais comparecem com seus nomes populares. “Beiras nascentes do Urucuia, ali o povi canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no revoredo, o saci-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rola-vaqueira... e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom era ouvir o môm das vacas devendo seu leite” (p. 24). Estes aspectos do sertão não são decorativos, eles envolvem o sertanejo em seu mundo e ser, levando-o à convivência e à integração com a Mãe-Terra. Assim é que um passarinho e uma flor adquirem um sentido especialmente afetivo-amoroso: “Era o manuelzinho-da-croa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito atrás traseiras, desempinadinhas, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer alimentação. Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim – a galinhalagem deles” (p. 111). Este par amoroso vai ter seu complemento numa bela e perfumada flor que de acordo com o momento muda de nome: “Casa-comigo... Dorme-comigo... liroliro” (p. 146). Por aqui se vê que tudo co-participa da travessia do homem humano. Outros “elementos” do sertão têm uma grande importância como o vento, os rios e as veredas. Esse sertão “natural e geográfico” compõe o âmbito e palco onde os homens vivem seu destino. É a mãe-terra.
Um levantamento minucioso dos nomes desses lugares trouxe, no entanto, grandes surpresas. Ao lado de numerosos nomes constantes nos mapas geográficos, outros são pura “invenção” do autor. Por isso, para além de um mundo “cientificamente geográfico”, há muito mais um “mundo poético”. Na sua obra o geográfico se torna uma geopoética, onde há uma confluência de Ser-tão e Terra. Trata-se então de um mundo mítico, imemorial, onde há uma profunda ligação de todos com a paisagem, as árvores, os pássaros, todos os animais, todas as plantas, é uma ligação mítico-poética de mundo onde todos se irmanam numa grande aventura da vida: é o mundo. É nesse sentido que temos em Grande sertão: veredas não tanto um espaço geográfico, mas um lugar mítico-poético. O personagem-questão que efetiva esta profunda ligação é Diadorim, na medida em que ele é a alma e corpo telúrico de Riobaldo, ou seja, de cada um de nós.

O sertão como mundo-humano

O Sertão é a morada do homem. Por isso o sertão humano se mostra difícil e mutável. A luta do homem é a luta do sertão. “O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa...” (p. 374); “O sertão me produz, depois me engoliu, depois me cuspiu do quente da boca...” (p. 443); “O sertão é do tamanho do mundo” (p. 59): “O sertão é sem lugar” (p. 268). “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo” (p. 121). Guimarães Rosa nos fala de um sertão histórico e de um sertão como mundo poético. O histórico, quando se passam as andanças e aventuras de Riobaldo, é anterior à chegada do “progresso”. É o sertão onde os bandos de jagunços exerciam um poder que fugia à autoridade constituída e ao mesmo tempo protegiam e eram protegidos pelos grandes fazendeiros. Era um sertão onde a palavra e a honra eram cumpridos à risca, mas que por outro lado fugia à separação e à distinção estabelecida pela lei. Por isso, há referência a três leis. Para o jagunço não havia a ordem e a desordem, o bem e o mal. Tanto que relata: “O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala é um pedacinho de metal...” (p. 17). O sertão está radicalmente ligado à condição do homem como essência do humano. Não é, pois, o sertão sócio-histórico o principal, mas trata-se da aventura humano do homem. Noutra passagem acrescenta: “O sertão tem medo de tudo” (p. 237). Os habitantes do sertão, ou o sertão humano, não são apresentados a partir de preconceitos culturais, como matutos ou qualquer outra qualificação cultural. Pelo contrário, surpreende neles seres humanos que têm seu saber e sabor, seus ódios e seus amores, sua coragem e seu medo, enfim são seres do sertão, seres da condição humana, nós. Uma pesquisa meramente sociológica nada saberá falar deste sertão poético-humano. Mas essa é uma das facetas mais importantes da obra. Rosa não escreveu uma obra sociológica, mas poética. E é nesse horizonte que devemos dialogar com ela. Pois aí não se trata de qualquer mundo poético subjetivo, ou seja, de Guimarães Rosa, mas de todo leitor que atenda à provocação, como leitor atento, das falas de Riobaldo enquanto questões nossas.
Mas o que é mundo? Não se trata aqui de querer qualificá-lo com qualquer adjetivo: regionalista, sertanejo, mineiro, ficcional, primitivo, latifundiário etc. etc. Será que ao acrescentarmos a mundo um adjetivo, não partimos do pressuposto de que já sabemos o que é mundo? No entanto, não sabemos. A Terra eclodindo, manifestando-se no humano, é o homem da Terra (ser-tão) sendo ser-humano. É desse humano do homem como mundo que se constitui o segundo ser-tão, mas jamais separado do primeiro. O mundo é o ser se dando em seu sentido. Nele todos estamos integrados nas veredas da história e nas radicais experienciações de eros e thanatos.

O sertão sagrado: a poiesis

Na medida em que o sertão é humano surge outra dimensão que marca sua presença de início ao fim: o sertão sagrado. Com este, um tema central: a existência e presença do diabo. O longo início do romance mostra como o sertão está povoado pelas muitas estórias em torno do diabo, de que são também testemunho os inumeráveis nomes a ele atribuídos. Exatamente para evitar nomeá-lo, porque do contrário, a força do nome provoca a sua presença temida. Por outro lado, o diabo é a concretização do poder, daí a preocupação central e a dúvida de com ele se poder selar um pacto. Que poder advém no pacto? O poder do sagrado.
O que é o sagrado? Não podemos confundir o sagrado com o religioso. Ele é mais. Ele é um mistério. Ele é o próprio Ser-tão. O homem ocidental experienciou de seis modos diferentes o sagrado: no mito, no religioso, na poesia, no místico, no pensamento, na metafísica. Essas seis facetas do sagrado percorrem profundamente Grande sertão: veredas.
O diabo é figura-questão do poder do sagrado. Por isso, ele está ligado ao nome, ao verbo, à palavra. Mas então trata-se do verbo e palavra poética, indicando este adjetivo muito mais que uma simples qualidade de certas composições em versos. Não. É o próprio ser~tão se manifestando poeticamente, é o vir à luz do ser no agir dos poetas. Poiesis significa ação de sentido. Isso fica evidente no momento do pacto. O personagem-questão, ou seja, o próprio poeta, invoca o diabo para que haja um pacto. E como ele o invoca, na hora decisiva? Ele in-voca Lúcifer. Esta é uma palavra latina que diz: aquele que é portador da luz. A luz emergindo do caos é o ser se fazendo mundo pelo poder do sagrado, ou seja, pelo que é o portador da sua luz. É nessa e dessa luz que se origina a travessia do homem humano.
Pelas múltiplas manifestações e experienciações possíveis do sagrado, isto é, do
Ser-tao, já podemos notar que o ser-humano tornando-se humano, ao se deixar atravessar pelo sagrado, nunca consegue dizer, isto é, manifestar o sagrado, só experienciá-lo. O diabo é um anjo anunciador e mediador. A tais experienciações é que Rosa denomina tao/veredas. É que o ser-tao é tão grande, é tão misterioso, é tão abismal, é tão o Nada, que nós já desde sempre só nos podemos mover: “- No-Nada” (p.9).
Este Ser-tão misterioso do sagrado nos convoca a pensar o narrador Riobaldo dirigindo-se a nós, a nós leitores, na seguinte fala:

Sendo isto. Ao doido, doideiras digo. Mas o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve, pensa e repensa, e rediz, então me ajuda. Assim, é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção (p.79).

Nesta fala, leitor, sou eu, é você que é conclamado a se abrir para esse mistério que : “Ninguém ainda não sabe”. Mas há “veredas, veredazinhas”. Atravessá-las só é possível pela abertura pelo diálogo-poético de escuta do Ser-tao.
Os três ser-tões são um só. Como disse Heráclito no fragmento 123: “Tudo é um”. Mas nós somos seres-humanos e o humano é de difícil escuta e conquista. Voltados para o aprendizado de conhecimentos geográficos, sociais, políticos, poéticos etc. etc., acabamos por nos perder em meio às múltiplas veredas de atividades mundanas e conhecimentos funcionais. É a rede e mundo funcional. Tudo isso é muito importante na nossa vida. Mas temos um encontro marcado para o pacto: o deixarmo-nos ser atravessados pelo poder do sagrado, pelo poder poético. Poético diz sempre o que é próprio da poiesis.
É este o apelo que nos faz, ao longo de toda a obra Grande sertão: Veredas, o personagem-questão: Riobaldo. Ele é a voz do poético.
Grande sertão: veredas não tem idade. Seu ser-poético são suas questões. E estas não têm tempo. São imemoriais. Elas se manifestando são o ser-humano se humanizando. Elas têm a idade do homem porque são elas que o constituem ser-homem-humano. Essa é, portanto, a idade de Grande sertão: veredas. O sertão é o lugar poético-telúrico do ser humano. Grande sertão: veredas é uma Gaia-poética.

Bibliografia

ROSA, J.Guimarães. Grande sertão: veredas. 6. e. Rio de Janeiro, José Olympio, 1968.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar II. Petrópolis, Vozes, 1992.
--------------------------------- . O pensamento a serviço do silêncio. In: SCHUBACK, Márcia S. C., org. Ensaios de filosofia. Petrópolis, Vozes, 1999.