05 novembro 2010

O contemporâneo e o enigma da paideia poética


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Reunidos em si, coincidem princípio e fim na periferia do círculo. (Heráclito, frag. 103)


Neste pequeno ensaio fazemos um incurso e percurso pelo famoso ensaio de Heidegger a propósito da obra de arte: A origem da obra de arte. A palavra origem não diz aí algo linear, progressivo, cronológico, historiográfico, diz o sentido originário do acontecer poético da realidade, do tempo. E aproveitamos para mostrar como ele quer assinalar nas obras de arte algo sempre contemporâneo, na medida em que propõe uma Paidéia poética. E há algo mais contemporâneo do que a essência do ser humano em sua referência ao ser realizando-se, acontecendo no e como tempo? Trata-se, portanto, não de mais uma teoria, mas do mergulhar na eclosão do poético do humano, independente das determinações de cultura, povo, época e espaço. Será sempre um erro banal tentar compreender e dizer o que é o contemporâneo sem se deixar tomar pela questão do tempo e não das épocas em sua sucessão, pois elas só acontecem no e pelo vigorar do tempo. Tempo é princípio e este nunca é estático, é dinâmico, nunca é linear, é circular, nunca é finito, é infinito, nunca é de exclusão é sempre de inclusão. Tempo, portanto, sempre se dá no vigorar de uma unidade. Que unidade? Sabe-se pela Física que o tempo se dá em quatro dimensões: passado, presente e futuro. E a quarta? É a que as reúne e lhes dá sentido: a linguagem. Linguagem é unidade porque é memória. O princípio de todas as diferentes obras poéticas não são as matérias, enquanto princípio de sua elaboração, mas a linguagem ou sentido irrompendo em mundo e presença. Na medida em que toda obra de arte se funda na e com a linguagem, toda obra de arte é sempre contemporânea, pois não há obra de arte sem o seu operar no e pelo princípio, ou seja: o tempo enquanto linguagem. Isso de maneira alguma quer dizer a-temporal. Pelo contrário, é o mergulhar na essência do tempo, o contemporâneo como o seu acontecer poético apropriante. Será míope e desfocado toda proposta que não pense o contemporâneo pelo princípio das obras de arte: o tempo enquanto linguagem.

Por Paidéia poética não se entende de maneira alguma uma teoria educativa. Estas propõem o enquadramento do ser humano em sua absoluta singularidade e identidade num modelo geral. A Paidéia poética, pelo contrário, orienta-se por um famoso verso de Píndaro: Torna-te o que és: aprendendo. Chegar a ser o que já desde sempre se é a única tarefa do pensamento e, portanto, do aprender. Aprender é pensar, pois pensar é amar. Em sua essência a Paidéia poética é uma travessia amorosa.

No posfácio ao seu ensaio A origem da obra de arte, Heidegger faz uma observação que, em geral, não é levada em conta: “As reflexões precedentes dizem respeito ao enigma da arte, ao enigma que é a própria arte. Está longe de nós a pretensão de resolver enigma. Permanece a tarefa de ver o enigma” § 187 (Castro e Silva: 2010, 201). Este enigma da arte vem nos desafiando ao longo do percurso da cultura ocidental. Tal percurso é muitas vezes identificado com a sua opção metafísica. E, aparentemente, esta palavra passou a denominar algo extremamente simples e transparente. Não é o caso. O principal problema da metafísica não é o que sabemos dela, mas o que não sabemos.

Em geral, nos pautamos pela última tomada de posição metafísica, aquela que mais nos envolve pela proximidade histórica, e nela passamos a identificar a resposta verdadeira. Mal sabemos que essa resposta se edifica em cima de um questionamento que não cessa de se renovar. Tal questionamento se alimenta do que não sabe e procura sempre saber, senão não seria questionamento. Esse não do saber não é, pois, negativo, mas o próprio vigor e motivo de todo questionamento. É dele que se alimentam os poetas e pensadores. Mas preferimos a tranqüilidade do saber ao desafio do não-saber. Aquele nos dá tantas certezas, tantas vias de acesso que, aparentemente, novas teorias não cessam de enriquecê-lo. Definem-se novas disciplinas e interdisciplinas com novos objetos e inter-objetos, na afirmação cada vez maior do sujeito. Porque não pode haver sujeito sem objeto. Multiplicam-se as nomenclaturas e as análises. Decifram-se os mecanismos de construção e criação.

Esmiuçam-se as formas e os estilos, assinala-se a renovação dos gêneros. Mostra-se objetivamente a linguagem como uma construção social ou então como manifestação do inconsciente. O acervo do saber não cessa de crescer e isso só prova a riqueza da cultura ocidental. É temeridade e irresponsabilidade pôr em dúvida tal saber. Um saber que não só classifica, ordena e julga o saber ocidental, mas também se torna o instrumento e paradigma de classificação, ordenação e julgamento de todas as demais culturas. É um saber que a tudo identifica, a tudo dá uma medida, a tudo representa. Esse é o lado visível e superficial da metafísica. A sua outra face preferimos ignorá-la como se ela fosse o seu lado já superado e desprezível. Esta outra face é o vigor da própria metafísica e que nos desafia permanentemente como uma esfinge enigmática. O que não sabemos da metafísica é muito mais complexo e profundo, e não é acessível ao saber apressado e bem estruturado em resposta precisas e análises previsíveis. As discussões ficam por conta dos detalhes, das nuances, dos jogos de bastidores, da ambigüidade retórica e da luta pelo poder. No todo não há o todo como questão. Não há aquela simplicidade aparentemente ingênua e sempre renovada da admiração. Não foi assim que os gregos começaram? Não é este o vigor da riqueza da cultura ocidental metafísica? Por detrás de toda resposta metafísica há uma questão, há a questão. Mas quem se importa com ela?
O pai da Modernidade, Descartes, nos mostra o caminho e faz até dele um método. Por que as pessoas esquecem tão facilmente que método é a palavra grega para caminho? Ele nos diz na Quarta parte do Discurso do método:


Não sei se deva falar-vos das primeiras meditações que aí realizei (num acampamento militar, durante o inverno, na Alemanha); pois são tão metafísicas e tão pouco comuns, que não serão, talvez, do gosto de todo mundo. E, todavia, a fim de que possa julgar se os fundamentos que escolhi são bastante firmes, vejo-me, de alguma forma, compelido a falar-vos delas. De há muito observara que, quanto aos costumes, é necessário às vezes seguir opiniões, que sabemos serem muito incertas, tal como se fossem indubitáveis, como já foi dito acima; mas, por desejar então ocupar-me somente com a pesquisa da VERDADE, pensei que era necessário agir exatamente ao contrário, e REJEITAR como absolutamente FALSO tudo aquilo em que pudesse imaginar a menor dúvida, a fim de ver se, após isso, não restaria algo em meu crédito, que fosse inteiramente indubitável... Mas, logo em seguida, adverti que, enquanto eu queria assim pensar que TUDO ERA FALSO, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulos, como O PRIMEIRO PRINCÍPIO DA FILOSOFIA QUE PROCURAVA” (Destaques meus) (Descartes, 1994, 66).


Como toda obra de grande pensador (ou poeta/artista) esta pequena passagem dá ensejo a muitos comentários, tão densa e simples é a sua pro-vocação ao pensar. Hoje a pós-modernidade nos indica de alguma maneira a modernidade em crise. Não era esta a situação de Descartes em relação à Idade Média e às certezas e ao saber que dela advinham? Duvidar e buscar a verdade foi uma atitude negativa em relação ao rico legado metafísico? O que devemos estranhar na atitude de Descartes? Não é a busca do estranho e do extra-ordinário num mundo de certezas? Não é esta a maior riqueza da metafísica: a busca da verdade e de novos caminhos? E ao deixar de lado, pelo exercício questionante da dúvida, os princípios tradicionais já cultivados e estabelecidos, tornou ele menos vigoroso e válido o percurso metafísico da cultura ocidental?

O título da obra de Descartes onde se localiza a passagem chama-se Discurso do método. Mas o que aí é mais importante: a procura da verdade ou o caminho para ela? O que é mais importante: a busca do princípio ou o estabelecimento de um princípio? Ou será que uma coisa pode ser separada da outra? De que metafísica falar: a dos princípios ou da atitude de questionamento? Por que se deve sempre cair numa estrutura questionante de ou ou? Por que não “e e”? É neste sentido que podemos voltar ao ensaio de Heidegger e ver o que o move: “A tarefa consiste em ver o enigma.” Como tentar ver o enigma sem negar o já visto? Mais: sem questionar o já visto, sem ir além das respostas da metafísica? Mas todo ir além é mergulhar ainda mais no visto e já respondido para lá apreender o não-visto e não-conhecido. O futuro está no passado. Dialogar não é falar com o vazio oposto ao dito, é mergulhar no dito para deixar-se tomar nele pelo que o constitui e faz aparecer e ser dito. Todo diálogo para os dialogantes supõe o não-saber, pois se ambos se agarrarem ao já sabido como já sabido, não haverá a dúvida do não-saber. É este e são este que nos une a todos. Mas não é um não-saber negativo, como o silêncio não é a negação das falas, é sua origem, é sua fonte inesgotável. Ser e estar sendo é deixar-se tomar pelo vigorar do silêncio, à fonte de todo estar sendo na medida do iluminar-se pela energia irradiante de tudo poder ser e não-ser.

Com o Ulisses de James Joyce, Homero se torna mais nosso contemporâneo. Por que a arte nunca deixa de ser contemporânea? É uma questão de forma, de estilo, de gênero? Mas os dois Ulisses por serem idênticos não quer dizer que sejam a mesma coisa nem que tenham a mesma forma, estilo e gênero. O que eles trazem é algo mais, aquilo que nos trai e por isso mesmo é digno de ser pensado tanto mais quanto se retrai. Este é a força de sua contemporaneidade e vigor da sua ambigüidade. Mas o que é esse “algo mais” para além das definições e análises? Não é esta a questão a que os princípios procuram dar resposta, que os pensadores pensam, que os poetas habitam? Não é esta a nossa tarefa: a procura da verdade? Ou não seremos com-panheiros dos pensadores e poetas? Não dividiremos com eles o pão com que nos alimentamos (cum-panis)?
E por que esta nova tentativa não significaria necessariamente uma nova atitude metafísica, não seria mais uma teoria entre outras? Este é o vigor e o desafio do pensamento de Martin Heidegger. Mas lá onde o leitor for procurar uma resposta só vai achar perguntas, perguntas que só se tornarão questões quando se nos tornarem próprias. Não foi por lazer que escreveu Der Feldweg (O caminho do campo). Não foi por certezas metafísicas que deu como subtítulo a suas publicações: Wege nicht Werke (Caminhos não obras).

O desafio do seu pensamento não consiste na negação e na conquista de opositores à metafísica. Pelo contrário, convida-os a pensar a metafísica, repensando os seus caminhos. E só se pode re-pensar a metafísica, não partindo do acervo das suas certezas e das questões e princípios que as produziram, mas de as ler e acessá-las na luz do vigor de seu questionamento. Este vigor é que é digno de ser pensado. Mas como fazê-lo a não ser re-fazendo o percurso da metafísica?
No ensaio O caminho do campo, nos diz a propósito do caminho da procura:


De passagem pela orla, saúda [o caminho do campo] um alto carvalho, em cuja sombra está um banco talhado a cru.
Nele repousava às vezes um ou outro texto dos GRANDES PENSADORES, que o desajeito de um novato tentava decifrar. Quando os enigmas se acumulavam e nenhuma saída se apresentava, servia de ajuda o Caminho do campo. Pois em silêncio conduz os passos por via sinuosa através da amplidão da terra agreste.
Pensando, de quando em vez, com os mesmos textos ou, em tentativas próprias, o pensamento, sempre de novo, anda na via que o Caminho do campo traça pela campina.


Os grandes pensadores e as questões são a companhia que acompanham o pensador em seu per-curso pelo caminho. O pensador tem que se abrir ao apelo do pensamento, pois é ele que “...sempre de novo, anda na via que o Caminho do campo traça pela campina.”
O percurso não se faz só. É preciso pensar as questões dos grandes pensadores. Este é o caminho do campo. Não foi esse o caminho do campo de Descartes? De Tomás de Aquino? De Agostinho? De Aristóteles? De Platão? De Parmênides? De Heráclito? E de todos os outros? Dos poetas? Pensar é sempre pensar com, mas não simplesmente reproduzir. Pensar-com é exercer o desvelo amoroso, mas nunca falar por. Para tal é necessário dialogar, que é o exercício da escuta, onde se fala para escutar e se escuta para falar. Onde há simplesmente a fala não há diálogo. Mas o que é a fala? O que nos fala na obra? As formas? Os estilos? Os gêneros? Mas o que é isto: formas, estilos, gêneros? Quem definiu o seu alcance e conteúdo? Dão eles conta do que de-finem? Ou não serão essas as respostas metafísicas que pretendem dar conta do enigma da arte? Mas então será a fala da arte? Como pode haver fala sem Linguagem? Mas qual será a fala da forma e a fala da Linguagem? Onde está a ambigüidade da fala? Na forma ou na própria Linguagem? O que tanto nos atrai na arte e que ao mesmo tempo tanto se retrai? Não é esta atração e retração a ambigüidade radical do enigma da arte, o que a torna permanentemente contemporânea? O que é mais importante acumular e classificar o dito ou pro-vocar o não-dito a partir do dito?



O círculo poético do ensaio


O ensaio A origem da obra de arte não pode ser lida sem atentar para o vigor e rigor da sua articulação. Ela se constitui num círculo virtuoso. Há aí um jogo sutil de identidade e diferença que vai do um como princípio ao dois como unidade. Princípio e telos se incluem e se excluem: este é o vigor virtuoso do círculo, este é o vigor ambíguo do enigma da arte, pois princípio diz o vigorar do dinâmico no estático, do circular no linear, do infinito no finito, da inclusão na exclusão. Telos dentro do vigorar do princípio diz o próprio agir que leva à consumação, à plenitude de realização, ao não-limite de todo limite.

O ensaio Heidegger a propósito da origem da obra da arte consta de uma introdução, três partes intituladas:
1a. A coisa e a obra.
2a. A obra e a verdade.
3a. A verdade e a arte.
E um posfácio.

A introdução e o posfácio se esclarecem a partir do próprio vigor que articula circularmente as três partes. Não são, pois, propriamente, uma introdução e uma conclusão, num sentido linear e tradicional, num sistema de causa e efeito, em que a conclusão esclarece e conclui o que se pro-pôs na intro-dução. O que se diz na intro-dução e o que se diz na conclusão (Heidegger não usa estes nomes tradicionais, e isso já é significativo, mas preferimos ficar com esses nomes como meio de dialogar com a postura metafísica) só são compreendidos a partir do vigor que move e articula as três partes. Por isso não é uma introdução que de fora nos levasse para dentro. Ou bem já nos localizamos no vigor do círculo ou bem jamais conseguiremos nos introduzir como se fosse possível ir de um fora para um dentro, como se pudéssemos estar de fora do que somos e pelo que somos para, numa de-cisão de um sujeito, acessarmos o círculo do que é, da “realidade”, da “coisa”. No círculo do que é já sempre nos encontramos. Podemos ou não nos deixar atrair pela sua retração, pelo vigor da sua ambigüidade, pela tração do seu agir não-causal, onde somos espectadores e atores ao mesmo tempo. É essa retração que vigora em todo sendo, em todo telos. E se compreende isso facilmente. Se, de um lado, o sendo no seu consumar-se tende sempre para o limite do não-limite, pois vigora numa liminaridade, num entre, de outro, a arché que é seu vigor de consumação não pode ficar dependente do limite. Dando o limite retrai-se como incessante vigorar. E é justamente este incessante vigorar que em todo limite do sendo se retrai que será a força que faz da obra de arte ser contemporânea, porque nela vigora o princípio da luz irradiante.
O círculo gira em torno de três núcleos:

1º A coisa.
2º A obra/verdade.
3º A arte.
Nesse sentido, a introdução nos faz uma apresentação desses três núcleos no sentido metafísico já estabelecido e inquestionado, onde a coisa aparece como suporte de algo que se nos dá como simbólico, que é a obra/verdade que constitui a arte. As três partes retomam esse círculo deixando vigorar o questiona e passam a originar um dialogo a partir de cada parte como questão. E já vai questionando essa postura metafísica, que só ficará completa no final do ensaio, sem, evidente, dar uma resposta ou propor uma nova teoria crítica, tanto ao gosto da modernidade.
Normalmente encaramos a obra a partir do seu aspecto coisal/material, de como ela nos aparece no sistema mundo. Aspecto diz o modo como a vemos dentro do sistema em que estamos inseridos. Numa outra cultura (sistema) a mesma “coisa” aparecerá de outro modo. Porém, mal nos damos conta de que não indagamos por que aceitamos a de-finição tradicional metafísica de coisa. Ela é tão evidente e prática que qualquer questionamento pode soar como uma “destruição” de um saber acumulado e científico em torno do aspecto/forma coisal/material/objetual da obra. Mas viver não é o necessário, indagar é o necessário. Questionar sempre questionar.
A investigação de Heidegger no ensaio vai procurar os vestígios da “coisa”. Para tanto examina as pro-postas metafísicas e os claros das de-finições deixando-se guiar pelo vigorar da clareira em seu acontecer apropriante. Como meio didático de apresentação da questão põe em cena a tensão da coisa com a obra ao con-vocar para reflexão a contra-posição de obra e utensílio. É na reflexão que a luz irrompe, mas não a luz da crítica racionalisa, mas da poiesis (entende-se por poeisis todo passar do não ser ao ser). Como fica a “coisa” nesta contra-posição? Como nos aparece a “matéria” na forma? O que entender por “matéria”? Notemos que há a forma da “matéria” (enquanto algo dado pela physis/natureza) e “forma” tanto da obra quanto de qualquer utensílio, que usa as matérias para lhe dar outras “formas”. A “coisa” propriamente não se faz presente na utilidade do utensílio, porque tal utilidade já se dá dentro de uma determinação da “coisa” pela funcionalidade causal, ou seja, a função que o utensílio exerce no sistema ao qual serve e para o qual foi feito. A “coisa” na contra-posição utensílio/obra remete para uma outra instância: a obra e a verdade. É na luz desta que a “coisa” aparece como “coisa”, pois é na luz que irradia do templo que a paisagem se torna paisagem. É na pintura de Van Gogh que a “coisa” tinta se torna cor. A “coisa” para chegar a ser coisa deve ser tomada por um princípio que lhe vem de fora, está em outro, para além e aquém da forma que recebe da própria physis, enquanto esta e aquela matéria: o mármore, a madeira, a tinta, a sonoridade, o movimento e gesto, a palavra etc. Porém, tal princípio não está ao lado da physis, integra-a essencialmente, pois seria um absurdo pensar algo que a própria physis já não contivesse. O princípio que a coisa matéria recebe de outro e a leva a ser tanto obra quanto utensílio é o advir à verdade na unidade da linguagem que lhe dá a dimensão de sentido e verdade. Sem linguagem não há verdade. Sem verdade não há linguagem. Verdade é sentido vigorando. Sentido é a linguagem se fazendo verdade. Na obra de arte a “coisa” chega à sua verdade, à manifestação de sua plenitude, àquilo que é. Todo é só é na unidade da linguagem ao trazê-lo ao sentido. É a linguagem que reúne a matéria e o sentido que tanto o utensílio quanto a obra de arte manifestam e manifestam pelo poder da luz enquanto energia irradiante. Nós não vemos “coisas”, vemos o sentido em que elas acontecem. Quando elas são reduzidas, pela causalidade, a mera disponibilidade funcional, então a coisa se retrai naquilo que é e se nega a nos acompanhar e fazer presença em sua riqueza. Dessa maneira, o ser humano se isola em si, em meio a um mundo de objetos, onde ele mesmo tende a se reduzir a algo também disponível dentro do sistema funcional e finalista, a que se reduziu a realidade. Eis a questão da pós-modernidade, que não pode ser a pós-metafísica, mas um dos seus desdobramentos.
A globalização não é algo que possamos renegar e dizer que não existe. A questão é o que fazermos com seu vigorar histórico para que saibamos o que ela pode ou não fazer conosco. Os caminhos da dominante funcionalidade devem encontrar no pensar a sua mais forte resistência e questionamento, afirmação do que não cessa de vigorar como o próprio do pensar e do ser. Diante de um pensamento que calcula só nos resta contrapor-lhe de dentro da próprio domínio do cálculo a abertura que nega o domínio único da funcionalidade, a proclamação poética da não-função. Só assim a pós-modernidade encontra o seu caminho de possibilidade de mais uma dimensão de sua realização. Metafísica, compreendida em seu sentido originário, é dobra e jamais um jogo excludente do duplo.

A verdade da utilidade do utensílio é facilmente apreensível, tanto mais quanto a coisa nela desaparece e tanto mais quanto menos se faz presente. Para “saber” (a coisa enquanto sabor) a coisa temos que diferenciar utensílio e obra. Mas esta se diferencia pela sua verdade, que é, afinal, a verdade da “coisa”. O utensílio se torna utensílio já dentro das possibilidades que a obra de arte abriu para a “coisa”, mas então tais possibilidades são reduzidas à funcionalidade, à verdade causal, onde esta verdade é determinada pelo verdadeiro dentro dos parâmetros que o sistema impõe como realidade. É a verdade por adequação a uma idéia prévia que não deixa a coisa ser o que é. Então a coisa se retrai para deixar aparecer a verdade causal. É nesse retrair-se que advém na obra de arte toda a sua possibilidade de ser sempre contemporânea. É isso que a distingue do utensílio e da obra voltada simplesmente para uma utilidade, seja ideológica, seja estética. Ideologias mudam e, como hoje, caminham para um ocaso irreversível. Gostos estéticos são como moda, mudam, pois são modos de a mudança pela mudança ter a sua hora e vez. Se a mudança é o próprio de toda realidade, a fonte de sua mudança não pode se reduzir a uma mudança. A mudança para poder ser mudança tem de vigorar no não-causal, assim como toda fala tem de vigorar no silêncio, assim como todo vivente (bios) tem de vigorar na vida (zoé). Esta é a dobra poética. Toda dobra é um acontecer apropriante da unidade, da linguagem.

Mas o que é a verdade para que a coisa se manifeste na obra?
O segundo núcleo do ensaio vai pensar a obra enquanto verdade. De novo as variações das definições metafísicas se dão na medida e na proporção em que lhe são inerentes uma figura de verdade: a da metafísica. Estudar esta tensão entre verdade metafísica e verdade não metafísica não é uma maneira de conhecer a própria metafísica e o que lhe é próprio? A obra vai aparecer como manifestação da verdade na medida em que o próprio da verdade é a manifestação. Não há, pois, a obra e a manifestação, mas a obra como verdade manifestativa. Comparece a coisa não mais como forma, mas como Gestalt manifestativa. Nesta Gerstalt se articulam não mais tensionalmente matéria e forma, mas Terra e Mundo como Streit, combate ou diálogo tensional, criativo e ambíguo.

A obra não é algo em si. Ela aparece na tensão “coisa”/arte. Mas o que pensar aqui como arte? A tradução ocidental metafísica esqueceu o vigor da sua origem nos seus enquadramentos. Traduziu e traiu sem atrair o que se retrai. Arte traduz a techné grega. Mas o que é techné? Esta na tradição e na tradução passou a ser definida pela verdade. Mas que verdade? O terceiro momento do círculo traz para cena a questão da verdade como surgindo do agir. Poiesis e techné aí comparecem interligados. A techné não é um saber técnico produtor de formas e objetos. Poiesis e techné trazem para cena o artista e o intérprete agenciados pelo operar da verdade da arte na obra. Nesse agenciar, o artista e o pensador aparecem e se manifestam no que são como vigias do ser da arte na obra como verdade. A obra não é uma coisa, um objeto, um organismo, passível de uma análise como telos de um princípio, pois análise só pode atingir e explicar finalidades causais de algo dentro de um sistema, em virtude do qual o objeto realiza a causa final. Esta é prévia à própria escolha do material, porém é dentro do princípio causal como verdade da realidade que se estabelece e determina a finalidade. A arte não depende jamais do princípio causal, ela é a própria realidade se dando e acontecendo em sua verdade. Isto é o mais difícil de compreender e aceitar para quem se calca e decalca na metafísica causal como sendo a realidade. Essa dificuldade é de quem se encasula no estreito princípio metafísico da causalidade, não da arte, não da realidade, não do poeta pensador e do pensador poeta. Os que se guiam pelo princípio causal ficam aprisionados em virtude dessa mesma causalidade no campo dos entes, onde agir é produzir entes e relações entre entes ou na língua em suas relações causais de emissor e receptor, num jogo sempre complementar. Por isso mesmo, a não ser retoricamente, jamais podem deixar o silêncio vigorar. Em relação ao silêncio não pode haver complementaridade nem relações causais e funcionais. Não se pode determinar coesão e coerência. O Silêncio é sem causa, sem finalidade e sem complementaridade. Por isso mesmo o silêncio é a mãe de todas as línguas, ou seja, a linguagem é a mãe de todas as línguas. Em relação às manifestações artísticas nunca há linguagens artísticas, pois todas vigoram no operar da linguagem. Há, sim, diferentes matérias como princípio de criação sendo inseminadas pela luz que é a linguagem e agenciadas pela techne. A matéria (e suas propriedades) nunca traz em si esse princípio, está em outro. Um bloco de mármore ainda não é uma estátua de um grande artista. Um outro princípio realiza a estátua, passando a ter propriedades próprias e diferentes das propriedades do mármore. Esse outro princípio de constituição das obras de arte vigem na obra e a iluminam. Todas as obras de arte partem da luz e chegam à luz quando são obras de arte. Daí o seu poder de iluminação. Por luz não se entende apenas a claridade nem a luminosidade, mas também a própria sombra e escuridão. Aqui, sim, noite e dia respiram a vida complementar, mas não há dia e noite sem o vigorar da luz. Portanto, a linguagem ou luz é a energia irradiante e acontecente em que a realidade se dá a ver, a conhecer, a experienciar, em dimensões que a matéria mármore por si mesma não realiza.

Porém, esse dar-se é um resguardar-se e retrair-se em seu poder e querer iluminante. O dia e a noite mostram a face complementar do tempo-luz em sua cronologia, mas esta não acontece senão no retrair-se da noite no dia e do dia na noite, onde sempre vigora no fenomenolizar-se o resguardar-se no velado do silêncio fundante. Só a arte, só a luz liberta porque é o próprio acontecer na verdade da não-verdade. A não-verdade é aquela manifestação da realidade (silêncio) jamais redutível à causalidade. Contudo, é importante agora afirmar algo não muito simples: a verdade de cada coisa e de cada explicação causal só é possível porque de antemão a “coisa” já apareceu como coisa na luz da não-verdade, da não-causalidade. É que não há nem pode haver uma realidade dividida em duas, num duplo: a não-causal e a causal. Há e sempre houve uma dobra, onde se desdobra sempre inauguralmente a realidade num manifestar-se e num velar-se. Acontece que podemos só ter olhos para o que se vê, que é sempre de uma grande riqueza. E podemos ficar encantados com as relações possíveis entre tudo que já está aí manifesto. A grande questão que se coloca é o ficar restrito e preso a essas relações, isto é, à causalidade. Isso ainda é facilitado porque a realidade se dá a conhecer de muitas maneiras, porque o sendo do ser se diz de muitas maneiras. E podemos ficar restrito a esse conhecer. São os perigos inerentes á nossa condição de seres finitos e não-finitos. Nem todo olhar nos dá a ver tudo que se dá a ver. Então o limite não é da realidade, é de quem olha e não vê, de quem conceitua e não se abre para as questões. Até porque esse abrir-se não é causal, é não-causal. E seu acontecer está inscrito na Lei que nos rege: nossa moira, nosso destino, que é nossa identidade. Como Lei e moira somos regidos pela necessidade. Por isso afirmou Ésquilo: “A necessidade pode mais do que o conhecer”. E ainda bem, caso contrário ficaríamos dependentes de uma época, de um sistema, de um ideal, de uma religião, de uma ideologia, de uma cultura, de um líder, de um deus. Todo horizonte de possibilidades enquanto a necessidade e a medida fundam-se no mistério que é a realidade. E o que é o mistério? “Mistério remete, em toda experiência, para o que se diz e reconhece fora das possibilidades de ser, conhecer e dizer. Para se dar e acontecer mistério é indispensável morar e descobrir-se no âmbito da Linguagem” (Leão: 2007, 33).

A verdade só opera como obra na medida em que artistas e pensadores e intérpretes e leitores desvelam amorosamente o operar da verdade da obra. Nisso consiste a arte como poiesis e techné. Mas o que se desvela no operar do pensador e do artista e no interpretar do intérprete e do leitor? A “coisa”, mas não mais a coisa/suporte metafísico. A “coisa” se manifesta na medida em que se desvela como arte na verdade do ser da obra. Não há uma definição, mas o circular do círculo. Com isto voltamos ao início e se conclui e inicia o círculo. O ensaio de Heidegger se finda como começou. E o que faz vigorar este círculo? O pensar originário, onde pensar não é algo que vem de fora do próprio vigorar do princípio, mas a referência de essência do ser humano e ser. Em tal referência o ser se torna linguagem e a referenciação é referenciação pelo princípio da poiesis, pelo qual todo não ser advém ao ser, mas é advir poético onde a própria referência de essência do ser humano e ser advêm e se manifestam enquanto linguagem. Advir à linguagem é advir ao sentido.

A conclusão do ensaio de Heidegger vai fazer uma reflexão sobre o círculo para concluir/abrir que a arte é um enigma (mistério) de que as reflexões assim como as obras são um indicar e operar de tal enigma. O enigma da arte ao mesmo tempo que se dá se retira, nos trai enquanto se retrai. Este é o vigor do círculo, do princípio originário (Ursprung). Este é o vigor da História (não linear nem causal). Este é o vigor da arte. O tema da morte da arte só pode aparecer numa teleologia causal e linear, seja cronológica, seja dialética, porque o telos parte de uma definição de coisa e verdade onde a obra opera a sua representação como manifestação da idéia absoluta ou outro qualquer telos, inclusive o da morte. Por que o século da ciência levou a uma postura niilista e amoral, melhor, a-ética? Por que a pós-modernidade aparece como o vazio da falta de posição, do fim das grandes narrativas e, no entanto, da abundância de saberes banais e descartáveis, onde a arte tem sua crise, não porque deixe de ser feita, mas porque é tão descartável quanto qualquer outro pro-duto? Esse pós- não pode simplesmente continuar a indicar o fim da arte como a arte do fim da modernidade. Será apenas mais um passo do descompasso da metafísica, e não do vigor que deu origem à metafísica. A conclusão não conclui, pelo contrário procura re-instalar a abertura do que a vida nos convida a viver, não como uma opção nossa, mas como necessidade. Só se vive se este viver for dimensionado pela necessidade de criar, de não cessar de fazer travessias, enfim, navegar. A arte como vivência pode nos manter tão afastados do vigor da questão da arte como o seu lado in-verso, a morte da arte. Neste per-curso paira como desafio o ser da paidéia. Ou qual novos quixotes continuaremos a combater os moinhos de vento da literatura engajada ou a nos engajar na estetização da arte? Ou sociais ou individuais? Caras alternativas metafísicas? Qual a paidéia apropriada ao próprio do homem? Qual a paidéia do ser do homem? Nesta questão se identifica a questão do ser da arte. Se chegou ao fim a Bildung iluminista e com ela o fim das ideologias, isso não quer dizer que não há mais alternativa para uma Paidéia. Há, mas que liberte para o essencial, longe e avessa a toda e qualquer causalidade e finalidade, de onde surge a redução da educação do ser humano à funcionalidade. Esta funcionalidade domina de tal maneira os estudos culturais que eles, na ansiedade pelo conhecimento aplicado tornam-se formatadores de mentes e corações. Caeiro já disse: são as tintas com que nos pintam os sentidos. Na ansiedade de intervirem e formatarem a realidade não notam que é ela que nos plasma desde que saibamos responder e corresponder àquilo que ela é no não cessar de se dar. Como? Deixando acontecer a libertação. Realizar-se é libertar-se, não para um sistema e dentro de um sistema, mas para aquilo que somos.

A arte nos instala na própria de-cisão da paidéia e não como uma via de acesso semelhante a outras de que de vez em quando se pode lançar mão. Nunca um pensamento desceu tão fundo no enigma da arte, porque nunca um pensamento desceu tão fundo no enigma do homem como Linguagem do ser. Esse descer fundo não é nem se pode tornar um modelo. No pensar nunca pode haver modelos nem cânones, nem paradigmas, nem sistemas ideais, nem ideologias salvacionistas. Há e sempre haverá o desafio e a disciplina de pensar, de não cessar de aprender a pensar. Como disse Caeiro “pensar é amar” e é amar porque só o Amor liberta.

As grandes obras dos grandes poetas e dos grandes pensadores estão aí para serem desveladas com desvelo maternal. Não é este o melhor modo de preservar a riquíssima tradição e acervo do cultura ocidental? Não estudá-las como passado de formas ou coisa semelhante, mas como a vida experienciada como Linguagem do Ser e seus autores como atores nossos contemporâneos. Quando os intérpretes deixarão simplesmente de ser “visitadores” de museus como depósito de obras? Quando os “museus” levarão a sério a palavra poética da música, para que se levem a sério como museu? O problema não é do museu nem das musas. Onde está o problema? As vias de acesso não estão nas falas das teorias como protótipos de falsas práticas. As correntes críticas se sucedem umas às outras e esquecem o essencial: na obra a fala da obra. O alarido e falatório das teorias se sobre-põem à fala das obras, em novas e contínuas falas. E a obra se retrai e contrai esperando que sejamos atraídos pelo que nos fala e não pelo que queremos e podemos sempre falar. É preciso escutar as obras. Este apelo à escuta nos vem não de mais uma teoria, mas tem que nos advir do próprio operar da verdade da obra de arte. Cada dia e cada noite é a oportunidade única e sempre igual de re-inventar o mundo. Há um velho e sábio adágio que diz: mostra-me com quem andas e dir-te-ei quem és. Isso ocorre com a interpretação. Esta pode ser entendida e praticada como análise ou, num abrir-se para a obra, como com-preensão, onde o com-preender é um deixar-se prender no diálogo pelo que prende e agarra: o princípio. Prender diz deixar-se tomar pelo afeto, pelo que é nossa energia de realização. Num procedimento dominado pelas análises, a fortuna crítica de um autor ou de uma obra ainda parece o melhor caminho para o seu conhecimento. Nesse sentido, é necessário em primeiro lugar dominar a bibliografia principal, pensa-se, ensina-se, exige-se. Este exercício crítico nem sempre é escolhido e acolhido pelos próprios poetas. A distância que impera hoje na academia entre as teorias críticas (pseudo) e as obras poéticas é alarmante. O domínio da epistemologia é quase absoluto e o poético é quase como regra ignorado e incompreendido. Por isso, a boa companhia de um Jorge Luis Borges me ajuda a valorizar mais a interpretação como desvelo afetuoso, como a escuta da fala do silêncio da obra, do que como o conhecimento das análises feitas pelas correntes críticas, formais e ideológicas.

Diz ele no seu ensaio “Poesia”, do livro Sete noites:

Podemos chegar ao conceito de que a poesia é a experiência estética [poética]: algo assim como uma revolução no ensino da poesia.
Fui professor de literatura inglesa na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e tentei prescindir, na medida do possível, da história da literatura. Quando meus alunos me pediam bibliografia, eu lhes dizia: “A bibliografia não importa; afinal, Shakespeare não soube nada de bibliografia shakespeariana”. Johnson não pôde prever os livros que seriam escritos sobre ele. “Por que não estudam diretamente os textos? Se esses textos lhes agradam, muito que bem; e se não lhes agradam, abandonem a leitura, já que a idéia de leitura obrigatória é uma idéia absurda: seria o mesmo que falar em felicidade obrigatória...
Lecionei assim, atendo-me ao fato estético [poético, pois ele é poeta e não esteta], que não requer definição. O fato estético [poético] é algo tão evidente, tão imediato, tão indefinível quanto o amor, o saber da fruta, a água. Sentimos a poesia como sentimos a proximidade de uma mulher, ou como sentimos uma montanha ou uma baía.” (p. 288).

Compreendamos o que o poeta nos leva a pensar. Sentir proximidade não é necessariamente tocar pelos sentidos e advir alguma sensação. Sentir proximidade advém muito mais pela presença. Sentimos, sem dúvida, a presença de uma mulher, de um por de sol, de uma montanha num lusco-fusco de final de tarde ou no amanhecer fulgurante da vida acordando e acordando-se em nós. Isso é o ritmo em que se nos dá a a ver e sentir a realidade, na luz irradiante das obras de arte. Em realidade as obras da realidade na luz das obras de arte não têm formas. São presença.

A boa companhia ajuda a pensar melhor o afeto que há em todo desvelo. Disso não se conclui que a bibliografia shakespeariana seja inútil. Aqui acrescentaria aos comentários do poeta que a obra de Shakespeare (e Shakespeare é Shakespeare pela obra) está à espera do desvelo dos leitores e intérpretes, não para se repetirem uns aos outros nem para mostrar a “riqueza” da fortuna crítica, mas para pro-vocar o operar da verdade da fala da obra em novas manifestações, fazendo dos intérpretes o que eles são: seres da verdade da obra. A verdade da manifestação interpretativa é co-irmã da verdade manifestativa da própria obra, ou melhor, é nesse operar manifestativo que a obra chega a ser obra e o homem a ser homem. Tal interpretação não é a soma e o acréscimo de novas interpretações, mas a realidade se realizando enquanto o seu desvelar histórico no homem. Isto cabe à arte, não como finalidade ou tarefa, mas como o próprio doar-se da realidade. Este poder manifestativo da interpretação do desvelo afetivo me lembra outro ensaio de Borges. Chama-se: “Kafka y sus precursores”. E faz parte do livro Otras inquisiones (1952), p.710-712. Buenos Aires: Emecé, 1974. Depois de citar diversas obras de povos e épocas diferentes, e até “...la paradoja de Zenón contra el movimiento”, e até um autor chinês do século IX, diz Borges:

Si no me equivoco, las heterogéneas piezas que he enumerado se parecem a Kafka; si no me equivoco, no todas se parecen entre sí. Este último echo es el más significativo. En cada uno de esos textos está la idiosincrasia de Kafka, en grado mayor o menor, pero si Kafka no hubiera escrito, no la percibiríamos; vale decir, no existiria, p.711.

O tempo linear e causal aqui não conta. O operar da verdade da obra cria, no sentido de manifestar, o próprio tempo, o tempo que lhe é próprio, o não-causal, porque não há dois tempos, o da arte e de fora da arte. O tempo é sempre uma dobra, daí toda obra poética ser sempre contemporânea. A separação decorre da postura causalista metafísica da tradição ocidental. Ao tempo do desvelo afetuoso vigorando na escuta de cada leitor, que é sempre contemporâneo e atual, chamaram os gregos kairós. Este é o presente enquanto o instante que brilha no passado fundando a eclosão de futuro.
O tema da paidéia não apareceu com a metafísica, embora esta lhe tenha dado uma nova direção, porque fez dele o centro da questão, questão que, contraditoriamente, gerou o seu esquecimento, porque Homero inventou e educou a Grécia, e a metafísica procurou esquecer Homero. Ainda bem que não conseguiu. A cada ocaso/ocidente cor-responde o apelo de um novo nascer/oriente. E não se trata de uma dis-posição geográfica e histórica, mas de uma abertura para o eclodir da luz da clareira da poiesis e do acontecer apropriante do pensamento.

O per-curso metafísico da paidéia se fez dentro de uma mesma questão: o homem. Por isso entre os romanos, herdeiros legais da paidéia grega, a paidéia se tornou, no per-curso sempre reproblematizado da metafísica, humanismo. O helenismo greco-romano se torna com o cristianismo a nova versão da paidéia. Mas como ler o cristianismo sem a leitura da “coisa” pelas novas vias e avios de Agostinho e Tomás de Aquino? Eles introduzem definitivamente na paidéia ocidental a nova dimensão do agir/poiein dentro do princípio da criação. O princípio se torna Deus e o ente, criação. O Logos grego se torna o Logos divino. O criar humano – todo agir humano - é aná-logo ao criar divino. Descartes vai inaugurar o Logos da modernidade (reduzido a razão/ração) que a tudo disponibiliza funcionalmente pela verdade da certeza subjetiva. Por um lado, continua a questão da criação, que será incorporado à reflexão sobre o artista, por outro, cada vez mais se centra no homem (razão). O homem moderno é um homem medieval renovado. A criação continua como pro-duto de um agir criativo, agora localizado na interpretação do Logos como um operar racional. Este novo operar faz da paidéia uma Bildung. Não se trata de uma simples moldura, mas da “coisa” como produto da representação, como um operar vigoroso da essência do agir localizado e produzido pela razão, que a tudo ilumina. Mas a luz não é a clareira. Esta é a via e a contradição da metafísica. Este é o des-vio e en-vio da obra de arte. Não deixa de ser sintomárico que a um Édipo, a uma Antígone, a um Prometeu suceda um Quixote, uma Ema Bovary, uma Capitu, que não são personagens ficcionais, as questões humanas ficcionalizadas. A eles corresponde a realidade vigorante das questões. Tais obras e seus personagens se tornam questões que nos provocam em sua profundidade e desafio de compreensão. Ler tais obras como questões é mergulhar no que somos pelo questionar-se. Então o poético consiste sempre nesse mergulho no que somos como projeto e destino enigmático de realização. Isso é o poético, onde o conhecer não se torna epistemológico, mas ontológico, porque o essencial não é conhecer pelo conhecer, porém, chegar a ser o que se conhece.
Contudo, a simplicidade do MESMO com-parece na fala da escuta das obras dos poetas e pensadores. A fala da escuta nunca deixa de acompanhar os companheiros de jornada, os que afetivamente desvelam a verdade na obra de arte: a não-verdade da arte. Entre a verdade da obra e a não-verdade da arte há uma dobra, a dobra da liminaridade do humano.

Mostrando que a questão da paidéia não é algo que possa acontecer à poesia sim ou não, João Cabral de Melo Neto escreveu a obra A educação pela pedra (1962-1965). O que o poeta nos quer fazer pensar com essa palavra educação? Educação é o nome de uma disciplina entre outras em que o saber científico e epistemológico se fragmentou, fragmentando a realidade. Mas para a poética educação diz algo poético. Esse saber metafísico originário, e por isso poético, está na base teórica do que desde tempos muito antigos se chamou paidéia e de tempos ainda mais antigos se chamou e chama poiesis/mythos/logos: é a palavra poética manifestativa. Mas o que tem a paidéia a ver com a educação e a educação a ver com a poesia?
O pensar classificatório da metafísica leva ao clichê simples e banal de incluir o pensar que Heidegger nos propõe em mais uma teoria. Um teoria ao lado das outras. E por que não? Ou seria dele a única teoria certa? Outro clichê metafísico: a certeza da verdade que busca a teoria certa. Este foi o per-curso de Descartes e, com ele, da modernidade: as idéias claras e distintas. Mas há também o Descartes pensador, o da dúvida metódica, o de alguém que procura a VERDADE. Heidegger não propõe teoria nenhuma: re-pensa o vigor da origem da metafísica, para nos deixar essencialmente livres, uma liberdade que só nos advém pela arte e pelo pensamento, enquanto algo essencial. Heidegger não nos propõe uma nova teoria, convida-nos a pensar o que é digno de ser pensado. O difícil em Heidegger não é compreendê-lo, é pensar, para que a metafísica e suas teorias racionais e crítico-epistemológicas não pensem por nós. Heidegger é simples como a poesia é simples. Por isso, quando sai do diálogo com a metafísica, e nisso é que é difícil, pois temos que nos desautomatizar, ele busca a companhia dos poetas. Ora, esse é também o convite dos poetas: abrirmo-nos para o que é digno de ser experienciado como poesia. É para esta experienciação do desvelo afetivo que nos remete o último poema do livro de João Cabral, que sintomaticamente nomeou, como já assinalado A educação pela pedra. O título, nesta reflexão, merece a glosa: A educação pela coisa, A educação pelo poético. Como num círculo poético, no qual o fim está no princípio, ele intitulou o poema:

Para a feira do livro

Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido e vegetal da folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que vento em folha de livro.
Todavia a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nele urge a voz, que é vento,
ou ventania varrendo o podre a zero.

*

Silencioso: quer fechado ou aberto,
inclusive o que grita dentro; anônimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam suas redes.
Mas apesar disso e apesar de paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem;
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.

O poema da obra poética de João Cabral a que exigência e referência nos convida com a poesia de toda obra poética? O título já nos introduz, pela ambigüidade poética da palavra “feira”, naquilo que é digno de ser pensado: o diálogo de compra e venda, de dar e receber, de se fazer da interpretação uma especulação de preços. Mas qual o valor da moeda poética a ser especulado e trocado? É o livro/obra como valor: o ethos.

Há três grandes momentos no poema: o livro/obra como manifestação da “coisa”: “Todavia a folha, na árvore do livro”. A obra manifesta a árvore como árvore e a folha como folha na árvore do livro. Árvore diz o brotar da terra e elevar-se ao livre aberto do céu. Esta manifestação não se pode dar sem a voz/linguagem: nela e por ela o vento se torna linguagem: “mais do que imita o vento, profere-o”. Nada se imita nem se representa. No poema da poesia a realidade manifesta-se na re-ferência ao logos: “a palavra nela [árvore do livro] urge a voz, que é vento”. O vento é própria luz do espírito que sopra onde quer, é a linguagem operando em toda língua. E só o vento, energia da luz, se faz voz poética. A fala da voz é o ser/coisa da obra/livro/folha: como obra opera a manifestação: “...ventania varrendo o podre a zero”. A linguagem como Logos põe e depõe, dispõe e propõe. Por isso é a linguagem da verdade do livro. O zero, que não é, é a partir dele que o ente se manifesta. Uma manifestação aparece como aparência, que pode apodrecer – ser deposta - e ser reduzido a nada, a zero. A folha que manifesta é dobra de voz e silêncio, algo que é e, por isso, apodrece, e não é, pois ciclicamente retoma sua origem, isto é, se desfaz em zero.

O livro/obra e a voz/zero nos conduzem para o próprio do livro, a terceira di-mensão em que se estrutura o poema: os atributos da obra/livro: silencioso, anônimo, modesto, paciente, severo, fechado, aberto. Nesta tensão ambígua de atração e retração exige que o “extraiam, o interroguem”. Saber e não-saber, falar e escutar. Nisto consiste o diálogo amoroso/afetivo de todo desvelo poético: o abrir-se para o operar da verdade da obra, o abrir-se para a frequentação da feira do livro. A poética como paidéia não pode vir de fora da própria poesia. Uma paidéia será tanto mais paidéia quanto mais for poética. Ela convida à escuta, a ouvir a voz do silêncio. Nela e por ela o homem se dimensiona como homem no operar da Paidéia poética. Nela e por ela o homem se liberta: uma educação pela pedra/coisa, pela arte: coisa/arte, arte/coisa: o círculo virtuoso: a paidéia poética: a abertura do homem para seu ser: dura e consistente como a pedra/coisa/linguagem/poiesis. Mas no jogo/luta ambígua do atrair e do retrair “exige que lhe ex-traiam, o interroguem”. Este é o enigma da arte, da paidéia poética, que só fala a quem se abre para a escuta da voz do silêncio, ao se deixar arrastar, atracionar para o aberto da liberdade, advinda em todo nosso questionar e como questionar, dando-se no incessante interrogar poético. Nossa travessia. Nossa educação pela pedra.



Bibliografia

HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. São Paulo: Edições 70, 2010. Edição bilíngüe. Tradução: Manuel Antônio de Castro e Idalina Azevedo da Silva.

31 outubro 2010

Ler e deixar a obra falar


Quando estamos diante de uma obra poética e vamos começar a ler, diversas podem ser as atitudes. Mas, basicamente, podemos apontar três, fundamentadas em dois princípios que podem ser opostos e formar um duplo ou acontecerem numa dobra. A existência de cada um não é um duplo. É uma dobra. E isso depende do que se compreende tanto por princípio (arché, em grego) quanto por finalidade (telos, em grego). Há duas compreensões canônicas dessas palavras fundadoras. E, de fato, aí se decidem os dois Ocidentes.

Os dois princípios:

A – Causalidade e finalidade

O primeiro princípio, o da separação entre leitura e vida, baseia-se na causalidade. Tanto a vida quanto a obra são concebidas como sistemas, onde cada ser humano ou cada parte da obra exerce uma função. Por isso, nessa leitura, predomina sempre a finalidade. Tudo é feito tendo sempre por objetivo um fim, que pode variar muito, mas onde o leitor, a obra e a realidade ficam submetidos a essas finalidades. Todas as ações são determinadas pela análise. Esta pressupõe um sistema, seja social, seja psicológico, seja histórico, seja orgânico. Desmontar o sistema ou o organismo, quando se pensa em obra, em suas partes ou funções é o modo de ler para conhecer tudo, seja o ser humano, seja a arte, seja a realidade. Com isso visa-se tanto o conhecimento objetivo quanto o estético. Há uma separação entre o que é (ontologia) e o que se conhece (epistemologia). Toda a análise é determinada pela racionalidade epistemológica. Mesmo a fruição estética é dirigida por processos racionais. Eis as leituras dentro desse princípio:

1ª. Para melhor compreender esta primeira leitura, podemos perguntar: Qual a finalidade (telos)? Quando se compra uma obra poética e se inicia a leitura, esta já está influenciada pelo motivo que levou à compra ou ao seu empréstimo numa biblioteca ou ainda ao empréstimo por um amigo/a. Esses motivos podem variar. O nome do autor, a leitura de uma outra obra desse autor de que se gostou muito, o interesse por determinado assunto ou temática, o sucesso que faz no mundo ou no país etc. etc. O que, em geral, menos contribui é o interesse que a própria obra deve despertar pelo que ela tem a dizer. Esse é um motivo interno. A leitura é determinada por motivos estritamente subjetivos e externos ao valor da obra. Em geral, o leitor procura idéias que venham confirmar as suas ou satisfazer sua curiosidade. São, em geral, leituras superficiais e externas, tendo interesses passageiros e circunstanciais. Como se vê, aqui finalidade (telos) se reduz a algo que nos vem de fora, embora pareça satisfazer algo interno que, em verdade, é fundado no “eu” e seu narcisismo representacional e mascarado. É a subjetividade como fundamento estético.

2ª. Também aqui podemos perguntar logo: Qual é a finalidade (telos)? Em termos de ensino, ou seja, por motivos escolares, que deveriam servir à educação, a leitura da obra já está direcionada ou pelo nome do autor e sua importância para determinado períodos literário ou pelo seu estilo. Outro motivo deriva das posições críticas sobre a obra e sobre a própria compreensão do que seja uma obra poético/literária. A mais comum é determinada pela época e suas circunstâncias históricas e sociais, ou seja, há um motivo histórico e social. Pensa-se, infundadamente, que a obra é um produto da sua época e de determinadas estratificações sociais. Os personagens serão representação dessas relações sociais com seus valores e posições ideológicas. Em geral, tais posições críticas tem por finalidade ou louvar o autor por sua crítica social ou mostrar a dependência da obra e do autor desses preconceitos sociais, históricos, culturais e econômicos. Se bem observarmos, a obra é um pretexto para aplicação de conhecimentos advindos de outras disciplinas, que podem ser: história, sociologia, psicologia, política, cultura, antropologia, linguística etc. Claro que aí uma pergunta importante se coloca: Por que a obra deve ficar dependente desses conhecimentos externos à própria obra. É evidente que toda obra poético/literária é uma fonte preciosa de dados para o desenvolvimento dessas disciplinas. Isso não está sendo negado. O que se questiona é a total dependência da obra dessas disciplinas. Não terá a obra uma autonomia e uma realidade própria? Todo o seu poder criativo consiste em reproduzir algo que lhe é circunstancial? É isso criação? Esta limita-se a reproduzir e representar e a pensar o já penado e repensado? Em se tratando de poesia, acha-se que tudo se resume aos sentimentos subjetivos do poeta ou do leitor. É isso verdade? Claro que não.
A compreensão da finalidade (telos) continua a mesma, apenas voltada mais para o exterior enquanto ação objetiva originada na razão. Portanto, só aparentemente se opõe à primeira, pois continua baseada no sujeito racional, o que se denominou um “eu” universal, causal, representacional, funcional. E a palavra grega telos significa isso? Pode significar isso, mas não é seu sentido essencial. É derivado e até secundário, por isso forma uma dimensão da dobra. A finalidade aí está sempre dependente do que funda tudo isso, ou seja, a finalidade essencial e não funcional nem representacional. Esta finalidade nunca funda sentido, só significados dentro do sistema de oposições complementares. Mas estas não podem existir sem o fundar do sentido em que consiste o próprio telos e o próprio do telos. Como vamos ver, telos é sentido poético-fundador de mundo.

B – Não-causalidade e não-finalidade

Nem tudo na vida e na realidade está sob o princípio da causalidade. Pelo contrário, a existência e a realidade em sua essência são não-causais. E quando há não-causalidade não há, evidentemente, finalidade. Toda finalidade é determinada por uma relação de agente e paciente, de causa e efeito, onde se espera sempre algo como resultado. Este conhecimento causal se dá sempre dentro de sistemas e estes dependem de teorias e conceitos. Como a realidade e a existência são essencialmente dinâmicas tais teorias são obrigadas, com o tempo e no tempo, a mudar, ou seja, embora os conceitos sejam definidos por conhecimentos objetivos, universais e permanentes, tal objetividade, universalidade e permanência ou duração estão diretamente ligadas às teorias. A realidade é mais, muito mais, do que as teorias. E isso acontece porque a realidade não se restringe ao princípio causal e final. Daí surge uma pergunta: Se a realidade não se conhece só por meio de conceitos, em que outro modo de conhecer a realidade se dá, acontece? Tanto a realidade quanto a existência é constituída por questões. Estas têm algo de enigmático e da evidência. Elas são prévias a qualquer teoria e seus conceitos. Por isso mesmo não dependem de finalidades. Elas são válidas e existem ao simplesmente existirem, ao se darem como a própria dinâmica da realidade. O Tempo, a Vida, a Morte, a Existência, o Amor, a Alegria, a Felicidade, a Finitude, a Solidão etc. etc. independem de conceitos e finalidades. E como tais são a própria realidade se dando continuamente em sua dinâmica de acontecer. Por isso mesmo, jamais podem ser dependentes de sistemas, sejam eles quais forem. E se não dependem de sistemas não são causais nem funcionais nem são determinadas pelas finalidades. A vida não tem outra finalidade senão ela mesma. O tempo também. A felicidade também. O amor também etc. Vejamos bem que tais questões não dependem de nenhuma subjetividade nem de nenhuma época ou cultura. Elas são prévias, atuais e futuras. Viver consiste em consumar a vida. Amar consiste em consumar o amor etc. É então que as questões se tornam questões. Como consumar? Como experienciar no viver e existir as questões?

O sentido ético-poético de telos

Antes de responder às perguntas anteriores, vejamos como elas se deixam fundar no princípio (arché e telos). Princípio é a energia fundadora que não deixa de vigorar em todo acontecer da realidade em seu eclodir enquanto finalidade, telos. Mas o que aqui quer dizer finalidade? Jamais significa objetivo, pois este sempre resulta de um agir causal. É uma finalidade sem causa. E o que é isto? Simples: a finalidade que consiste em levar o que já desde sempre é à sua plenitude. Então telos é finalidade no sentido de consumar, levar à plena realização do que se é, e não a uma finalidade determinada pelas funções bem realizadas dentro de um sistema causal e representacional. E o que é mais importante e próprio para cada um senão consumar o que já desde sempre é e que no desdobrar da dobra consiste em chegar a ter o que já se é? Ora, este desdobrar é o que se chama em grego e é seu sentido originário, telos. Portanto, estamos diante de uma finalidade não-causal nem simbólica nem representacional, porque não depende de função dentro de qualquer que seja o sistema. É que este telos, este consumar diz o vigorar da questão em cada sendo, onde se dá e acontece a dobra, ou seja, o que é se consuma no como é. Temos aqui o princípio em sua circularidade poética, e não linear, não estática, mas dinâmica, não-finita, mas infinita, não de exclusão, mas de inclusão. Isso é a dobra de arché e telos. Deste modo a leitura das obras de arte se dão sempre num diá-logo, onde se dá a dobra de língua e linguagem, de rito e mito, de vivente e vida.
É então que acontece o agir não-causal nem final. É o agir que conduz à eclosão das obras de arte. Todas as obras de arte são experienciações das questões, esses enigmas que nos motivam para viver e existir. Desse modo, o experienciar a existência é fazer desta uma obra de arte. E como se pode fazer da existência uma obra de arte? Experienciando as obras de arte, aprendendo com a arte a ser o que desde sempre já somos. Aprender é sempre tomar posse do que somos e ainda não temos mas existimos para chegar a ter. E como acontece tal experienciação em relação às obras de arte e à arte? Dialogando com as obras de arte. Ler uma obra de arte é sempre na leitura e pela leitura abrir-se para uma escuta e nesta e com esta estabelecer um diálogo. Este não é uma decisão subjetiva. As obras de arte só falam se para com elas nos abrimos e assim deixarmos o diálogo acontecer. Essa é a atitude da leitura: deixar a obra falar. Ler do ponto de vista das obras poéticas é deixar a obra falar. Ler as obras poéticas é deixá-las falar. Elas solicitam de nós esse ato amoroso. Seja amoroso, amigo leitor, escute, dialogue, deixe a obra falar.
A atitude mais importante e decisiva é valorizar a obra pelo que ela é. É deixar a obra falar sem qualquer preconceito prévio. E como é que a obra fala? A obra fala quando começamos a dialogar com ela. Todo diálogo pressupõe um respeito mútuo pela abertura ao que outro tem a dizer. Isso pressupõe algo fundamental na nossa vida: a escuta. É necessário que valorizemos a escuta, sem a qual não nos abrimos para as questões que constituem e envolvem nossa vida. Outro modo de deixar a obra falar é procurarmos nela as questões de que ela trata e que, de algum modo, também são sempre nossas questões. Para essa leitura onde a obra fala, temos de partir de algo muito simples: Toda obra se faz, se cria numa tensão profunda entre duas instâncias decisivas: a – Entre poema (obra) e poesia; b- entre língua e linguagem; entre vivente e Vida. Esse entre, a energia amorosa e dialogante atuando, parte de uma constatação muito evidente: não há separação nessas três instâncias. Elas constituem uma dobra. Nossa existência consiste no desdobrar (historicidade) dessa dobra, desse entre. Esse existir em seu sentido é a energia irradiante que é a Vida se fazendo claridade, advindo à verdade na manifestação do que somos. Vida, existência e luz constituem aquilo que somos e temos de conquistar para chegar a ser. Cada vivente é diferente do outro. Mas não há vivente sem estar em tensão com a Vida (a língua grega tinha duas palavras bem claras para marcar essa diferença: bios era o vivente, zoé era a Vida). Pois bem, o mais importante para o leitor é deixar-se tomar na obra pelas questões que a Vida põe, depõe, dispõe e propõe. É aí que surge o diálogo, desde que haja uma escuta. Quando escutamos as obras, isto é, a poesia, a linguagem, a Vida que pulsa nas obras, então estamos deixando as obras falarem. Esse, sem dúvida nenhuma, deve ser o principal motivo de toda leitura de obras poético/literárias. E lemos não por causa da escola nem por causa delas obras, mas de nós mesmos, pois somos os maiores interessados. Simples. São interesses onde se decide o nosso motivo de existir. Inter-essar-se é deixar-se tomar pelo ser na dobra (inter/entre), pois mais importante do que viver simplesmente é dar à existência um motivo de viver.
Toda leitura pressupõe um contato do leitor com a obra. E é então que uma condição essencial se torna necessária para deixar a obra falar: a escuta. Parece algo muito óbvio e simples, mas não é. Talvez um exemplo pudesse ser dado para mostrar esta dificuldade em deixar a escuta nos tomar para que a obra fale e a escutemos. Quando olhamos, nosso olhar se move continuamente atraído pelas muitas coisas e objetos e até pelas pessoas. É algo absolutamente natural. Porém, devemos notar que tudo aparece porque o vigor irradiante da luz as toma e lhes dá a condição de serem olhadas e vistas. Sem luz não há como nosso olhar atingir essa riqueza mutável e constante da realidade. Embora a luz seja o princípio de eclosão de tudo naquilo que é, ela mesma nos fica em segundo plano. Nunca lhe damos a atenção que deve ter. Pois o mais comum em nossa vida é aquilo que nos envolve dentro do sistema de relações chamar mais nossa atenção. Vemos tudo e tudo só se dá a ver com a presença e vigorar da luz. E, no entanto, de tudo que vemos e não paramos de olhar não vemos a luz que a tudo envolve e lhe a visibilidade e nem vemos os olhos com que vemos. Agora podemos dizer o que é a escuta. Seria o mesmo que no olhar tudo ficasse em segundo plano e só tivéssemos olhos para a luz. Ter olhos só para a luz é o mesmo que nos deixarmos tomar pelo silêncio em meio às múltiplas vozes. Assim como não há coisas sem luz também não há vozes sem silêncio. Praticar a difícil arte da escuta é isso: em tudo que vemos só olhar e ver a luz e, em meio a tantas vozes, só escutar o silêncio, para que em sua plenitude a voz da obra nos fale. Não é fácil e exige nossa concentração e ascese disciplinada. Mas dela uma riqueza incalculável nos advém. Se é o eu que escuta, a fala da obra fala ao que somos. O que somos tomado pela voz da obra opera algo novo, diferente: a iluminação não do eu, mas do sou de cada um. Eu e sou formam uma dobra que não cessa de acontecer. E o que uma tal luz ilumina? Sem dúvida nenhuma, o que nos é próprio. Por isso, a voz das obras poéticas só ilumina e nos envolve com suas questões porque elas se tornam as nossas questões, irrompendo em novas iluminações. Iluminar algo é manifestá-lo na sua verdade. Ler e deixar as obras falar, enfim, é eclodir na verdade do que somos.
Vale a pena escutar para deixar as obras falarem, pois são as vozes das questões que são nossas. As questões são sempre próprias, pois não há questões como idéias ou conceitos gerais. Sobre questões não se pode falar, pois caso se fale sobre, já não são as falas das questões. As questões somos nós mesmos sendo.

12 outubro 2010

Época e arte

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Transformar em linguagem cada vez esse ad-vento permanente do Ser que, em sua permanência espera pelo homem, é a única causa (Sache) do pensamento. É por isso que os pensadores Essenciais dizem sempre o mesmo (das Selbe); isso, no entanto, não significa que digam sempre coisas iguais (das Gleiche). Sem dúvida eles só o dizem a quem se empenha em repensá-los (Heidegger, 1967: 98).

Na maior parte das vezes, a nossa felicidade ou infelicidade não deriva da vida propriamente dita, mas do sentido que lhe damos. Dediquei minha vida a tentar explorar esse sentido (Pamuk, 2007: 66).



A questão da época pode ser examinada do ponto de vista do conceito ou da questão. Porém, não podemos ter a pretensão de reduzir a questão ao ponto de vista nem ao procedimento do exame. Por quê? É que a questão sempre permanecerá uma questão, para além de exames ou pontos de vista. Toda questão nos advém no questionar e “questionar e pôr em questão é a única tarefa do pensamento”, diz repetidamente Heidegger. Pensar é exatamente isso: deixar-se atravessar pela pergunta, deixar acontecer no saber o não-saber.

Sobre a pergunta Heidegger diz o seguinte: A resposta à pergunta é, como cada autêntica resposta, a última saída do último passo de uma longa seqüência de passos questionantes. Cada resposta somente conserva sua força como resposta enquanto ela permanecer enraizada no questionar (§ 159 de A origem da obra de arte). A tentativa de compreender e responder ao que é época só se mantém em seu vigor se continuar enraizada no questionar. Época é uma questão. Ela se configura, porém, no que se desdobra em outras questões. E talvez a mais fundamental é a questão: O que é o tempo? Há, no entanto, uma questão prévia a esta: O que é memória? É que nesta além do tempo comparece a questão da linguagem. Como tempo há a permanente mudança, mas como linguagem há a permanente permanência. Ao que muda e permanece e além disso é linguagem, desde sempre se chamou poiesis. Poiesis é o entrelaçamento de memória e linguagem no verbo-palavra. Mas este é sempre a fala do silêncio. Só então o verbo se torna palavra. O verbo é a insustentável leveza da palavra, sua condensação e densidade. Esse jogar entre do verbo – a fala E o silêncio – é o mistério de todo mito. No mito nos advém o tempo circular, onde mudança e permanência se dão. Daí que todas as manifestações artísticas são míticas, é que elas são ao mesmo tempo também manifestações da memória enquanto palavra. Porém, os mitos são experienciações do sagrado: é o mistério de todo mito, o seu originário. Originário é, pois, o sagrado se dando enquanto tempo, memória e linguagem no verbo-palavra. A esse dar-se do sagrado é que se verbo-denominou: poiesis.

Tentar compreender as épocas é deixar-se atravessar pela pergunta da mudança e da permanência enquanto experienciações da poiesis.
Normalmente a época é vista dentro do conceito linear de tempo. Para melhor entendermos esta posição é necessário, além de saber que há outras possibilidades de entender o tempo, ficar atento à questão do princípio. Ver aqui o que digo sobre princípio nas notas de A origem da obra de arte e aí o que se entende por Ursprung.
Do ponto de vista historiográfico, a época é algo muito pregnante, muito próximo, pois tudo ao nosso redor nos fala de relações, influências, uma certa rede em que nos enleamos e tentamos cumprir nossas funções e achar nosso ser, nossa afirmação, realizar nossos desejos, sempre em estado de procura, de plenificação das possobilidades que já latejam dentro de nós. Vemo-nos imersos não apenas nos acontecimentos históricos, mas também nos ambientes do país, da cidade, do trabalho, dos amigos, da família, para enfim, termos o nosso encontro marcado conosco mesmos. Estamos, queiramos ou não, lançados numa conjuntura que assume diferentes facetas: sociais, econômicas, ambientais, políticas, psicológicas, familiares, afetivas, profissionais. Há todo um contexto em que todas as nossas decisões encontram parâmetros já estabelecidos e contra os quais nos vemos muitas vezes jogados e colhemos desencantos, frustrações, desânimos. Mas também há um jogo que queremos ganhar e um jugo de que queremos nos libertar. E muitas esperanças e procuras vão-se concretizando e o perfil do que somos se vai configurando: com perdas e ganhos, erros e acertos. Viver é muito perigoso porque é o desafio da errância no horizonte do não-limite, sempre dentro e a partir da época.

E então surge dentro de nós uma certa dúvida: de um lado, os estudos e o próprio fluir do tempo, na sucessão de dias e anos, estações e festas, nos diz que temos um encontro marcado com um fim. Às vezes, as doenças ou acidentes trágicos fazem esse jogo de vida e morte mais inapelavelmente presente. E tudo mergulha num grande mistério, onde o sem sentido é um grito pungente e profundo. Mas só nos defrontamos com o sem-sentido, porque já estamos jogados originariamente no sentido, na verdade, isto é, na essência da realidade. E então procuramos, cada um à sua maneira, melhor compreender todas essa conjuntura, toda esse contexto, toda essa linearidade irreversível, mas ao mesmo tempo, sempre repetitiva, circular, certa, inevitável, terrivelmente verdadeira. Não é isso compreender a época ou será que só podemos falar da época ou das épocas que já passaram? Quando procuramos compreender o atual, o contemporâneo, o que em verdade procuramos é o sentido da época. Pois toda época é a vigência do sentido, da verdade do Ser, mesmo quando o esquecemos e nos lançamos com denodo na familiaridade e freqüentação dos entes.

Então se visto de fora tudo isso parece verdadeiro na sua linearidade e causalidade, na força das circunstâncias a tudo dominando e determinando, no poder da história em comandar e traçar nosso destino, mas visto dentro de um horizonte maior e ao mesmo tempo mais profundo e interior surge uma outra experienciação, onde tudo é mais complexo. E a sensação e até certeza de um certo retorno e até repetição é mais verdadeiro. Isto porque as circunstâncias históricas, em sua mutabilidade e surpresa, são sempre desafiantes, criando expectativas e a sensação de que ainda podemos exercer nossa vontade de sujeitos. Experienciamo-nos como seres temporais em processo de eclosão e construção no pleno domínio de nossas decisões. Mas diante do inesperado, dos insucessos, dos acontecimentos inexplicáveis e fortuitos, nossa fé na nossa vontade e no processo histórico começa a sofrer algumas dúvidas. E surge um outro tempo, uma outra história, uma outra vontade, uma outra inexorabilidade, onde o traço dominante é uma estranha sensação do já visto, do já vivido, do já sabido, do desde sempre inevitável. E um outro tempo nos advém com seu poder imemorial. O viço do novo e da novidade dá lugar à vivência da memória que dentro de nós salta viva e atuante. É uma memória que está para além e aquém do que as circunstâncias e contexto parecem mostrar e querer ignorar. É uma memória que não nos vem de fora nem de algo interno psicológico. É um esquecimento que de repente se faz lembrança, onde nos lembramos do que somos em meio ao embate do que sempre quisemos ser e que já estava incrustado em nós como um projeto que sentimos ter realizado ou não. A origem de nosso projeto de ser se torna então o próprio originário para além das influências e determinações do momento, das circunstâncias, do contexto. Sabemos que tudo isso está aí bem presente, mas sabemos também que mais profundo e real do que tudo isso surge a figura do que fomos realizando ou não. E então todas essas circunstâncias surgem como um palco onde nossa vida foi representada, mas a ação de representar e o que representamos é originariamente nosso e somente nosso, para o bem ou para o mal, para o sim ou para o não. E então constatamos constrangidos que não podemos representar para os outros, senão não nos encontramos. E para nós não podemos representar: só ser e conhecermo-nos, isto é, conhecermos para sermos.
E então a época meramente circunstancial e histórica é experienciada numa época radicalmente poética, radicalmente originária, sem modelo, sem comparação, sem precedentes. É a grande aventura de tornar ventura sermos o que já desde sempre éramos, a grande ventura de nos apropriarmos do que nos era próprio. Era para sermos. E então o circunstancial e contextual é como que um conjunto de adjetivos possíveis em que o que era para ser se concretiza. E no lugar de dizermos eu fui isto e aquilo e aquilo outro, vivi isto e aquilo, compartilhei isto e aquilo, só podemos dizer: eu sou eu. O próprio do eu é então o que ele é, onde o eu sou só é eu na medida e no horizonte do sou, porque o sou é, sem dúvida, o próprio. E ser nessa experienciação não tem predicativos. É um ser verbal sem trasitividade e, no entanto, pleno de ação. Mas onde também não há mais diferença entre eu e sou. O tempo não foi linear e circunstancial, mas de amadurecimento do ser que já desde sempre somos, o eu é o que é em seu tempo poético-ontológico. O eu, no que lhe é próprio, se tornou um acontecer poético absolutamente inaugural e irrepetível.
Toda obra, se é inaugural, é poética, é obra de arte. O seu tempo é o acontecer. Não que ela ocorra no tempo poético. Não. Ela é o próprio tempo poético acontecendo. Arte é tempo poético. Todo ser humano é um apelo de realização poética para além de seu aparente tempo linear e cronológico, de seus adjetivos e circunstâncias.

A diferença fundamental da época historiográfica e da época poética pode ser bem compreendida quando fazemos a diferença entre conhecimento e saber. O conhecimento trabalha com os conceitos, que variam com o tempo cronológico. Fundado na lógica, muda diante de novas hipóteses e de novas experiências, daí a aparente idéia de progresso, de um conhecimento novo. Há, na realidade, a sucessão de conceitos que variam também tendo em vista os novos suportes inventados e a conjugação com outros conhecimentos. Tais conhecimentos estão muito próximos das meras informações. As histórias das artes (e qualquer história) é um acúmulo de informações, consignadas nas épocas, mas que em si não dizem nada, além do fato de serem informações. Só aparentemente se tem a idéia falsa de um conhecimento maior da arte ou de qualquer outra “coisa”. Porque, em verdade, nunca há um progresso no conhecimento do humano do ser humano, entendendo aí por humano a essência do que faz cada ser humano ser sempre uma realização do próprio, do que é. Humano é o Ser essencailizando-se. As aparentes mudanças epocais são mudanças circunstanciais que apenas provam em última instância o vigorar do humano, isto é, a Essencialização do Ser. Em tal Essencialização somos sempre o mesmo, o Ser. Daí não se poder pensar a época numa oposição entre o eu e o nós, o social, o histórico e um outro social e outro histórico. A época é sempre a realização de todo sou no é e de todo é no sou. Do sou e do é nada sabemos a não ser que somos, isto é, vigoramos no e partir do Ser.

Em princípio, os conceitos nascem do jogo lógico da proposição e têm a pretensão de serem permanentes e universais. Hoje se sabe que não são uma coisa nem outra, ou seja, sua universalidade se restringe ao modelo e paradigma que os gerou. Por ser lógica e poder, portanto, ser transformada em experimentação numérica, essa dimensão numérica é que lhe dá a aura da universalidade. Não se nega com isso o valor dos conhecimentos como não se nega o valor das informações. Mas um tal valor fica restrito ao seu âmbito de aplicação, que se dá de acordo com o paradigma que a gerou. Hoje, a produção de conhecimentos é de tal ordem que fica muito difícil pretender aprender todos. E o que é necessário aprender, fora do funcional e circunstancial? Época jamais pode ser um conjunto de conhecimentos funcionais? O que toda época exige sempre um depurar seus saberes para que advenha em cada realização do sou, a sabedoria. Deixar-se tomar pela sabedoria é deixar advir o sentido e verdade da Essencialização do Ser, que é sempre o Mesmo e que de maneira alguma é a mesma coisa. Como entes sendo não podemos prescindir dos conhecimentos, porém, estes jamais podem determinar o sentido do sendo naquilo que ele é. O sentido vigorando é uma fonte que irriga uma grande horta de sendos em processos de manifestação, de realização. O crescimento real de todos não é dado pelo acúmulo de conhecimentos entitativos, funcionais. E então qual é o limite? No caso da ciência, novas teorias, novas experiências produzem continuamente novos conhecimentos não só verticalmente, mas também na interdisciplinaridade. E uns vão substituindo os outros, assim como um meio de locomoção vai superando o outro. Dada a mutabilidade tanto das informações como dos conhecimentos, fica para o atual ser humano um sério problema para proceder a um aprendizado.

Já a época poética se funda no saber e por isso este provém do originário. E aqui a questão da universalidade toma um outro sentido muito diferente. Ele é permanente na mudança, daí ser originário, e ao mesmo tempo muda em sua concreticidade. É que o saber é saber de questões, onde para além do aspecto meramente lógico há também o saber que só a sensibilidade pode presentificar e densificar. Mas é uma sensibilidade que não provém de quem sente, mas da fonte que gera o saber: o originário, o poético, o ético, o sentido. E isso é a arte, porque todo o seu saber e sabor é poético. Sendo originário institui e manifesta o tempo enquanto tempo e a linguagem enquanto linguagem. Entenda-se aí o manifestar como o próprio vigor da poiesis. Nesse horizonte, tempo e linguagem são o próprio ser se manifestando enquanto acontecer poético. Este acontecer poético é o originário porque consiste tanto num salto para como num salto de, num saltar sempre inaugural.

Quando no final do ensaio A origem da obra de arte, Heidegger vai retomar o Ursprung, depois de percorrer o círculo, ele o faz estabelecendo a diferença entre conhecimento e saber.

§178 – Sempre que a arte acontece, quer dizer, quando há princípio, a história experimenta um impulso. Então ela principia ou torna a principiar. História não significa aqui a sucessão de não importa o que no tempo, mesmo que sejam importantes fatos. História é o desabrochar de um povo em sua tarefa histórica, enquanto um adentrar no que lhe foi entregue para realizar.
§183 – Uma tal reflexão não pode forçar a arte e seu devir. Porém, este saber reflexivo é a preparação prévia e por isso imprescindível para o devir da arte. Somente tal saber prepara o lugar (a) à obra, o caminho aos criadores, a posição aos que desvelam.

§183 (a) Edição Reclam de 1960: Lugar da de-mora.

O saber da arte como salto inaugural: §184-185

§184 – Em tal saber, que apenas lentamente pode crescer, decide-se se a arte pode ser um originário e, então, precisa ser um salto-prévio, ou se ela deve permanecer apenas um apêndice e, então, somente pode ser acompanhada como uma manifestação cultural, tornada normal.

§185 – Em nosso Entre-ser estamos nós historicamente no originário? Sabemos nós, quer dizer, consideramos nós a essência do originário? Ou em nossa relação com a arte somente nos referimos ainda aos nossos conhecimentos eruditos do passado?



1ª. Parte
Para pensar a época é necessário desdobrar o pensamento metafísico em dois: de um lado os estilos tradicionais de época, de outro a época como acontecer poético.

A leitura comum é linear, causal, finalista: Mito/poesia/pensamento/filosofia > Antigüidade > Idade média > Idade moderna > pós-modernidade. Nesta seqüência são vistos os estilos de época. Heidegger vai pensar isso assim: onto-teo-logia, ou seja, as épocas do ponto de vista do modelo de verdade que as informa e conforma. Então ser, tempo e verdade são um e o mesmo. As épocas metafísicas são vistas a partir do tempo linear, cronológico e historiográfico, onde tudo tem uma origem e uma causa. Mas se pensarmos a vigência do sagrado enquanto mítico-poético, então teremos um tempo não-linear, porém, circular, onde a cada círculo correspondem novas modalidades de experienciação do sagrado, não linearmente, mas dentro de cada experienciação. Por exemplo: o mítico medieval não é o mítico moderno. Não há aí uma linearidade, mas diferentes experienciações do mítico. A visão linear e de origem quer-nos sempre fazer ver tudo com início, desenvolvimento, evolução, em progresso, onde, implicitamente há uma idéia moral de “melhora” a que corresponde o progresso, pressupondo sempre um modelo crítico explícito ou implícito, equacionado na dupla: causa e fim. Como não há melhora real, as pessoas ou sonham com um tempo “ideal” do começo ou com um tempo “utópico” do futuro, só não aceitam o presente. A “medição” e a “mediação” desse progresso se localizam nas “formas”, daí, dentro dos estilos de época, as “vanguardas” etc. É ainda necessário distinguir toda uma época de um simples estilo, embora eles se correlacionem. É o exemplo da Modernidade e dos estilos dentro da Modernidade. É o caso hoje da Pós-modernidade e do pós-modernismo. Mas fique claro que esses são problemas da historiografia e não e jamais da época poética. Tudo se dá nas formas e sempre nas “novas” formas (o estranho é o conceito de novo). O que seja a forma e a sua mudança é o que a caracterização do estilo quer marcar e esclarecer, não se notando que se experimenta um círculo vicioso: é uma caracterização formal em que se parte das formas, se encontram características formais e se chegam às formas. O peso das formas é tão determinante que tudo se lhe submete. A forma é fundada na idéia de causa e fim.
Mas se sairmos:
a) do tempo causal e linear para o circular e mito-poético;
b) das matérias e formas para Terra e Mundo;
c) da origem para o originário;
d) do ser-humano como sujeito para o ser-poético como abismo-inaugural, então eros e thanatos, como fonte originária de diferentes experienciações se dão em diferentes épocas, onde não há nenhuma linearidade, nem progresso, nem comparação de formas. Não é a forma que cria conteúdo nem o conteúdo que cria forma, mas a obra enquanto verdade poética de Terra e Mundo. Cada época, num círculo poético de manifestação e ocultamento, de desvelamento e velamento, se dá em obras e elas, enquanto verdade do ser (eros e thanatos), produzem épocas. Já a verdade enquanto adequação (conceito e proposição) produz as épocas formais, mais conhecidas como estilos de época. No círculo-poético se fazem necessários não só os criadores, mas também os desveladores. Nesse sentido, tanto as obras como os desveladores devem ser sempre epocais, isto é, devem pro-duzir épocas ou mundos, ou melhor, experienciações do real/ser enquanto mundo, na medida em que mundo significa o sentido e verdade do ser se manifestando e velando. Esse “e” (entre) desfaz qualquer verdade predicativa, propositiva, e ultrapassa o princípio da contradição, porque o real é desvelamento e velamento ao mesmo tempo e sem complementaridade. Estas experienciações epocais não se fazem só a partir das obras mais recentes, mas a partir das obras como tais, independentemente da sua datação cronológica ou de aparecimento. Muito menos de autor.

É que as épocas não se dão numa linearidade a partir de uma origem causal e finalista. Não. Elas pressupõem as obras, seja enquanto criadores, seja enquanto desveladores, como obras originárias, fundando épocas. As obras têm um tal poder que podem até “regredir” cronologicamente. Isso é provado num ensaio famoso de Borges: “Os precursores de Kafka”, onde a obra deste autor possibilita a “releitura” das obras de outras autores que o precederam, na linha de manifestação de mundo que sua obra mais realiza. No originário, acontece sempre a doação e a retração. Isso fica claro no fragmento 123 de Heráclito: Physis kryptestai philei. Este fragmento pensa radicalmente o originário. É no seu apelo de pensamento que podemos compreender o que são as épocas poéticas. A época é poética quando há um acontecer poético. Mas esse fragmento diz o real ou o sagrado enquanto experienciação de pensamento no qual há uma suspensão pela qual o que se retrai se dá no que fica suspenso: a época. Suspender diz o fixar, enquanto pendurar no ar, isto é, no vazio, no que se retrai para que a época apareça. A palavra grega epoché significa exatamente isso: suspensão. Por isso toda época indica sempre uma posição, não em relação a outra mas no vigorar do logos enquanto pro-por, de-por, reunir, dizer, mundificar. As épocas advêm nas obras dos poetas e pensadores, porém, quem as funda não são nem os próprios poetas nem as formas. Elas irrompem a partir do próprio vigorar manifestativo do Ser, na medida em que o Ser se destina epocalmente. Este irromper manifestativo é sempre não-causal, pois justamente constituem experienciações inaugurais para as quais não há padrão, paradigma.

Vista a época na Essencialização do Ser, há sempre um Essencializar-se da Verdade. Porém, esta é sempre perpassada pela errância, a insistência do agir humano no âmbito dos entes e de todas as relações que lhe dizem respeito. Temos no caso sempre o agir como o produzir efeitos e nesse envolvimento, diante do alcance a ação pela qual se dá o esquecimento do Ser, o ser humano em suas ações funcionais se lança e é tomado pelo frenesi do consertar. Este consiste na estranha convicção no poder do ser humano com sua vontade em determinar o curso, percurso e realização da real dentro das finalidades propostas relativas ao conjunto de convivências e satisfações das relações humanas e das suas funções estruturais. O consertar sempre acontece numa vontade e poder interventivos no conjunto das relações e funções histórico-humanas. E isso acontece no e a partir de um saber operativo, transformador, baseado no conhecimento estabelecido pelo poder técnico-científico da razão. O ser humano se lança no frenesi da produção de conhecimentos e transformações operativas que atingem sempre o externo, ocasionando um confronto de valores e satisfações nos quais todos se vêem envolvidos, mas jamais satisfeitos, porque tudo vive sob o império do novo, dos novos conhecimentos, das novas produções, das novas relações, sem se perguntar em nenhum momento pelo sentido disso tudo. Todo este agir operativo toma com base e medida a própria razão como medida e é ela que se torna o fundamento da verdade, uma verdade que opera e opera muito bem no âmbito dos entes, não se levando em consideração o esquecimento do ser. e tudo está relacionado à questão fundamental e nunca superada da essência. O que esta traz como questão? É que na essencia como questão o que está em questão é a medida. Esta é a essência da verdade na própria medida em que a essencia da verdade é a verdade da essencia. Porém, a verdade da essencia jamais advém do frenesi dos conhecimentos e produções efetivas. Ela tem e estranho poder se dar tanto mais quanto o ser humano se deixa tomar pelo ser e se entrega a seu agir. É o estranho agir do concertar.

Porém, o fragmento diz a realidade ou o sagrado enquanto expecienciação de pensamento. Já enquanto experienciação mítico-poética teríamos eros e thanatos.

Nesse sentido, o estudo dos “estilos de época” assinala uma linearidade historiográfica fundada nas linguagens, no sentido de técnicas de produção, e suas formas, a partir de quatro linhas:

1ª. Antigos e modernos;
2ª. Tradição e novo;
3ª. Passado e futuro;
4ª. Reacionários e progressistas.

Esta tomada de posição é fundada na razão, na moral, na ideologia, no progresso (ciência), sob a égide do sujeito racional como poder instituidor da realidade ou objetividade a partir de utopias racionalistas, idealistas. Tais paradigmas de leitura e raciocínio fundam uma progressiva dessacralização, ou seja, uma secularização técnico-científico-política. Os sinais visíveis são: a) a globalização; b) a funcionalização de tudo; c) a perda do humano do homem; d) a submissão do poder político ao poder técnico-científico; e) a história determinada pelo investimento maciço em pesquisas para novas descobertas científicas.

A hegemonia da secularização acaba por predominar não só nos seus produtos, mas também se faz presente nas produções resultantes das diferentes experienciações da realidade: de pensamento, artísticas, religiosas, míticas, místicas, numa palavra: poéticas. Dada a centralização na época dominada pela subjetividade tais experienciações múltiplas da realidade tendem a ser vistas como diferentes visões de mundo. Acontece que então é determinado pela visão ou teoria enquanto suporte racional, variado, mas de qualquer modo racional ou disciplinar. Porém, o fundo das obras é justamente esse contraste de visões de mundo. Não se percebe que tal contraste é para melhor fazer aparecer a realidade poética, o sagrado, que se vela. Até porque a época se dá nesse contraste. Caso contrário não haveria época. Fica evidente que cada vez mais prevalecem as visões de mundo e cada vez mais se ausenta o sagrado. Têm tantas visões que o que se dá a ver velando-se não é visto. As visões de mundo lançam tudo no ordinário do classificável e do conceituável. Há um enorme desconforto se algo foge às classificações e parte-se para uma denominação redutora e contrastante com o racional: o que não é racional é irracional. Tudo se vê e torna acessível na rede. O que não se vê e foge ao conhecimento são os buracos da rede, os seus vazios, aquilo e somente aquilo que permite que apareça a rede e os conhecimentos que ela veicula. Tudo se torna complexo e labiríntico. O simples em sua presença e transparência e pregnância se torna inacessível. E perdida esta não há mais época, porque tudo parece acessível na e pela rede.

Daí que as leituras predominantes caminham para uma uniformidade em relação às diferenças da realidade em seu vigorar e só vêm um mundo virtual, fora do qual nada mais existe. A realidade se tornou uma grande teia ficcional, onde o ser humano colhe e é colhido pelas fantasias irreais como se fossem a realidade em seu vigorar. Perdidos nas agitações do mundo dos entes produzíveis e consumíveis vivem o impróprio como se fosse o próprio enquanto estética ou funcionalidade. E ao humano afetivo sucede a realização do consumo estético, renovado pelas inovações e novidades infindáveis, onde o ser humano se vê enleado pelo valor quantitativo e onde não tem mais tempo para o próprio. Deslocado na atração da quantidade das novidades nem percebe o duplo viver voltado ou para fora ou para dentro. Um e outro nunca se encontram. A realidade esquizofrênica procura se anestesiar em novas e contínuas descobertas e remédios que cobrem todo o âmbito da vida. Morte e destino não fazem parte dessa realidade. Como vigoram sem serem visíveis, são negados pelas procuras e realizações visíveis. Não há mais época, não há mais poético, não há mais sagrado. Estes são temidos e evitados, pois eles não são funcionais. Porém, nesse sonho-pesadelo da realidade virtual o sensível, o afetivo, a disponibilidade, o diálogo, o tempo de escuta e espera e realização é algo que não mais faz parte do viver e advém a solidão onde tudo perde o valor e o sentido. O quantitativo e numérico substitui progressivamente o qualitativo e gratuito.

A predominância das leituras formais, utilitárias e ideológicas se deve à conjugação dos três conceitos de “on”, em que se manifestou o pensamento filosófico-metafísico, conforme explica Heidegger no ensaio: A origem da obra de arte. O tornarem-se exclusivos e paradigmáticos é que determinou uma progressiva secularização, devido ao fato de que, das três, a que se baseia nas quatro causas é que absorveu as outras duas e se tornou hegemônica e paradigmática para todo “ente”, ou seja, para o “on”. Mas visto mais profundamente, é a primeira que subjaz a todas e as determina. É importante ficar claro que nenhuma nem a junção das três dá conta de dizer ou explicar o que é o “on”. Por quê? Porque o reduzem a uma proposição de sujeito e predicado, de fundamento e fundado, de causa e finalidade. Mas o “on”, em si, é verbal e irredutível a qualquer conhecimento proposicional e predicativo. No princípio era o verbo e não a proposição, pois o que é para ser são as palavras. Logos é verbo, palavra e não lógica da proposição. Os conceitos surgem da proposição, jamais do verbo ou da palavra. Uma palavra, um verbo nos basta e tudo o mais é secundário. A ação do próprio é sempre verbal, é ser, e jamais proposicional. O pensador Agostinho de Hipona já disse: “Ama. E faz o que quiseres”. Como todo “sendo” é sempre verbal, é sempre “arché”. Ele continua uma “questão”. E onde o “on” como questão se dá é na obra de arte. Por isso, os conceitos de coisa não dão conta do que seja a obra de arte (que sempre permanece um mistério, não fosse ela uma manifestação do mistério que é eros e thanatos). Mistério diz aqui a finitude radical do real, do humano, do poético, porque em tal finitude acontece sempre o insolúvel e indiscernível acontecer de teoria E prática, não-ação E ação, vida E morte, ou seja, finito E não-finito. Isso é época.

O conceito de coisa das quatro causas já trazia em si a secularização técno-científica, porque ela se originou da explicação do que é o utensílio e o instrumento. Ela tem implícito o reduzir o “on” a funções, a pensar o “on” nas suas possibilidades de funções. Nessa perspectiva, tudo se vê na funcionalidade e causalidade. O real originário não é causal nem funcional. Ele é sem porquê e sem para quê.

Para nos afastarmos de uma tal leitura, compreensão e interpretação, e deixarmos as diferentes experienciações da realidade aparecerem em sua inaugurabilidade, é necessário deixar as obras das experienciações inaugurais da realidade aparecerem em seu vigor originário. Para isso é necessário:

1º. No lugar de matéria e forma falar de Terra e Mundo;
2º. No lugar de coisa, objeto ou texto falar em obra e verdade;
3º. No lugar da linguagem instrumental enquanto significante e significado, falar em linguagem poético-manifestativa de Terra e Mundo, onde o significante é, em si, a terra e o significado é, em si, o mundo e não pode ser reduzida a realidade a um signo nem a um símbolo, porque ambos só são compreensíveis como representações de. Porém, terra e mundo não se dão numa dicotomia conceitual, mas numa disputa;
4º. No lugar de origem, influências e autor criador, falar em originário, memória e physis/kruptestai ou logos originário;
5º. No lugar de obras de ficção e processos retórico-narrativos, fundados nos conceitos, falar em obras-questões com personagens-questões, imagens-questões, eventos-questões, narrações-inaugurais;
6º. No lugar de épocas estilístico-formais, falar em épocas enquanto diferentes experienciações poéticas de Terra e Mundo.

É claro que não adianta nada trocar umas palavras por outras, se não forem acompanhadas por um empenho de pensamento, de transformação interna E externa, de se deixar atravessar pelas questões. Um tal atravessar não é uma mera aventura racional, é um diálogo de pensamento onde se diz ética, poética e originariamente o sentido do que somos.

A aposição dos adjetivos: mítico, primitivo, antigo, medieval, barroco etc. devem ser usados com a ressalva de que se trata de um processo de manifestação do que é no como é, da essência (obra) nos acidentes (antigo, medieval etc. etc.), onde o acidente não pode determinar a essência do operar originário da obra, mas onde também o conceito de essência não pode anular o operar originário da obra, de tal maneira que as denominações epocais das obras não se podem sobrepor às próprias obras, enquanto época poética, fundada no tempo inaugural. Neste horizonte, novos desvelamentos não podem ser jamais determinados e enquadrados paradigmaticamente nos atributos epocais das obras, entendidas estilístico-formalmente. Isso quer dizer apenas que as obras enquanto época-poética podem sempre produzir, no pro-vocar os desvelantes, novas dimensões de terra e mundo, de tal maneira que isso leve o ser humano a novas experienciações do que é, ou seja, de homem humano. No dizer de G. Rosa, seriam as travessias sempre inaugurais. Tudo isso pressupõe a ultrapassagem da verdade como adequação pela verdade manifestativa, da proposição conceitual e sintaxe gramatical, pelo verbo e pela sintaxe poética, da metodologia pelo método.
O falar de ou o falar em pressupõe que se faça uma escuta da linguagem que fala nas obras. O poder de reunir que é inerente à fala da linguagem é sempre originário, porque se dá enquanto memória. Por outro lado, esse dar-se implica um agir fundado no tempo e como tempo. É a poiesis. Enquanto linguagem e memória, poiesis e tempo, é que as obras são sempre e inauguralmente epocais.

Nesse horizonte, fundando mundo deixam a terra se manifestar em sua verdade. A terra se dando em mundo enquanto verdade é a dimensão ética de toda obra de arte, porque nela o ser se dá em seu sentido e verdade.

Na questão da consideração das obras de arte em relação às épocas, o parágrafo 67 do ensaio de Heidegger: A origem da obra de arte, é fundamental. Diz:

§67 – Alguma vez a obra será acessível em si? Para que isto pudesse ser bem sucedido seria necessário retirar a obra de todas as referências ao que ela não é, para a deixar repousar em si, só e em si mesma. Mas para isso já se encaminha a intenção primordial do artista. A obra deve, através dele, ser liberta para a seu puro auto-estar-em-si. Justamente na grande arte, e aqui só se fala dela, o artista posta-se diante da obra como algo indiferente, quase como uma passagem que se auto-aniquila diante do surgir da obra, no ato de criar.

Heidegger insiste no “puro estar-em-si” para deixar a obra operar sem as visões que dela se têm fundado na instância dos estilos de época e suas circunstâncias ou “referências” historiográficas, como já explicamos acima. Mas também tem em vista o se afastar da concepção da obra de arte através do terceiro conceito de coisa, ou seja, daquele que concebe e interpreta o utensílio através das causas. É que o conceito de causa toma então em relação à obra três significados:

1º. A obra como tal é devida sobretudo às causas material e formal;
2º. Mas como há também as causas eficiente e final, a obra vai ser devida à ação do artista, que é movido pelas circunstâncias históricas, e nem poderia ser de outra maneira, pois não podemos viver fora de espaço e tempo, ou seja, sempre em determinada conjuntura. Tais circunstâncias assumem diferentes aspectos: sócio-econômicos, psíquicos, religiosos, seculares, materiais, ideológicos etc. Interpretado o próprio tempo como causa, surge a historiografia em conjunção com as formas, onde assumir uma forma é ser formado pelas forças históricas. Movemo-nos aqui claramente num círculo vicioso. O estudo da sucessão das formas e também das influências das formas precedentes no criar dos novos artistas se move claramente na causalidade e na interpretação do tempo histórico-causal; Não se leva em consideração o acontecer poético como um destinar-se de Ser. E este vigorando é que faz surgirem as épocas e as forças históricas e não o inverso.
3º. Implicitamente, como base de tudo isto, está o primeiro conceito de coisa, enquanto fundamenta, como essência causal, o tempo e o ser humano. Essencialmente o ser humano e o seu fazer e criar é o resultado de causas históricas, sendo a essência da história algo causal. Esta causa essencial difere de acordo com a época e com a teoria (ser/idéia, Deus, subjetividade/técnico/ciência). De qualquer maneira tanto o ser humano como o que ele cria, a arte, depende dessa causa. O próprio artista como causa eficiente vai depender dessa causa (ou causas, porque fica na dependência do que se entende por causa fundamental). O sentido mais profundo da representação vai estar relacionado a essa causa como fundamento. Daí que todas as teorias causalistas são sempre representacionais. Sem fundamento e sem fundado não há representação. E toda causa é linear, progressiva. Mas não é uma linearidade cega, mas dialética, surgida das contradições epocais e suas forças dominantes, gerando na e pela negatividade o par, o duplo que, metafísica e dialeticamente, a tudo explica: o dominante e o dominado, o senhor e o escravo, o colonizador e o colonizado, a cultura do dominante e a do dominado, o discurso elitista e seus valores e o discurso do pobre e seus valores, que devem ser negados e substituídos. Não se nota que nessa dialética se gera uma contradição: o dominado pode-se tornar dominante e a uniformidade também nada resolve, pois pela própria essência da negatividade e do polemos em que se dá terra e mundo, vida e morte, eros e thanatos, dominante e dominado, uma mudança de posição ainda não supera a dicotomia dialética, onde a síntese não passa de uma ilusão que nada mais tem de real, pois seria negar a própria luta pela integração dos excluídos nos incluídos. Mas qual o critério que determina a inclusão? É ético ou quantitativo? Em que nível se dá a inclusão? Que poder rege a inclusão? Se o poder é político-ideológico ele será sempre funcional e como funcional prevê o dominante e o dominado, o que manda e o que obedece. Haverá apenas uma troca de poder e de funções. A ditadura aristocrática ou burguesa é trocada pela ditadura do proletariado ou do partido único. Mas há aí uma catetgoria e critério intermediário que não é redutível nem à dialética nem ao ideológico: a ciência, o técnico, o progresso. Aí advém o choque de dois poderes: o político-ideológico e o técnico-funcional. Em última instância quem sempre se impõe é o poder técnico-funcional. Um terceiro poder foge a essa dicotomia: o poder judiciário. Mas de onde vem esse poder? Quem ou o que o legitima? Claro que ele em parte vai estar ligado ao poder político-ideológico, mas em última instância, na atual conjuntura, provém do poder do voto, que é majoritário e plebiscitário. Aí se funda uma pretensa e contraditória preservação das diferenças. É na demo-cracia que se anulam por princípio as diferenças e até as minorias. O jogo do poder em todas as instâncias se torna um jogo de poder de grupos e interesses guiados pelos interesses que se sobrepõem ao direito que os deveria legitimar. Como se pode ver, o poder baseado na quantidade não gera de maneira alguma o ético e justo e humano. Há sempre uns grupos que se sobrepõem aos outros e toda a aparente justiça da dialética é em geral um jogo ainda mais injusto de tomada de poder, sempre em detrimento de outros.
É nesse horizonte que se impõe um outro poder: o poético. E é neste que florescem as épocas.

Heidegger ao postular o afastamento das referências, de qualquer referência, está se afastando, no fundo, do princípio essencialista-causal e não do ser como tempo de historicidade e muito menos do ético e justo, ou seja, do humano fundado no Ser. A obra é um puro auto-estar-em-si. Este não pode ser concebido como uma “idéia” ou “essência”. Interpretá-lo assim ainda é se mover num horizonte causal-essencialista, num tempo linear e causal, pressupondo esta um fundamento, que variou ao longo do percurso do Ocidente. E o que ele propõe no lugar? Em relação ao primeiro conceito de coisa, ele propõe, no lugar da essência, o “Ursprung” (originário). Aqui há três aproximações. Logo no início do ensaio ele diz: “Ursprung ist die Herkunft seines Wesens” (O originário é a proveniência de sua essência). Isso é o que é. O como é é o cerne do seu ensaio, o que ele propõe e que só ao longo do ensaio se dará. Por isso, nos últimos parágrafos ele retoma, tendo em vista o que desenvolveu, o que agora é o “Ursprung” (originário). Mas ainda se move de alguma maneira no primeiro conceito de coisa, quando trata do que é no como é. Nesta interpretação do “on” surge a questão da identidade. Para ir além da identidade causal-essencialista, entende o Ursprung não como origem causal-essencialista, mas como originário. O que seja originário não sendo causa-essencial isso ele trata propriamente no ensaio, mas remete em notas para o seu outro ensaio: “Identidade e diferença”. Aí vai aparecer também a palavra Ursprung (cf. o original de Identidade e diferença), mas não como causa fundamento substancial, mas como Abgrund, cuja melhor tradução é salto mortal, o que é fonte, o que se dando se retrai, ou seja, o que no fragmento 123 Heráclito nos diz: Physis kryptestai philei (A physis ama retrair-se). Neste horizonte, a physis é já desde sempre obra de arte, ou seja, a própria physis no que lhe é próprio é a própria arte, mas aí não podemos entender a physis como a soma dos entes (ta onta), mas a totalidade concreta dos entes, que, como totalidade como o que não cessa de vigorar, ama velar-se e, nisso, consiste a sua verdade, ou seja, a sua aletheia. Na aletheia nos advém a própria physis como obra de arte já fundamentalmente como eros e thanatos, daí o sentido radical de mythos e mystério. À aletheia está interno o rio Lethes. É esse rio que é eros e ao mesmo tempo Lethes. Por isso, a travessia do sertão é navegar as difíceis veredas – riachinhos do grande rio que é o ser-tão – do sertão, ao mesmo tempo que só se atravessam as veredas do sertão quando nos deixamos atravessar pelo próprio ser-tão. Esse atravessar e ser atravessado é o que Heidegger vai chamar mundo, que acontece na obra de arte, porque a physis acontece como mundo, mas é um acontecer movido por e que se move em eros. Por isso ama o quê? Lethes, velar-se, thanatos. O ser-tão aparece então como obra de arte em que se dá a disputa de ser-tão e veredas. As veredas como veredas tortas e mortas são veredas de mundo e do mundo. Por isso o mundo do sertão é originário e não e jamais primitivo. É nesse sentido que Guimarães Rosa, na entrevista a Günter Lorenz, diz que ele é sertanejo, porque foi, dos críticos, o de que mais gostou, e se aproximou das grandes e fundamentais questões da vida e da morte que Rosa propõe ficciopoeticamente.

Quando Heidegger, em A coisa diz que o mundo mundifica, ele só pode mundificar a partir da obra de arte. E aí a coisa como utensílio e confiabilidade encontram o seu lugar, isto é, no mundo que a obra de arte manifesta. A confiabilidade provém do mundo que a obra de arte manifesta. Como o utensílio encontra o seu sentido na obra de arte, a confiabilidade provém da obra de arte na medida em que ela é a coisa enquanto o mundo operando, ou seja, mundificando. No mundificar do mundo, a coisa enquanto utensílio consiste na confiabilidade em que o mundo se mundifica. No mundificar é que acontece mundo. E acontece fazendo eclodir em seu sentido tudo que advém como mundo. Por isso, jamais tanto o mundo quanto a obra de arte não resultam das referências ou circunstâncias historiográficas ou epocais em sentido cronológico. Para compreender o que é época poética é necessário deixar a coisa enquanto eclosão da obra de arte mundificar. A época jamais é a reunião das funções das obras de arte segundo o estilo e o conteúdo.

A coisa enquanto confiabilidade de mundo se mundificando nunca é reduzida a uma mera função, porque aí o essencial é o mundo. Quando o mundo se globaliza e deixa de ser mundo e terra, então a coisa tornou-se objeto disponível para o sistema. Num tal sistema é impossível falar ainda de mundo e terra. O mundo ao se globalizar deixou de ser mundo. Há aí então uma dicotomia entre ser e função, o que não ocorre com a coisa enquanto utensílio com sua confiabilidade. No sistema não há confiabilidade, porque não há mundo, há funcionalidade do sistema enquanto disposição. Tudo está em disposição e à disposição do sistema. A disponibilidade é a coisa tornada função do sistema, sem a confiabilidade de mundo mundificando.

A obra de arte manifesta a terra enquanto mundo. O mundo mundificando é a coisa se dando no jogo da ciranda de mortais e imortais, de céu e terra. Quando tal acontece, temos a realidade enquanto época poética.

2ª. Parte

Acima já indiquei alguns desdobramentos dos três conceitos de coisa, que marcam e fundamentam a trajetória ocidental. No ensaio de Heidegger, o tema central é a arte, mas como ele diz no parágrafo 206, o tema central é a “referência do ser e da essência humana”, não apenas neste ensaio, mas em toda a sua obra desde Ser e tempo. Em poucas palavras, a questão se apresenta da seguinte maneira: partindo da questão em torno do “on”, os gregos formularam quatro respostas, mas nenhuma delas dá conta do mistério que é o “on”. O que eles em última instância procuram é o que desde sempre se denominou essência. Esta é a questão. A questão da época está ligado ao modo como se encaminha a compreensão do que seja a essência. Essa será a questão constante do Ocidente, em todas as obras de seus grandes pensadores, porque cada pensador é epocal, isto é, sua obra é sempre, como obra de pensamento, a inauguração de uma época. O ser se destina nas obras dos grandes pensadores. Pensar o Ser é se deixar tomar pelo seu Destino. Toda época é um desdobramento da dobra originária da referência da Essencialização do ser humano e do Ser. Não é à toa que por detrás das grandes mudanças há sempre obras poéticas inaugurais e obras filosóficas de pensamento. Algumas se conjugam para configurarem uma grande época, como a modernidade, que gira em torno de Descartes, Leibniz, Kant, Fichte e Hegel. Nesta questão temática de Heidegger, o núcleo de sua reflexão, numa primeira instância, é o primeiro conceito de coisa, porque tematiza a questão do ser e da essência humana. Mas não há separação entre este conceito e o terceiro. Propondo um ir além, entendido como ultrapassagem da metafísica, Heidegger nos quer lançar na busca do sentido do ser enquanto a sua verdade. Parte do primeiro conceito de coisa, mas dá um passo atrás para dar um passo adiante. O primeiro conceito de coisa nos propõe o ser humano, em duas instâncias: 1ª. O “on” seria constituído de um cerne: a essência, e de qualidades: os predicativos. Então o “on” deve necessariamente ser aprendido e compreendido na proposição, onde se dá a reunião como logos do que é no como é, ou seja, de sujeito e predicado. A proposição é sempre discurso do logos e sendo discurso deste este passa a ser o fundamento do próprio “on”, porque no logos enquanto reunião se dá a verdade do “on”. Mas é uma verdade de dupla adequação ou homoiosis: 1ª. Adequação do que é ao como é; 2ª. Adequação do “on” ao logos; 3ª. Adequação da estrutura do “on” à estrutura discursiva e gramatical do “on”, enquanto proposição. O “on” se vê enquadrado numa redução ao que é e ao como é, ao enunciado e enunciação enquanto logos do “on”, mas onde o “on” passa a ser compreendido a partir do logos enquanto proposição, pois esta, na sua estrutura de sujeito e predicado corresponde à estrutura do “on” como essência/sujeito e predicativos/acidentes. Neste conceito de coisa se funda a verdade que irá estar sempre presente nos conceitos de verdade, na trajetória do Ocidente. Esta verdade funda a representação. Porém, uma tal representação poderá se basear na causa essencial (mistura do primeiro conceito com o terceiro), e será verdadeira, ou poderá basear-se apenas na aparência, e será falsa. É que pertence ao “on” a dissimulação e a denegação. Pode mostrar ser o que não é. Por outro lado, o logos enquanto razão pode querer se impor ao “on” na medida em que se desloca do “on” para a razão (logos) o fundamento, o sujeito (hypokeimenon). É isto o que caracteriza a Modernidade.

Na crítica a esse conceito de “on”, Heidegger vai questionar a redução do ser à essência geral do ser dos entes, onde tal essência não fala mais do ser, mas do ser enquanto essência abstrata geral. O ser é entendido como verdade e a verdade é entendida como adequação, representação. Há, então, uma perda nesse entendimento da verdade com a consequente perda do sentido do ser. A metafísica se inicia com o esquecimento do Ser. E o que Heidegger propõe? A volta ao “on” para além e aquém dos três conceitos. Ele então passa a ser “o-a-se-pensar” na constância do seu pensamento. Trata-se numa primeira instância do abandono do conceito de essência e acidentes. Como essa essência foi entendida como sujeito, trata-se de se centrar na questão do sujeito, não como conceito e como uma discussão em torno de conceitos, mas porque ao questionar o “on” como essência e como sujeito, o que está em jogo é a própria “essência” do ser humano, porque não pode haver ser humano senão se fundando no ser, senão o predicativo “humano” determina o ser do humano, ou seja, estamos de volta ao primeiro conceito de “on”. Só que agora invertido: os predicativos é que determinam a essência do ser. No sintagma “ser humano”, é o sujeito “humano” que determina o “ser”, ou seja, os predicativos acabam por determinar o núcleo, a essência. Também não adianta fazer uma inversão. Essa inversão são as duas grandes faces da trajetória ocidental: na Idade Média, a essência precede a existência (predicativos); na Idade Moderna, a existência (sujeito) precede a essência (ser). É aí que ele dá um passo atrás para dar um passo adiante. Como?

Trata-se sempre da “referência do ser e da essência humana”. Antes de partir do “on” é necessário voltar ao surgimento dessa questão em torno do “on”. Trata-se, pois, de voltar aos pensadores originários. E é na esteira de suas obras sobre eles que vai aparecer, em primeiro lugar, o questionamento da physis. O que é o ser humano é a pergunta não pela sua essência, mas pela physis. A physis é ambígua. Ela é ao mesmo tempo Terra e Mundo. Por isso, a questão do “on”, uma vez que desde os pensadores originários se pensa a physis como “ta onta”, tem o seu caminho de acesso, ou melhor, ele se dá no caminho que a obra de arte inaugura. A obra de arte é a disputa de Terra e Mundo. Essa é a essência da physis. Como assim? É o que nos diz o fragmento 123 de Heráclito, como já vimos a propósito da época. Mas o retomamos aqui para pensar a referência de época e essência do ser em sua referência ao ser humano. O núcleo desse fragmento nos coloca inauguralmente diante da ambigüidade da physis. Ela como “on” é e não-é. Ou seja, a physis, o que sempre se dá como desvelamento, o que é desvelamento é, ao mesmo tempo e sem dicotomia, velamento, pois ela ama velar-se. O “on” é desvelamento e velamento. Originalmente é isso o que significa a palavra epoché. Portanto, não vai mais se pensar o ser humano a partir desse sintagma no que é e no como é, mas o pensar o ser humano implica algo mais profundo para além desse ser e como ser: implica que o ser e o como ser só se apreendem em sua essência se se pensar o que é sempre digno de ser posto em questão: que o que é no como é é mais fundamentalmente velamento. E nisso consiste a sua verdade. Enquanto desvelamento e ao mesmo tempo velamento, num jogo amoroso, a verdade da physis é aletheia. Mas “isso” é o “on” como obra de arte. Porém, a obra de arte não se dá em “qualquer on” (esta distinção ainda parte da separação entre o “on” dentro do primeiro conceito de coisa e o ser humano como sujeito, lido dentro do mesmo conceito, pelo qual, a distinção do ser humano como “on” frente aos outros “on” não parte propriamente do “on”, mas da estrutura do “on” como proposição, ou seja, da reunião do que é no como é, ou seja, da essência e da aparência). Mas esta estrutura é a estrutura da proposição. E esta é o produto do logos. Ora, só o ser humano “tem” logos, ou como se diz metafisicamente: o ser humano é o “animal rationale”, onde a razão é a tradução do logos. O ser humano é o ente que se distingue dos outros porque tem a faculdade da linguagem. Por isso ainda se insiste em ver e sempre ver a obra de arte no horizonte do logos, da linguagem, o que é insuficiente, mesmo entendendo o logos como a linguagem poético-manifestativa. Disto Heidegger se deu bem conta e, por isso, diz no parágrafo 207:

O que aqui vigora como digno de ser posto em questão se concentra, a partir deste momento, no lugar próprio da discussão, para lá, onde a essência da linguagem e da poiesis se tocam levemente, tudo isto, uma vez mais, na perspectiva de co-pertença de ser e narrar inaugural.

Fica bem claro que na questão do “on” enquanto obra de arte, a questão se coloca “lá, onde a essência da linguagem e da poiesis se tocam levemente...”. E no parágrafo 169 é ainda mais enfático:

A poiesis é aqui pensada em um sentido tão amplo e, ao mesmo tempo, numa unidade essencial tão íntima com a linguagem e a palavra, que precisa ser deixada em aberto a questão se a arte, em verdade, em todos os seus modos, - da arquitetura até a poesia - esgota a essência da poiesis.

Por que é importante colocar a questão, como o faz Heidegger, da linguagem (Sprache) ao lado da questão da poiesis (Dichtung) ? Por que se trata da questão, que percorre todo o percurso ocidental, a “referência do ser e da essência humana”. Senão caímos facilmente no entendimento do ser e do ser humano, na questão do “on”, a partir do primeiro conceito de coisa, ou seja, a essência do “on” é a essência da linguagem, entendida depois como razão. É a tradicional definição do ser humano como “animal racional”. Trata-se de superar essa definição essencialista de sujeito, de razão como linguagem e de linguagem como razão.

Como já dissemos acima, para além do entendimento do ser humano como “animal racional”, há a questão colocada pelo pensamento desde os pensadores originários, em que o “on”, isto é, a physis traz em si já o desvelamento e o velamento. Como também já dissemos acima, Heidegger vai entender essa physis dos pensadores como a disputa de Terra e Mundo. Mas do ponto de vista da própria arte, das obras de arte, Terra e Mundo perpassadas pelo philei nos jogam na poiesis (Dichtung). E esta enquanto philei se dá como Eros e Thanatos, onde o philei enquanto Eros já é também essencialmente Thanatos. Então podemos pensar que a questão da “referência do ser e da essência humana” nos advém no entre Eros e Thanatos. Por isso, o ser humano vai ser entendido em Heidegger como Da-sein, ou seja, o Entre-ser. Mas este Entre-ser deve ser visto e compreendido em duas outras instâncias, tratadas em Ser e tempo: como Mit-sein e In-der-Welt-sein. A referência de Da-sein e Mit-sein se dá na tensão de logos e poiesis. Heidegger neste ensaio só anota a questão, conforme foi dito acima. Trata especificamente disso no ensaio: Hölderlin e a essência da poesia, quando cita a palavra de Hölderlin: “Seit ein Gespräche wir sind” (Desde que nós somos um diálogo).

Se a questão da “referência do ser e da essência humana” está no âmbito do primeiro conceito de coisa e essa questão traz para cena a discussão da questão de linguagem e poiesis, “ a essência da linguagem e da poiesis se tocam levemente”, esta não é abordada a partir do primeiro conceito de coisa, mas do terceiro. Como?

A questão inicial dos gregos diz “respeito” ao “on”, mas tendo que considerar a obra no seu aspecto “coisal”, Heidegger examina o “on” nos três conceitos de “coisa”. Nenhum dos conceitos de coisa dá conta do aspecto ou base coisal, porque a consideração da base coisal na obra não vem da obra mas da interpretação do “on” do ponto de vista das quatro causas, ou seja, da interpretação do “on” enquanto instrumento. Num primeiro momento ele caracteriza o utensílio pela “confiabilidade”, como já vimos acima. Isso abre um outro caminho que o próprio instrumento ou utensílio não pode mostrar, pois devemos antes partir para a obra como tal. Mas nenhum dos três conceitos de “coisa” vai permitir este acesso. Não permite o acesso nem à obra nem à própria “coisa”.

Vai ser na obra que o “on” vai se dar como “on”, ou seja, como Terra e Mundo, Verdade e Não-verdade. Vamos ter então a questão da Essência da liberdade. E esta remete, necessariamente, para a questão da Essência do agir, isto é, da Essência da Poiesis. Esta é a Essência da Polis. Nunca podemos esquecer que a o poder da Polis não vem de um ajuntamento de vontades que fazem entre si um contrato, salvaguardado pelo diálogo comunicativo. Isso se faz e é possível ao nível dos entes, mas jamais na Essêncialização do Ser. Esta e só esta tem o querer poder de dar a unidade e a medida. Ela e só ela é o Mesmo, isto é, a Lei. Esta é o acontecer poético, que rege todas as instâncias de realização, sejam as histórico-sociais, sejam as psico-afetivas. Todas elas só podem chegar a ser o que são quando se deixam tomar pelo vigorar do Ser, isto é, do Mesmo.

Na medida em que o “on” é essencialmente obra de arte, só então podemos ir em direção à escuta da “coisa”. Como? Partindo do “mundo” que a obra de arte abre e manifesta e manifesta porque na obra de arte enquanto verdade e mundo, o Ser se destina enquanto linguagem. O que seja mundo passa a ser a grande questão, porque tanto diz respeito à obra como diz respeito à coisa. Quando no início de A origem ... Heid. examina os três conceitos de coisa e os rejeita, é apenas o passo preparatório para o desenvolvimento do que essencialmente é a obra de arte. Na medida em que encaminha a fenomenologia poética desta é que, pari passu, está nos levando para o âmbito da compreensão do que seja a coisa, o on. E faz isso na medida exata em que estuda e aprofunda a questão da arte no que ela é enquanto arte, isto é, techné. Mas esta palavra diz em grego conhecimento. Em alemão vamos ter Kunst, palavra formada de kennen, conhecer. Toda a reflexão de A origem ... é uma caminhada pelas veredas da grande questão do conhecer. Essa é uma caminhada que Heid. faz mas de que dá poucas indicações, embora o diga em passagens essenciais. E onde ele desenvolve esta questão? No ensaio Moira. É aí que vamos ter em profundidade o que é conhecer, ou seja, o que é obra de arte, em que arte é tomada como Essencialização do Ser enquanto Essencialização do conhecer. Este vai estar ligado, como fica mais claro em Carta sobre o humanismo, à Essencialização do Ser enquanto Linguagem. Mas uma tal Essencialização é o que denomina Pensar. E é neste com este que se dá a Essencialização do humano, isto é, a humanidade de todo ser humano. A uma tal Essencialização é que podemos denominar Época Poética. Agora estas duas palavras tomam toda a sua densidade. Época Poética é o vigorar do Mesmo. Agora dá para compreender a profunda ligação desde Aristóteles entre techné e poiesis. Só aprofundando essa ligação através do estudo detalhado do ensaio Moira é que se pode chegar a compreender essa ligação, essa dobra. É tendo como fundo tudo o que se desenvolve no ensaio Moira que podemos compreender a distinção que ele faz entre Sprache, Poesie, Dichtung e Sagen, na passagem do §... E depois no último § do Ensaio. Para se compreender o que desenvolve no ensaio A questão da técnica, devo levar em consideração tudo o que acabei aqui de escrever. Nessa questão vamos ter bem clara a questão dos dois Ocidentes, isto é, o Ocidente do esquecimento do Ser e seu envolvimento com o âmbito dos entes e o Ocidente da Poiesis, onde se dá a Essencialização do Ser enquanto pensar, ou seja, linguagem e conhecimento, Sprache e Dichtung. Uma compreensão mais profunda do que seja Dichtung só nos chega pela meditação profunda de tudo o que é tratado no ensaio Moira. E agora posso melhor compreender que a questão da técnica passa necessariamente pela tematização dos ensaios A origem da obra de arte e Moira. E, ao mesmo tempo, este estudo se torna o pano de fundo em que posso desenvolver o presente estudo a propósito de Época e arte. Se de um lado podemos e devemos afirmar que Logos é Mundo, também devemos afirmar que conhecimento é Mundo. Isso fica mais fácil de compreender se retivermos a afirmação do pensador a propósito de Mundo. No ensaio Logos, ele afirma que Logos é Mundo. Mas no ensaio Moira ele afirma que o que é Logos para Heráclito é o mesmo que Phasis-Dichtung para Parmênides. Neste horizonte de questões podemos afirmar com certeza de que o fundo da questão da técnica é a questão mundo.
Mas o que é Mundo? É aqui que retorna o mito em seu fundar originário. Os mitos de quase todos os povos falam de um Kaos e de um Kosmos. Mas não podemos entendê-los apenas na dimensão do racional estabelecido. O Kaos seria a desordem, o ainda não criado, e o Kosmos seria a ordem, o lógico. Do ponto de vista mítico, Kaos é o aberto que tudo engole, o abismo primordial, o nada, o vazio. Já Kosmos é o mundo em tensão com o kaos. A biologia mais recente trabalha exatamente com esses dois dados do realidade: há uma realidade caótica, frente à qual cada ser vivente reage e a transfigura em ordenamento vital, ou seja, em autopoiese.
Porém, o entendimento do que é mundo não pode ser feito nesse horizonte, mas a partir da complexidade do que é a arte. Em primeiro lugar ela é um enigma. Isso significa que vigora no Kaos, ou seja, do ponto de vista do pensamento, no velar-se. Este, no entanto, como fonte se dá em tudo que todas as obras de arte manifestam, desvelam. Mundo é, então, todas as experienciações possíveis que nos advêm na e com as obras de arte. Na arte nos advém a realidade em sua excessividade poética, mas também, e ao mesmo tempo, em seu nada excessivo. Por isso o âmbito do mundo vai ser Eros e Thanatos, porque neles nos advêm o ser e o sentido e verdade do ser. E então as questões primordiais de mundo, Eros e Thanatos começam a se desdobrar: mundo implica verdade, sentido, ethos, linguagem, poiesis, narrar, ser, não-ser, tempo, memória etc. Esse é o âmbito do mundo. Mas não só. Quando os gregos intentaram conceber o “on”, pois no pensamento de Parmênides “to gar auto noein estin te kai einai” (pois o mesmo é pensar e ser) (frag. III), eles elaboraram os três conceitos.
Estes acabaram por ir entre-tecendo um grande complexo, uma grande rede conceitual. É nessa rede que estamos enredados, quando queremos experimentar e experienciar a presença das obras de arte. Tendo em vista essa rede, elenco a seguir alguns conceitos. Para entendê-los poeticamente é necessário transformá-los em questões. Alguns já foram abordados anteriormente, mas os repito para que os vejamos em conjunto.

1º. Identidade; 2º. Causa e causas; 3º. Sujeito; 4º. Tempo linear; 5º. Historiografia; 6º. Tempo mítico; 7º. Proposição e verbo; 8º. Sintaxe gramatical e sintaxe poética enquanto mundo; 9º. Função; 10º. Texto, obra, corpo; 11º. Verdade por adequação e verdade manifestativa; 12º. Análise e explicação como verdade por adequação e enquanto causa; 13º. Interpretação e diálogo como verdade manfestativa enquanto escuta e abismo; 14º. Logos, causa e fundamento, daí conhecimento como busca racional das causas enquanto fundamento; 15º. Esquecimento do ser e esquecimento da Terra; 16º. Essência, princípio e causa; 17º. Linguagem e poiesis; 18º. Linguagem (funcional) e práxis (funcionamento da função); 19º. Os três “teloi” (sentidos); 20º. O destino.

Como vemos, as questões da arte movem-se em torno de um certo Vocabulário. Ele resultou da complexa rede conceitual baseada nos três conceitos, a partir dos quais se classificam as épocas e os estilos de época. Desfazer-se desse Vocabulário é praticamente impossível. Ele já faz parte de nosso cotidiano e está incrustado nas mais diferentes línguas do Ocidente. O que fazer? É necessário redimensionar esse Vocabulário e lhe dar novas densidades e sentidos, mas quando for possível o melhor é usar as palavras mais adequadas, se já existem. A tentativa de usar palavras muito específicas pode trazer o perigo de uma certa conceituação. O pensamento e as questões vivem dos interstícios poéticos dos conceitos e do uso cotidiano das palavras. Reinaugurá-las é a grande tarefa dos poetas e pensadores. Rosa, no famoso diálogo com Günter Lorenz diz ser essa a sua proposta: negar o uso cotidiano e metafísico do vocabulário e escrever um dicionário, onde cada palavra será um poema. E cada palavra é um poema. Nós é que não temos olhos para ver nem ouvidos para ouvir. Falta-nos a virtude da escuta.

A obra de Caeiro também consiste em grande parte nesse trabalho meticuloso de reinauguração de vocabulário já estabelecido pela metafísica em sua multi-tradição. Caeiro vai trabalhar não só os interstícios dos conceitos mas também os paradoxos, além das imagens-questões. Inaugura assim uma sintaxe poética onde o real se dá originariamente. É claro que não é apenas a obra de Fernando Pessoa, embora Caeiro seja mais incisivo e mais tematize essas questões. Nesse sentido sua obra se aproxima muito da obra de Hölderlin. Mas também as obras dos grandes autores fazem o mesmo, mas não fazem coisas iguais. Em suas obras as questões nos advêm de uma maneira oblíqua. É sempre a linguagem acontecendo obliquamente. Desse fato se cai facilmente no engano de achar que elas estão presas a suas circunstâncias histórico, político e psico-sociais. Nelas a época acontece de uma maneira ambígua, oblíqua. Nessas obras todo o âmbito da linguagem cotidiana é repensado de uma maneira profunda e poética. A sintaxe operacional e a funcionalidade das palavras se redimensiona na conjugação de uma tematização das questões, que advêm transfiguradas em novos conhecimentos e revigoradas no seu operar e acontecer poético. Apreender e compreender essa dinâmica como um todo é que é apreender o seu vigorar epocal. De um lado, temos a nítida sensação de um painel e até documentário dos usos e costumes sócio-histórico-culturais, mas, de outro, a densidade e Essencialização do ser humano em sua finitude, em sua pro-cura de sentido, em seu agir ético-existencial (ek-sistencial), em sua solidão e falta amorosa, em sua tensão de vida e morte, nos advém de uma maneira muito forte e permanente, vigorosa. A época vista nesses dados circunstanciais nos é testemunhada pela obra como um todo, quando a partir dela, nos seus personagens, nas suas regras morais contraditórias, nas relações econômicas e sociais, nas procuras sinceras e nas ações dissimuladas, nas faltas afetivas e inconscientes, sobre tudo isso a obra nos fala como um grande documentário social e histórico. Esse diálogo epocal é possível. O estranho começa quando constatamos que as épocas passam e se sucedem e sempre que voltamos à leitura atenta de tais obras e dialogamos com elas a partir de um auto-diálogo, então as obras se transfiguram e elas se tornam atuais, vivas, presentes, densas, questionantes, qual espelho mediador do que em nós pulsa e se procura em suas caminhadas pelas escuras veredas da vida, isto é, pelas questões que se tornam não dos personagens, mas nossas. São experienciações que falam do mesmo, mas nunca dizem coisas iguais. Isso é a época poética, isso é o acontecer poético. E o que era oblíquo e dissimulado se torna presente e atuante. E um conhecimento novo, inaugural surge de uma maneira inusitada e sem causa. Se dá, acontece. É concreto, operante. É o vigorar da obra de arte. Deixa de ser um conhecimento sobre para se tornar um conhecimento de. Deixa de ser simples conhecimento acessível e tematizado pelas diferentes disciplinas. Torna-se sentido. Acontece a sabedoria. Esta é o vigorar do saber poético eclodindo em mundo, em sentido. É a realidade transfigurada ética e poeticamente.

Transformar em linguagem cada vez esse ad-vento permanente do Ser que, em sua permanência espera pelo homem, é a única causa (Sache) do pensamento. É por isso que os pensadores Essenciais dizem sempre o mesmo (das Selbe); isso, no entanto, não significa que digam sempre coisas iguais (das Gleiche). Sem dúvida eles só o dizem a quem se empenha em repensá-los (Heidegger, 1967: 98).

Época e tempo poético

Toda mediação é uma fórmula. Não é possível medição sem dois pontos distantes entre si, nem que essa distância, dia-stare, seja na macro-física inimaginável, o Tudo, seja na micro-física a fronteira entre a extensão e o Nada. É o que nos ensina Rosa em sua obra-prima: Grande sertão: veredas. É nesse entre que se dá a possível relação entre dois pontos para a representação. Algo é verdadeiro quando essa representação estabelece um resultado que afirma (e nisto está a verdade) a identidade entre a medida da fórmula ou teoria ou sistema e a realidade. Aí a linguagem é um instrumento de representação, um misto de enunciado matemático e lingüístico. A suprema tentativa é elaborar uma fórmula matemática que dispense a linguagem, mesmo instrumental, e apreenda toda a realidade em seu vigorar de realizações, realizações previsíveis ou explicáveis pela lei que a fórmula formula. Porém, num círculo vicioso, a formulação comprova nas experiências a lei. E a lei representa a identidade da realidade. Já se pressupõe nas hipóteses que a realidade tem uma identidade representável. Ora, no tempo poético, no lugar da identidade temos o mesmo que não se reduz a uma lei nem resulta de uma relação representável pela linguagem instrumental ou da mensuração. No tempo poético temos sempre o acontecer da posição e do vazio, da fala e do silêncio. Essa referência é a adveniência da linguagem no pensamento e na poiesis. O tempo poético é sempre linguagem, isto é, mundo. A essa disputa ou referência é que se denominou “epoché”. Transposta para o português, essa palavra se tornou ambígua, pois ora indica um tempo mensurável de acordo com uma fórmula, ora indica o que se dando se retrai. Esse dar-se como que fica suspenso, não entre dois pontos, na leitura da fórmula, mas como doação do vazio. A época é uma dádiva do vazio, um entre céu e terra. E o que o vazio nos doa? O sentido poético, o ético da ec-sistência e de toda ação poética. No sentido ético-poético se manifesta o humano do ser humano.

O que está em causa é a forma e o limite como tempo e espaço. Porém, o que aí nunca é pensado é o télos originário do tempo poético. A época da linguagem instrumental reproduz a forma formulada no telos como finalidade ou objetivo. O objeto do objetivo é o tempo da subjetividade racional como medida da representação conceitual da realidade. Sua realidade temporal e histórica se representa na objetividade da subjetividade enquanto relações e funcionamento das funções das diferentes instâncias das teorias ou disciplinas em que as realizações da realidade são apreendidas: social, econômica, antropológica, psicológica, política etc.

Duas figuras: vazio e . (ponto). Silêncio e fala. Com o ponto e a fala surge o espaço e o tempo. Mas não são estes que possibilitam o aparecimento do ponto e da fala. Simplesmente porque eles em si não são portadores de sentido e sem sentido é impossível a relação e determinação do ponto enquanto posição. Daí a impossibilidade de determinar o ponto do ponto de vista de medida ou mensuração. É então que surge a questão da quarta dimensão de tempo enquanto linguagem ou mundo, uma vez que o tempo é a quarta dimensão do espaço. Na realidade a quarta é a primeira. Vejamos três pontos de diferentes tamanhos. No vazio é impossível determinar a medida, a representação. Só os três entre si possibilitam determinar uma medida. Nos três pontos o tamanho é determinado pela relação entre eles e não por eles em si mesmo quanto ao tamanho.

O mesmo
O mais difícil em nossas vidas é compreender o que é isto – o mesmo. Como diz Rosa numa de suas obras. Não é um ele ou um ela: é o que e o quem das coisas. Jamais podemos ou devemos reduzi-lo ao conhecimento de um conceito. Como tal é a questão, o a-ser-pensado. Não nos advém nunca no e pelo raciocinar. Advém enquanto linguagem no pensar. Mas é o nunca cessar de advir porque não tem início nem fim, vigora. Isto é o mesmo.

Esse poder que as obras de pensamento têm é que propriamente constitui o próprio de todo e qualquer ser humano, a essência de sua humanidade. Em verdade não há as obras e os seres humanos. O humano, isto é, a essência de sua humanidade consiste em deixar-se tomar pelo vigorar do Ser. O pensar é o vigorar se dando em poiesis e linguagem. Em seu vigorar espera pelos poetas e pensadores para que o digam e, dizendo-o, assim pro-duzem o Ser, isto é, o trazem enquanto obra para a manifestação de seu vigorar. Isso é a arte, é o conhecer originário de toda arte. As obras o dizem, isto é, o dispõem enquanto linguagem e sentido. Cabe a cada leitor deixar-se tomar por um tal vigorar. E isso acontece quando cada um re-pensa na obra o dizer. É no horizonte desse sentido e linguagem que consistem as épocas poéticas, pois elas constituem o deixar vigorar pelo re-pensar o mesmo de cada um em sua época, em seu momento histórico. Isso é sempre um acontecer poético.

Este de maneira alguma é uma repetição das mesmas coisas. Não há o vigorar do Ser e o existir de cada sendo. A originalidade inaugural de cada sendo se funda no vigorar do Ser e de tal modo que não cessando de ser o mesmo, é sempre diferente. Esse é o mistério de toda obra de arte: ser sempre a mesma sendo diferente para cada um que a repensa. Repensar é deixar acontecer poeticamente o mesmo. Partindo da historiografia, um músico teve a idéia de re-constituir o som original das obras musicais de Bach, refazendo os instrumentos musicais em que as obras de Bach foram, em seu tempo, tocadas. Achava que dessa maneira reconstituiria as circunstâncias históricas do som original de suas obras. Hoje as obras nos soavam diferentes porque os instrumentos eram diferentes. Bastaria reconstruir os instrumentos e assim teríamos em nós as obras de Bach soando em sua inaugurabilidade. Confundia o inaugural de toda obra de arte – o mesmo – com as circunstâncias epocais. Confundia época com cronologia. Acontece que a realidade nunca se repete, a não ser conceitualmente e em aparência, porque a aparência é a representação que parece representar a mesma coisa, jamais o mesmo. Se retorno se entende como volta, não há retorno. O mesmo não é o que retorna, mas o que não cessa de vigorar, mas um vigorar que exige de nós uma escuta, um estar atento e aberto para seu acontecer. A inaugurabilidade das obras de arte é este poder acontecer poético. Isso é o vigorar da época em toda obra de arte. Pois bem, como o Ser não cessa de vigorar e de se destinar nas obras de pensamento e de arte, a nós jamais é possível retornar ao som original das obras pela reconstituição dos instrumentos. Só podemos deixar acontecer o som originário. E jamais será o som igual ao do tempo e circunstâncias históricas da época de Bach, por mais que se tente reconstituir tudo. O originário não se reconstitui, ele não cessa de vigorar em novas manifestações. Nossos ouvidos, se bem abertos, só poderão ouvir o som originário, jamais o som original, até porque não há som original, numa realidade que não cessa de acontecer. E agora é que vem algo muito importante para compreender o mesmo. A cada nova obra musical originária para quem escuta acontece o mesmo em novas e inaugurais experienciações. O vigorar do mesmo diz sempre experienciações inaugurais incessantes. E é no horizonte dessa inaugurabilidade que experirenciaremos sempre a obra musical de Bach. Ela não nos advém na execução musical por instrumentos iguais. Até porque não serão jamais os mesmos instrumentistas nem os ouvintes escutarão com os mesmos ouvidos. Escutar jamais pode ser reduzido a um ato fisiológico repetitivo. Para quem escuta sempre há a possibilidade da inaugurabilidade. Uma obra de arte nunca se reduz a seu suporte ou forma. Uma obra de arte é sempre presença, fundada no mesmo. Uma época é sempre a presença do mesmo tanto mais se dando em sentido e linguagem quanto mais se vela. Todo vigorar de época é uma dobra que não cessa de se desdobrar. Apreender e compreender o des-dobrar é deixar-se tomar pelo mesmo. Todo desdobrar é um vigorar do sentido. Sentido é o vigorar do Ser, é a Essencialização do Ser, se dando em verdade e linguagem. No e pelo vigorar do sentido o suporte teórico-orgânico do ser humano acontece na transfiguração mundificante de seus sentidos e razão. O mesmo é a unidade de sentidos e razão em que se estrutura todo corpo humano e jamais a constituição deste em um organismo que sente e raciocina. Por isso é que toda análise racional só me dá e só pode me dar significados, funções, analogias, relações sistêmicas e estatísticas, dados numérico-quantitativos, quadros comparativos a partir de algum ou de alguns paradigmas. Jamais o sentido. nas obras de arte o sentido explode, advém, transborda, de dentro para fora, não havendo mais fora nem dentro. Uma obra e arte só é epocal por estar sempre transbordando, se desdobrando no sentido dos sentidos e do raciocinar. O sentido é o incessante pro-vocar a pensar. Pensar é o acontecer poético do mesmo e enquanto o mesmo, sem jamais originar coisas iguais. Não é tão difícil apreender e se entregar ao mesmo, se sairmos da banalização da linguagem em seu uso comercial e cotidiano, se sairmos da repetição das idéias e valores já feitos e estabelecidos, se sairmos da funcionalidade dos sistemas, fonte de conceitos que não cessam de nos lançar na repetição e aniquilação de nossa originalidade e originariedade, se sairmos da aparente novidade dos conhecimentos dos entes em suas relações sempre funcionais e operativas, se sairmos do esquecimento do Ser e nos deixarmos tomar por sua memória, a unidade vigorante do mesmo. Nos deixarmos tomar por sua Essencialização. É fácil muito fácil nos entregarmos ao mesmo. Para tanto é necessário pensar. Pensar o mesmo que é a vida, a morte, o amor, o tempo, a linguagem, a verdade, a solidão, o cuidado, o ético, o sentido. E são estas questões que aguardam sempre nossas experienciações que constituem em verdade a realidade, uma realidade que não depende de nós, não é construída pelos nossos conceitos ou vontade ou desejos. É uma realidade que de repente e sem causa nos toma, nos advém quando tudo parece um grande vazio e um sem sentido. Nos toma brotando do mais íntimo e profundo silêncio tanto em relação ao que nos cerca quanto ao que dentro de nós pára de falar para deixar se instalar o mesmo, o silêncio fundante de sentido da realidade. Isso acontece quando dentro de nós se instala a crise. Toda crise fundante traz para nós o estreito campo do agir e vigorar da vida corrente, das funções de cada dia e dos trabalhos esperas de resultados que resultam numa sobrecarga que não nos satisfaz nem nos dá a satisfação prometida. É que a vida cotidiana em sua repetição das mesmas coisas entulha o Ser com os efeitos dos significados do agir e operar dos entes. E com a instalação da crise fundante acontece um desdobrar novo, sem causa, numa procura de significados novos que só se tornam realidade quando eclode o sentido do mesmo. E então a crise fundante nos traz a verdade da realidade. É a questão do sentido vigorando. É o mesmo vigorando, tão novo e tão antigo, tão inaugural e tão atual, tão sempre o mesmo sendo diferente em sua inaugurabilidade. A época não é jamais algo geral que está aí para nos tomar e nos determinar. A época só é época enquanto acontecer poético. E todo acontecer é sempre acontecer do mesmo. A época é o mesmo acontecendo. É o humano se desdobrando poeticamente. Quando o humano acontece poeticamente, então o pensar do Ser se dá.


Bibliografia

HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Rio, Tempo Brasileiro, 1967.
PAMUK, Orhan. A maleta de meu pai. São Paulo: Cia. das Letras, 2007).