31 julho 2009

Estética: liberdade e necessidade



Toda Estética vigora na e a partir da essência do agir. Porém a essência do agir é um enigma que se dá, com certeza, numa dobra. O trágico do ser humano é que faz da dobra um duplo e assim acha que pode determinar a essência do agir pelo seu querer, manifesto na sua vontade. Sem o poder do não-querer, o destino, não há a vontade de poder querer. A essência da Poética é a essência do agir enquanto dobra: o vigorar óriginário de todo sendo do ser. A essência da Estética é a essência do agir enquanto duplo: fundamento e fundado, sujeito e fruição estética do objeto. A Estética é a astúcia da razão humana de achar que pode ultrapassar o fundamento racional pela racionalização do sentir. Seja no sentir, seja no raciocinar, ainda se move na causalidade, que é sempre medida lógica, isto é, racional, causal. O que é isto a causalidade?
Não se pode pensar a essência do agir poético, o da dobra, esse agir em que consiste nosso viver permanente e de todo instante, sem pensar a essência da necessidade, da possibilidade e da verdade. Só assim se pensa a dobra e não o duplo, só assim se pensa a liberdade originária. “Viver é nascer, crescer, amadurecer e morrer a todo instante. Vivendo, os homens vão experienciando a paixão de viver e aprendendo com esta experienciação. Pensar é a disciplina, a ascese e o ordenamento desta paixão” (Leão, 1997: 145). No e com o pensar o agir poético se torna ético. Não se pode pensar a essência do agir pelo sentir do agir, tantas vezes confundido com o sentir da agitação, seja dos sentidos, seja da razão. Aqui está todo o equívoco da Estética: achar que pode fundar o querer sentir no querer da vontade, ou seja, do sujeito, entendido desde Descartes, Kant, Hegel e Nietsche, depois, os epígonos como fundamento. Daí que toda a subjetividade se fundamenta na causalidade. Quem põe em questão a causalidade é Heidegger. Mas para compreendê-lo é necessário abrir-se para o pensar e acompanhar com ele toda a trajetórica causal da filosofia ocidental. Com Hölderlin ele retoma a não-causalidade como o destino. Daí a famosa afirmação de Hölderlin: "Apolo me feriu". Depois a loucura, como para Édipo a cegueira. A essência do agir causal é que fundamenta a Estética. A essência do agir não-causal funda a Poética. Fundar não é fundamentar.
Quando duvido só posso duvidar porque ajo a partir do radicar na essência do agir enquanto o não-querer de todo querer. Todo duvidar radica na essência do agir. Só deixamos de agir quando um outro agir nos toma e do qual nada podemos falar. Para agir essencialmente não basta viver, é necessário ser o que se vive e age. Portanto, trata-se sempre de pro-curar a essência do agir. Não é algo que podemos fazer ou não. É uma necessidade, mesmo que a ignoremos, pois em toda de-cisão já estamos previamente de-cidindo a partir da essência do agir como necessidade. Ser livre é abrir-se para a essência originária do agir, do ético-poético, do pensar. E isto inclui o que nos parece mais livre: a vontade de nosso querer. Eis porque pensar a essência do agir é pensar necessariamente a essência da necessidade e da liberdade. Não basta seguir os impulsos do querer da vontade. Só somos verdadeiramente sendo a partir de e com a essência originária: é a nossa necessidade essencial.
Mas justamente todas estas questões já se movem (essência da ação) na questão da linguagem (essência do sentido, da verdade e do ético). Somos livres para falar, mas não somos livres diante da linguagem, a partir da qual e só a partir da qual necessariamente é que podemos querer e falar. Há, pois, uma liberdade do querer ou não querer falar, mas esta liberdade radica na necessidade de sempre querermos a partir da linguagem como necessidade, mesmo quando queremos não querer. Não podemos limitar a linguagem à fala, pois ficar em silêncio é já radicar na máxima potencialidade da linguagem de todo sentido e fala. Ficar em silêncio é recolher-se ao ser do silêncio, de onde surge a compreensão, radicada, portanto, numa abertura de pré-compreensão, advinda no pensar do ser. Há, portanto, uma liberdade do querer ou do não querer falar, mas esta liberdade radica (originariamente) na necessidade de sempre querermos a partir da linguagem como necessidade. O poder inerente a toda liberdade radica num poder mais radical inerente ao que é o poder do poder falar, ou seja, da linguagem. O poder é a fonte do querer como possibilidades. Por outro lado, o querer é já desde sempre o vigorar do poder. Por ser o vigorar é que podemos sempre questionar. Mas só podemos questionar porque já estamos vigorando desde sempre nas questões assim como estamos já necessariamente vigorando na linguagem. O poder da linguagem é o poder do questionar: o vigorar das questões. Essa necessidade é que funda a liberdade em que já podemos querer e assim exercer nossa vontade, a que chamamos nosso livre exercício do agir, nossa liberdade. Esta, portanto, se origina da liberdade essencial, isto é, da liberdade que se funda na essência do agir. Este fundar-se é a necessidade essencial.
Ruy Castro, no jornal Folha de São Paulo, do dia 29-07-09, p. 2, trata dos viciados em crack, numa pequena crônica intitulada: Dependência e morte. No agir dos viciados se trata sempre da essência do agir, da essência da liberdade, da essência da necessidade, da essência da verdade e do agir ético. A contradição da liberdade, da essência do agir, manifesta-se num poder aparente, que aparece muito bem na situação (que exige já e desde sempre uma de-cisão sobre a essência do agir) que ele descreve: “Os dependentes (de crack) – surpreendidos pelos agentes sociais – não querem ir para o albergue porque sabem que lá não há crack e, para eles, ficou im-possível (grifo meu) viver sem crack. Na verdade o im-possível é viver com crack...”. A dobra de liberdade e necessidade fica bem clara aí no duplo emprego da palavra im-possibilidade (um emprego que radica na e a partir da linguagem e não a partir de uma semântica, pois aqui não se trata de uma situação semântica e formal. Nela se decide a essência do agir e da liberdade. Eis os limites da gramática e suas divisões, e da retórica). Note-se como o poder do querer e o poder do não-querer aparecem aí de uma maneira ambígua e essencial. O poder das possibilidades está contraposto duplamente e num des-dobramento, através da dupla negativa, que ora diz uma coisa ora diz outra totalmente oposta. A palavra é a mesma, mas o poder da linguagem é aí o poder da própria realidade, verdade e necessidade. É que o in/não de im-possibilidade radica no nada. Se esta palavra assusta, digamos, no poder do silêncio. Este tanto é positivo como é negativo, como fica bem claro no exemplo concreto e irrefutável do escritor, porque aqui querer refutar essa realidade é uma nescidade. Ambos os im-possíveis radicam no mesmo. Esse mesmo, sendo como é radical, radica no dobra e tensão de vida e morte. O viver me dá a aparente (porque aí aparece) liberdade do querer da vontade. O limite de tal liberdade (limite necessário) se encontra diante de algo que é mais radical: o morrer. Daí o título preciso: Dependência e morte. E esta é, para o querer, a im-possibilidade de todas as possibilidades. O paradoxo real e não apenas formal ou semântico e retórico da liberdade da vontade fica evidente e irrefutável: “...impossível viver sem crack”. Usando o crack, o viciado para viver mais e continuar esteticamente gozando o viver (eis os limites da estética) usa sua livre vontade. Para tal é “...impossível viver sem crack”. O impossível aparece, se dá como necessidade, mas como é ligado ao viver, parece e aparece como uma liberdade da vontade, da estética.
Porém, a morte irá nulificar tal vontade, tal querer estético, porque aquela não está escolhendo livremente viver. Estará necessariamente negando a vida e a liberdade que ela oferece para se lançar no fato de que “...impossível é viver com crack”. A liberdade em sua essência é negada porque o que seria ato livre se torna um fato irreversível, necessário. Quando o fato precede e determina o ato, deixa de haver liberdade essencial, deixa de haver a essência do agir. Há, portanto, o agir dos fatos e o agir dos atos. Que temos que falar é um fato, que podemos falar é um ato. Em todo ato de fala quem vigora sempre é a linguagem, falemos em que língua (fato) falemos. Quando nos recolhemos à linguagem do silêncio, podemos estar querendo negar alguma fala, mas esta fala não provém de nosso poder, mas do poder que o silêncio enquanto linguagem, já tem e diz. Tanto que podemos deixar o silêncio falar em muitas outras situações, em muitos outros atos: o silêncio dos inocentes, o silêncio dos condenados. Se não fosse o poder do silêncio nossos atos não teriam sentido. Todo ato e fato provêm da essência do agir. E como podemos deixar o silêncio falar em muitos e diferentes atos, isso diz que não estamos presos a fatos, como é o caso do viciado em crack. Ele não tem escolha, pois lhe é “...impossível viver sem crack”.
Ao resistir ao crack e à vontade estética de querê-lo como algo necessário, tal necessidade de resistir e de renúncia é que é a verdadeira liberdade e essência do agir. E assim é que na renúncia como liberdade necessária é que se dá a essência do agir. A renúncia não tira, dá. Aqui está o limite e contradição de toda estética. Pois na essência do agir o que decide não é o querer da vontade, uma vez que a essência do agir é o agir, não a partir da vontade, mas do agir da essência. Essência é o vigorar do que é em tudo que é. Este tem seu agir no vigorar do ser e não no agir do sujeito, pois o que o “eu” é é determinado pelo ser e não pelo “eu”. Quando digo “eu sou”, o alcance desse “eu” está na estrita dependência e determinação necessária do “sou”. Até para dizer “eu não sou”, só sendo o não-ser é que o “eu” pode se afirmar como é o que não-é. Ser é a necessidade essencial de todo “eu” (de todo sendo). Quando o “eu” se dimensiona pelo ser, então, o “eu” é e, sendo, é livre, porque ser é a essência da liberdade, da ação. A essência é o vigorar do ser.
Como se vê, há sempre uma dupla necessidade, uma dupla possibilidade, uma dupla liberdade. Porém, esta “dupla” existência real, onde todo ficcional poético (“O poeta é um fingidor” Pessoa, em “Autopsicografia”) encontra seu fundar, nos lança sempre na dobra de verdade e não verdade. Se considerarmos que vivencialmente a não-verdade se dá sempre como errância, mesmo quando temos como horizonte a essência do agir, ela deixará de vigorar na dobra, quando em lugar da errância a substituímos pelo erro e, assim, criamos uma oposição à verdade como ideia absoluta (inerente a todo sistema, seja ele qual for e em que época for), que não leve em consideração a errância ou existência que sempre vigora na dobra de verdade e de não-verdade. Não podemos julgar a verdade e não-verdade por um critério de verdade prévio, pois se assim for, estaremos vigorando e agindo de acordo com fatos prévios e não estaremos deixando vigorar o agir, o agir ser. Ele sempre se dá na dobra de não-verdade e verdade e só no agir é que podemos distinguir e julgar (krinein como criticar distinguindo, discernindo) o alcance da errância como verdade e não-verdade. Então a duplicidade se move sempre numa oposição e dicotomia que tanto pode acentuar, ou a ideia absoluta como modelo prévio do agir, ou a finita contingência de nossas escolhas, como é o caso do usuário de crack (e de todas as drogas, inclusive as estéticas ditas belas e sempre agradáveis, pois toda estesia pode ser o caminho mais rápido para a anestesia). A estesia tem sua medida no ético-poético e não no estético. A dicotomia não leva em consideração a proveniência e vigência da necessidade, da possibilidade e da verdade. Não leva em consideração a linguagem de toda língua, no sendo, o sentido do ser, este a necessidade essencial do agir. Só na dobra vigorante em todo ato, o sentido do ser como sentido da linguagem se torna tanto mais poético quanto mais ético. Sendo o poético-ético o vigorar do ser ao dar-se como linguagem. Neste sentido, estamos poeticamente sempre a caminho da linguagem. E, portanto, tal caminho será tanto mais ético quanto mais poético. Caminho diz, portanto, o agir a partir do sentido da linguagem como sentido do ser. Sentido em seu sentido constitutivo diz o caminho originário de onde se parte e aonde já desde sempre se chega. O caminho enquanto sentido é o destino, nosso destino. Enquanto caminho de necessidade e liberdade nosso destino, isto é, para o quê já desde sempre estamos destinados é o apropriar-nos do que nos é próprio: o que somos. Ser é verbo e não uma substância prévia, daí que apropriarmo-nos do que nos é próprio é sempre um eclodir no e pelo agir. Nesse sentido, destino é um consumar, um eclodir enquanto realização de plenitude. A plenitude acontece enquanto o pensar, que é a ascese da paixão de viver. A plenitude incorpora toda possível estesia na paixão do consumar, isto é, do levar ao sumo, onde razão, paixão e sentir são um e o mesmo. Os gregos chamaram a esta realização de plenitude télos. Télos é, portanto, não apenas todo agir causal, mas o levar à plenitude o que se é. O agir enquanto essência não é um agir enquanto meio para chegar a um fim (télos) dependente da causalidade. Enquanto télos, todo agir já se realiza enquanto o vigorar do que nos é próprio, nosso destino, não havendo, portanto, uma duplicidade entre o agir e o télos, entre o meio e o fim (télos). É na plenitude de ser que se ultrapassa toda causalidade. A causalidade não pode ter o fim em si, deve nos doar a confiabilidade do viver. Em todo ato o vigorar já vigora em sua plenitude, mas como esta não é um fim, mas uma consumação, a essência do agir tem sua medida no agir da essência, daquilo de quem recebemos nosso destino: o ser. Ser é verbo, o vigorar de todo agir. Ser então é a necessidade necessária.
Tudo isto diz que viver, mais do que deixar correr a vida e se deixar levar num querer da vontade, se torna uma tarefa poética incessante (tautologia), onde a dobra se desdobra e o homem se torna humano. É o pensar como experienciação da paixão de viver. Por isso, já nos disse Caeiro que pensar é amar. Em nada disto consiste a Estética, limitada à necessidade da causalidade. A estética não funda é fundada pela Poética, porque a Poética radica na essência do agir, é a essência do agir. É também o que Rosa considera ser a travessia – uma tarefa poética. Esta se dá no entre de nada e tudo. Dando-se no “entre”, toda nossa tarefa poética enquanto vigorar da necessidade, da liberdade e da verdade, consiste num acontecer poético onde no ordinário se dá o extra-ordinário: “Ethos anthropou daimon: a morada do homem, o extra-ordinário”. Heráclito, sentença 119.
Se é impossível viver sem crack e é impossível viver com crack, para o viciado, podemos agora dizer: Se é impossível viver só com o ordinário é porque é impossível viver sem o extra-ordinário. Eis aqui a liberdade e necessidade essencial. O ordinário da estética não me dá jamais o extra-ordinário do ético-poético, da liberdade e da necessidade essencial do agir. A Estética não passa de uma modalidade da causalidade subjetiva, em que se fundamenta a vontade de quem se lança nas vivências subjetivas, dando a impressão falsa de uma liberdade que responde e corresponde à necessidade de ser.
Em poética não basta conhecer. É necessário ser o que se conhece. Ser o que se conhece é apropriar-se do que é próprio. Este próprio é o que recebemos como destino, a Moira dos gregos.
Em poética não basta sentir. É necessário ser o que se sente.
Ser o próprio que se é, eis a essência do agir.

Bibliografia

LEÃO, Emmanuel Carneiro. Definições de filosofia. In: Rev. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 130 / 131: 145, jul.-dez.,1997.

30 julho 2009

Entrevista sobre o livro: Arte, corpo, mundo e terra


Eis as minhas respostas à entrevista feita pelo jornalista Bruno Franco, do Jornal da UFRJ / Coordcom, a propósito do livro que organizei e foi publicado pela Editora 7letras: Arte: corpo, mundo e terra.
Olá professor Manuel.

A Coordenadoria de Comunicação da UFRJ gostaria de divulgar o livro Arte: Corpo, Mundo e Terra, editado pelo senhor, no seu boletim eletrônico Olhar Virtual, na seção Entrelinhas. Para tal, o senhor poderia nos responder a algumas perguntas?


Qual a proposta do livro Arte: Corpo, Mundo e Terra?

Fundamentalmente são duas. Primeira, fazer um exercício concreto de interdisciplinaridade. Para isso foram convidados diferentes professores de diferentes disciplinas. Isso poderá ser visto facilmente pelo índice temático. Essa é a proposta central da POÉTICA: ela congrega todas as manifestações artísticas, sendo, portanto, uma POÉTICA ORIGINÁRIA, onde se reúne e une poesia e pensamento. A POÉTICA nada tem a ver com normas e gêneros como modelos a priori. A segunda diz respeito a algo mais profundo ainda: mostrar que a arte está muito além do modo sofístico, retórico e metafísico de a entender e de classificar as obras de arte. Obra de arte não é organismo formal ou ideológico. Obra de arte é um corpo vivo. E como corpo vivo manifesta a vida enquanto terra e mundo. É o modo diferente e originário de compreender a arte. Esse é o grande desafio da POÉTICA.

O que motivou a escolha de corpo, mundo e terra como focos temáticos para os ensaios?

Esta pergunta já foi um pouco tematizada na resposta anterior. Acrescentaria que o emprego aí de terra nada tem a ver com o conceito de planeta. Isso pode ser visto bem quando é tratada a ecologia, melhor, a poético-ecologia. A ecologia não diz respeito como é normalmente divulgado à natureza. A oposição de natureza e pólis tem origem na paideia sofista e foi continuada pelo movimento da modernidade como a oposição de natureza e cultura. Isso gerou uma compreensão da natureza muito superficial. Quando, por exemplo, se fala da natureza do processo político, da natureza humana, nota-se facilmente como o sentido banal de natureza não dá conta desses sentidos. É que natureza é algo diretamente ligado à essência do ser homem. Daí ser impossível pensar a ecologia sem pensar a essência do homem. E a essência do homem é a linguagem. E a linguagem é mundo. Ora, as obras de arte é que manifestam o próprio do homem: a linguagem, isto é, mundo. Nesse sentido, a essência da pólis é a promoção e realização do próprio dos cidadãos, isto é, é a tarefa essencial da pólis. A essência da polis é a essência do diálogo, porque todos somos reunidos pelo lógos. Daí a essência da polis e sua tarefa primordial ser: a de educar o ser humano, todo ser humano. Educar diz aí o que a palavra desde a sua origem latina diz: conduzir para fora, para a manifestação o que cada um já traz dentro de si como próprio. Portanto, a arte é essencialmente essa promoção. Logo, ela é essencialmente uma tarefa política, ecológica, ética e poética. Mas infelizmente o político ficou muito limitado ao jogo do poder como ideologia. Originariamente, o político é mais radical, é mais complexo. Por isso, nenhum sistema dá conta das tarefas essenciais do que é o político como educação do ser humano para o que lhe é próprio.

Há um viés heideggeriano na obra?

A pergunta é oportuna. Uma das tarefas inovadoras da POÉTICA é também proclamar que não há autor sem obras. E, portanto, o que interessa são as obras. Agora imagine que as obras são alimentos. Cada um que as lê se nutre das reflexões que desenvolvem e contêm. Esse é o alimento que nutre o ser humano enquanto linguagem, pois somos essencialmente diálogo. Quando nos alimentamos não nos alimentamos de adjetivos: heideggeriano, junguiano, marxista, hegeliano, cartesiano, kantiano etc. etc. Alimentamo-nos das questões cultivadas, chocadas nas obras. Essa alimentação faz eclodir, aparecer, o corpo no que ele tem de PRÓPRIO. Seu corpo metaboliza o que come para manifestar o que é próprio de cada corpo. O mesmo acontece com a leitura das questões das obras. Cada leitor deve fazer uma metabolização, senão será algo que ele não é. E a alimentação tem que ser boa, que alimente mesmo. O ser humano para ser o que lhe é próprio tem que se mover e alimentar de QUESTÕES. Só com as questões é que crescemos e acabamos por nos apropriar do que nos é próprio. Quem mais, e todo mundo reconhece isso, pôs em questão as questões essenciais do ser humano em todos as suas dimensões no século vinte, foi Heidegger. A título de exemplo, veja a questão da técnica. E os jovens são naturalmente questionadores. E só o questionamento renova os lugares-comuns e os "ismos". Qualquer "ismo" ou adjetivo é a negação do questionamento. Mas não se pode questionar com as palavras dos outros. É necessário apropriar-se como se fosse um alimento desses pensamentos e metabolizá-los, para que cada um manifeste o que lhe é próprio. Para isso é necessário questionar e dialogar. Todo grande autor e criador é um questionador. E é das obras deles que gosto de me alimentar. Além de Heidegger, citaria Platão e, no Brasil, o grande pensador-poeta: JOÃO GUIMARÃES ROSA. Este frequenta muito mais meus ensaios do que o próprio Heidegger, isto é, suas obras me provocam tanto ou mais do que o próprio Heidegger. Mas o uso de qualquer adjetivo para classificar alguém é sempre IMPRÓPRIO (só se a pessoa for alienada e pseudo-cópia de alguém). Todo grande autor quer fazer de seus leitores pessoas que pensem e jamais sejam cópia do que eles dizem. Eis o que diz Rosa em Grande sertão: veredas:
“Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém...”
(Rosa, 1968: 347)
Como vê o próprio Rosa aconselha que jamais sejamos: heideggerianos, marxistas, kantianos, platônicos etc. não pode nem convém. Seria a mais radical e mortal alienação.

A arte seria capaz de trazer a alétheia, a revelação do Ser, enquanto manifestação das múltiplas presenças do Divino?

Os gregos tinham duas palavras fundamentais para VIDA: ZOÉ E BÍOS. Bíos é cada ser vivo. E zoé é o vigor vital que possibilita cada ser vivo. Não vivemos sem a zoé, mas esta não se extingue quando um ser vivo deixa de viver, ou como belamente disse Rosa, desvive. Porém, a zoé não está nunca separada de cada ser vivo, de todos os seres vivos. Cada bíos, cada ser vivo, vive no e a partir da zoé. Zoé é o Ser e cada ser vivo é um sendo. Porém, nem todo ser vivo fala da zoé, do próprio ser vivo. Falar de é já se mover na linguagem. E mover-se na linguagem é todo aparecer como mundo e sentido. Mundo é a vida enquanto sentido. E isto é o Ser. A manifestação da zoé em cada ser vivo, ou seja, do seu sentido, é que constitui o que chamamos de artístico (corpo, terra e mundo). A manifestação da zoé em cada ser vivo é o que os gregos chamaram de alétheia. Ela é a verdade porque essa manifestação se torna linguagem e sentido, ou seja, terra e mundo, realidade. E isso é que é arte. Arte nada tem a ver com forma estética ou ideológica. Isso é formalismo sofístico e retórico que diz respeito aos utensílios. Os gregos chamavam ao vigor de manifestação, em diferentes e múltiplos e riquíssimos seres vivos, de presença e manifestação do divino, ou seja, de theoi. As manifestações do sagrado, isto é, da zoé, se dão de muitas maneiras: são "theoi", isto é, deuses. Não é que haja muitos deuses, mas que há muitos modos e maneiras de o sagrado se manifestar. Não é sagrada e divina a riqueza das vidas e da vida? O sentido do sagrado é manifestado nas obras de arte. Isso é que os gregos chamavam de alétheia. Mas ele também se pode manifestar nos mitos, nas obra de pensamento, nas diversas religiões. A vida em toda a sua riqueza não é um mistério? Quem o nega? Não o simples e complexo ato de viver, mas o seu sentido. Isso é o sagrado, o divino. Isso é o Ser se manifestando. Algum bíos esgota a vida? Algum sendo esgota o Ser? Então o grande mistério consiste num fato muito simples: tanto mais a vida se manifesta em múltiplos e incontáveis "bioi", tanto mais a vida se retrai e vela em seu poder de sempre vigorar em novas vidas. A a-létheia diz, portanto, a manifestação que tanto mais se manifesta quanto mais se vela. E isso é que permite que a vida/zoé seja inesgotável e indecifrável, numa palavra, algo divino. Por isso, toda obra de arte resiste a todas as interpretações e ao tempo cronológico. Ela é memória do tempo, da vida, do ser, de zoé. É que nela vigora a zoé, o divino, o sagrado. Mas é pela zoé que continuamos vivos. Arte é vida, é zoé, um vigor que não cessa nunca de vigorar e fazer acontecer a história e a vida.

Como a poesia pode retomar o seu papel no desafio de decifrar os mistérios do mundo?

Só a razão e os conceitos querem decifrar algo. Decifrar é achar uma regra, uma lei em que tudo fique previsto como causalidade e função. Achar as leis da natureza e da vida, eis a pretensão da razão. É util esse esforço, mas não é tudo, porque a vida e a natureza não se reduzem a causalidade e funções. Já pensou se todos nós fôssemos reduzidos a funções. Estas são necessárias e importantes, mas não são tudo. Vivam as diferenças!!! Viva o insólito, a beleza, o impossível, o inesperado, a pura amizade, a doação sem porquê do amor. Por isso mesmo o saber causal e funcional é um deciframento muito volátil e passageiro. Qual o conceito que decifra o que é a vida/zoé? A poesia não quer, nunca quis decifrar nada. Pelo contrário, quer deixar o nada vigorar. Guimarães Rosa no conto "O espelho" diz: "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo". Aí o sujeito (se de sujeito se pudesse falar) do verbo acontecer é o NADA. A arte nos joga no NADA ACONTECENDO, isto é, a zoé sendo em cada ser vivente, em cada bíos. O perigo está em vivermos a vida apenas no nível do bíos como função, esquecendo o que é essencial e é a fonte de toda a vida: zoé, o ser, o sagrado, o milagre, no dizer do pensador-poeta: Rosa. Eis aí o mistério e os mistérios do mundo. É algo de onde não pára de nascer o novo e o diferente e o que está para além de qualquer função e causalidade. O mistério é por isso mesmo a essência da felicidade, porque só a zoé pode dar a plenitude da vida.

Em que medida realizar o corpo seria realizar o ser humano?

Corpo não é organismo. Corpo não é matéria oposta a alma e a espírito (razão). Corpo é o humano se realizando. O que é então o humano? O humano é a vida (bíos)/sendo se dimensionando pela zoé/ser.O humano é a essência do que é próprio a todo ser humano. E o que lhe é próprio é a zoé/ser. Por isso, cada obra de arte verdadeira é um corpo-vivo. Quem insiste nesta questão da arte como corpo vivo é Platão no diálogo FEDRO, que trata da essência do humano ligado ao amor e ao sagrado. Mas a grande questão de Rosa também é o humano do homem. Realizar esse humano é fazer a travessia.

A Terra tem menos a ver com os seus recursos materiais e tangíveis do que com o lirismo transporto em uma obra de arte?

A leitura da terra como dispositivo de recursos naturais é uma leitura da sofística retórica e metafísica, encarnada na ciência moderna como império da técnica e da causalidade. Por isso, esta não fala apenas da terra como recursos naturais, também reduz o humano, no que lhe é próprio, a meros recursos humanos. Veja, tudo se torna recurso. Recurso é algo que pode exercer alguma função dentro de um sistema causal. E todo sistema é causal. O humano poder ter diferentes funções. É importante e faz parte de sua essência esse poder ser, mas reduzi-lo a FUNÇÕES é negar o que há de mais próprio no ser humano: sua liberdade não-funcional nem causal. Por isso, o humano só é essencialmente político quando se realiza em todas as suas potencialidades e não fica reduzido a funções técnicas e ideológicas. Nisso a educação, e mais ainda a universidade, está falhando. Lirismo é uma classificação das obras de arte a partir de gêneros. Classificar é uma tarefa sofística e retórica, baseada na causalidade de algum sistema e fundamentado na técnica enquanto medida causal. Toda técnica é usada para causar algo, daí a necessidade de classificar. Mas isso não diz respeito à POÉTICA, SÓ À TÉCNICA DE FAZER OBRAS. Terra, essencialmente, é zoé/ser, é um criar contínuo, isto é, gerar vidas novas e conduzi-las à plenitude de realização. Essa é a tarefa poética. Por isso, o ser humano quando tem uma determinada vivência diz a todo momento: sou isto, sou aquilo, isto é, vivo isto, vivo aquilo, mas onde o viver se dá como linguagem e sentido, isto é, corpo, obra de arte.

Como fazer para distinguir o mundo como questão e o mundo como conceito?

Muito simples: quando se adjetiva o mundo temos os conceitos. Por exemplo: mundo antigo, moderno, medieval, religioso, pagão, católico, cristão, oriental, ocidental, político etc. etc. Quando o ser humano se experiencia como linguagem e sentido, então temos mundo enquanto questão. Por isso a linguagem é a quarta dimensão do tempo. E se tempo é linguagem, e é, é mundo. Eis porque mundo jamais pode ser reduzido a conceitos. Questão não é algo que alguém pode ter ou não. Todo ser humano quando nasce já nasce dentro e a partir das questões. Já nasce na vida, que é questão, no tempo, que é questão, no mundo que é questão etc. etc.

O livro conta com artigos seus e também de outros docentes da UFRJ?

Sim. Foi uma escolha proposital para acentuar a interdisciplinaridade e, assim, apontar para uma universidade que está ainda por vir. Uma universidade nova, realmente nova, que não apenas faça do ser humano um recurso humano, mas seja o lugar de uma nova paideia, uma peideia poética, uma peideia que leve ao cultivo e ao apropriar-se do que é próprio a cada ser humano e que, portanto, seja essencialmente política. O próprio é a vida que cada um recebe para ser vivido e que em todos os seres vivos é diferente. O próprio é a afirmação mais radical das diferenças a partir e dentro do mistério da zoé, da vida, do ser. Uma universidade que oriente para a diversidade é a sua missão essencial. Claro que deve também desenvolver em cada ser humano suas potencialidades funcionais, mas não pode parar aí, como acima já explicamos. Daí a necessidade da interdisciplinaridade.


Um grande abraço, aguardarei retorno. Bruno
Eu é que agradeço pela oportunidade.Um grande abraço.Prof. Manuel
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