Toda Estética vigora na e a partir da essência do agir. Porém a essência do agir é um enigma que se dá, com certeza, numa dobra. O trágico do ser humano é que faz da dobra um duplo e assim acha que pode determinar a essência do agir pelo seu querer, manifesto na sua vontade. Sem o poder do não-querer, o destino, não há a vontade de poder querer. A essência da Poética é a essência do agir enquanto dobra: o vigorar óriginário de todo sendo do ser. A essência da Estética é a essência do agir enquanto duplo: fundamento e fundado, sujeito e fruição estética do objeto. A Estética é a astúcia da razão humana de achar que pode ultrapassar o fundamento racional pela racionalização do sentir. Seja no sentir, seja no raciocinar, ainda se move na causalidade, que é sempre medida lógica, isto é, racional, causal. O que é isto a causalidade?
Não se pode pensar a essência do agir poético, o da dobra, esse agir em que consiste nosso viver permanente e de todo instante, sem pensar a essência da necessidade, da possibilidade e da verdade. Só assim se pensa a dobra e não o duplo, só assim se pensa a liberdade originária. “Viver é nascer, crescer, amadurecer e morrer a todo instante. Vivendo, os homens vão experienciando a paixão de viver e aprendendo com esta experienciação. Pensar é a disciplina, a ascese e o ordenamento desta paixão” (Leão, 1997: 145). No e com o pensar o agir poético se torna ético. Não se pode pensar a essência do agir pelo sentir do agir, tantas vezes confundido com o sentir da agitação, seja dos sentidos, seja da razão. Aqui está todo o equívoco da Estética: achar que pode fundar o querer sentir no querer da vontade, ou seja, do sujeito, entendido desde Descartes, Kant, Hegel e Nietsche, depois, os epígonos como fundamento. Daí que toda a subjetividade se fundamenta na causalidade. Quem põe em questão a causalidade é Heidegger. Mas para compreendê-lo é necessário abrir-se para o pensar e acompanhar com ele toda a trajetórica causal da filosofia ocidental. Com Hölderlin ele retoma a não-causalidade como o destino. Daí a famosa afirmação de Hölderlin: "Apolo me feriu". Depois a loucura, como para Édipo a cegueira. A essência do agir causal é que fundamenta a Estética. A essência do agir não-causal funda a Poética. Fundar não é fundamentar.
Quando duvido só posso duvidar porque ajo a partir do radicar na essência do agir enquanto o não-querer de todo querer. Todo duvidar radica na essência do agir. Só deixamos de agir quando um outro agir nos toma e do qual nada podemos falar. Para agir essencialmente não basta viver, é necessário ser o que se vive e age. Portanto, trata-se sempre de pro-curar a essência do agir. Não é algo que podemos fazer ou não. É uma necessidade, mesmo que a ignoremos, pois em toda de-cisão já estamos previamente de-cidindo a partir da essência do agir como necessidade. Ser livre é abrir-se para a essência originária do agir, do ético-poético, do pensar. E isto inclui o que nos parece mais livre: a vontade de nosso querer. Eis porque pensar a essência do agir é pensar necessariamente a essência da necessidade e da liberdade. Não basta seguir os impulsos do querer da vontade. Só somos verdadeiramente sendo a partir de e com a essência originária: é a nossa necessidade essencial.
Mas justamente todas estas questões já se movem (essência da ação) na questão da linguagem (essência do sentido, da verdade e do ético). Somos livres para falar, mas não somos livres diante da linguagem, a partir da qual e só a partir da qual necessariamente é que podemos querer e falar. Há, pois, uma liberdade do querer ou não querer falar, mas esta liberdade radica na necessidade de sempre querermos a partir da linguagem como necessidade, mesmo quando queremos não querer. Não podemos limitar a linguagem à fala, pois ficar em silêncio é já radicar na máxima potencialidade da linguagem de todo sentido e fala. Ficar em silêncio é recolher-se ao ser do silêncio, de onde surge a compreensão, radicada, portanto, numa abertura de pré-compreensão, advinda no pensar do ser. Há, portanto, uma liberdade do querer ou do não querer falar, mas esta liberdade radica (originariamente) na necessidade de sempre querermos a partir da linguagem como necessidade. O poder inerente a toda liberdade radica num poder mais radical inerente ao que é o poder do poder falar, ou seja, da linguagem. O poder é a fonte do querer como possibilidades. Por outro lado, o querer é já desde sempre o vigorar do poder. Por ser o vigorar é que podemos sempre questionar. Mas só podemos questionar porque já estamos vigorando desde sempre nas questões assim como estamos já necessariamente vigorando na linguagem. O poder da linguagem é o poder do questionar: o vigorar das questões. Essa necessidade é que funda a liberdade em que já podemos querer e assim exercer nossa vontade, a que chamamos nosso livre exercício do agir, nossa liberdade. Esta, portanto, se origina da liberdade essencial, isto é, da liberdade que se funda na essência do agir. Este fundar-se é a necessidade essencial.
Ruy Castro, no jornal Folha de São Paulo, do dia 29-07-09, p. 2, trata dos viciados em crack, numa pequena crônica intitulada: Dependência e morte. No agir dos viciados se trata sempre da essência do agir, da essência da liberdade, da essência da necessidade, da essência da verdade e do agir ético. A contradição da liberdade, da essência do agir, manifesta-se num poder aparente, que aparece muito bem na situação (que exige já e desde sempre uma de-cisão sobre a essência do agir) que ele descreve: “Os dependentes (de crack) – surpreendidos pelos agentes sociais – não querem ir para o albergue porque sabem que lá não há crack e, para eles, ficou im-possível (grifo meu) viver sem crack. Na verdade o im-possível é viver com crack...”. A dobra de liberdade e necessidade fica bem clara aí no duplo emprego da palavra im-possibilidade (um emprego que radica na e a partir da linguagem e não a partir de uma semântica, pois aqui não se trata de uma situação semântica e formal. Nela se decide a essência do agir e da liberdade. Eis os limites da gramática e suas divisões, e da retórica). Note-se como o poder do querer e o poder do não-querer aparecem aí de uma maneira ambígua e essencial. O poder das possibilidades está contraposto duplamente e num des-dobramento, através da dupla negativa, que ora diz uma coisa ora diz outra totalmente oposta. A palavra é a mesma, mas o poder da linguagem é aí o poder da própria realidade, verdade e necessidade. É que o in/não de im-possibilidade radica no nada. Se esta palavra assusta, digamos, no poder do silêncio. Este tanto é positivo como é negativo, como fica bem claro no exemplo concreto e irrefutável do escritor, porque aqui querer refutar essa realidade é uma nescidade. Ambos os im-possíveis radicam no mesmo. Esse mesmo, sendo como é radical, radica no dobra e tensão de vida e morte. O viver me dá a aparente (porque aí aparece) liberdade do querer da vontade. O limite de tal liberdade (limite necessário) se encontra diante de algo que é mais radical: o morrer. Daí o título preciso: Dependência e morte. E esta é, para o querer, a im-possibilidade de todas as possibilidades. O paradoxo real e não apenas formal ou semântico e retórico da liberdade da vontade fica evidente e irrefutável: “...impossível viver sem crack”. Usando o crack, o viciado para viver mais e continuar esteticamente gozando o viver (eis os limites da estética) usa sua livre vontade. Para tal é “...impossível viver sem crack”. O impossível aparece, se dá como necessidade, mas como é ligado ao viver, parece e aparece como uma liberdade da vontade, da estética.
Porém, a morte irá nulificar tal vontade, tal querer estético, porque aquela não está escolhendo livremente viver. Estará necessariamente negando a vida e a liberdade que ela oferece para se lançar no fato de que “...impossível é viver com crack”. A liberdade em sua essência é negada porque o que seria ato livre se torna um fato irreversível, necessário. Quando o fato precede e determina o ato, deixa de haver liberdade essencial, deixa de haver a essência do agir. Há, portanto, o agir dos fatos e o agir dos atos. Que temos que falar é um fato, que podemos falar é um ato. Em todo ato de fala quem vigora sempre é a linguagem, falemos em que língua (fato) falemos. Quando nos recolhemos à linguagem do silêncio, podemos estar querendo negar alguma fala, mas esta fala não provém de nosso poder, mas do poder que o silêncio enquanto linguagem, já tem e diz. Tanto que podemos deixar o silêncio falar em muitas outras situações, em muitos outros atos: o silêncio dos inocentes, o silêncio dos condenados. Se não fosse o poder do silêncio nossos atos não teriam sentido. Todo ato e fato provêm da essência do agir. E como podemos deixar o silêncio falar em muitos e diferentes atos, isso diz que não estamos presos a fatos, como é o caso do viciado em crack. Ele não tem escolha, pois lhe é “...impossível viver sem crack”.
Ao resistir ao crack e à vontade estética de querê-lo como algo necessário, tal necessidade de resistir e de renúncia é que é a verdadeira liberdade e essência do agir. E assim é que na renúncia como liberdade necessária é que se dá a essência do agir. A renúncia não tira, dá. Aqui está o limite e contradição de toda estética. Pois na essência do agir o que decide não é o querer da vontade, uma vez que a essência do agir é o agir, não a partir da vontade, mas do agir da essência. Essência é o vigorar do que é em tudo que é. Este tem seu agir no vigorar do ser e não no agir do sujeito, pois o que o “eu” é é determinado pelo ser e não pelo “eu”. Quando digo “eu sou”, o alcance desse “eu” está na estrita dependência e determinação necessária do “sou”. Até para dizer “eu não sou”, só sendo o não-ser é que o “eu” pode se afirmar como é o que não-é. Ser é a necessidade essencial de todo “eu” (de todo sendo). Quando o “eu” se dimensiona pelo ser, então, o “eu” é e, sendo, é livre, porque ser é a essência da liberdade, da ação. A essência é o vigorar do ser.
Como se vê, há sempre uma dupla necessidade, uma dupla possibilidade, uma dupla liberdade. Porém, esta “dupla” existência real, onde todo ficcional poético (“O poeta é um fingidor” Pessoa, em “Autopsicografia”) encontra seu fundar, nos lança sempre na dobra de verdade e não verdade. Se considerarmos que vivencialmente a não-verdade se dá sempre como errância, mesmo quando temos como horizonte a essência do agir, ela deixará de vigorar na dobra, quando em lugar da errância a substituímos pelo erro e, assim, criamos uma oposição à verdade como ideia absoluta (inerente a todo sistema, seja ele qual for e em que época for), que não leve em consideração a errância ou existência que sempre vigora na dobra de verdade e de não-verdade. Não podemos julgar a verdade e não-verdade por um critério de verdade prévio, pois se assim for, estaremos vigorando e agindo de acordo com fatos prévios e não estaremos deixando vigorar o agir, o agir ser. Ele sempre se dá na dobra de não-verdade e verdade e só no agir é que podemos distinguir e julgar (krinein como criticar distinguindo, discernindo) o alcance da errância como verdade e não-verdade. Então a duplicidade se move sempre numa oposição e dicotomia que tanto pode acentuar, ou a ideia absoluta como modelo prévio do agir, ou a finita contingência de nossas escolhas, como é o caso do usuário de crack (e de todas as drogas, inclusive as estéticas ditas belas e sempre agradáveis, pois toda estesia pode ser o caminho mais rápido para a anestesia). A estesia tem sua medida no ético-poético e não no estético. A dicotomia não leva em consideração a proveniência e vigência da necessidade, da possibilidade e da verdade. Não leva em consideração a linguagem de toda língua, no sendo, o sentido do ser, este a necessidade essencial do agir. Só na dobra vigorante em todo ato, o sentido do ser como sentido da linguagem se torna tanto mais poético quanto mais ético. Sendo o poético-ético o vigorar do ser ao dar-se como linguagem. Neste sentido, estamos poeticamente sempre a caminho da linguagem. E, portanto, tal caminho será tanto mais ético quanto mais poético. Caminho diz, portanto, o agir a partir do sentido da linguagem como sentido do ser. Sentido em seu sentido constitutivo diz o caminho originário de onde se parte e aonde já desde sempre se chega. O caminho enquanto sentido é o destino, nosso destino. Enquanto caminho de necessidade e liberdade nosso destino, isto é, para o quê já desde sempre estamos destinados é o apropriar-nos do que nos é próprio: o que somos. Ser é verbo e não uma substância prévia, daí que apropriarmo-nos do que nos é próprio é sempre um eclodir no e pelo agir. Nesse sentido, destino é um consumar, um eclodir enquanto realização de plenitude. A plenitude acontece enquanto o pensar, que é a ascese da paixão de viver. A plenitude incorpora toda possível estesia na paixão do consumar, isto é, do levar ao sumo, onde razão, paixão e sentir são um e o mesmo. Os gregos chamaram a esta realização de plenitude télos. Télos é, portanto, não apenas todo agir causal, mas o levar à plenitude o que se é. O agir enquanto essência não é um agir enquanto meio para chegar a um fim (télos) dependente da causalidade. Enquanto télos, todo agir já se realiza enquanto o vigorar do que nos é próprio, nosso destino, não havendo, portanto, uma duplicidade entre o agir e o télos, entre o meio e o fim (télos). É na plenitude de ser que se ultrapassa toda causalidade. A causalidade não pode ter o fim em si, deve nos doar a confiabilidade do viver. Em todo ato o vigorar já vigora em sua plenitude, mas como esta não é um fim, mas uma consumação, a essência do agir tem sua medida no agir da essência, daquilo de quem recebemos nosso destino: o ser. Ser é verbo, o vigorar de todo agir. Ser então é a necessidade necessária.
Tudo isto diz que viver, mais do que deixar correr a vida e se deixar levar num querer da vontade, se torna uma tarefa poética incessante (tautologia), onde a dobra se desdobra e o homem se torna humano. É o pensar como experienciação da paixão de viver. Por isso, já nos disse Caeiro que pensar é amar. Em nada disto consiste a Estética, limitada à necessidade da causalidade. A estética não funda é fundada pela Poética, porque a Poética radica na essência do agir, é a essência do agir. É também o que Rosa considera ser a travessia – uma tarefa poética. Esta se dá no entre de nada e tudo. Dando-se no “entre”, toda nossa tarefa poética enquanto vigorar da necessidade, da liberdade e da verdade, consiste num acontecer poético onde no ordinário se dá o extra-ordinário: “Ethos anthropou daimon: a morada do homem, o extra-ordinário”. Heráclito, sentença 119.
Se é impossível viver sem crack e é impossível viver com crack, para o viciado, podemos agora dizer: Se é impossível viver só com o ordinário é porque é impossível viver sem o extra-ordinário. Eis aqui a liberdade e necessidade essencial. O ordinário da estética não me dá jamais o extra-ordinário do ético-poético, da liberdade e da necessidade essencial do agir. A Estética não passa de uma modalidade da causalidade subjetiva, em que se fundamenta a vontade de quem se lança nas vivências subjetivas, dando a impressão falsa de uma liberdade que responde e corresponde à necessidade de ser.
Em poética não basta conhecer. É necessário ser o que se conhece. Ser o que se conhece é apropriar-se do que é próprio. Este próprio é o que recebemos como destino, a Moira dos gregos.
Em poética não basta sentir. É necessário ser o que se sente.
Ser o próprio que se é, eis a essência do agir.
Bibliografia
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Definições de filosofia. In: Rev. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 130 / 131: 145, jul.-dez.,1997.