17 março 2009

A Poética e a Sofística: os discursos

 
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O surgimento e afirmação da Sofística acabou por dar início aos discursos, base das disciplinas, que se vão configurando na medida da afirmação de vocabulários e terminologias. Nisso vai ter papel central a Retórica. E é nesse horizonte dos discursos e sua apropriação que se funda a Sofística como Paideia. Formar o homem, plasmá-lo em determinado sentido e conhecimento é plasmá-lo no domínio de um vocabulário. É lhe dar uma identidade cultural. Neste vocabulário específico vão-se delineando os saberes. Aprender algo é apropriar-se do vocabulário em que ele está formado. Claro que o saber implica outras questões assim como a Sofística também se move em outras questões.
A Sofística vai se fundar na proposição e na tensão de significante e significado, de forma e conteúdo. O real (para os gregos to on) então será o real dos discursos no ensino da Sofística e da Retórica. E a linguagem será a língua dos discursos. A Paidéia sofística surge já de uma finalidade: a educação dos cidadãos da Pólis. Mas desde logo este ideal amplo se limita à formação dos futuros dirigentes da Pólis, dos líderes e magistrados. Foi o mesmo processo no Iluminismo e continua até os dias de hoje.
A Pólis enquanto organismo de poder se separa da aristocracia e de sua origem e estirpe mítico-religiosa. Mas todo exercício do poder se funda numa medida, em grego nómos. Na passagem da aristocracia para a democracia é a medida, a lei, que gera questões fundamentais. A Paidéia sofística tem como centro e origem a Pólis e suas leis, que se vão opor às leis que regiam o poder da aristocracia, ligada não à Polis, mas aos mitos e aos deuses, em última instância, à phýsis. Desde então todo processo de formação do homem tem uma base dupla em conflito: a cultura e a natureza. É no âmbito deste duplo que se gera a ideologia sofística, que vai determinar tudo com sua funcionalidade e finalidade. E, portanto, desde então submeterá a Poética e a Metafísica ao seu domínio.
A formação do homem, o ideal do homem, tem como fundo a Pólis em seus múltiplos sentidos. E ela consiste em levar o homem a ser plasmado na e pela Sophia, de onde vem o nome sofista, ou seja, aquele que ensina a Sophia. Mas devemos distinguir entre ensinar a sabedoria e ensinar o saber. Os sofistas ensinam o saber, pois muito se discute se a sabedoria pode ser ensinada. Do embate se configuram então três vias, três discursos: o poético; o sofístico; o metafísico. O metafísico procura fundamentar as questões que se dão no embate da Poética e da Sofística. A questão principal diz respeito ao fundamento do saber. Há um profundo embate entre Doxa e Episteme dentro da Sofística, pois a questão de fundo era se a sabedoria podia ser ensinada ou não, isto é, era objeto de mera doxa ou se dava dentro de um episteme. Que o saber, as técnicas podiam ser ensinadas e aprendidas (mathesis) isso era tranquilo. Mas será que dentro do saber também se poderia ensinar e aprender a areté?, ou seja, a virtude (no fundo trata-se da questão do ético). É nesse horizonte que se passa a determinar a verdade e a linguagem.
A Sofística elabora a Gramática para estudar a linguagem enquanto uso da língua com finalidade e funcionalidade (diríamos hoje expressão e comunicação), mas vai se servir dos conceitos metafísicos. Desde então, duas disciplinas profundamente ligadas estudam a linguagem: Gramática e Retórica. É que a Gramática faz do lógos, da linguagem, um conhecimento (episteme) lógico. Aqui já temos a de-cisão de reduzir o “sendo” verbal ao império do atributo. Este, enquanto lógico, se torna o determinante da verdade, isto é, ela fica reduzida aos atributos como algo verdadeiro. Porém, se a Gramática busca seu fundamento na Metafísica conceitual, a outra disciplina, a Retórica, parte deste domínio, mas acrescenta o âmbito próprio da Poética. É um âmbito complexo e paradoxal, que poderia ser enunciado numa palavra grega de sentidos amplos e originários: pathos. O paradoxo desta palavra é que tanto denomina a paixão, o envolvimento de todas as forças vitais, espirituais e psíquicas do homem, como também a dor. Dor e paixão andam juntas nas tragédias. Por exemplo, Édipo, Electra etc., como também nos poemas líricos. Estas forças do pathos são apropriadas pela Retórica para atingirem o peitho (o persuadir). Isto é muito importante saber, porque ocorreu no Ocidente um fenômeno estranho, decorrente da disputa em torno de uma palavra central e muito esquecida nos debates: nómos. O âmbito desta palavra é essencial e complexo, gerando sentidos diversos e paradoxais. Em torno dela dois caminhos se formam, ora num duplo, ora numa dobra. Mas a questão que sempre subjaz é a questão da essência originária do agir. Eis a questão: A essência do agir tem como originário o homem ou a physis?
Esta questão tem três respostas:
- É o homem para a Sofística;
- É o sagrado para a Poética;
- É o ser para a Metafísica.
Estas vias enviam para muitas sendas e sentidos e se misturam muitas vezes entre si ao longo do percurso ocidental. Daí a dificuldade de apreender o originário da obra de arte. Elas não são bem delimitadas e claramente apreensíveis. Pelo contrário, elas se entrelaçam, ora num duplo, ora numa dobra. Daí surgem os dois Ocidentes. De qualquer maneira as duas vias são importantes. Porém, a questão está sempre na redução de uma à outra, ou seja, da via poética à via sofística. Quando se procura recusar e negar esta determinação de maneira alguma se está negando a necessidade e importância da outra. Em palavras simples diria: pode-se ensinar o saber mas não a sabedoria. Isto significa: A Poética não pode ser reduzida à Sofística, mas isso não afirma que não seja importante o saber.
Quando a medida é o homem, a Sofística, através da Retórica, acaba por incorporar a Metafísica e a Poética, determinando-as. Então o estudo da Poética ocidental restringe-se ao estudo sofístico-retórico das produções poéticas, enquanto formas determinadas pelas técnicas retóricas. Um outro Ocidente, um outro percurso precisa ser estabelecido e feito. Modernamente da Gramática surgiu a Lingüística como estudo mais geral. Pois bem, alguns lingüistas quiseram fazer da Poética uma sub-disciplina da Lingüística. É o caso de Roman Jakobson.
Como a Gramática e a Retórica eram ensinadas tendo como finalidade a preparação dos dirigentes da Pólis, tudo se move dentro da ideologia política, mas tendo como pressuposto (em parte falso) a formação do cidadão. Isso explica em parte as leituras sociológicas dominantes na Modernidade até hoje e também a exigência do engajamento da literatura e da arte. E também todo o âmbito da Metafísica fica determinado pelo domínio sofístico da verdade da proposição. Na realidade, a Metafísica acaba por adotar a medida da Sofística – o homem – e ao mesmo tempo também dá à Sofística os conceitos que ela elabora. A Metafísica adotando a medida do homem acaba por reduzir a questão do ser ao ser do sendo enquanto sendo, nas diversas versões e traduções do on grego, no percurso ocidental. O que desde então fica esquecido nessas camadas de cinza da Metafísica sofística e da Sofística metafísica é o Sentido e Verdade do Ser. Para o pensamento a medida é o Ser e para a Poética a medida é o Sagrado. Ser e Sagrado são um e o mesmo.
Esse esquecimento, entre outras dimensões, se deu porque tanto a Sofística-retórica como a Metafísica sofística determinaram o Ser a partir da proposição. Desde então toda a Lógica – a doutrina da verdade - se funda na verdade da proposição. O ser da metafísica, enquanto o ser dos entes, é um ser atributivo como sujeito e predicados, fundamento e fundados, criador e criaturas, sujeito e objetos. E então na Modernidade tudo passou a ser determinado pela subjetividade que, no fundo, é a Sofística reafirmando o homem como medida. Essa medida é a razão. Na medida em que a ciência se funda no exercício da razão, toda ela provém da Sofística e se move dentro não só dos mesmos pressupostos, mas também tem em vista fins funcionais e utilitários. Os projetos e pesquisas já devem trazer sempre os fins e objetivos. Nada mais estranho à Poética do que fins e objetivos. A rosa, a vida, o canto, é sem por quê. Que a ciência se mova dentro dos conhecimentos técnicos também é uma decorrência do modelo sofístico. No fundo, para os sofistas a formação do homem tinha em vista a formação técnica, o poder ensinar o saber em sentido amplo, ou seja, onde predomina a téchne. Em grego téchne é sempre um conhecimento. Por saber entendemos hoje todo conhecimento científico e sua verdade. Porém, a questão para a Poética é: Pode-se ensinar o saber, mas pode-se ensinar a sabedoria, a virtude (areté)? Com a Retórica e a Sofística há um aprendizado. Com a Poética exige-se mais: uma aprendizagem, ou seja, o ético (virtude).
O importante a perceber é que também a Poética, no sentido retórico, tradicionalmente se reduziu ao aprendizado das técnicas retóricas. E quando se funda a Estética – o conhecimento oriundo da aisthesis -, esta é a visão metafísica da essência da arte que tem como fundamento a subjetividade. Mas, no fundo, é também ainda a Sofística enquanto subjetividade sensível retórica. Se inicialmente o pathos da Poética ficou a serviço da Retórica sofística, com fins político-ideológicos, agora na Modernidade, o pathos retórico fica a serviço de fins estéticos – centralizados nas formas, daí a posterior arte pela arte – ou também, numa continuidade ainda sofística, a serviço do Estado, substituto da Pólis. Sociologia da literatura, estudos culturais etc. não passam de uma postura com novas palavras e vocabulário da mesma Retórica sofística. Seus fins: a formação do homem consciente e ativo politicamente, num politicamente correto, isto é, num político formatado a priori. Correto ou verdadeiro é o que nas teorias propositivas, ou seja, sofísticas e retóricas, baseadas na proposição, se considera verdadeiro. No verdadeiro a verdade se torna um atributo. O que é verdadeiro para uns não necessariamente é verdadeiro para outros. Quando a medida é o homem (ente) a verdade se torna algo relativo. Só não se torna relativa a medida. Será?
E a determinação da “realidade” da Poética fica na dependência da determinação da verdade da Metafísica sofística ou da Metafísica subjetiva da Modernidade. Todas as artes são determinadas por estes âmbitos.
Porém, a questão da essência do agir, que diz respeito à medida do homem ou à medida da phýsis, tem dois encaminhamentos metafísicos enquanto a essência da sofística.
Em si, tanto a Poética como a Metafísica não têm uma origem sofística e seus desdobramentos retóricos. A Poética da poiesis, ou simplesmente Poética, tem como medida o sagrado, que, com as Musas, filhas da Memória, instaura as vozes dos poetas para ele falar nas e com as obras. Já a Metafísica originária pensa o Ser do sendo, ou seja, a essência originária de tudo que é e está sendo enquanto sendo do Ser. A essência originária (questão) é a dobra como vigor da realidade. A essência essencialista (conceitual) é o duplo de fundamento e fundado, como o estruturante da proposição ou o formante da forma, na medida em que esta é a representação da realidade (to on – o sendo). Todos os conceitos se limitam a serem representações universais abstratas.
O duplo esqueceu o originário da dobra e foi-se duplicando em diversos discursos ou disciplinas (em termos de conceitos uns não se distinguem dos outros), que segmentaram e segmentam a realidade até hoje. É o domínio da ciência, como essência essencialista da realidade. A Sofística, enquanto saber e formação do homem, também é um modo de revelar o sendo do homem e da realidade. A questão é que se tornou de tal maneira hegemônico que corre o perigo de se tornar o único. Esse é o perigo da técnica.
Hoje, em termos de arte, quando se quer saber dela, se pergunta logo pelo emprego de novas técnicas que, conjugadas com as formas, seriam o sinal do novo na arte. A apropriação das técnicas científico-sofísticas torna-se o horizonte das obras de arte, esquecida a questão que desde a origem se coloca: Pode a Sofística ensinar o saber e a sabedoria? Ensinar o saber (técnicas) pode, a sabedoria não. Ensinar a sabedoria é manifestar a realidade. E assim a realidade técnico-científica hoje se apresenta numa ramificação infinda de discursos e terminologias, que têm como fundamento a Metafísica essencialista, de origem sofístico-retórica. E hoje está surgindo cada vez com mais premência a questão da ética, num mundo e realidade sem valores. Como falar em valores sem tocar no que é essencial: a questão da medida?
Hoje, a realidade das obras de arte faz parte da segmentação científica da realidade e as obras de arte sofrem três assédios, pois a realidade enquanto realidade não é mais a questão, só os atributos:
1º. O dos estudos sofístico-retóricos em que elas são classificadas por atributos. O seu fulgor originário de manifestação da essência do agir da realidade e do homem, que deveria dar a medida do homem na e com a medida da realidade, perdeu-se nos descaminhos da Sofística-retórica e da Metafísica essencialista. O seu poder de Paideia poética ficou reduzida ao estudo de classificações atributivas das obras de arte e da literatura. Mero objeto passivo, formal e funcional. É mais importante estudar as formas do que o operar das obras. Mas será que o operar das obras poderá ser objeto de estudo ou só de experienciação?;
2º. Na segmentação da realidade pelos saberes científico-sofísticos (discursos), as obras ocupam os Museus, lugares aptos a exporem as obras segundo os atributos classificatórios. A única distinção das obras em depósito nos Museus e suas exposições, o saírem do estado de depósito, está em expô-las segundo critérios funcionais, classificatórios, formais, historiográficos. Nada mais estranho ao Museu, como depósito e exposição, do que a obra enquanto essência do agir, enquanto operar da verdade, do pathos do homem com e a partir da realidade em toda a sua densidade e enigmaticidade, seja interna, seja externa;
3º. A outra forma de existência está na conjugação do julgamento dos críticos e a determinação, pelos especialistas, do seu valor no amplo comércio e mercado das obras de arte. Elas são bens de compra e venda, de acordo com as regras do mercado. O preço quantitativo é determinado pelo valor resultante da interpretação e do juízo crítico sobre a obra e não e jamais a partir do valor da obra como obra. O valor ético-poético da obra, ou seja, a essência poética de seu agir jamais é pensada, até porque foge a qualquer apreciação critica, tendo como critério a medida do homem, (é a questão sofística do poder se ensinar ou não a areté) e a qualquer valoração de mercado. O significativo desta situação é que a obra comprada ou vendida tem dois destinos: ou vai para o cofre de um colecionador particular. Guarda-a no cofre como se guardasse barras de ouro. Ou vai para o acervo de um Museu, onde fica no depósito para eventual exposição.
O que de ético acontece em quem julga, em quem vê ou em quem compra, nunca está em causa. Mas será que pode haver obra de arte fora da questão da essência do agir? A obra de arte enquanto operar da verdade, e nisso consiste o ético, nos defronta com a medida que nos mede e a medida da realidade. A medida da obra de arte é sempre a medida da realidade enquanto téchne, pathos e poiesis. Esse “enquanto” traz para questão a memória como tempo no seu acontecer poético, porque, em última medida, a medida das obras de arte é o sagrado enquanto memória. A memória ou o sagrado é o Ser do sendo. Por isso, quando Heidegger se põe a questão do que é isto – a Metafísica, afirma: “O pensador diz o ser. O poeta nomeia o sagrado”.
Ao jogo de poder da Sofística, transfigurada na Ciência enquanto Metafísica essencialista, é que se deve a “fuga dos deuses”. O poder dos deuses está em fuga diante do poder da Sofística, modernamente tornada Ciência. É uma fuga que não cessa de se renovar e as armas poderosas pelas quais eles são postos em fuga continuam sendo os atributos. Tal fuga traz um perigo: o domínio planetário da técnica, não enquanto maquinário técnico, mas enquanto a determinação da essência do agir e sua medida pelo conhecimento do homem enquanto medida. Não deixa de ser um destino do ser. Mas o que em tal destino se nos destina? Não está na hora de voltarmos à mathesis e pathos de Édipo?
O que está sempre em causa é a humanidade do homem. O que entender aí por humanidade? É a essência do homem humano. Mas o que é isto – o humano? Vamos nos mover no âmbito sofístico-retórico, determinando o humano pelos atributos dos humanismos? Ou vamos pensar o isto do humano em sua essência poético-originário? Qual é a medida do critério? Em todo perguntar já está vigente um questionar. Mas questionamos porque sabemos e não sabemos. Procurar em todo saber o não saber é sempre a questão da Poética. Para a Sofística basta o saber da proposição e dos discursos. Tudo se resolve com o domínio dos discursos. Pois um discurso é a via do saber que ainda não se sabe mas pode ser aprendido. Mas jamais será a via da sabedoria. Diante desse impasse, o pensador Platão, assim explicou a palavra filosofia: A Sophia só cabe aos deuses. Ao homem apenas cabe a procura da sabedoria. Procurar a sabedoria é procurar o que nos é próprio. Isso, o próprio, os gregos diziam com a palavra philos. Porque não somos deuses, só nos cabe a procura da filosofia, ou seja, aquilo que nos é próprio: a philos-sophia. Nesse sentido, ser filósofo é a tarefa poética própria de cada um. Uma tal tarefa não cabe nos discursos, só na tarefa poética.

2 comentários:

Renata Moretzsohn disse...

Tenho ainda muito o aprender nesta vidam mas aprender para quê? Só se for para ser FELIZ.
Abraço afetuoso
sua discípula
Renata

Renata Moretzsohn disse...

estou lendo a sofística e a retórica, e elaborando mentalmente o meu projeto , que relacionará a literatura brasileira com as literaturas de línua inglesa , Virginia Woolf e Clarisse Linspector e/ou Adélia Prado,
Paz e Bem
Renata.