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Ensinar literatura é algo muito importante para a vida do aluno. Muita coisa pode ser decidida para o bem ou para o mal, dependendo do modo como o aluno irá para toda a sua vida ler e se relacionar com as obras de arte. Diz-se que um médico não pode errar na sua relação com o paciente? Mas isso também é valido para o professor de literatura. Uma relação equivocada e estéril com a literatura pode se tornar uma falha de enormes consequências. É que na leitura das obras de arte sempre está em jogo um lado ético. E isso um ensino equivocado da literatura pode abafar e destruir. As reflexões abaixo procuram chamar a atenção para esse aspecto decisivo. Levar alguém a desenvolver o conhecimento do que lhe é próprio pela leitura é dar um caminho de muitas possíveis realizações. E toda realização se decide pelo ou contra o ético.
A forma enquanto limite determinante tem sua delimitação no âmbito do que é racional e conceitual, e, por isso, é operacional ao nível do sistema, da estrutura de funcionamento em seu processar-se. A forma vive de conceitos que operam um conhecimento manipulável, segundo fins prévios ao que move o seu desenvolvimento, mas que pode também ser substituído e mudado. No âmbito da forma, a realidade conceitual se experiencia como um saber e não-saber, movendo-se no âmbito dos problemas e até das adivinhas. É o jogo do jogo, estabelecido sob formas racionais. Só habitam e transitam no âmbito do não-saber até se achar a solução, dada por cada jogo que termina segundo as regras do sistema conceitual. A forma vive desse jogo de saber e não-saber, ou seja, de um não-saber que ainda pode se tornar saber. Por isso, o estudo das formas nas obras artísticas determina o âmbito do seu agir e saber pelo conhecimento do que as formas delimitam e trazem do não-saber para o saber. As obras, do ponto de vista da análise formal, são como problemas e adivinhas à espera das soluções. As obras se tornam formas racionais com soluções racionais. Explicada a forma, está explicada a obra. Conhecer a análise e a explicação é afirmar e acreditar que se conheceu a obra. Caso esse pressuposto não seja verdadeiro, o que então se tem por finalidade e objetivo delas? E por que ensiná-las?
Na análise é sempre mais importante a forma do que a obra, até por uma questão de lógica. O operar da obra opera desfazendo limites e a pseudo-forma. Pseudo está aí se opondo a verdadeiro, mas não e jamais à verdade. A verdade não é uma questão de simples atributos. E um tal operar da obra opera onde é operável: no leitor. Todos, essencialmente, somos leitores. Isso só é possível porque tanto a obra como o leitor são operados, não pelas formas, mas pela linguagem. Um tal operar jamais é funcional, mas manifestativo. Um operar manifestativo é a realidade se dando como verdade. É sempre a linguagem que fala e falando, operando, convoca à escuta. O alcance da escuta não está em quem ouve, mas no alcance da escuta do operar sentidos e verdade da linguagem. A linguagem fala, não o homem. O homem só fala na medida do logos, correspondendo à sua voz, fala e convocação. Nesse diálogo de leitura pela escuta, é que entre-acontece o agir ético-poético da obra. É que ele radica num enigma que resiste a toda análise e explicação. Mas resiste dócil e amoroso, para que o leitor deixando-se tomar pelas questões, que constituem todo enigma, o leitor se deixe tomar pelo mistério do que ele é sendo. As formas no operar da obra enquanto o seu limite convocam ao pensar e ao experienciar no operar dos seus limites a vigência enigmática e misteriosa do não-limite. A força do limite e do dito é o vigorar do não-limite e do não-dito. Na obra de arte, a forma vigora para que de dentro e além dela opere a não-forma. E só assim o homem pode-se experienciar no mistério que o constitui.
Analisar e explicar e classificar obras de arte é não só inútil. É uma agressão ao que na obra opera: o extraordinário, o insólito, o ser, o sagrado. Quem muito crédito dá à análise e à explicação da obra de arte, nas mais diversas perspectivas e conhecimentos racionais, acaba por não prestar atenção ao próprio da obra de arte e, assim, não o deixando operar. O sistemático ensino das análises, explicações e classificações, genéricas, estéticas e ideológicas, das obras de arte, acabam por tolher completamente as possibilidades do agir das obras e as possibilidades de escuta de quem com elas dialoga. Viver é querer poder viver as possibilidades que nos possibilitam viver, ser, acontecer poeticamente.
Assim é que não se vê a obra, vê-se nela a análise explicativa como se o operar da obra pudesse ser demonstrado e trazido ao conhecimento, reduzindo-se a obra a um problema ou adivinha, que a análise soluciona e até explica racionalmente. Isso é tão nefasto e irreal, do ponto de vista do operar da obra, que seria como querer substituir a audição de uma verdadeira obra musical pela sua explicação das formas, dos movimentos estruturais, das soluções inovadoras etc. Com esses conhecimentos não só não se escuta a obra como também, pior, se obstruem as possibilidades de ela operar a partir do que lhe é próprio, e as possibilidades de escuta por parte do ouvinte do que na obra opera.
Mas o mesmo ocorre com a pintura, a literatura e todas as artes. A obra de arte, nenhuma obra, é constituída de formas redutíveis a limites determinados ou a limites de conhecimentos delas ou deles dados pelas análises, explicações, classificações. Toda obra de arte é um corpo vivo, pulsante, inaugural, em contínua e permanente possibilidade de entre-acontecer. Toda obra de arte é sendo. Por isso, a obra de arte opera quando entre-acontece o diálogo. Preparar um leitor para a arte é prepará-lo para o diálogo do que lhe é próprio pelo diálogo de auto-escuta. Toda obra de arte espera solícita e dócil este acolhimento. É que nela opera o enigma da referência essencial do homem e real, e entre-acontece o mistério do extraordinário, do insólito. Afirma o pensador e poeta G. Rosa: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (No conto “O espelho”). Nas obras de arte esse acontecer do milagre é a sua razão de ser. As análises e explicações do saber pretendem dar a solução do que na obra opera, mas se isso fosse possível, não teríamos mais obra e aquilo que a faz obra. Não teríamos mais a sedutora possibilidade e irredutível mistério de experienciar a vida como possibilidade sedutora e amorosa. Deixar o amor acontecer não é uma questão de vontade. É uma questão de renúncia, onde se re-anuncia o que nos faz ser amorosos. Em si, a renúncia não tira. Dá.
Se a vida fosse só forma e análise, tudo já, de antemão, poderia ser redutível e previsível a uma uni-formidade, a dos pressupostos da análise e da explicação. Fazer da vida um padrão genérico, conceitual, é aceitar o fazer técnico-científico, dentro do qual só é possível o previsível no sistema programado e experimentável dentro dos padrões do exato e do calculado.
Obra de arte, que todo ser humano pode ser, é um livre acontecer enquanto o entre-acontecer da liberdade. Esta é a verdade da realidade da obra de arte, que nenhuma análise ou explicação pode dar, presentear. Presentear? Sim, presentear pelo presentificar enquanto tempo e ser, ser e tempo. Obra de arte: o apelo da leitura como diálogo.