31 maio 2014

As doações do extraordinário


Manuel Antônio de Castro
(Discurso proferido na entrega do Título de Professor Emérito da UFRJ que me foi entregue pelo seu Reitor, na Casa da Ciência, em 22 de maio de 2014)
            Amigos:
Hoje é um dia de grande alegria, em que nos reunimos em congraçamento, um dia propício porque é tempo da chegada e da realização do que me foi doado em destino para ser. Por isso exige uma comemoração. É no comemorar que ele se plenifica, pois comemorar é pensar. Mas ficaria totalmente incompleto se não o comemorasse com todos aqueles que fizeram e fazem parte da minha caminhada poética. A festa, portanto, não é só minha, mas de todos nós aqui presentes e daqueles que, embora ausentes, estão presentes em pensamento. O pensar tem o poder de nos reunir verdadeiramente, porque no pensar não comemoramos apenas, somos comemorando. Comemorar é agradecer. E manifestamos com esta solenidade a gratidão. Unamo-nos no agradecer.
Mas o que é agradecer? Será que é possível agradecer sem se deixar tomar pela graça? Quero neste dia festivo me tornar grato. E mais: poder rememorar as paradas e passagens da minha caminhada, que se tornaram decisivas para que eu chegasse a ser prof. Emérito. Tornar-me emérito é ser reconhecido pelos méritos. Mas eles não são meus. A mim cabe apenas agradecer o ter-me sido dado tanto. Porém, quem me deu tanto? Sou levado necessariamente a procurar a fonte de tantos méritos, de onde brota tudo que recebi. E ausculto-me esperando o advento do Inesperado. De repente vem-me à memória uma passagem famosa da vida de um dos maiores pensadores do Ocidente: Heráclito de Éfeso, que continua viva e contemporânea depois de 2.500 anos. Narra-se: Heráclito de Éfeso, já famoso como pensador profundo, é procurado em sua casa por alguns visitantes curiosos, que querem conhecer ao vivo como é um pensador pensando. Os turistas visitantes, tomados apenas pela ânsia da curiosidade, dirigem-se à casa do pensador. Imaginam: Ah, que prazer novo será! Ver finalmente um pensador pensando, absorto em esplêndidas abstrações filosóficas, iluminado em êxtase e transfigurado. Aberta a porta, o que viram? Um ser humano como eles mesmos, tomado pelo frio na sua condição de mortal, aquecendo-se junto à lareira. Ficaram desiludidos. Mas o pensador, notando a grande decepção, fala-lhes: “Entrem. Aqui nesta casa, nesta lareira, também habita o extraordinário”. Não se narra como reagiram a tais palavras.
O que é o extraordinário, de que nos fala o pensador? Chamamos de extraordinário aquilo que sai do comum de cada dia, que eclode de dentro do ordinário, mas que dá sustentação ao próprio ordinário. Sem extraordinário não há ordinário. Em nossa vida cotidiana, ordinária, já mora e vigora o extraordinário. Diz Guimarães Rosa: “Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo”. Milagre é o acontecer do extraordinário. Em cada ato, em cada escolha nossa, já sempre se faz presente o extraordinário. Acolhê-lo nos momentos fáceis e difíceis de nossa vida é necessário. E mais: acolher e agradecer, pois o que somos sem ele? É essa presença do extraordinário em minha caminhada que quero publicamente agradecer.  Convido-os a nos voltarmos, todos unidos, para o extraordinário e agradecer. Pois ele também mora aqui neste salão.
Posso dizer que fui o destinado a ter três grandes famílias em minha vida, as três muito diferentes entre si: doações do extraordinário. Para mim, gênero humano é uma abstração conceitual-científica. Irmanados pela condição humana e sua finitude, todos somos diferentes. É o que descobriu recentemente a Genética e os poetas já sabiam há muito. Agradecendo os méritos doados pelo extraordinário, começo pela família de origem, toda ela nascida em Portugal. Foi-me doada uma família numerosa e carinhosa: somos onze irmãos. E aos setenta e três anos posso lhes dizer: aqui estão presentes nove. Lamento o passamento de minha querida irmã Helena. Tive pais maravilhosos, de comportamento ético inatacável. E reconheço em minha mãe o interesse pela minha formação futura. Agradeço ao extraordinário ter nascido nesta família. Emigrados para o Brasil em 1952, aqui ela cresceu. Muitos de meus parentes estão aqui e agradeço a sua presença. E o mais novo rebento dessa família tão numerosa também está aqui presente, meu queridíssimo neto de apenas oito meses, Bernardo, filho de Manuel Júnior, meu querido filho, e sua boníssima esposa, Flávia Braga. Presente também minha esposa e companheira de todas as horas, Elenice Groetaers de Moraes: sempre suave na quietude de sua doação. Meus queridos parentes, obrigado pela presença.
                        Canção excêntrica
Ando à procura de espaço
                               Para o desenho da vida
                               Em números me embaraço
                               E perco sempre a medida.
                               Se volto sobre o meu passo
                               É já distância perdida.
                               ................................................
                                (Cecília Meireles)
Ainda adolescente, a questão do sentido da vida, do tempo e do universo me invadiu. Assustava-me a efemeridade de tudo, o incessante pôr e depor do tempo, a incompletude dos bens pelos quais tanto se luta e mata. Eclodia, em minha vida, a crise, tempo de manifestação do extraordinário. Num gesto inesperado procurei a vida religiosa. O extraordinário me encaminhou para a segunda família. Ingressei no seminário franciscano, situado em Minas Gerais. Numa profunda solidão, tive de começar a ser responsável por mim aos quatorze anos. Longe da família original, só me restava a comunidade do seminário. Em momentos difíceis, dirigia-me para a capela. Em profundo silêncio, acolhia a graça do extraordinário. Seu intermediário foi frei Ismael, que, além de guia espiritual, era também amante das artes e amigo pessoal de Cecília Meireles. No seminário havia um clima cultural muito rico, encenávamos peças teatrais, declamávamos poesias, cantávamos em coro, tínhamos a revista A Alvorada, onde podíamos publicar. O dia a dia era regido pela disciplina. Disciplina verdadeira não é violência nem anula a liberdade. Disciplina não tira, dá. Ela é o livre cultivo de nossa finitude e liberta para o que podemos ser. Só visitava a família uma vez ao ano. Da minha saudosa turma está aqui presente o amigo Narciso Barbosa da Silva, com sua esposa, Flora. Obrigado pela presença. Após seis anos de intensos estudos, regidos pela fraternidade franciscana, nova mudança para continuar a formação, estudando filosofia. Viajamos para o Rio Grande do Sul. Tornei-me gaúcho, depois de ser português, carioca, mineiro. Descobri que identidade é algo muito maior que traços culturais. Identidade é possibilidade de ser.
Mais uma vez o extraordinário se manifestou, pois me destinou um dos mais importantes mestres da minha vida: Frei Cláudio Hummes, hoje Cardeal. A sua tese de filosofia tematizava a essência do agir. Como adentrar o sentido do tempo e do universo, sem pensar a essência do agir? Impossível. Agir não é apenas fazer, é mais. O fazer produz objetos, recursos humanos e materiais. Só a essência do agir conduz à realização daquilo que recebemos para ser, ao sentido poético do humano e não nos reduz apenas a funções e recursos Foi um momento propício para o desabrochar do que me tinha sido dado. Mérito meu? Não, doação do extraordinário. Dom Cláudio, em dois anos de intensos estudos, nos levou a mergulhar nas grandes questões da filosofia, em duas linhas complementares: de um lado, um profundo curso de história da filosofia, onde não se falava apenas sobre autores e obras, mas sobretudo pensávamos as questões e suas diferentes versões ao longo do tempo doador. Tempo e ser são a unidade das versões. Aprendi com esse mestre a arte do diálogo, que é a permanente dialética do acontecer da verdade, na escuta do outro. Reunidos pelo silêncio propício, dialogar, essencialmente, é interpretar interpretando-se. Em outra linha, nos conduziu pelos aliciantes caminhos das questões da metafísica.  E tudo isso incorporado à mais autêntica vivência das linhas mestras experienciadas por Francisco de Assis. Fiquei três anos sem visitar minha família de origem, inteiramente tomado pelo estudo da filosofia. As inquietações do adolescente, que resolveu procurar o sentido de sua vida, encontravam um encaminhamento de compreensão e amadurecimento.
Porém, o sentido do agir implica a verdade. O que é a verdade?, me questionava. Como pode haver caminho sem verdade? Verdade não é a própria autodescoberta do que recebemos para ser e o único caminho libertador? Se o próprio – a verdade - nos é doado pelo extraordinário, como se pode levar a verdade para alguém? Impossível. Como ter verdades prévias? Só me restava acolher a verdade da não-verdade, a fonte de toda verdade. Nova crise, momento propício para novos passos na caminhada.
A constante aprendizagem
Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem
e que amanhã recomeçarei a aprender.
Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza efêmera:
todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonhos, eternas.
Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência
dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo.
E do alto avisto os que folgam e assaltam, donos de riso e pedras.
Cada um de nós tem sua verdade, pela qual deve morrer.
De um lugar que não se alcança, e que é, no entanto, claro,
minha verdade, sem troca, sem evidência nem desengano
permanece constante, obrigatória, livre:
enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender.
 Cecília Meireles
Deixei o convento no final de 1964 e voltei para o Rio. Feito o vestibular, ingressei na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seria a minha terceira família: a universitária. Em 1969 terminei o curso de Letras. Minha formação filosófica precedente me dava outra fundamentação do que era a literatura e as outras artes. E de novo a mão do extraordinário se fez presente, levando-me ao encontro de Eduardo Portella, o maior crítico atuante naquele momento: um intelectual dotado de um pensar prismático e aberto ao acontecer da realidade. Desse encontro resultou o chamado, em 1970, para trabalhar com ele na Universidade e na editora que ele criara: a Tempo Brasileiro. Em numerosos cursos, abriu-me os caminhos do pensamento crítico. Em 1971 iniciei a pós-graduação. E o extraordinário colocou em meu caminho mais um grande mestre: Afrânio Coutinho. De uma energia e coragem ímpares, franco e aberto, aprendi com ele o antidogmatismo. Seus cursos de profunda erudição eram contínuas aberturas de conhecimento. E um terceiro grande pensador marcou essa fase: Emmanuel Carneiro Leão. Conhecedor profundo da filosofia antiga, medieval e moderna, seus cursos na pós-graduação serão sempre memoráveis pelo incessante convite ao pensar. E mais: teve uma formação também franciscana, bem visível em seu jeito simples e despojado de ser. Rememorando rapidamente estes três mestres tão diferentes e complementares entre si, deixam-me somente uma atitude: a do agradecimento ao extraordinário, que me sinalizava com eles o caminho que me foi dado para ser. Havia também a convivência fraterna com os amigos e colegas do departamento de Ciência da Literatura. Desde a primeira hora, amiga fraterna foi Helena Parente Cunha, poetisa de grande criatividade, a quem admiro muito. Encontrar tais mestres não era mérito meu. Tudo fazia parte do que o extraordinário me doou, porque ele não só dá o que somos, mas também os encontros e desencontros, oportunidades de caminharmos na difícil consumação do que somos. Só me resta agradecer.
Iniciado o magistério na UFRJ em 1970, começaram os encontros memoráveis com meus alunos. Meus alunos? O que é um aluno, poeticamente considerado? Eu não via diante de mim apenas alunos que tinham de aprender o que eu tinha a ensinar. Sempre tomado pelas questões, me perguntava: O que é ensinar? O que é aprender? Eu via mais do que alunos diante de mim, via seres humanos à procura de sua realização, que tínhamos em comum a tarefa de sabermos o não-saber e sermos o não-ser. Estes igualam a todos. E no diálogo com cada um como aprendi o não-saber! Ao longo destes quarenta e quatro anos foram muitos, incontáveis, os que corresponderam. De repente se descobriam diante deles próprios, diante de sua tarefa poética de serem o que conheciam e muito mais o que não conheciam em seu ser e não-ser. Só há não-saber porque há não-ser. Essa é a nossa riqueza poética, libertadora.
E com isso entrávamos no cerne da própria Universidade, questionando-a. A realidade explode em profundas transformações e como responde a Universidade a esse desafio? Não devemos pensar a Universidade do porvir? Podemos continuar com o modelo até agora vigente?  Questionar não é excluir, é conduzir ao cerne das questões. E é isso que a Universidade tem esquecido, adormecida pelo sono dogmático da lógica de todo saber científico. Universidade não diz em sua origem exclusivamente saber científico, pois a ciência não deve ser excludente, em nome de uma verdade somente lógica. Universidade diz a procura do uno de toda a realidade, de todas os seres do universo, sem exclusão. Diz a unidade das diferenças nas suas diferenças. Para pensá-la só há um caminho: a verdade da procura da essência do agir. E este advém na ética. Ética não é moral, conjunto de valores de um determinado sistema, com este já dados, e excludentes porque fundamentados numa verdade única, a do sistema. Ética é o próprio da Uni-versidade, o compromisso com o humano de todos os seres humanos, na unidade de verdade e não-verdade do uni-verso. Temos, portanto, de repensar a Universidade a partir do ético como verdade e unidade de tudo que é e não-é, sem qualquer exclusão, mas numa dialética universal de inclusão infinita, permanente. Na ética há o compromisso da Universidade com o humano e sua habitação: a mãe terra. Esse sempre foi o motivo da criação de todas as grandes obras de arte e de pensamento, e de todos os cientistas pensadores. Como questão sempre perdura em todas e em todos a pergunta: O que é isto o humano? Isto foi o que a Poética sempre defendeu, defende e defenderá.
Eu entrava na sala de aula sobretudo para ensinar a questionar e a pensar, somente possíveis quando, além do ensinar, temos com nossos alunos de aprender o não-saber. Cada ser humano é um mistério que tem de ser respeitado em sua identidade poética. Somente assim há verdadeira comunidade social. Descobri e descubro, na convivência fraterna, minha finitude efetiva, paradoxalmente nossa riqueza poética, libertadora.

       Em 1998 tornei-me Titular de Poética. Junto com o prof. Antonio Jardim, Dr. em Poética, excelente compositor e meu querido amigo, ampliamos o atuar da Poética para outros campos artísticos: literatura, música, teatro, artes-plásticas, dança, em perfeita sintonia com a convivência contemporânea de todas as formas artísticas. O resultado é auspicioso: já criamos cinco núcleos em diferentes Estados e Instituições, para levar a proposta poética de unidade entre ciência, arte e pensamento. Academicamente estimulamos as pesquisas e publicações coletivas. Não poderia deixar de mencionar dois livros publicados em minha homenagem quando completei setenta anos e caí na compulsória. Eles demonstram a fraternidade que une e reúne a todos que se congregam no site Rede Poética. São eles: Permanecer silêncio, organizado por Igor Fagundes, Dr. em Poética e hoje professor da Escola de Dança da UFRJ, poeta profundo e ensaísta brilhante. Nele escreveu um substancial estudo dos livros e ensaios de minha autoria, além de reunir ensaios de professores em minha homenagem. O outro tem o título: Poética e diálogo: caminhos do pensamento, organizado por Fábio Santana Pessanha, Bianka Barbosa, Antônio Máximo Ferraz e Maria Ignez de Souza Calfa, reunindo este ensaios de alunos e ex-alunos meus. Criamos também, na Editora Tempo Brasileiro, a Coleção Pensamento Poético, para publicação dos trabalhos realizados no horizonte da Poética. Os livros publicados estão ali expostos. Em breve sairão mais dois livros coletivos: Convite ao pensar e Educar poético. Verão também uma foto da folha de Apresentação do dicionário digital de Poética e Pensamento, que criei. Não se trata de um dicionário semântico, mas algo novo que exige daquele que o consulta o pensar, pois não dá definições, mas provocações dos mais diversos autores e épocas. 
A Universidade de hoje vive o desafio do contemporâneo e seu porvir. Ele nos mostra não apenas um novo tempo do tempo, uma nova memória da memória, um novo ser do ser. Não, o contemporâneo, nosso tempo acontecendo, nos presenteia com possibilidades jamais antes pensadas. Mas o que estamos fazendo com elas? O que este nosso contemporâneo e todas essas possibilidades infinitas estão fazendo conosco? Estamos abolindo as violências físicas e morais, aceitando e convivendo cada vez mais com as diferenças? Estamos cada vez mais fraternos? Estamos respeitando o que cada um é sem o querermos adequar à nossa imagem e semelhança? Estamos ensinando o que não se sabe, mas também aprendendo o não-saber? O ser humano foi feito para se realizar em seu próprio, naquilo que recebeu e não para se adequar seja lá a que sistema salvador for. Somos libertariamente todos diferentes pelo simples fato de sermos. À Universidade resta a dificílima tarefa de, além de se repensar, criar e oferecer a todos os cidadãos as mesmas condições de se apropriarem de seu próprio, com respeito e dignidade. E o caminho da verdade, do sentido, da liberdade, é o ensinar e aprender o não-saber.
Neste dia em que recebo este título de Professor Emérito da UFRJ – mais uma doação do extraordinário - pelas mãos do Magnífico Reitor, em nome do Conselho Universitário, não poderia deixar de agradecer às diferentes instâncias em que a proposta foi aprovada, em todas por unanimidade. Por isso proclamemos fraternalmente que a festa é de todos nós, de todos que estejam abertos não apenas para sentirem e conhecerem, mas para serem o que sentem e conhecem, sempre poeticamente.  Fundando-nos no poder transformador do extraordinário, fonte inesgotável de tudo que é, não é e vem a ser, unamo-nos pela Universidade do porvir, onde o humano seja a unidade das diferenças: possibilidades do extraordinário.
Por tudo isso só me resta agradecer.
E a todos a minha gratidão pela presença.