Prof. Manuel Antônio de Castro
Eis, caro leitor, uma provocação.
Você foi educado para o questionar? Aceita tudo passivamente ou transforma toda
afirmação em uma real pergunta, em uma questão? Você tem certeza de tudo que
afirma e os outros afirmam? Se a vida é um enigma, como podemos viver de
certezas, melhor, sem questionar? Lendo o texto abaixo você terá depois mais
motivos para sempre questionar. Assim espero. Não para acreditar no que eu digo
e aí escrevi, mas para você se descobrir em seu próprio, aquilo que recebeu
para ser. Boa viagem pelo caminho da vida que é uma travessia poética.
Em geral aceitamos muito passivamente os valores e
idéias que nos são transmitidas e dadas como certas por tradição, seja familiar,
seja cultural, seja de formação escolar. Contudo, tais ideias ou conceitos variam
de acordo com as épocas e, normalmente, estão relacionados a circunstâncias culturais
e histórico-científicas. A ciência nas suas versões também é temporal e epocal,
embora os conceitos pretendam ter uma validade tanto mais universal quanto mais
absoluta, quando, na verdade, dependem de teorias, de interesses ideológicos e
culturais. O que algo ou alguém diz realmente
é sempre questionável. Uma libertação de todas essas imposições e dos lugares
comuns, da aceitação passiva onde domina a banalização, é essencial para que
nos afirmemos naquilo que nos é próprio e sempre diferente: o que somos, embora
necessariamente na unidade do ser. Mas
o que somos, somente somos no horizonte das questões. E o que somos é uma
doação (dizia o pensador Platão: eidos,
e o mito: moira). Aquilo que somos
somos enquanto necessidade e possibilidades. É nesse sentido que não
somos nós que temos as questões. Elas é que nos têm e dão o sentido do existir.
Por isso, entre possíveis caminhos, certamente o mais produtivo e o que
possibilita um enriquecimento e inovações contínuas é o questionar, porque desenvolve as possibilidades do que nos foi dado
e recebemos para ser, porque o ser é sempre o sentido do destinar-se do ser nas
e como questões.
É no horizonte do questionar que surge o criticar, ou seja, a possibilidade de
construir uma consciência crítica.
Porém, não há consciência crítica sem crítica da consciência. Consciência não é
tudo, porque depende do ver e não-ver, do imaginar e não-imaginar, do dizer e não-dizer,
advindos no escutar, no desvelar e velar. Não podemos de maneira alguma achar
que uma consciência crítica é aquela que se estrutura em verdades já feitas, em
conceitos intocáveis, em teorias irrevogáveis e não ultrapassáveis. Consciência
não passa de um saber que se sabe, isto é, de um saber que se quer
auto-fundamentar, enfim, de um saber e um não-saber, nada intocável e
definitivo, completo. Consciência é uma trajetória de libertação pelo conhecimento
enquanto exercício contínuo e irrevogável do questionar. Este é o exercício cotidiano e incessante de nos
abrirmos para o sentido das questões
que já desde sempre nos constituem naquilo que somos. Porém, questões não são
conceitos. Como as questões não têm uma resposta única, mas solicitam nossa
escuta e nossa práxis, elas são radicalmente dinâmicas e inscritas no que somos,
na medida em que chegamos a ser o que somos no como somos, no concreto viver
e experienciar-nos sendo o que não somos na práxis
poética do como somos e temos necessidade de ser. Práxis é sempre existência, recepção do que se dá no escutar do
pensar, do agir do pensar. O pensar é sempre o agir do sentido do ser, do
sentido do que recebemos para ser, ou seja, a medida do humano e possiblidade
de todo humanismo.
Contudo, a relação entre questionar
e ter uma consciência crítica acontece no
dialogar, não só conjuntural, mas
também epocal, numa dialética de recepção e renovação criativa, poética, onde
não há modelo, paradigma ou teorias prévias. É que uma questão gera outras
questões. Desse modo toda resposta que se recebe ou cria, imagina, figura, torna-se
o núcleo gerador de novas perguntas, sempre dentro do horizonte poético do
acontecer da realidade, um acontecer que é circular numa dialética sempre
inclusiva e jamais excludente e exclusiva. (Nesse horizonte foi criado o
dicionário digital de Poética e pensamento,
cujo endereço é: www.dicpoetica.letras.ufrj.br. Abra qualquer
palavra e se pergunte depois de ler as diferentes colocações qual é a resposta certa. Será obrigado a
exercitar o distinguir/diferenciar e a optar por um caminho que, fundado na
escuta de se compreender e auto-compreender, deverá ser o seu, passível de
novas perguntas e respostas). O ser humano é justamente humano por já desde
sempre mover-se nesse “entre”, nesse “polemos”,
de saber e não-saber, porque originariamente já é e não é. Portanto, em toda pergunta como em toda resposta há sempre
e inevitavelmente um logos de limite
e não-limite. É o que alimenta e torna a vida um caminho poético, inaugural, alegre,
renovado, no desafio de chegar à plenitude do que se é, isto é, do que se
recebeu para ser na plenitude (telos, diziam
os gregos) do seu sentido. E isto é único, intransferível, desafiador, poético,
libertador.
Poética é o caminhar no e do caminho que gera as
obras e arte. E arte enquanto obra é esse operar do caminho no e pela vigência
do logos, da linguagem. Temos aí a essência da leitura como diálogo consigo
mesmo e com os outros. Nele não pode haver uniformidade de pensamento, mas
exercício aberto da aceitação do outro (que somos nós mesmos) e dos outros em
suas diferenças. Recepção é recepção das diferenças, pois dialogar é a tarefa
cotidiana de experienciá-las. Receber e acolher as diferenças é o caminho libertador
e pacífico e fraterno da convivência social porque humana. Como disse o
pensador Heráclito, quem não espera não encontra o inesperado, sem vias de
acesso ou caminhos prévios. Questionamento não é intransigência, mas
apropriação de conhecimento numa dinâmica própria sem formatação das mentes e
dos corações.
Questionar para criticar e criticar
para dialogar deve ser sempre o horizonte de toda apropriação de conhecimentos
que nos levem à apropriação do que somos, a nossa identidade, no como somos, enquanto abertura para
recebermos e acolhermos o sentido do que somos, pois criticar é distinguir
diferenciando. Criticar não é, em sua essência, ser chato e dono da verdade,
vendo em tudo só o negativo. Ver os próprios limites também é criticar. Quem
não vê o que não se vê e nem chega a mostrar-se no permanente desvelamento e
velamento dialético, em verdade, nem pode criticar.
Você foi educado para o questionar, a dúvida
saudável de que sabe que não sabe em tudo que sabe? Que tal fazer um exercício
de questionamento?
Transforme as afirmações a seguir
em questões.
1ª. Se você se vestir dessa maneira irá contra sua
identidade cultural e perderá a identidade e autenticidade.
2ª. Não é
verdade que somos todos iguais e temos o mesmo destino.
3ª. A
literatura é a arte da linguagem e a linguagem é um produto social.
4ª. O
conhecimento da literatura é o conhecimento dos estilos, das formas, da época
histórica, da fortuna crítica das obras, ou seja, da sua recepção, da
representação verdadeira, da concepção política dominante e das influências e
condições sócio-econômicas.
5ª. O que
é real é lógico e o que é lógico é verdadeiro. Portanto, o que é verdadeiro é
real.
6ª. Tendo
em vista as questões acima sugeridas, transforme em questões esta afirmação do
pensador e poeta Guimarães Rosa: “Tudo é e não é” (Grande sertão: veredas. 6. ed. Rio de Janeiro: 1968, p. 12).