31 maio 2014

As doações do extraordinário


Manuel Antônio de Castro
(Discurso proferido na entrega do Título de Professor Emérito da UFRJ que me foi entregue pelo seu Reitor, na Casa da Ciência, em 22 de maio de 2014)
            Amigos:
Hoje é um dia de grande alegria, em que nos reunimos em congraçamento, um dia propício porque é tempo da chegada e da realização do que me foi doado em destino para ser. Por isso exige uma comemoração. É no comemorar que ele se plenifica, pois comemorar é pensar. Mas ficaria totalmente incompleto se não o comemorasse com todos aqueles que fizeram e fazem parte da minha caminhada poética. A festa, portanto, não é só minha, mas de todos nós aqui presentes e daqueles que, embora ausentes, estão presentes em pensamento. O pensar tem o poder de nos reunir verdadeiramente, porque no pensar não comemoramos apenas, somos comemorando. Comemorar é agradecer. E manifestamos com esta solenidade a gratidão. Unamo-nos no agradecer.
Mas o que é agradecer? Será que é possível agradecer sem se deixar tomar pela graça? Quero neste dia festivo me tornar grato. E mais: poder rememorar as paradas e passagens da minha caminhada, que se tornaram decisivas para que eu chegasse a ser prof. Emérito. Tornar-me emérito é ser reconhecido pelos méritos. Mas eles não são meus. A mim cabe apenas agradecer o ter-me sido dado tanto. Porém, quem me deu tanto? Sou levado necessariamente a procurar a fonte de tantos méritos, de onde brota tudo que recebi. E ausculto-me esperando o advento do Inesperado. De repente vem-me à memória uma passagem famosa da vida de um dos maiores pensadores do Ocidente: Heráclito de Éfeso, que continua viva e contemporânea depois de 2.500 anos. Narra-se: Heráclito de Éfeso, já famoso como pensador profundo, é procurado em sua casa por alguns visitantes curiosos, que querem conhecer ao vivo como é um pensador pensando. Os turistas visitantes, tomados apenas pela ânsia da curiosidade, dirigem-se à casa do pensador. Imaginam: Ah, que prazer novo será! Ver finalmente um pensador pensando, absorto em esplêndidas abstrações filosóficas, iluminado em êxtase e transfigurado. Aberta a porta, o que viram? Um ser humano como eles mesmos, tomado pelo frio na sua condição de mortal, aquecendo-se junto à lareira. Ficaram desiludidos. Mas o pensador, notando a grande decepção, fala-lhes: “Entrem. Aqui nesta casa, nesta lareira, também habita o extraordinário”. Não se narra como reagiram a tais palavras.
O que é o extraordinário, de que nos fala o pensador? Chamamos de extraordinário aquilo que sai do comum de cada dia, que eclode de dentro do ordinário, mas que dá sustentação ao próprio ordinário. Sem extraordinário não há ordinário. Em nossa vida cotidiana, ordinária, já mora e vigora o extraordinário. Diz Guimarães Rosa: “Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo”. Milagre é o acontecer do extraordinário. Em cada ato, em cada escolha nossa, já sempre se faz presente o extraordinário. Acolhê-lo nos momentos fáceis e difíceis de nossa vida é necessário. E mais: acolher e agradecer, pois o que somos sem ele? É essa presença do extraordinário em minha caminhada que quero publicamente agradecer.  Convido-os a nos voltarmos, todos unidos, para o extraordinário e agradecer. Pois ele também mora aqui neste salão.
Posso dizer que fui o destinado a ter três grandes famílias em minha vida, as três muito diferentes entre si: doações do extraordinário. Para mim, gênero humano é uma abstração conceitual-científica. Irmanados pela condição humana e sua finitude, todos somos diferentes. É o que descobriu recentemente a Genética e os poetas já sabiam há muito. Agradecendo os méritos doados pelo extraordinário, começo pela família de origem, toda ela nascida em Portugal. Foi-me doada uma família numerosa e carinhosa: somos onze irmãos. E aos setenta e três anos posso lhes dizer: aqui estão presentes nove. Lamento o passamento de minha querida irmã Helena. Tive pais maravilhosos, de comportamento ético inatacável. E reconheço em minha mãe o interesse pela minha formação futura. Agradeço ao extraordinário ter nascido nesta família. Emigrados para o Brasil em 1952, aqui ela cresceu. Muitos de meus parentes estão aqui e agradeço a sua presença. E o mais novo rebento dessa família tão numerosa também está aqui presente, meu queridíssimo neto de apenas oito meses, Bernardo, filho de Manuel Júnior, meu querido filho, e sua boníssima esposa, Flávia Braga. Presente também minha esposa e companheira de todas as horas, Elenice Groetaers de Moraes: sempre suave na quietude de sua doação. Meus queridos parentes, obrigado pela presença.
                        Canção excêntrica
Ando à procura de espaço
                               Para o desenho da vida
                               Em números me embaraço
                               E perco sempre a medida.
                               Se volto sobre o meu passo
                               É já distância perdida.
                               ................................................
                                (Cecília Meireles)
Ainda adolescente, a questão do sentido da vida, do tempo e do universo me invadiu. Assustava-me a efemeridade de tudo, o incessante pôr e depor do tempo, a incompletude dos bens pelos quais tanto se luta e mata. Eclodia, em minha vida, a crise, tempo de manifestação do extraordinário. Num gesto inesperado procurei a vida religiosa. O extraordinário me encaminhou para a segunda família. Ingressei no seminário franciscano, situado em Minas Gerais. Numa profunda solidão, tive de começar a ser responsável por mim aos quatorze anos. Longe da família original, só me restava a comunidade do seminário. Em momentos difíceis, dirigia-me para a capela. Em profundo silêncio, acolhia a graça do extraordinário. Seu intermediário foi frei Ismael, que, além de guia espiritual, era também amante das artes e amigo pessoal de Cecília Meireles. No seminário havia um clima cultural muito rico, encenávamos peças teatrais, declamávamos poesias, cantávamos em coro, tínhamos a revista A Alvorada, onde podíamos publicar. O dia a dia era regido pela disciplina. Disciplina verdadeira não é violência nem anula a liberdade. Disciplina não tira, dá. Ela é o livre cultivo de nossa finitude e liberta para o que podemos ser. Só visitava a família uma vez ao ano. Da minha saudosa turma está aqui presente o amigo Narciso Barbosa da Silva, com sua esposa, Flora. Obrigado pela presença. Após seis anos de intensos estudos, regidos pela fraternidade franciscana, nova mudança para continuar a formação, estudando filosofia. Viajamos para o Rio Grande do Sul. Tornei-me gaúcho, depois de ser português, carioca, mineiro. Descobri que identidade é algo muito maior que traços culturais. Identidade é possibilidade de ser.
Mais uma vez o extraordinário se manifestou, pois me destinou um dos mais importantes mestres da minha vida: Frei Cláudio Hummes, hoje Cardeal. A sua tese de filosofia tematizava a essência do agir. Como adentrar o sentido do tempo e do universo, sem pensar a essência do agir? Impossível. Agir não é apenas fazer, é mais. O fazer produz objetos, recursos humanos e materiais. Só a essência do agir conduz à realização daquilo que recebemos para ser, ao sentido poético do humano e não nos reduz apenas a funções e recursos Foi um momento propício para o desabrochar do que me tinha sido dado. Mérito meu? Não, doação do extraordinário. Dom Cláudio, em dois anos de intensos estudos, nos levou a mergulhar nas grandes questões da filosofia, em duas linhas complementares: de um lado, um profundo curso de história da filosofia, onde não se falava apenas sobre autores e obras, mas sobretudo pensávamos as questões e suas diferentes versões ao longo do tempo doador. Tempo e ser são a unidade das versões. Aprendi com esse mestre a arte do diálogo, que é a permanente dialética do acontecer da verdade, na escuta do outro. Reunidos pelo silêncio propício, dialogar, essencialmente, é interpretar interpretando-se. Em outra linha, nos conduziu pelos aliciantes caminhos das questões da metafísica.  E tudo isso incorporado à mais autêntica vivência das linhas mestras experienciadas por Francisco de Assis. Fiquei três anos sem visitar minha família de origem, inteiramente tomado pelo estudo da filosofia. As inquietações do adolescente, que resolveu procurar o sentido de sua vida, encontravam um encaminhamento de compreensão e amadurecimento.
Porém, o sentido do agir implica a verdade. O que é a verdade?, me questionava. Como pode haver caminho sem verdade? Verdade não é a própria autodescoberta do que recebemos para ser e o único caminho libertador? Se o próprio – a verdade - nos é doado pelo extraordinário, como se pode levar a verdade para alguém? Impossível. Como ter verdades prévias? Só me restava acolher a verdade da não-verdade, a fonte de toda verdade. Nova crise, momento propício para novos passos na caminhada.
A constante aprendizagem
Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem
e que amanhã recomeçarei a aprender.
Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza efêmera:
todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonhos, eternas.
Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência
dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo.
E do alto avisto os que folgam e assaltam, donos de riso e pedras.
Cada um de nós tem sua verdade, pela qual deve morrer.
De um lugar que não se alcança, e que é, no entanto, claro,
minha verdade, sem troca, sem evidência nem desengano
permanece constante, obrigatória, livre:
enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender.
 Cecília Meireles
Deixei o convento no final de 1964 e voltei para o Rio. Feito o vestibular, ingressei na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seria a minha terceira família: a universitária. Em 1969 terminei o curso de Letras. Minha formação filosófica precedente me dava outra fundamentação do que era a literatura e as outras artes. E de novo a mão do extraordinário se fez presente, levando-me ao encontro de Eduardo Portella, o maior crítico atuante naquele momento: um intelectual dotado de um pensar prismático e aberto ao acontecer da realidade. Desse encontro resultou o chamado, em 1970, para trabalhar com ele na Universidade e na editora que ele criara: a Tempo Brasileiro. Em numerosos cursos, abriu-me os caminhos do pensamento crítico. Em 1971 iniciei a pós-graduação. E o extraordinário colocou em meu caminho mais um grande mestre: Afrânio Coutinho. De uma energia e coragem ímpares, franco e aberto, aprendi com ele o antidogmatismo. Seus cursos de profunda erudição eram contínuas aberturas de conhecimento. E um terceiro grande pensador marcou essa fase: Emmanuel Carneiro Leão. Conhecedor profundo da filosofia antiga, medieval e moderna, seus cursos na pós-graduação serão sempre memoráveis pelo incessante convite ao pensar. E mais: teve uma formação também franciscana, bem visível em seu jeito simples e despojado de ser. Rememorando rapidamente estes três mestres tão diferentes e complementares entre si, deixam-me somente uma atitude: a do agradecimento ao extraordinário, que me sinalizava com eles o caminho que me foi dado para ser. Havia também a convivência fraterna com os amigos e colegas do departamento de Ciência da Literatura. Desde a primeira hora, amiga fraterna foi Helena Parente Cunha, poetisa de grande criatividade, a quem admiro muito. Encontrar tais mestres não era mérito meu. Tudo fazia parte do que o extraordinário me doou, porque ele não só dá o que somos, mas também os encontros e desencontros, oportunidades de caminharmos na difícil consumação do que somos. Só me resta agradecer.
Iniciado o magistério na UFRJ em 1970, começaram os encontros memoráveis com meus alunos. Meus alunos? O que é um aluno, poeticamente considerado? Eu não via diante de mim apenas alunos que tinham de aprender o que eu tinha a ensinar. Sempre tomado pelas questões, me perguntava: O que é ensinar? O que é aprender? Eu via mais do que alunos diante de mim, via seres humanos à procura de sua realização, que tínhamos em comum a tarefa de sabermos o não-saber e sermos o não-ser. Estes igualam a todos. E no diálogo com cada um como aprendi o não-saber! Ao longo destes quarenta e quatro anos foram muitos, incontáveis, os que corresponderam. De repente se descobriam diante deles próprios, diante de sua tarefa poética de serem o que conheciam e muito mais o que não conheciam em seu ser e não-ser. Só há não-saber porque há não-ser. Essa é a nossa riqueza poética, libertadora.
E com isso entrávamos no cerne da própria Universidade, questionando-a. A realidade explode em profundas transformações e como responde a Universidade a esse desafio? Não devemos pensar a Universidade do porvir? Podemos continuar com o modelo até agora vigente?  Questionar não é excluir, é conduzir ao cerne das questões. E é isso que a Universidade tem esquecido, adormecida pelo sono dogmático da lógica de todo saber científico. Universidade não diz em sua origem exclusivamente saber científico, pois a ciência não deve ser excludente, em nome de uma verdade somente lógica. Universidade diz a procura do uno de toda a realidade, de todas os seres do universo, sem exclusão. Diz a unidade das diferenças nas suas diferenças. Para pensá-la só há um caminho: a verdade da procura da essência do agir. E este advém na ética. Ética não é moral, conjunto de valores de um determinado sistema, com este já dados, e excludentes porque fundamentados numa verdade única, a do sistema. Ética é o próprio da Uni-versidade, o compromisso com o humano de todos os seres humanos, na unidade de verdade e não-verdade do uni-verso. Temos, portanto, de repensar a Universidade a partir do ético como verdade e unidade de tudo que é e não-é, sem qualquer exclusão, mas numa dialética universal de inclusão infinita, permanente. Na ética há o compromisso da Universidade com o humano e sua habitação: a mãe terra. Esse sempre foi o motivo da criação de todas as grandes obras de arte e de pensamento, e de todos os cientistas pensadores. Como questão sempre perdura em todas e em todos a pergunta: O que é isto o humano? Isto foi o que a Poética sempre defendeu, defende e defenderá.
Eu entrava na sala de aula sobretudo para ensinar a questionar e a pensar, somente possíveis quando, além do ensinar, temos com nossos alunos de aprender o não-saber. Cada ser humano é um mistério que tem de ser respeitado em sua identidade poética. Somente assim há verdadeira comunidade social. Descobri e descubro, na convivência fraterna, minha finitude efetiva, paradoxalmente nossa riqueza poética, libertadora.

       Em 1998 tornei-me Titular de Poética. Junto com o prof. Antonio Jardim, Dr. em Poética, excelente compositor e meu querido amigo, ampliamos o atuar da Poética para outros campos artísticos: literatura, música, teatro, artes-plásticas, dança, em perfeita sintonia com a convivência contemporânea de todas as formas artísticas. O resultado é auspicioso: já criamos cinco núcleos em diferentes Estados e Instituições, para levar a proposta poética de unidade entre ciência, arte e pensamento. Academicamente estimulamos as pesquisas e publicações coletivas. Não poderia deixar de mencionar dois livros publicados em minha homenagem quando completei setenta anos e caí na compulsória. Eles demonstram a fraternidade que une e reúne a todos que se congregam no site Rede Poética. São eles: Permanecer silêncio, organizado por Igor Fagundes, Dr. em Poética e hoje professor da Escola de Dança da UFRJ, poeta profundo e ensaísta brilhante. Nele escreveu um substancial estudo dos livros e ensaios de minha autoria, além de reunir ensaios de professores em minha homenagem. O outro tem o título: Poética e diálogo: caminhos do pensamento, organizado por Fábio Santana Pessanha, Bianka Barbosa, Antônio Máximo Ferraz e Maria Ignez de Souza Calfa, reunindo este ensaios de alunos e ex-alunos meus. Criamos também, na Editora Tempo Brasileiro, a Coleção Pensamento Poético, para publicação dos trabalhos realizados no horizonte da Poética. Os livros publicados estão ali expostos. Em breve sairão mais dois livros coletivos: Convite ao pensar e Educar poético. Verão também uma foto da folha de Apresentação do dicionário digital de Poética e Pensamento, que criei. Não se trata de um dicionário semântico, mas algo novo que exige daquele que o consulta o pensar, pois não dá definições, mas provocações dos mais diversos autores e épocas. 
A Universidade de hoje vive o desafio do contemporâneo e seu porvir. Ele nos mostra não apenas um novo tempo do tempo, uma nova memória da memória, um novo ser do ser. Não, o contemporâneo, nosso tempo acontecendo, nos presenteia com possibilidades jamais antes pensadas. Mas o que estamos fazendo com elas? O que este nosso contemporâneo e todas essas possibilidades infinitas estão fazendo conosco? Estamos abolindo as violências físicas e morais, aceitando e convivendo cada vez mais com as diferenças? Estamos cada vez mais fraternos? Estamos respeitando o que cada um é sem o querermos adequar à nossa imagem e semelhança? Estamos ensinando o que não se sabe, mas também aprendendo o não-saber? O ser humano foi feito para se realizar em seu próprio, naquilo que recebeu e não para se adequar seja lá a que sistema salvador for. Somos libertariamente todos diferentes pelo simples fato de sermos. À Universidade resta a dificílima tarefa de, além de se repensar, criar e oferecer a todos os cidadãos as mesmas condições de se apropriarem de seu próprio, com respeito e dignidade. E o caminho da verdade, do sentido, da liberdade, é o ensinar e aprender o não-saber.
Neste dia em que recebo este título de Professor Emérito da UFRJ – mais uma doação do extraordinário - pelas mãos do Magnífico Reitor, em nome do Conselho Universitário, não poderia deixar de agradecer às diferentes instâncias em que a proposta foi aprovada, em todas por unanimidade. Por isso proclamemos fraternalmente que a festa é de todos nós, de todos que estejam abertos não apenas para sentirem e conhecerem, mas para serem o que sentem e conhecem, sempre poeticamente.  Fundando-nos no poder transformador do extraordinário, fonte inesgotável de tudo que é, não é e vem a ser, unamo-nos pela Universidade do porvir, onde o humano seja a unidade das diferenças: possibilidades do extraordinário.
Por tudo isso só me resta agradecer.
E a todos a minha gratidão pela presença.



21 março 2014

Exercício de questionamento



                                                           Prof. Manuel Antônio de Castro


Eis, caro leitor, uma provocação. Você foi educado para o questionar? Aceita tudo passivamente ou transforma toda afirmação em uma real pergunta, em uma questão? Você tem certeza de tudo que afirma e os outros afirmam? Se a vida é um enigma, como podemos viver de certezas, melhor, sem questionar? Lendo o texto abaixo você terá depois mais motivos para sempre questionar. Assim espero. Não para acreditar no que eu digo e aí escrevi, mas para você se descobrir em seu próprio, aquilo que recebeu para ser. Boa viagem pelo caminho da vida que é uma travessia poética.



Em geral aceitamos muito passivamente os valores e idéias que nos são transmitidas e dadas como certas por tradição, seja familiar, seja cultural, seja de formação escolar. Contudo, tais ideias ou conceitos variam de acordo com as épocas e, normalmente, estão relacionados a circunstâncias culturais e histórico-científicas. A ciência nas suas versões também é temporal e epocal, embora os conceitos pretendam ter uma validade tanto mais universal quanto mais absoluta, quando, na verdade, dependem de teorias, de interesses ideológicos e culturais. O que algo ou alguém diz realmente é sempre questionável. Uma libertação de todas essas imposições e dos lugares comuns, da aceitação passiva onde domina a banalização, é essencial para que nos afirmemos naquilo que nos é próprio e sempre diferente: o que somos, embora necessariamente na unidade do ser. Mas o que somos, somente somos no horizonte das questões. E o que somos é uma doação (dizia o pensador Platão: eidos, e o mito: moira). Aquilo que somos somos enquanto necessidade e possibilidades. É nesse sentido que não somos nós que temos as questões. Elas é que nos têm e dão o sentido do existir. Por isso, entre possíveis caminhos, certamente o mais produtivo e o que possibilita um enriquecimento e inovações contínuas é o questionar, porque desenvolve as possibilidades do que nos foi dado e recebemos para ser, porque o ser é sempre o sentido do destinar-se do ser nas e como questões.

É no horizonte do questionar que surge o criticar, ou seja, a possibilidade de construir uma consciência crítica. Porém, não há consciência crítica sem crítica da consciência. Consciência não é tudo, porque depende do ver e não-ver, do imaginar e não-imaginar, do dizer e não-dizer, advindos no escutar, no desvelar e velar. Não podemos de maneira alguma achar que uma consciência crítica é aquela que se estrutura em verdades já feitas, em conceitos intocáveis, em teorias irrevogáveis e não ultrapassáveis. Consciência não passa de um saber que se sabe, isto é, de um saber que se quer auto-fundamentar, enfim, de um saber e um não-saber, nada intocável e definitivo, completo. Consciência é uma trajetória de libertação pelo conhecimento enquanto exercício contínuo e irrevogável do questionar. Este é o exercício cotidiano e incessante de nos abrirmos para o sentido das questões que já desde sempre nos constituem naquilo que somos. Porém, questões não são conceitos. Como as questões não têm uma resposta única, mas solicitam nossa escuta e nossa práxis, elas são radicalmente dinâmicas e inscritas no que somos, na medida em que chegamos a ser o que somos no como somos, no concreto viver e experienciar-nos sendo o que não somos na práxis poética do como somos e temos necessidade de ser. Práxis é sempre existência, recepção do que se dá no escutar do pensar, do agir do pensar. O pensar é sempre o agir do sentido do ser, do sentido do que recebemos para ser, ou seja, a medida do humano e possiblidade de todo humanismo.

            Contudo, a relação entre questionar e ter uma consciência crítica acontece no dialogar, não só conjuntural, mas também epocal, numa dialética de recepção e renovação criativa, poética, onde não há modelo, paradigma ou teorias prévias. É que uma questão gera outras questões. Desse modo toda resposta que se recebe ou cria, imagina, figura, torna-se o núcleo gerador de novas perguntas, sempre dentro do horizonte poético do acontecer da realidade, um acontecer que é circular numa dialética sempre inclusiva e jamais excludente e exclusiva. (Nesse horizonte foi criado o dicionário digital de Poética e pensamento, cujo endereço é: www.dicpoetica.letras.ufrj.br. Abra qualquer palavra e se pergunte depois de ler as diferentes colocações qual é a resposta certa. Será obrigado a exercitar o distinguir/diferenciar e a optar por um caminho que, fundado na escuta de se compreender e auto-compreender, deverá ser o seu, passível de novas perguntas e respostas). O ser humano é justamente humano por já desde sempre mover-se nesse “entre”, nesse “polemos”, de  saber e não-saber, porque originariamente já é e não é. Portanto, em toda pergunta como em toda resposta há sempre e inevitavelmente um logos de limite e não-limite. É o que alimenta e torna a vida um caminho poético, inaugural, alegre, renovado, no desafio de chegar à plenitude do que se é, isto é, do que se recebeu para ser na plenitude (telos, diziam os gregos) do seu sentido. E isto é único, intransferível, desafiador, poético, libertador.

Poética é o caminhar no e do caminho que gera as obras e arte. E arte enquanto obra é esse operar do caminho no e pela vigência do logos, da linguagem. Temos aí a essência da leitura como diálogo consigo mesmo e com os outros. Nele não pode haver uniformidade de pensamento, mas exercício aberto da aceitação do outro (que somos nós mesmos) e dos outros em suas diferenças. Recepção é recepção das diferenças, pois dialogar é a tarefa cotidiana de experienciá-las. Receber e acolher as diferenças é o caminho libertador e pacífico e fraterno da convivência social porque humana. Como disse o pensador Heráclito, quem não espera não encontra o inesperado, sem vias de acesso ou caminhos prévios. Questionamento não é intransigência, mas apropriação de conhecimento numa dinâmica própria sem formatação das mentes e dos corações.

            Questionar para criticar e criticar para dialogar deve ser sempre o horizonte de toda apropriação de conhecimentos que nos levem à apropriação do que somos, a nossa identidade, no como somos, enquanto abertura para recebermos e acolhermos o sentido do que somos, pois criticar é distinguir diferenciando. Criticar não é, em sua essência, ser chato e dono da verdade, vendo em tudo só o negativo. Ver os próprios limites também é criticar. Quem não vê o que não se vê e nem chega a mostrar-se no permanente desvelamento e velamento dialético, em verdade, nem pode criticar.

Você foi educado para o questionar, a dúvida saudável de que sabe que não sabe em tudo que sabe? Que tal fazer um exercício de questionamento?


Transforme as afirmações a seguir em questões.


1ª.  Se você se vestir dessa maneira irá contra sua identidade cultural e perderá a identidade e autenticidade.


2ª. Não é verdade que somos todos iguais e temos o mesmo destino.


3ª. A literatura é a arte da linguagem e a linguagem é um produto social.


4ª. O conhecimento da literatura é o conhecimento dos estilos, das formas, da época histórica, da fortuna crítica das obras, ou seja, da sua recepção, da representação verdadeira, da concepção política dominante e das influências e condições sócio-econômicas.


5ª. O que é real é lógico e o que é lógico é verdadeiro. Portanto, o que é verdadeiro é real.


6ª. Tendo em vista as questões acima sugeridas, transforme em questões esta afirmação do pensador e poeta Guimarães Rosa: “Tudo é e não é” (Grande sertão: veredas. 6. ed. Rio de Janeiro: 1968, p. 12).