Ao leitor: Este
ensaio é longo, mas propõe alguns aspectos essenciais. Estou aberto ao diálogo
e peço que me escreva, mandando email para profmanuel@gmail.com. Compartilhe
comigo este modo poético de encarar e praticar o educar. Vamos questionar?
Manuel Antônio de
Castro
Este
ensaio é uma provocação para o diálogo. O presente tema resultou de uma
pesquisa que diz respeito à questão do educar. É uma tentativa de repensá-lo
enquanto um processo histórico. Foi inicialmente desenvolvido em um curso dado
na Pós-graduação da Faculdade de Letras/UFRJ, no segundo semestre de 2011, onde,
junto com os alunos, procuramos discutir essa questão que é simples e complexíssima.
Todos nós, em nossos cursos de formação, sejam eles quais forem, estudamos
sempre uma disciplina que se chama história: história da arte, da ciência, da literatura,
da filosofia, da pedagogia etc. Alguma história sempre estudamos, até porque
nossa vida é uma história também, uma narrativa viva. A história implica também
o sentido do ser humano no tempo. E aí resolvi introduzir uma palavra única em
relação ao ensino das diferentes histórias para tentar redimensionar, na nossa
época, todas as disciplinas em seus conteúdos, em suas metodologias e em seu
modo de realização e atuação. Ao invés de estudar simplesmente, por exemplo, a História da literatura, o que me passou
a ocupar e a preocupar foi a História do sentido da literatura. Uma coisa é
estudar Historia da filosofia, outra é estudar Historia do sentido da filosofia.
Uma coisa é estudar Historia da educação, outra é estudar Historia do sentido
da educação etc. Foi daí que surgiu a temática em torno de um educar poético-originário.
É impossível, poeticamente, separar o educar do sentido do que seja educar, porque o educar é antes de tudo a
difícil realização do sentido de existir.
Para
o leitor é muito importante que perceba a posição que me provoca
originariamente. É essa posição que exige dos provocados um deixar-se tomar
pela dialética, num exercício contínuo de diálogo. É importante cada vez mais
promovê-lo. É no diálogo, com o diálogo e pelo diálogo que acontece a
dialética. Sem diálogo não há dialética. E sem dialética não há história. Quem
dá sentido à dialética é o sentido do ser enquanto tempo. Isso é fundamental
para nós nos compreendermos. E em todo compreender, como abertura originária,
já nos movemos num aprender pessoal e comunitário. Aquilo que sempre reuniu e
reúne as pessoas em torno de um diálogo são as questões que dizem respeito ao
humano de todo ser humano enquanto seu sentido. Este independe de tempo e
cultura. O sentido é a dialética da história porque esta é o destinar-se do
sentido do ser.
Na
vigência da dialética, a proposta é de que ela se torne para cada um a
oportunidade de mergulhar e conhecer cada vez mais o sentido da sua condição
humana. E não se importe tanto com o que aqui é proposto, mas com a questão que
nos toma e envolve.
A virtude e o educar
Quais
são as questões que implicam o educar poético-originário? E por que me centralizo
sempre nas questões? Respondo com o desafio do grande pensador Martin Heidegger.
Questionar e pôr em questão é a única
tarefa do pensamento. Então vamos questionar? É isso que é importante para
cada um e para todos nós como sociedade, no desafio poético do educar.
A
grande questão que tomava os gregos no tempo de Platão e constituía a essência
da sua paideia era algo muito simples
e enigmático: É possível ensinar a virtude? Em grego, areté. Essa é a questão que perpassa todos os diálogos de Platão e
este lhe dedicou um especialmente: o Mênon.
E por dedução, hoje, podemos perguntar: Podem-se ensinar as artes, a
literatura, a educação? Enfim, pode-se ensinar o humano? Mas as humanidades não
são ensinadas há séculos? Sim. No entanto, temos que questionar. Pode-se
ensinar algo que diga respeito ao humano sem que esteja no âmago daquilo que se
ensina o sentido? Assumir esta posição, tentar ensinar as artes, toda
arte, é tentar ensinar a virtude, a areté.
Não há arte que não diga respeito ao humano e seu sentido. Será que o humano
pode ser ensinado? É preciso entrar numa escola para aprender lá o que é o
humano? E as pessoas que nunca entraram numa escola não fazem eclodir dentro de
si o humano? O que é a escola? ¹ Essa é a questão em torno da qual se decide o
que é educar, não qualquer educar, mas o poético-originário.
As questões
Para
tentarmos encaminhar a possibilidade de ensinar e aprender o humano, a arte, a virtude,
há três questões previas que as antecedem. São elas: O que é o ser humano? O
que é a realidade? O que é o destino? Toda e qualquer posição de ensino e
aprendizado, seja na disciplina que for, já pressupõe uma tomada de posição sobre
essas três questões. O que é posição?
Ela foi, é e será sempre uma doação da linguagem.
De modo que, se nós quisermos
questionar aquilo que propomos como educar poético-originário, já temos que compreender
qual seja a nossa posição em relação a essas três questões prévias e
inevitáveis. Mas isso raramente é feito, porque não há um educar para o
questionar. Não há um educar poético-originário na medida em que se tem
esquecido cada vez mais o sentido de ser e do ser. E por que é raro esse
questionar? Porque de antemão já houve por diferentes injunções uma decisão sobre
as cinco questões que lhe são conaturais: a verdade/aletheia, a imitação/mímesis,
a poiesis, a técnica/techné, o pensar/noein. Num círculo vicioso, se estas dependem daquelas, aquelas
também dependem destas. A tarefa de um educar poético-originário é integrá-las
concreta e dialeticamente num círculo virtuoso. O pano de fundo em que se move
o educar poético-originário é esse, mas não poderemos tematizá-lo neste momento
em toda essa amplitude, pois diz respeito ao próprio percurso da filosofia
ocidental. Propomos algumas reflexões.
As duas respostas
Em
princípio, ao longo de todo percurso ocidental, houve duas respostas para a
tentativa de compreender e aprender o que é o humano, o que é a realidade, o
que é o destino. Terei de ser breve e conciso, pois muitas são as variações
históricas e culturais a propósito dessas respostas. Duas foram as modalidades de
conhecimento escolhidas e praticadas e que constituem a trajetória do Ocidente.
Quando digo duas modalidades não quero dizer que sejam opostas, antitéticas,
dicotômicas. Pelo contrário, constituem uma dobra. De modo que ao se praticar o
educar já se está tomando posição em relação a uma dessas duas modalidades de
conhecimento. Quais são essas duas modalidades?
O conhecer causal
A
primeira é o conhecer causal. Por ele nós reduzimos o educar ao instruir no
sentido de formar. Não se pode pensar
a forma sem pensar o ser humano em
sua referência à realidade que ele é e que ele não é. Instruir significa levar
alguém a aprender sobre ou aprender algo com uma determinada finalidade bem
definida e funcional, dentro de um sistema. Como o instruir, enquanto sistema,
se globalizou, hoje há dois desafios propostos para o educar enquanto instruir:
preparar recursos humanos para o sistema de produção técnica, num esforço cada
vez maior pela eficiência ou produtividade, e o projeto político de inclusão
social cada vez maior, como possibilidade de participar da sociedade do
conhecimento e do consumo. É a palavra
de ordem política do desenvolvimento. É uma posição global explícita de todas
as ordens políticas. Mas desenvolvimento de quem e para quê? E qual o custo
desse desenvolvimento a qualquer custo? E poderiam alguns usufruir dele e
outros não? E qual seria o padrão a ser adotado? Noutros termos, essencialmente
para o humano o que é necessário? Nesses termos, promover o desenvolvimento já
é promover a justiça? E pode haver justiça sem a apropriação educativa do
ético-poético? São questões que não podem ser caladas quando se trata de um
educar poético-originário.
O
conhecimento causal é importante porque nos dá a ilusão da possibilidade
ilimitada de interferir na realidade, no humano e no nosso destino. E a ilusão
maior de tudo poder explicar. Pode o ser humano viver sem explicações? Não é
todo conhecimento explicativo? O que seria o conhecimento enquanto conhecimento,
isto é, sem algum atributo? A certeza de tal poder se potencializou com o
advento da Modernidade. Foi nesta que se expandiu este pseudo-poder. É uma fé
que se planetarizou hoje. Não que o homem não possa interferir, mas que possa
ter o poder absoluto e um dia achar a resposta definitiva para as três
questões. Poderá o instruir levar a isso? As grandes obras de arte dizem que
não. E por quê? Essas três questões não são uma questão de conhecimento. São um
enigma, um mistério que não cessa de nos desafiar. O enigma se potencializa em
outra questão que não cessa de desafiar o ser humano: O que é a verdade? Destas
questões se alimentaram todas as obras de arte já realizadas e as que ainda se
realizarão. Essa é a riqueza do humano e o desafio de um educar poético-originário.
Como
se constitui esse conhecimento causal? Ele se apresenta em duas facetas
interligadas. Pela primeira o ser humano se envolve na tarefa de procurar um
fundamento em tudo. Um outro nome para fundamento é causa. Daí se falar
frequentemente em fundamento causal. Estabelecido o fundamento causal, dá-se a
outra faceta: a sua formulação numa regra, numa teoria, numa lei. Conhecer a
realidade, o ser humano, o destino, é poder estabelecer uma lei que preveja
todas as relações e funções possíveis dentro de um sistema. No fundo, já se
reduziram as questões a sistemas de relações e funcionamento. Conhecimento se
torna sinônimo de verdade por adequação entre a realidade e a sua medida
representada matematicamente. A certeza
da lei ou da verdade depende da precisão.
É esta que dá o aval da certeza da verdade do conhecimento. Dessa maneira
não se fala mais de realidade, mas da representação da realidade enquanto
conhecimento. A causalidade isolada cria uma dicotomia entre conhecimento e
realidade. Tal precisão parte da
aceitação de uma verdade que não é questionada: a de que o universo e de tudo
que nele existe é regido por relações matemáticas, passíveis de serem expressas
em números ou equações. Não é uma certeza teórica, mas necessária e universal. Noutras
palavras, universal porque precisa. Nestes
termos, essa precisão é o próprio
destino do universo e de tudo que o constitui. Descobrir com precisão a causa é
reduzi-la ao cálculo. A ilusão da precisão do cálculo está em que se esquece o
sentido da realidade e com tal esquecimento o acontecer das diferenças. Se é
uma possibilidade da realidade, não é toda a realidade. Por isso a técnica não
cessa de perseguir a representação ideal de abarcar e igualar a própria
realidade. É esse o horizonte em que se move todo instruir, ou seja, o formar pelo ensinar e aprender.
Se
em português temos diferentes palavras, em grego, de onde nos provém esse
primeiro conhecer, tudo se inter-relaciona. Em grego, ensinar e aprender se
diz: manthano. Deste verbo se formou
o substantivo máthesis, o que pode
ser ensinado e aprendido, e mathémata, a
manifestação do que pode ser ensinado e aprendido em cálculos e números. Eis o matemático. Por isso, científico é tudo
que pode ser reduzido a algum cálculo ou estatística. Pensar e encontrar o
cálculo é o próprio do científico. Só nesse sentido a ciência pensa. Mas jamais
pode pensar o sentido. O princípio de todo instruir é o científico. Desde
Pitágoras o universo é concebido como harmonia de esferas vibrantes. Eis a
proximidade de música, harmonia e matemática.
Achada
a causa, pode-se apropriar de e dominar as relações que regem o fundamento e o
fundado, criador e criatura, autor e obra, sujeito e objeto, agente e paciente,
determinante e determinado. Esse é o conhecimento técnico, hoje globalizado. Ciência
é conhecimento técnico. Instruir é ensinar técnicas em nossa sociedade com o poder
de determinar a realidade, o humano e o destino a partir da causalidade. É claro
que só estudar a historia deste fundamento, das suas modalidades ao longo do
percurso ocidental demandaria um tempo enorme. A dialética hegeliana é a
tentativa de transformar a causalidade em sentido do processo histórico. Mas
será então o sentido da causalidade e não o sentido da realidade, porque esta é
questão.
O
modelo ocidental do instruir se globalizou, porque nenhuma outra cultura
realizou este conhecimento. O modelo de Universidade inaugurado pela Idade
Média e decalcado nas academias helenísticas hoje se globalizou. Não podemos
esquecer que este modelo de conhecimento traz consigo um modelo de verdade que
também se globalizou, com o enorme perigo de uniformidade cultural, porque não
se admitem mais outras possibilidades de conhecimento ou verdade. Se admitidas,
elas serão lidas e compreendidas nesta teoria da realidade, do humano, do
destino. É o grande perigo a que se veem submetidas as culturas milenares da
China, da Índia, do Japão, dos árabes e das culturas de todos os demais povos
não ocidentais. Mas estou querendo afirmar que esta é uma modalidade de
conhecimento que não é o educar em sua plenitude. Se há o conhecimento causal,
há também um outro conhecimento: o não-causal, que é o pensar. Entre eles há
uma dobra e não uma dicotomia. O educar pleno implica o pensar e o instruir ou
formar.
O educar para o pensar
Essa
dobra do conhecer, que melhor seria denominada de saber, acompanha toda a
trajetória do Ocidente. Porém, no século XVII, em pleno desabrochar do Iluminismo,
as duas modalidades de saber foram sintetizadas por dois pensadores alemães que
viveram na mesma época e morreram no mesmo ano, 1677: Leibniz e Ângelus
Silesius. Leibniz formulou o princípio do fundamento nos seguintes termos: Nada é sem razão. Nada se faz sem causa. Ângelus
Silesius formulou o princípio do não-fundamento num pequeno poema muito famoso:
O por quê
A
rosa é sem por quê.
Floresce
porque floresce,
Não
se auto-contempla
Nem
pergunta se alguém a vê.
Seguindo
Leibniz, se nada é sem causa, desde que se conheça a causa, é possível conhecer
toda e qualquer coisa. As pesquisas no mundo inteiro são guiadas pelo princípio
do fundamento. E é em torno dele que se estruturam todas as Universidades. Daí
predominar o educar enquanto instruir, onde
se perde a dobra. Para reintroduzi-la
é necessário lutar por um educar
poético-originário. Segundo o princípio do não-fundamento, há uma outra possibilidade
no educar, porque implica um outro saber. Que saber é esse? Reforçando este saber e nos lançando em suas
trilhas, Guimarães Rosa disse no conto “O espelho”: Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. Se o nada acontece e acontece como milagre, ele
pode fundar, mas jamais ser compreendido ou conceituado/explicado como um
fundamento, como uma causa. Os pensadores medievais já diziam: Ex nihilo nihil fit (do nada nada se faz).
Mas todo milagre diz da presença de
um poder não-causal, não redutível a uma explicação causal. É um poder certamente mais poderoso (se isso fosse possível
dizer), porque irredutível ao domínio racional, causal. Aí não há causa, porque
é o nada acontecendo. Este é o poder
do pensar. É impossível querer reduzir toda a realidade à possibilidade de determiná-la
através de um fundamento. Pergunto: Qual é a causa do silencio? Qual o
fundamento do não-saber? Podemos lembrar Édipo, a personagem-questão do humano
de sempre em sua dobra. Achando que podia saber tudo e determinar o seu destino,
descobre no final que, em vez de vencê-lo não o cumprindo, o cumprira. Soube
que nada sabia e arranca os olhos, o sinal para o grego do não-saber por não
poder ver, de onde provém todo saber. Não podemos confundir ver com olhar.
Quantas vezes olhamos e não vemos! O ver que sabe é prévio a todo olhar, assim
como o que somos é prévio ao estar sendo. Só por já sermos é que podemos estar
sendo. O saber do pensar é o desafio poético de chegar a ser o que já desde
sempre nos foi dado para sermos: nosso próprio. Édipo ao arrancar os olhos
demonstra que sabe que não sabe por mais que parecesse saber. É o eclodir do saber
do pensar. Trata-se de um saber sem fundamento.
Uma
leitura mais atenta dos diálogos de Platão e sem teorias prévias e pré-conceitos,
descobre perplexa que ele não é o autor da teoria das ideias. O eidos de que fala é o tò mè ón: o nada criativo que,
evidentemente, não tem a menor possibilidade de ser fundamento. O nada funda sem fundamentar, porque
jamais pode ser entificado como fundamento. A grande questão de achar um
fundamento é que se o entifica ao transformá-lo em causa de tudo que é, numa
relação de agente e paciente, de determinante e determinado. Causa diz coisa. O
fundamento é a coisa das coisas. E não se nota o paradoxo contraditório de que
não há o menor motivo pelo qual a coisa das coisas é a última. Por que não
haver a coisa/causa da coisa das coisas, e assim por diante? Educar para o saber do nada é o educar para o aprender a pensar. Este acontece nas obras
dos poetas e dos pensadores. Eles não cessam de o afirmar para comprovar que
tal nada nada tem a ver com niilismo, porque este já é causal. Se
Deus é fundamento, ele não existe, pois não pode ser coisa nem causa, muito
menos ente com existência. Ele não pode ser o grande fundamento/causa, o grande
“ente”, enfim, ele não pode ser reduzido a um “então”. Por que não acolhermos o
silêncio do mistério em nossa
finitude, sem querer explicar o que não precisa de explicação? Nós achamos que
tudo precisa de explicação, mas não o mistério,
não o sentido da realidade. Relembrando: sentido não é explicação, não é significado, estes dependentes do
fundamento causal. Independente de
nós, o mistério e o sentido acontecem. Voltando a Rosa: “Quando nada
acontece...”. Se Deus é
não-fundamento, ele é não-verdade. Ele é, paradoxalmente, Nada. Daí a referência de Rosa ao milagre. Do Nada nada se
pode dizer ou explicar, pois já seria entificá-lo, reduzi-lo a um conceito, a
uma explicação. Resta o silêncio da escuta,
que funda toda a música, entendendo por música não uma das realizações
artísticas, mas a Musa de todas as
artes. Musas são a geração de Mnemosine,
a memória, unidade enquanto sentido de todas as diferenças. Os poetas e pensadores para operarem suas obras se
dispõem para a escuta da voz da memória, na
fala das Musas. Uma vez que a
realidade é memória, todos os seres
humanos precisam necessariamente ser educados para o pensar, acontecer do educar poético-originário.
E como e quando se dá o pensar? Quando nos deixamos tomar pelas questões e
fazemos de nosso agir um questionar incessante, produtivo, poético. No pensar
não há a ação de agente e paciente, não há ação produtiva, não há ação de um
fundamento. O pensamento nada produz,
porque é o nada agindo que manifesta o
sentido de tudo que é, vem a ser e
será, do sentido de tudo que não é
nem virá a ser. Eis o sentido não-causal
da dialética.
Essas
duas modalidades de educar é que, de alguma maneira, constituem as diferentes condições
de vigorarmos poeticamente nas três questões que nos dizem respeito, queiramos
ou não queiramos. Não se trata de um problema de opção em que se poderia dar ou
isto ou aquilo. Não é um problema de
teoria do que seja o ser humano, a realidade, o destino. Aí foi, é e sempre
será a questão central o ser humano, mas este sem a referência ao sentido do ser perde sua essência. Os
conhecimentos que partem de uma concepção prévia do ser humano e, portanto, da
realidade, só operam no âmbito do ser humano como ente, como funcional, e não
se abrem para o sentido. É então que
se torna necessário um educar poético-originário. Este será sempre a referência
do próprio ao ser e do ser ao próprio, na mesma referência de vivente e Vida. Uma
coisa é dizer que ou só há fundamento ou só há não-fundamento. Há dobra.
O instruir e o educar
O
ensino e as pesquisas de todas as universidades, institutos de pesquisas etc.,
por qual conhecimento se guiam e nos guiam? O daquele conhecimento que quer
descobrir uma causa e automaticamente determinar a consequência ou daquele que
se abre para o sem por quê, o conhecimento não causal? O esquecimento deste é
desastroso em todos os níveis e até no alcance das descobertas e sua aplicação.
O alcance das descobertas será o alcance do horizonte em que elas se dão. Esta
é a grande questão, porque não deveria haver dicotomia. Por outro lado, sempre
há a questão: pode-se ensinar a pensar? Mas então temos de perguntar ainda: o
que é ensinar? O instruir pode ser realmente programado e efetivado.
Instruir
vem do verbo latino in-strúere, ordenar
num processo contínuo de estruturação. In-
é conduzir algo a partir do que já está no íntimo, dentro, e constitui a
possibilidade de todo horizonte, o vazio. Strúere
é fazer tomar posição no vazio diferentes elementos com ordem e
funcionalidade. A função uniformiza e torna indiferente quem se restringe à
função. A lógica, o sistema, é eliminar o próprio, pois este já é dado de
antemão pelo sistema, em função do qual se vive a existência que nos foi dada e
não pode ser vivida como aquilo que já desde sempre somos e que temos que
eks-istir para chegar a ser, apropriando-nos do que nos é próprio. Eis a
essência e alcance de toda função. O próprio de todo sistema e em todo sistema
é o horizonte sem horizontalidade, sem o que gera todo horizonte. Quando as
obras de arte, todas as obras de arte, se constituem em sistema já deixaram de
serem obras de arte. Passam a ser rotulações, classificações funcionais.
O
vazio já contém em si a possibilidade da posição, do estar se estruturando,
porque estruturar é determinar limites, horizontes (horidzo, grego, significa: limitar).
Dessa maneira, temos o crescimento de um corpo, de um animal, de uma planta,
logicamente organizados, daí se denominarem organismos.
O princípio estruturante e lógico de todo organismo é a energia originária,
poética, porque energia vital, luz, sentido. A luz enquanto sentido é a lógica
do logos (não proposicional, não
predicativo). A separação entre corpo e organismo, entre instruir e educar é
dicotômica e falsa. No fundo de todo processo está o genos como princípio de energia estruturante. É nesse sentido que
se pode falar em código genético, sem que este alcance determinar todo agir do genos. Por isso, educar não diz em
primeiro lugar, embora se faça presente, dotar de organismo, de estrutura ou
até de um código.
Formado
do latim, e-ducar diz ducere,
conduzir, levar, e ex-, para fora.
Para fora, para onde? O sentido originário de ex- é ontológico, prévio ao espaço e tempo. Pelo contrário, fundado
no ser, que não é, vigora, manifesta tempo e espaço. Não pode ser reduzido a
uma categoria gramatical que indica espaço, significando, portanto, o levar,
por exemplo, para fora de uma sala ou para um crescimento numérico e
cronológico. A noção gramatical da preposição ex- já pressupõe o lugar existente como o que já está aí (posição).
O sentido originário de ex- não é
esse. Para melhor compreendê-lo temos que retornar às três questões primeiras
entrelaçadas entre si. O que agora nos deve ocupar é: o que é o ser humano? O
ser humano é radicalmente entre-ser. Como entre-ser se experiencia sempre na
liminaridade. Só por isso pode acontecer nele o educar. Isto é, um conduzir ex-. Então ex- é conduzir do limite para o não-limite. Porém, o limite do não-limite
é o aberto, o livre. Educar,
radicalmente, significa levar o ser humano, na sua constituição e condição de
entre-ser, do limitado para o não limitado, isto é, para o livre. Libertá-lo,
tirá-lo da mera relação entitativa: circunstancial, conjuntural e orgânica. Um
educar que se limite a instruir quer realçar as condições de relações
funcionais dependentes de um sistema já dado para cumprir as finalidades
inerentes ao sistema. A questão da finalidade é algo complexo. Quando fazemos
qualquer projeto de pesquisa temos que determinar nossos objetivos. Tudo tem
que ter finalidades, objetivos. Será? O educar para além do instruir não pode ser
determinado por finalidades. Se for determinado por finalidades, onde fica a
liberdade? Onde está o não-limite de todo limite? É importante pensar o educar
sem criar dicotomias, pois de qualquer modo o ser humano também é um ente
relacional e que tem de cumprir certas finalidades funcionais. Estas predominam
cada vez mais, o que leva o ser humano ao sem-sentido. Por isso mesmo, cada vez
mais a questão é não haver a predominância, o domínio, de um conhecer sobre o
outro. Há necessidade sempre de inclusão e diálogo entre o instruir e o educar
para o pensar. E surge o desafio: enfim, o que é o ensinar e aprender para que
haja um educar poético-originário?
O ensinar e o aprender
Vamos
conduzir a reflexão aprofundando um pouco a questão do ensinar e do aprender.
Para melhor compreendê-los temos que, num primeiro passo, levar a sério as
palavras, porque o arraigado costume cotidiano da sua repetição e a
predominância maciça dos meios de comunicação acabam uniformizando e impondo os
significados superficiais e comunicativos, e não escutamos mais o vigorar da palavra,
no ressoar do seu poder inaugural de realidade, de humano e de cumprimento do
destino. Acaba predominando o estar
em detrimento do ser. O humano vem à
sua eclosão no sentido da palavra, na
medida em que esta já vigora na linguagem. O ser humano é entre-ser. E o que a
palavra palavra nos diz? Também ela
vigora a partir de um entre. Usamos e abusamos das palavras e nem mais
lembramos como ela foi constituída. A palavra portuguesa palavra vem do grego e forma-se de para-ballein. Para- significa junto a, entre. E ballein quer dizer: lançar, jogar,
projetar. Portanto, ela diz a essência do ser humano: o que está jogado no entre. Do verbo paraballein formou-se
o substantivo: parábola. Desta
formou-se palavra. Ontológica e
socialmente, o ser humano é um ente junto a outros entes. Ou como os gregos
diziam, ontologicamente, é uma sin-ousia.
Porém, algo o distingue e por isso pode acontecer o educar. Ele é um sendo entre o limite e o não-limite: entre-ser.
Enfim, é um ser do sentido da palavra
e do pensamento.
O
primeiro passo para o educar, enquanto pensar, é começar a deixar-se tomar pelo
poder do sentido das palavras e a apreender
o sentido da sua ressonância para que
elas retomem o seu vigor originário. Nesse horizonte poético-originário
pensemos o verbo aprender. O horizonte de toda palavra inclui já o
não-horizonte, o não-limite. Isso é o originário.
Usamos
e abusamos dos verbos aprender e ensinar. Para começarmos a compreender um
pouco da radicalidade do que significam aprender e ensinar, trazemos a palavra
do poeta-pensador Guimarães Rosa. Em Grande
sertão: veredas (Rosa, 1968. Doravante usaremos a sigla GSV), diz: Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de
repente aprende. Para onde foi toda estrutura escolar, fundada na relação
professor e aluno, sujeito e objeto, como passagem obrigatória para o ensinar e
aprender da formação e do aprendizado (instrução)? O professor ou mestre é quem
ensina e cabe ao aluno aprender, programa-se assim a escola. Rosa diz o oposto.
Mestre não é quem ensina, mas quem está aberto para o inesperado do aprender. É
claro que Rosa não se refere ao instruir,
mas ao educar pelo pensar. Por isso, GSV se constitui em uma grande reflexão
sobre o educar poético-originário. Aliás, Riobaldo era professor. É como Zé Bebelo,
o que se guia pelo agir subjetivo-racional, o trata. Porém, numa tradição já
multimilenar, tendemos a dar maior importância ao enredo narrativo do que às
questões. Mas estas na obra poética se tornam ficção e é como ficção que são
constituídos os mitos. Porém, estes se fazem força histórica de manifestação
das questões, o que afasta o significado usual e superficial de ficção. Esta
diz muito mais respeito a duas questões interconectadas e muito importantes no
educar: a mímesis e a aletheia/verdade. É nestas instâncias
que se compreende e apreende o que é realidade. É por esse motivo que sem as questões não há
educar para o pensar, não há ensinar e aprender originário. É nesse sentido que
a obra-prima de Rosa é uma profunda reflexão sobre o educar poético-originário.
Este se essencializa num pacto. Neste recebe um poder não-racional nem subjetivo.
Riobaldo é tomado pelo pensar, o sentido
de ser. Ele faz parte da sua travessia que nos remete para o tornar-se mestre
pelo aprender sem querer ou poder ensinar. Por quê? Quem lê e não se escuta no
operar da obra não se dispôs a aprender. Notemos como na afirmação de Rosa há
um deslocar do agir causal para o agir não-causal. Nesta acontece a essência do
agir. Educar poético-originário é a incessante e persistente caminhada para o
desvelamento do que já desde sempre se é, de onde nos advém a essência do agir,
do poético.
Fora
da relação causal do instruir, o que
é ensinar? Ensinar, no fundo, é deixar aprender. Nesta perspectiva, agora se
coloca o difícil problema de assinalar o lugar do professor ou mestre. Neste
nível de reflexão, o Oriente tem muito a nos ensinar, a nos fazer pensar, pois
entre eles a relação mestre e discípulo nunca é fundada numa relação causal. A
título de exemplo poderíamos citar o excelente filme de Kim Ki Duk: Primavera, verão, outono, inverno... primavera.
O título já mostra a circularidade infinita no lugar da linearidade causal
e a referência essencial entre realidade, humano e destino. Neste filme se
concentra a essência do educar poético-originário. Desse modo, o mestre jamais
quer causar um aprendizado no discípulo com seus ensinamentos. O mestre nada
ensina além daquilo que o discípulo já tem, mas ainda não sabe. Este encontra
no mestre um espelho para que sua presença-especular seja a oportunidade de se
iluminar projetando-se no processo do auto-conhecimento. É difícil e, no
entanto, é o caminho da verdade. Só há verdade quando é verdade da não-verdade.
A causalidade entifica a verdade, provocando exclusão, extermínios e morte. No
educar poético-originário deve ser o próprio discípulo o sujeito da
aprendizagem. E aqui já estamos sendo imprecisos, porque sujeito faz parte de
uma estrutura de pensamento causal/gramatical. Não há, em verdade, nem sujeito
nem objeto. Quem age? Aquilo que no discípulo é e demanda a eclosão no
aprender. O discípulo age enquanto pensa. Evidentemente, este é o aprender do pensar e
não do instruir. No pensar aprende-se sentido, no instruir aprendem-se
significados (causas, explicações).
O aprender
Desse modo, o aprender é muito mais complexo
do que em geral se pensa. Ele está diretamente relacionado às três questões
prévias de que falamos no início, o que é o ser humano, o que é a realidade, o
que é o destino?, e a palavra exata para se dimensionar o aprender do pensar é a
questão do sentido. Por isso, o
destino é a linha diretriz do horizonte das duas outras questões prévias. No
destino está o sentido do que somos e
não somos e, existindo, estamos a caminho de o realizar para chegar a sê-lo.
Destino é o caminho a ser trilhado para manifestação do sentido que já nos foi
dado. Se o destino é nosso próprio, o sentido é o caminho necessário do que
somos. Desse modo, é impossível separar as três questões: o sentido da
realidade é o humano se realizando em seu destino. O acontecer dialético da
história é o sentido do ser destinando-se epocalmente. O horizonte de vigência
do próprio é a época. Nunca podemos esquecer
que somos finitos e por isso estamos jogados em conjunturas. Estas são
nossa condição humana de estar para ser. Mas também não podemos esquecer que
enquanto entre-seres já estamos jogados também no livre não-limite do sentido do ser e não presos às e determinados pelas conjunturas do estar.
Deve ser reiterado que o educar não se limite
a dotar cada um de uma função ou, em termos de mercado, de uma profissão. Cada
vez mais isso é importante, e não pode ser ignorado nem negligenciado, mas não
é tudo. Por isso, para um educar completo, não basta conhecer a história de
algo, é necessário conhecer o sentido da história de algo. Não adianta saber só
historia da educação, é necessário saber a historia do sentido da educação ou,
dialeticamente dito, sentido da história da educação. Em todo agir humano deve
haver sempre a presença do sentido. A perda do sentido deixa o ser humano sem
um motivo para viver. E aí surge o
paradoxo do educar e aprender: é possível ensinar o sentido? É possível ensinar
ou negar o destino? Sejamos insistentes: destino nada tem a ver com fatalidade.
Destino é a livre possibilidade de ser que nos foi doada.
Se
ensinar, enquanto pensar, é deixar aprender, o que é aprender? O que a palavra
aprender nos quer dizer? Que processo de compreensão e apreensão daquilo que
somos como seres humanos, realidade e destino, se concentra na palavra
aprender? Ela é constituída do prefixo latino: ad- e do verbo preendere,
prendere. Este significa no latim: agarrar, prender, ser tomado por. E o ad- é aquele processo de travessia em
que nós estamos já existindo em direção a, para fica junto de. Junto do quê?
Daquilo que nos prende, daquilo que nos constituiu. O que nos prende? O que nos
constitui enquanto sentido, ou seja,
o que é o ser humano, a realidade, o destino. Esses nós já recebemos. Agora
estamos a caminho de realizá-lo, em direção àquilo que nos prende e agarra,
enfim, nos quer enquanto sentido a ser pro-curado. Deste querer advém o poder.
Querer é poder. Todo querer desdobra-se num caminho que é aquele que nos conduz
para nós mesmos, para o que nos é mais próximo: o princípio.
Ora,
aquilo que nos prende e agarra, que constituiu a nossa essência, nosso próprio,
é aquilo que os gregos chamavam de arché,
que foi traduzido para o latim e o português como principio. Este é a essência
de tudo o que é e é, portanto, seu sentido.
Por conseguinte, de cada um de nós. É desse modo que o princípio funda sempre o
social, porque ele é a unidade das diferenças. Esse é o modo de compreender o
social originariamente e não enquanto sistema já constituído e apenas histórica
e conjunturalmente. O poder social do educar vai depender da escolha pelo
instruir ou pelo pensar. O ideal é que não houvesse separação. Mas não resta
dúvida de que só o educar para o questionar do sentido do pensar potencializa
cada um para um viver social harmônico e completo, porque o sentido do pensar
leva à apropriação do próprio e assim jamais haverá anulação das diferenças.
Pelo contrário, haverá uma valorização que potencializa o viver da comunidade e
a comunidade do viver na unidade do sentido.
Aprender
é ser aquilo que nos constitui enquanto próprio, no deixar vigorar o princípio.
É nesse sentido que ensinar é deixar aprender. O próprio não é o subjetivo, o
individual. E não é porque o pensar em que podemos aprender é o pensar do
sentido do ser.
Dito sem rodeios, o
pensamento é o pensamento do Ser. O genitivo exprime duas coisas. O pensamento
é do Ser, enquanto, pro-vocado pelo Ser em sua propriedade, pertence ao Ser. O
pensamento é ainda pensamento do Ser, enquanto, pertencendo ao Ser, ausculta o
Ser (Heidegger: 1967, 28).
É
nesse sentido que o educar poético-originário é a desafiante tarefa e
disciplina da auto-escuta, isto é, a escuta do próprio no seu sentido:
pertencer ao ser que já nos foi dado como tarefa de realizar, nosso destino.
Educar poético-originário é pertencer ao sentido do ser. Portanto, pertencer
diz o apegar-se ao que é essencial. Nesse sentido, apegar-se, prender-se é
querer, é amar. “Esse querer é que constitui a própria Essência do poder...”
(Heidegger: 1967, 29). De que poder se trata aqui? Não é o de causa e efeito,
aquele que age ao nível dos entes. Trata-se daquela força, daquela energia em
cujo vigorar algo pode propriamente ser. Sendo como somos possibilidades de e
para possibilidades, originária e poeticamente já estamos presos ao princípio
de nossas possibilidades. Aprender é tender para e deixar-se tomar pelo que nos
é próprio e constitui nosso princípio. Nisso consiste o educar para o sentido
do questionar, do pensar.
Agora
podemos compreender o horizonte em que se move a pergunta inicial: Pode-se
ensinar a virtude? Pode-se ensinar o ético? Pode-se ensinar o sentido de ser? Causalmente não. Ele
jamais pode ser objeto do instruir, somente do educar para o pensar, porque aí
ensinar é deixar aprender o sentido do
que se é, ou seja, do ético. E este é
a tarefa poético de todo educar enquanto questão.
É do querer que se originam as questões.
Contudo, em nossa condição estamos jogados no
mundo e nele vivemos imediatamente na conjuntura e circunstância das relações
entitativas. E dá-se a tendência de se esquecer o próprio, tendo em vista que
predominam as relações funcionais. Nelas, o próprio se vê assediado pelos
atributos circunstanciais, pelos quais se constitui e afirma o “eu”. E
dependendo das circunstâncias vão mudando os atributos. Instruir é
predominantemente educar para realizar-se segundo os atributos: Eu sou
professor, mecânico, músico, engenheiro, médico etc. etc., eu sou alegre,
triste, bom, alto, magro, brasileiro, religioso, ateu, antigo, moderno,
romântico etc. etc. O estudo da gramática e da lógica reforça a percepção e
determinação do que se é pelos atributos, não pelo sentido, pois são sempre eles que dão a consistência do “eu”, do
sujeito. Este substantiva o ser na proposição predicativa, atributiva.
Por
isso na instrução predomina o ensino objetivo da lógica e da gramática. E com
isso já se julga que houve de fato um educar. Não houve, porque se esqueceu o
essencial: o “sou”. Neste se concentra todo o poder do vigorar. E só há educar
quando deixamos vigorar esse poder: o “sou” de todo “eu” e seus “atributos”. Podemos
notar como o “eu”, enquanto sujeito, concentra o agir causal. Ele seria o autor
disto e daquilo. Daí se parte para o grande equívoco de que é o ser humano,
enquanto sujeito causal, que faz as obras de arte. Quem faz as obras de arte é
a arte, assim como quem faz o ente é o ser, assim como quem dá voz às Musas é a
Memória. Aprender é conduzir para aquilo que cada um é. Deixar-se tomar pelo
que cada um é não é se deixar tomar pelo sujeito, pelo eu, mas o contrário. É
deixar o “eu” ser tomado e querido pelo “sou”, que é o principio em que está
vigorando.
O aprender e suas regências
Nos
verbos acontece o reger, mas não é o verbo que rege, mas o que nele vigora como
possibilidade de toda regência. E o poder de toda regência é a linguagem. Sem
linguagem não há regência porque não pode haver verbo nem nenhuma palavra.
Desse modo, reger é o poder de determinar relações causais ou deixar o ser ser,
gerando conjuntural e circunstancialmente, o sentido de todos os entes na sua
organização lógica e mundificante. O mundo
é o sentido de toda conjuntura e circunstância. Mundo não é ente nem conceito. Mundo
é a abertura de acolhimento do ser humano em sua realização poética no
manifestar-se e vigorar da realidade em seu velar-se. O poético das obras de
arte é mundo, é verdade (aletheia). Sem
mundo, que é o sentido do ser se
doando enquanto linguagem, não há nem tempo nem espaço. Por isso, um mesmo
verbo pode ter mais de uma regência.
Em
português, o verbo aprender se move no âmbito de quatro regências: aprender sobre; aprender algo; aprender com; aprender
de, a partir de. Desse fato se
conclui a complexidade e riqueza do aprender,
que é a riqueza e complexidade da nossa condição humana. O educar
poético-originário, educar do e pelo sentido,
deve estar aberto sempre para essa complexidade e riqueza. Ela se origina da
presença insistente das três questões em que já desde sempre nos movemos.
Questão tem sua proveniência no querer, daí
o poder das questões. É que toda
questão é questão do ser e é o ser que nos tem. Somos uma doação do sentido do ser. Platão chamou a essa
doção ousia/essência ou eidos. Enquanto uma doação do sentido do ser
dos seres, somos ontologicamente uma syn-ousia.
Quando queremos aprender como questão ética,
queremos ser a partir do sentido, do
possível querer do ser. Se a virtude
não pode ser ensinada (o sentido não pode ser ensinado), ela pode ser aprendida, pois querer aprender é querer ser e ser é poder pensar a
partir do querer, da questão em que o sentido
do ser já nos tem. É claro que estamos aqui além e aquém da posição da
Modernidade, pela qual é o sujeito que age e ordena tudo, numa intervenção
contínua como autor de tudo. O sujeito jamais pode agir dando sentido, só estabelecendo significados
lógicos, aqueles inerentes ao funcionamento dos sistemas, determinados pela
precisão passível de comprovação numérica. Esta jamais pode fundar sentido. E no educar poético-originário
trata-se sempre de sentido e não dos
significados inerentes ao funcionamento de um sistema. O poder interventivo do
conhecer da Modernidade jamais pode criar sentido, porque jamais pode fundar o ético. Os sistemas são regidos pela
moral e o alcance desta é o alcance do sistema que a rege. Daí acontece o
conflito entre diferentes culturas. A moral não funda nem pode fundar
diferenças, só fundamenta o universal da concepção lógica. E nem sempre o que é
lógico é ético. Este é a unidade das diferenças que funda o sentido de tempo e espaço. É o poético.
O aprender sobre
Esse
é o processo mais comum a que se reduz o educar no sentido restrito do instruir,
por um motivo muito simples: somos seres temporais e nosso fundo essencial e
humano é a memória. Esta é a essência do educar poético-originário. Porém, como
acontece generalizadamente, confunde-se memória com passado, lembrança. E é
esse equívoco que deve ser superado. Tendo em vista esse passado, educar tornou-se
a prática de entrar numa sala para se falar sobre
conhecimentos, ideias, representações, fatos, vidas, enredos já constituídos.
Na época da internet pode-se aprender
literalmente sobre tudo. Mas já nos
advertiu o pensador Wittgenstein: “O que não se pode falar, deve-se calar” (1968:
129). Disso se conclui que nem tudo pode se tornar objeto de uma fala. Como
transformar objetivamente o sentido do
silêncio em fala? Sobre o que não se
pode falar, não pode haver instrução. A fala do pensador já nos coloca a questão
que subsiste a todo ensinar sobre:
Como dar sentido às múltiplas
informações e conhecimentos que nos advêm no aprender sobre? Mas não será exatamente isso o decisivo para o educar integral? Deve-se ter sempre o
cuidado de não criar dicotomias nem exclusões. As informações são necessárias e
importantes como é importante a totalidade de tijolos com que se pode erguer
uma casa. Mas para erguê-la não basta ter tijolos suficientes. Uma ideia de
casa precede e dá ordenamento aos tijolos. Sem tal ideia não há casa. As
informações sem essa ideia prévia, sem um sentido
que as ordene podem ser prejudiciais e até inúteis. Os tijolos são o instruir,
a casa como habitação e lugar de acolhimento do ser humano é o sentido que ordena os tijolos. Ou seja,
o instruir deve ter sempre em vista um sentido
que transforme o simples amontoar informações nas cabeças dos alunos em
educar. Educar é e será sempre deixar eclodir o sentido como recepção ordenada de tudo que se aprende sobre. Precisamos, sim, dos tijolos, mas
eles sem o sentido perdem a razão de
ser. Portanto, o aprender sobre deve estar sempre unido a algo essencial que
direcione toda essa atividade. E quem na ideia de casa doa o sentido? A linguagem do vazio. É ela que
é a alma da casa e a possibilidade de acolhimento. Em realidade moramos no
vazio. Sem vazio não há casa como sem silêncio não há fala.
O
importante no aprender sobre é que o
aprendido tem um alcance circunstancial e funcional, estando à margem do que
cada um é e da possibilidade de nos afetar essencialmente. Memoriza-se e
esquece-se o que se ensina e aprende sobre. Funcionalmente talvez possa decidir
um concurso de que participamos. O sobre é uma determinação funcional: não se
passou neste concurso, fazem-se outros até conquistar o posto. Mas o concurso de
cada vivente na prova do sentido da
vida é um só. Por isso é necessário um outro aprender, um outro educar. O
aprender sobre é o mais comum e ao qual é reduzido o instruir. Instruir é
trazer um conjunto de informações sobre. Podemos notar que nossa vida acontece
no tempo e as informações que nos advêm no aprender sobre limitam-se a tomar o tempo no seu discorrer, no seu fluir
cronológico. Daí predominar no aprender sobre
o dis-curso. Dessa maneira se
constituem as histórias de todas as
disciplinas. Nessa concepção e redução do tempo ao cronológico, o que fica
sempre esquecido é o seu sentido. Mas
é este que move, essencialmente, todo o nosso agir. Em nossa vida funcional e
circunstancial tem sua importância e não pode ser excluído, mas não podemos
reduzir a vida e seu sentido a esses
estados, como não podemos reduzir o sentido
da vida às sensações dos sentidos. Estes
geram estados sem o sentido do ser. Por isso, o sentido da
vida não se pode reduzir às sensações estéticas nem a estesias racionais ou simbólicas. A Estética diz respeito a estados
não ao sentido de ser. A estesia é sempre causal. Já o poético
é não-causal, porque vigora no sentido do silêncio do ser. Em nossa realidade atual onde predominam
os meios de comunicação com um poder enorme de
criação de estesias racionais e simbólicas, há uma tendência muito forte
para as pessoas viverem dessas estesias e
passarem a considerá-las como sendo a realidade. E isso ainda fica mais
acentuado pela expansão e domínio cada vez maior da realidade virtual e seu poder de provocar sensações estéticas.
Denys
Arcand, grande diretor de cinema canadense, no filme L’ère des ténèbres (traduzido para o português como A idade da inocência), nos apresenta uma
reflexão profunda sobre o impacto dessa realidade ilusória na vida do cidadão
simples. Este, diante da perda de sentido da vida, tende a substituir a vida
concreta pelas estesias que dominam a
realidade atual. O diretor se concentra em três aspectos essenciais da vida no
contexto atual: As belas atrizes, as/os jornalistas (meios de comunicação) e
seu poder, os pequenos poderes exercidos nos diferentes níveis das relações
sociais dentro do sistema. E também a forte atração pelas drogas permitidas (e
não permitidas), como o cigarro (exemplo do filme). A atração que eles exercem
acaba deslocando o próprio de cada um para um viver na fantasia, numa
substituição da vida concreta e suas agruras e até em seu sem-sentido. No
filme, quando o personagem principal – Jean-Marc – resolve assumir seu próprio,
uma a uma, tais fantasias com suas estesias se dissolvem no ar. E ele se
reencontra na vida simples do contato direto com a mãe-terra, quando se volta para um viver trabalhando no meio rural.
É evidente que o filme nos faz pensar outras dimensões, mas destaco estas na
relação que vejo com a questão do educar poético-originário. Visto nesta ótica,
é uma verdadeira obra de arte que tematiza aquilo que é essencial e próprio do
ser humano, e da dificuldade de realizá-lo pelo poder impactante das diferentes
estesias no educar, em sentido amplo,
do ser humano.
Contudo,
nós estamos procurando o educar que inclua tudo. Pois é ele que pode nos mover nos
caminhos do pensamento enquanto sentido do
existir. Trata-se, pois, de não excluir o aprender
sobre, mas de inseri-lo no educar poético-originário de onde lhe pode advir
o sentido. Como o aprender sobre
vigora na concepção do tempo cronológico e procura o que constitui o passado, sem
a unidade do que seja o tempo como memória, é impossível apreender/aprender o
passado em seu sentido. Acontece que
este é esquecido com o empobrecimento do que seja a história e a memória. É
isso que precisa ser resgatado no aprender sobre, ou seja, dar-lhe sentido
enquanto pro-cura.
O aprender algo
A
outra regência é o aprender algo.
Este já é bem mais específico. Por exemplo, se alguém quer ser engenheiro e não
aprendeu matemática, não aprendeu cálculos estruturais, não poderá exercer a
profissão com responsabilidade e segurança. É que o aprender algo tem sempre uma finalidade. Desde
tempos imemoriais esse algo era o
fruto de experiências e do seu
acúmulo. Experiência forma-se do
grego: eks-peras. Podemos dizer que
nas palavras gregas eks-peras, techné,
aletheia e télos está concentrado
todo o educar, o causal e o não-causal, o educar para o formar pelo instruir e
o educar para o pensar. Será no horizonte desses dois princípios que serão
compreendidas e traduzidas, com significados bem diferentes. Ligado ao aprender
algo, télos foi traduzido por
finalidade. É que esta está sempre em função da elaboração de algum instrumento
ou daquilo que se pode fazer por meio dos instrumentos. O elaborar ou fazer se
faz por meio da techné. De instruir
se formaram os substantivos instrumento e
instrução. Desse modo toda obra, seja artística ou técnica, sempre tem um componente instrumental,
que diz respeito à sua elaboração. É esta que caracteriza o aprender algo e
que, necessariamente, passa pelo aprendizado dado por uma instrução (técnica). O
aprender algo diz, portanto, numa primeira instância, sempre respeito a uma
instrução. Mesmo nas culturas em que não há escolas onde acontece instrução?
Ela se faz presente nos mais diferentes ritos culturais, de iniciação ou não.
Em toda festa, em toda comemoração, há um instruir ligado à memória. E isso é
que é propriamente cultura em sentido geral. Porém, os ritos sem os mitos
perdem sua força manifestativa de valores ético-poéticos. Diante da força
avassaladora das realizações e informações técnicas, as identidades culturais
estão se tornando espetáculos, ou seja, ritos representacionais porque neles se
perdeu o sentido.
Aristóteles,
examinando as causas presentes na elaboração (techné) de todo e qualquer instrumento, portanto, também dos ritos,
distinguiu quatro causas: material (hylé),
formal (morphé), eficiente, final (télos). Podemos notar que o aprender
algo ou formar pelo instruir acontece no horizonte da instrumentalização do ser
humano, enquanto meio ou enquanto finalidade, isto é, o exercício de uma
função, pois quer torná-lo apto a exercer as mais diferentes finalidades ou funções. Em verdade, Aristóteles não pensou a causa eficiente,
porque jamais poderia reduzir o operar da physis
a uma causa. A palavra que Aristóteles usa também não tem o mesmo sentido
que tomou no Ocidente a palavra causa. Ele
fala de aition. E a sua tradução por causa é imprópria. Mas não podemos agora
fazer todas essas distinções. Certamente isso resultou da apropriação do
pensamento grego pelo Helenismo. Nesse quadro é que todo o aparato escolar de
formação do ser humano, tomado como sinônimo do educar, se centraliza no aprender algo, que afinal de contas
inclui o aprender sobre. Por isso,
hoje tudo está reduzido a técnicas, pois são elas que determinam as mais
diferentes ações humanas dentro de um sistema social ou de produção ou de
reprodução.
Vejamos
agora a palavra grega tão usada e presente em nossa vida em todos os tempos: eks-peras. Aristóteles usa também empeiria. Peras significa limite. Eks- é o que está
originariamente além de, projetado para fora de todo limite. É o mesmo prefixo
que aparece no verbo e-ducar. O que
desde sempre caracterizou o sendo (on, em grego) é o limite. É a morphé. O que é o limite da morphé? Ele tanto diz algo positivo como
algo negativo, o que somos e o que não somos já desde sempre, pois o que somos
é uma doação do ser. O limite fica mais enigmático porque a tradução do on por ente acaba substantivando o que é verbal (morphé). Portanto, a melhor tradução do on é sendo. E disso
decorre algo muito importante para o educar: não é algo substantivo, mas
verbal, num contínuo estar sendo. Dessa maneira, essa é outra característica do
educar poético-originário: algo em contínuo processo sem prazo de término, a
não ser aquele determinado pela morte. Sermos doação diz que somos
possibilidade de e para possibilidade, ou seja, entre-ser. Isto diz: já somos ontologicamente ex-perienciação, isto
é, estar e ficar sendo limite e não-limite. É isto que diz o eks- de todo peras, de toda ex-periência. Para
melhor manifestar esse acontecer, em poética preferimos dizer experienciação, aquilo que não cessa de
estar acontecendo e envolvendo o próprio e o social. (A ideia do social como
algo já estabelecido é uma abstração que não se sustenta concretamente). Como em e-ducar, o ex- ou eks diz o sermos livres originariamente.
Desse modo, experiência e educação são indissolúveis. Mas o
aprender algo pela experiência nos diz o alcance limitado desse aprender,
limitado porque está em função de, é pré-determinado pelo sistema de produção
dentro do qual será absorvido. Contudo, podemos facilmente perceber, de um
lado, que a predominância do aprender algo seja sempre um instruir, um estabelecer os limites de uma forma, portanto, dentro
de relações causais, de outro, a mesma experiência
pode acentuar o eks- e nos
remeter parar o educar como não-causal, porque este e só este e-ducar
possibilita a efetiva libertação. Neste caso trata-se de experienciação. Toda
possibilidade, em se realizando, nos remete para um estado que nos joga numa
situação, onde nos deparamos com limites, mas como o limite não nos prende, uma
vez que somos possibilidade de e para possibilidade, esta, fazendo do limite
não-limite, nos liberta. É o agir do sentido do pensar, do não-causal. O educar
pelo libertar é o pensar, que é o educar poético-originário. Disso já se pode
tirar uma conclusão: todo aprender é ambíguo. Tomemos como exemplo o ensinar e aprender as
artes. Estas se tornam um algo. O que
pode ser ensinado e aprendido? As artes? Não. Então o quê? Arte não é algo que se possa ensinar e aprender,
porque não se reduz a conceitos gerais passíveis de reprodução. Devemos
distinguir arte e obra de arte. E nesta o que é técnico e não-técnico? É a ambiguidade
da techné grega. Se compararmos a
obra a um instrumento, e é, notaremos que nela se vão fazer presentes as quatro
causas. Então por que nem todo instrumento é obra de arte? Aquilo que na obra
de arte é instrumental pode ser ensinado e aprendido, mas o que não é, o que
não depende de um conhecimento causal, não pode nem ser ensinado nem aprendido
causalmente. Caso contrário seria fácil produzir obras de arte. E não é. Por
quê? Por que não se produzem Beethovens em séries? Por que não se criam
Guimarães Rosas em série? A arte, como o humano e a virtude, vigoram na questão
do sentido. E este é memória porque é destino. Com-preender as obras de arte e interpretá-las todos
podemos. Produzi-las já é uma questão de destino. Mas não será o interpretar
também de algum modo um produzir, desde que interpretar não seja uma tarefa do
sujeito, mas um deixar-se tomar pelo sentido?
Essa é a questão do educar poético-originário, um educar para o agir do sentido.
E
se voltarmos à pergunta inicial que diz respeito ao poder ou não poder aprender-se
a virtude, constatamos que a questão
não se resolve num sim ou num não, mas que a questão nos joga num jogo ontológico
de possibilidades que permeiam as duas regências vistas até agora. Isso é
possível porque o prender de aprender
e compreender são ambíguos, como veremos na terceira regência do verbo
aprender. Aprender é um jogo onde se joga a partida decisiva de eros e thanatos. Esse é o jogo jogado no educar poético-originário. Um jogo regido pelo sentido. Este, como juiz, a todos nos julga, porque é ele a lei, a medida da virtude. Dele
participam todos os seres humanos, porque esse jogo é seu próprio.
O aprender com
Esta regência não elimina as duas anteriores,
mas lhes dá um novo horizonte que as redimensiona e reúne, sem criar jamais
dicotomias. O educar poético-originário deve integrar para poder levar o ser
humano à sua consumação, à realização na plena libertação. Entre os gregos o
sentido primeiro de telos é
consumação. Um educar que não liberte não é educar. Techné,
eks-peras, poiesis, mímesis e télos têm
um sentido mais originário além do visto no aprender algo. Até agora vimos o aprender sobre e o aprender algo.
No aprender sobre predomina a memória
enquanto cronologia. Aprender sobre é
fazer o aprendizado de um determinado conjunto de conhecimentos reunidos na
memória e pela memória naquilo que, cronologicamente, se denomina passado. Se
há, e há, reunião, o passado não é o que já passou, mas o que vigora como
possibilidade do ainda não realizado: o futuro. O presente é a tensão entre
passado e futuro, entre latência e patência. É por isso que para melhor nos
defrontarmos no presente com o futuro temos de nos apropriar do passado. Ele é
uma referência, sem ser tudo. Por isso o aprender sobre não basta, embora também seja necessário. A cronologia é um
dado fundamental do ser humano, mas não é tudo. Há outros dois modos de o ser
humano se realizar no tempo e com o tempo. O kronos indica a possibilidade de o tempo tornar-se número, pois
está ligado ao manthano. O número
introduz o tempo como sucessividade. Esta resulta do vigorar do sentido do ser
no pôr e depor da linguagem (logos).
É esta que reúne e possibilita o narrar do que é e está sendo, gerando as
conjunturas e circunstâncias históricas. Nestas ser é estar². Estar é o narrado
nos ritos enquanto discurso de toda língua. Se o discurso é o discorrer (dis-currere, discursus) do tempo
enquanto ser da linguagem, a língua não é natural, é ontológica. É o sendo do
entre-ser, a partir do qual são possíveis: ex-periências, ex-istir, e-ducar
pelo vigorar da techné e da mímesis enquanto poiesis. Veja-se bem, sem experiência não há nem pode haver em
ciência experimentos. Se bem
observarmos, retomamos as questões originárias em que o educar
poético-originário já se move. Originário é o vigorar do tempo enquanto sentido.
Não
podemos excluir nada. Temos de tentar levar o pensamento para aquilo que é
determinante em nossa vida, como um educar poético-originário onde todos,
inteiros, e tudo, estão implicados. É para este tudo que nos remete a terceira regência do aprender. Se dissemos
acima que a obra de Rosa, Grande sertão:
veredas, é um pensar o educar poético-originário, notemos, neste momento,
que ele o faz no deixar vigorar o sentido
do agir do pensar, pois inicia a obra com o um traço, que indica vazio,
ausência, negatividade, mas também expectativa de fala, ou seja, vigorar o sentido do silêncio, a fala de toda
linguagem: “ – ”, seguido da palavra enigmática: “ - Nonada”. A linguagem é o nada vigorando. E termina sua obra com o
sinal matemático de infinito: ∞.
A
terceira regência, em torno da qual giram as duas anteriores, é o aprender com. Toda língua, como o entre-ser de
ser e linguagem, é um grande enigma. Nela se dá a referência misteriosa de
Essência do ser humano e Ser. O núcleo de toda língua é o verbo. Uma tradição retórico-gramatical deslocou esse núcleo
essencial para a oração, a proposição predicativa ou juízo lógico, origem da sintaxe. Esta é ambígua, como veremos. Até bem recentemente, o estudo
sintático-gramatical da língua se denominava: análise lógica. Por quê? Juízo se
diz em grego: krisis, substantivo do
verbo krinein, que significa distinguir ou diferenciar a partir da unidade
de tudo. (Diz Heráclito na sentença 50: “...hen panta”). Este sentido se perdeu na redução do estudo e
da compreensão da língua a paradigmas e conceitos lógicos, onde o conceito é
mais importante do que o operar do lógos.
Com isso se perdeu o vigorar verbal do logos
e no lugar foi escolhido pela gramática a proposição predicativa como núcleo essencial da língua. Um tal
esquecimento ocasionou um empobrecimento radical, pois foi esquecido o sentido do ser. Esse esquecimento se deu
pela redução do logos/linguagem à
causa, ao conhecimento causal. Em virtude disso, o ensinar e aprender enquanto
instruir já é excludente, mas quem, afinal, é excluído é o sentido do eks-sistir humano fundado no ser e não, evidente, no
sujeito e seus estados. Perdeu-se o
núcleo verbal e poético do educar.
Verbo,
enquanto fala, se diz em grego rhema. Deste
palavra se formou a retórica, daí o
estudo conjunto da gramática e da retórica. O decisivo no ensino e aprendizado
da língua era a retórica (falar bem para convencer, persuadir) e não a
gramática, pois esta diz o estudo da língua já reduzida à representação da
escrita (gramma, em grego). Grammatiké diz o estudo, a epistemé da língua escrita. Inicia-se aí o afastamento
da língua enquanto corpo (soma) vivo
que se faz presente nas obras para no lugar ficar a língua enquanto código,
organismo. Para o grego, o logos vigorando
era a rhema. Como opera o aprender com na retórica? Rhema diz
fala e logos diz linguagem. Sem
linguagem (logos) não há fala (rhema). O vigorar do logos (linguagem) é o que se chama verbo: ação, pensar do sentido do ser, abrindo
as possibilidades de todo e qualquer ser humano falar, possibilidade esta
prévia a qualquer língua ou sintaxe. Um
fato incontestável comprova isso: podermos aprender qualquer outra língua e
também poder ser traduzida. Toda sintaxe gramatical
já radica na sin-taxe da linguagem, do logos que funda sentido. Por
isso elas são diferentes, dependendo do conhecer em que se funda ou
fundamenta.
E
de onde se origina a palavra verbo? Do
verbum latino. Este tem seu radical
na raiz indo-europeia *wer ou *wre. Em latim originou verbum e em grego hermes. O
grande pensador da língua portuguesa, Guimarães Rosa, diz em Grande sertão: veredas: O que é um nome? Nome
não dá. Recebe. O que é para ser são as palavras. Já dissemos acima que palavra diz o entre-jogado. E o que nos diz verbo
e hermes? O entre-dito, aquilo
que se torna a mensagem. Não é isso
que nos diz o mito de Hermes? Não é ele o mensageiro,
o entre os deuses e os homens? Com a
redução da língua ao código, é este a origem dos significados, das mensagens e
de toda comunicação. Isso só foi possível pelo esquecimento do sentido do agir não-causal. O ensino da
gramática como comunicação esquece o aprender
com porque não se funda mais no diá-logo,
mas no domínio do código e sua sintaxe comunicativa. Portanto, o ensino e aprendizado está estruturado em cima de uma
série de equívocos e esquecimento do essencial.
Examinemos
melhor isto para compreendermos em toda a sua radicalidade o aprender com. De um lado temos os deuses
(o daimon, o extraordinário, o sagrado),
de outro temos os seres humanos. No “entre” faz-se presente o verbo, hermes. Este, o Verbo (logos), reúne o sagrado e os seres
humanos. Ele é o mensageiro, não é a mensagem. Não que haja separação, mas no
sentido de que o sagrado é a linguagem e Hermes a língua. Podemos fazer uma
outra comparação: Memória é a mãe das Musas. A Musa fala, mas a Linguagem é a
Memória, porque esta é a mãe de todas as línguas. Hoje, fala-se facilmente em
linguagens artísticas. É um equívoco devido ao agir causal pelo qual se
confunde matéria (hylé, em grego) com
linguagem (logos). Às artes
correspondem diferentes materiais e significados, mas a linguagem, o sentido é um só, porque é a unidade. Não há tantos logoi quantas são as artes. No âmbito
dos significados pode haver diferentes discursos,
diferentes narrativas. Para nós, entre-seres, isso se torna a questão. No âmbito do pensamento, quanto
à questão de língua e linguagem, Heidegger
acentua isso, ao falar da referência da Essência do ser humano e do Ser (§ 206
de A origem da obra de arte). Tal referência foi, é e será sempre a
questão a ser pensada. Em verdade, em alemão, o autor usa no título de sua obra
a palavra Ursprung, cuja tradução
apropriada é originário (a tradução
por origem já se ressente da
cronologia causal). É este que dá
unidade à referência de Ser e Essência do ser humano, de Sagrado e seres
humanos, de Memória e fala das Musas.
Unidade recebeu nos pensadores
originários a denominação: arché, o
princípio das diferenças. E nos mitos
Mnemosine. Esta unidade entre Ser e seres humanos foi manifestada no latim com a palavra cum. Os significados de cum são: com, em união com, ao mesmo tempo que, para (denotando o resultado
de uma ação. É o que se dirá em grego telos); quando, todas as vezes que. O
pensamento originário da língua grega jamais separava arché de telos. Isso fica
bem claro na palavra arconte, o que
vigora no poder e por isso comanda, está à frente de.
Desse
modo fica evidente que não se pode pensar a unidade
sem o acontecer do tempo. E o que a gramática nos diz do tempo enquanto
vigorar da linguagem? Nada, porque só fala de código e representação. A sintaxe
de que fala a gramática diz respeito ao código e jamais à língua viva, diz
respeito a organismo e não a corpo (soma).
O aprender com pressupõe unidade, tempo e linguagem.
No
grego, com se diz syn (daí sintaxe e síntese). O ordenamento subjacente à sintaxe diz
da unidade pelo vigorar do princípio no aprender com. A sintaxe gramatical, enquanto ordenamento lógico-causal, é
já um esquecimento do que de fato dá unidade no aprender com: o logos. Este, reduzido à causalidade, deu origem à lógica (episteme logiké). A lógica causal serve muito bem para o instruir, mas não chega a realizar o
educar. Portanto, não como fundamento causal, mas como fundar não-causal, o cum diz o operar da arché/telos do princípio e realização poética. Originariamente é
impossível separar arché/telos, pois
este diz o princípio se consumando em estar sempre principiando. O ensinar e
aprender com diz, portanto, o
deixar-se tomar pelo princípio para
consumá-lo no seu sentido poético, no seu telos.
Sem princípio não há unidade das diferenças.
Diante disso, é necessário voltar ao aprender com para deixar vigorar o princípio em seu consumar-se: educar
poético-originário pelo e para o sentido:
cum, arché.
Princípio
não é fundamento, pois este só fundamenta significados, jamais o sentido. Por quê? Porque no fundamentar
vamos ter sempre um agir ao nível dos entes, onde vigora o agir de causa e
consequência, de agente e paciente, de determinante e determinado. O com, enquanto sentido do princípio, fica irrefutável no uso adequado da palavra
portuguesa con-creto. Forma-se do
verbo latino cum-crescere (cresco, cresci, cretum). Portanto, este
diz o crescer das diferenças na unidade
do princípio: cum. Noutros termos: o
que faz crescer é o com, porque este,
enquanto princípio, é a Vida que alimenta todos os viventes. A Vida é nada de vivente, pois não é sua causa,
isto é, não pode ser reduzido a “algo”, ainda que este algo seja elevado a um
“ente” infinito. O que não é ente é nada.
Claro que na afirmação é
nada, jamais podemos sair da aporia de tentar dizer o que não pode ser
dito. O melhor seria, seguindo Wittgenstein, silenciar. Mas até para silenciar
temos que deixar de falar, falando. Daí a aporia de sempre cairmos no é, na aporia da referência da Essência de
ser humano e Ser, no fizer do pensador Heidegger.
Há
uma longa tradição no Ocidente pela qual sempre se identificou o princípio (arché/cum) com o logos. E não é sem motivo. O radical de logos é o indo-europeu: lg, de
onde se formou o verbo grego legein e
o latino legere. O radical lg diz de uma experienciação originária
de pôr, depor, dispor e propor (daí pro-posição). Mas o dispor e propor de legein reúnem dando sentido ao pôr e depor, porque conduzem o posto, deposto,
disposto e proposto para o pouso (silêncio, vazio que acolhe e faz vigorar) de
seu ser e o faz assim repousar na vigência poética de sua realização. Vigorando
no vazio pode o legein reunir e dar sentido, enumerar narrando, dizendo.
A
quarta regência possível de aprender, o
aprender de, desde, já vigora no
aprender com, quando interpretamos
este como sendo princípio. Aprender desde
diz o deixar vigorar o tempo originário, o nada enquanto princípio, arché.
O com-preender
E
por que todo este aparente desvio para falarmos da regência do aprender com? É porque nos desvios se
podem aviar as vias de com-preensão
do aprender com. É porque no aprender com já vigora o princípio de todo poder aprender: o com-preender (cum-prehendere). Sem
com-preender não há a-prender. No aprender com
já está vigorando o com-preender
enquanto o prender a partir do princípio.
Aprender com diz originariamente o
aprender a partir de. De quê? Do que
em todo aprender já vigora como princípio: com-preender.
Sem compreender não há, não pode haver, o aprender em suas três regências: sobre, algo, com. Já vimos acima
o que significa o verbo aprender. Agora
podemos melhor compreendê-lo. Aprender
forma-se do latim ad-prehendere e
diz: ad- o posto em direção
a, em direção àquilo que nos prende e agarra: prehendere/preendere/prender. E o que nos prende, agarra? O com no
sentido de princípio. Por isso, no
educar de todos nós para a Vida, não pode haver uma dicotomia entre o aprender sobre, o aprender algo e o aprender
com. Porém, é o com que deve ser
decisivo para dimensionar a presença, o alcance e valorização do aprender sobre e aprender algo, porque é ele que funda todo o compreender do aprender nas diferentes regências. Nestas já sempre
está presente o com-preender.
Se
até agora insistimos no educar que remete para o próprio de cada um como
originário da doação do que cada um é, devemos agora dizer algo fundamental que
já está implícito em tudo que foi dito até agora. Se o com diz o princípio ele também se mostra como o originário do ser com. Isto é apenas uma explicitação
de algo evidente: a sociabilidade de todo ser humano. Esta se funda em algo
irrefutável: vivemos socialmente, pois o próprio viver e perpetuar a vida é um
ato fundado no cum-laborare, na
co-laboração. O núcleo mínimo do perpetuar-se não acontece sem a sociabilidade
pela qual o homem e a mulher se unem para
procriarem a partir do que já sempre neles vigora: o ser com. Se olhamos o social pelo lado da linguagem, um dos modos
tradicionais de caracterizar e diferenciar o ser humano diante dos outros
entes, diremos que os serres humanos formam essencialmente uma co-letividade. É nesse sentido que
podemos dizer que a inteligência é
algo coletivo, porque constitui todos os seres humanos de toda e qualquer
cultura. A palavra forma-se do verbo
latino: cum-legere, que tem o
particípio: lectum. E o verbo légere tem o mesmo radical do verbo
grego legein. Ambos por isso mesmo
significam ao mesmo tempo: reunir e dizer,
ou seja, todo reunir é essencialmente dizer e todo dizer é reunir. Guimarães
Rosa, sempre atento ao vigorar das palavras, diz em GSV: O capinar é sozinho, mas o colher é de todos. Vemos como o pessoal
e o social são indissociáveis ontologicamente.
Mas
algo deve ser destacado e deve estar presente no educar como princípio orientador de tudo aquilo em que ele con-siste e ao que ele quer chegar. Cada ser humano é uma doação do ser. Platão
nomeia esta doação com as palavras gregas eidos/ousia.
Se é uma doação o que somos, nós o recebemos e não dispomos dele e nem o
podemos dar. Na vida do dia a dia só podemos dar o que já está pronto e faz
parte dos entes. Mas nós somos possibilidade de e para possibilidade. Nunca
estamos acabados. Se alguém quisesse doar-se a alguém tiraria do outro a
possibilidade de ser outro, porque se eu recebesse receberia possibilidades
para realizar que não são minhas. E não me apropriaria de meu próprio: as
possibilidades que recebi para ser. E essas ninguém pode me dar, pois tiraria
de mim a identidade e a diferença que me foram dadas. Alienação diz exatamente o fato de que alguém
se esquece de seu próprio para tentar realizar possibilidades que são de outro
(alius, em latim). Nisso ele perderia
sua identidade. Nesse sentido o viver com
apresenta numerosas dificuldades, isto é, o viver em sociedade é ambíguo.
De um lado, é necessário e ontológico, de outro, nos abre possibilidades de nos
alienarmos. Como evitar isso? É o grande desafio do educar poético-originário.
E ele consiste no manifestar o sentido do que somos. Sentido é o advir à luz.
Mas luz no sentido grego: phos, energia
irradiante. Jamais se trata de passar das trevas para luz. Isso é uma divisão
dicotômica entre trevas e luminosidade externa ao acontecer da realidade (physis, em grego). Ambas vigoram na luz.
Advir à luz enquanto sentido diz o deixar eclodir o latente. Eclodir na
patência a latência é o que os gregos denominaram: verdade (a-letheia). Sentido é a verdade do que
se é, o próprio.
O
educar para o ser com, para o viver
socialmente, apresenta o perigo da alienação, da perda do próprio, porque há
algo que se generaliza de uma maneira assustadora: para o educar são
apresentados modelos a serem seguidos
e copiados. Disso se encarrega o educar decalcado no instruir: normas morais
como princípios a serem externamente seguidos, vidas de personalidades e
teorias da sociedade que se apresentam como as verdadeiras e, portanto, a serem
seguidas. Ora, isso é que é impossível ensinar se se quiser preservar o
próprio. E um educar que não preserve o próprio não é educar, é destruí-lo
porque não se abre para as possibilidades absolutamente diferentes de cada um. Podemos
notar que um tal educar não constitui uma sociedade integral, porque vai predominar
a uniformidade de comportamentos, sem haver realização do próprio. Se isso,
funcional e politicamente, é bom aparentemente, no fundo, provoca conflitos
tanto externos quanto internos. Não há e nunca haverá modelo prévio. Por isso o
poder de conviver politicamente não pode advir da uniformidade, mas do poder
que faz vigorar o sentido das diferenças. Esse é o poder do sentido do pensar,
do sentido do questionar. Porque neste é o ser que nos pensa e nos pensa porque
é ele que nos doa o sentido do que somos. Pensar é chegar a realizar numa
tarefa poética e de destino o que somos como doação do ser. Portanto, podemos
compreender que a igualdade social e política só nos advém com a afirmação das
diferenças, na medida em que estas são regidas pela unidade do sentido que é a linguagem. Educar para o sentido do questionar é educar para a
linguagem. E esta, só esta, funda a coletividade e con-vivência política,
porque originária e poeticamente já somos uma unidade de diferenças. Se a
unidade funda a diferença, a diferença afirma e confirma a unidade. Há sempre
um pólo de referência. Este pólo é o que os gregos denominaram pólis. No pólo de sentido e unidade todos somos iguais perante a lei da unidade e sentido da linguagem. Mas jamais somos iguais nas
possibilidades que recebemos para ser. Desse modo, o educar poético-originário
pensa radicalmente o político. Se no sistema conjuntural das diferentes
relações de produção isso dificilmente acontece, não é querendo substituir um
sistema por outro que poderemos chegar às diferentes produções de relações. Só
um educar poético-originário, fundado no sentido,
abre possibilidade de realizar umas e outras, numa harmonia de igualdade de
condições, sem jamais anular ou coibir as diferenças. No sistema fundamentado
no conhecer causal confunde-se unidade com uniformidade. Daí a necessidade de
tensionar dialeticamente o sistema do instruir com o educar para o pensar,
fundado no sem porquê, no sem causa. Nada
pode ser excluído, porque a infinitude do princípio nada exclui. Se a língua
oferta diferentes manifestações, isso só é possível porque se funda no poder da
linguagem. Se a sociedade (pólis)
oferta diferentes manifestações, isso só é possível porque se funda no poder do
ser, o vigorar da unidade e sentido das diferenças. Talvez agora fique mais
claro o que é doação e o que é próprio. E fique mais claro o sentido do educar poético-originário.
Os poetas-pensadores e o educar
Quando
se fica no aprender sobre e no aprender algo, dá-se o esquecimento do sentido do ser e, portanto, não haverá
educar poético-originário. Quando olhamos os programas e os modos de lidar com
as obras de arte, notamos imediatamente que todo o educar está reduzido ao
formar pelo instruir. O conhecer causal domina de princípio ao fim e, hoje, em
todos os lugares, pois o modelo ocidental se globalizou. Contudo, os
poetas-pensadores, fonte de todo educar poético-originário, nos alertam para
esse perigo. Eis o que nos diz Caeiro no poema 46:
.........................................................
Nem
sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o
rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram
usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar
que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram
os sentidos...
....................................................................................
O poeta-pensador do educar poético se vê
sufocado e em vez de o educar o tornar leve e libertar, provoca o contrário. É esse um dos maiores perigos
hoje, gerando nos educadores sérias dúvidas do que deve ser ensinado, seja
sobre, seja algo, porque as pesquisas e as infovias geram uma quantidade de
informações e conhecimentos impossível de serem acompanhadas e aprendidos. E o
que essencialmente é necessário? Necessidade mesmo só há uma: ser o que
recebemos para ser, realizar nossas possibilidades e termos sempre em mente o sentido: libertação, verdade, advir à
luz que já vigora dentro de cada próprio e jamais pode vir de fora. A par da
quantidade de informações há outro: a sua volatilidade. As informações são
substituídas rapidamente por outras e os experimentos científicos e as
pesquisas estatísticas descobrem que aquilo que era válido hoje, diante de
novas descobertas, não é mais amanhã. E tudo isso lança o ser humano, que
procura o sentido do que é e faz, numa grande desorientação. E o que então
ensinar aos jovens? Além disso, cada vez mais distante fica o aprender com. E é disso que o poeta nos
fala: “O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado//Porque lhe
pesa o fato que os homens o fizeram usar”. “Fato” é roupa. Todos esses
conhecimentos que não nos dão o sentido, dificultam a travessia do rio da vida,
isto é, da existência, porque os conhecimentos circunstanciais podem nos
encobrir o sentido do próprio com conceitos e representações, e dificultar o
aprender com. Por isso continua o
poeta: “Procuro despir-me do que aprendi, // Procuro esquecer-me do modo de
lembrar que me ensinaram, // E raspar a tinta com que me pintaram os
sentidos...”. Com estes pensamentos, o poeta-pensador nos confronta com o valor
relativo do que é ensinado, isto é, das meras representações. Se ele procura
despir-se do que aprendeu, o que se torna necessário
aprender? E se, em vez de guardar na memória o aprendido, procura esquecer
o modo de lembrar que lhe ensinaram, qual o modo de lembrar que deve ser
ensinado, para que haja um educar poético-originário? E o poeta-pensador
radicaliza: ele não quer apenas esquecer, quer raspar as tintas com que lhe
pintaram os sentidos. São afirmações que dão o que pensar. Nota-se facilmente
que os conhecimentos causais não lhe dão o que é necessário, quando se trata de
dar um sentido à vida, isto é, fazer
da vida um valor ético (areté, para
os gregos). Sentido é o ético do existir. E ele não admite “tintas”. Só o ético
e poético são dignos de serem guardados.
É em vista disso que é o aprender com
que se deve tornar a linha diretriz do educar, sem abandonar o aprender sobre e
o aprender algo. Ou seja, o educar poético-originário deve mover-se no
conhecimento não-causal, sem nada ser excluído, mas também como o a ser pensado.
O sentido, a virtude, o ético nos apontam sempre para um modo de ser do humano
que nos lançam num paradoxo: aprender para desaprender incessante, porque
nenhum conteúdo, nenhum conhecimento causal nos dá aquilo de que precisamos para
nos libertar. E só este é o necessário. Experienciarmo-nos no princípio é o
aprender necessário.
O
princípio nos conduz sempre para nós mesmos. Porém, essa condução é uma
caminhada de aprendizagem, ainda não está feita. E, no entanto, ela é tão
próxima do que somos que até já a somos. Aprender essencialmente é empenhar-se
nesta caminhada. Quando nos reduzimos às funções, aquilo que é o mais próximo, tão
próximo que até o somos, ele se torna o mais distante. Funções se ensinam, se
aprendem e se esquecem. No entanto, podem anular a identidade, aquilo que nos é
o próprio, porque este jamais pode ser reduzido a uma função causal e finalista.
Ele é livre e sendo livre se torna o livre penhor de eks-istir, pois eks-istir
é sem por quê. A liberdade para ser liberdade é sem função e é sempre sem
função porque para ser livre não pode estar em função de. Se está em função de já não é livre nem se torna
o penhor de todo viver eks-istindo. Penhor é o sentido, a verdade enquanto luz
iluminadora, a vigência da linguagem. A essência da liberdade consiste em,
eks-istindo, chegar a ser o que já se é e ainda não se tem: nossa moira, nossa identidade, nosso próprio.
A moira, o destino, é a essência da
liberdade. E é aí que se dá a essência do sentido em seu mistério.
Essencialmente, todo aprender e ensinar é um aprender e ensinar para ser livre.
É
para essa procura que nos remete também Cecília Meireles, no poema “A constante
aprendizagem”:
Hoje
desaprendo o que tinha aprendido até ontem
e que amanhã recomeçarei a aprender.
Todos os dias desfaleço e desfaço-me em
cinza efêmera:
todos os dias reconstruo minhas edificações,
em sonho eternas.
Esta frágil escola que somos, levanto-a com
paciência
Dos alicerces às torres, sabendo que é
trabalho sem termo.
E do alto avisto os que folgam e assaltam,
donos de riso e pedras.
Cada um de nós tem sua verdade, pela qual
deve morrer.
De um lugar que não se alcança, e que é, no
entanto, claro,
minha verdade, sem troca, sem evidência nem
desengano
permanece constante, obrigatória, livre:
enquanto aprendo, desaprendo e torno a
reaprender.
(1961)
(Meireles:
Nova Fronteira, 2001)
Temos neste poema o que é o aprender com. Fica bem claro nele que o aprender sobre e o aprender algo, em vez de nos libertarem podem nos prender, podem nos estratificar,
imobilizar e fazer perder o sentido. Aprender com é permanecer no princípio
para não se tornar algo e algo estático. Princípio é aquilo que cada um é, o que
nos foi dado para nós sermos, nosso próprio. Nunca podemos confundir princípio
com causa. Eis como Aristóteles explicita o âmbito do princípio na sua Metafísica: Arché é uma experienciação da realidade não estática, mas dinâmica;
não linear, mas circular; não finita, mas infinita; não de exclusão, mas de
inclusão.
É
isso o que viemos tentando dizer com o aprender com. Só há educar poético-originário quando cada um se experiencia
vigorando no princípio. Deixando-se
tomar pelo princípio, desdobra-se originariamente o sentido, o ético, o poético. É nesse horizonte que nos
lançam as três questões originárias que no fundo são uma única: Que é a
realidade? Que é o ser humano? Que é o destino? Sendo a realidade o princípio,
o ser humano é possibilidades de e para possibilidades a cada um destinadas.
Porque somos sempre novas possibilidades que estão se desdobrando. É o que
poeticamente nos diz Cecília Meireles, no último verso do seu poema: “aprende e
desaprende e torna a reaprender”. É desse modo que o ser humano como
possibilidade de e para possibilidade se torna um projeto em contínua
realização poética. Mas dele faz parte tanto o aprender quanto o desaprender,
tanto o ter quanto a renúncia. Só assim nos experienciamos livres. Livre é
saber não ter o ter, é saber o não-saber, ser o não-ser. Isso nos foi
destinado, isso é nosso destino: o sentido, o ético, o poético. Esse é o educar
poético-originário, porque é a caminhada contínua de nunca cessarmos de nos estarmos
compreendendo no aprendendo e no desaprendendo.
Desse
modo, em uma primeira instância, o aprender com
significa deixar vigorar o princípio, mas, numa segunda, é necessário deixar vigorar
a memória. Só ela nos permite aprender e desaprender para deixar vigorar o
tempo originário, porque a memória não é o passado. A apreensão, determinação e
redução da memória ao passado é feita pela historiografia, pela cronologia.
Porém, a memória para os gregos se fundava em três experienciações do tempo: kronos, o tempo que flui e é passível de
enumeração e narração; aion, o que
permanece e perdura infinitamente pela incessante criatividade, a eternidade; kairós, o tempo da maturação, da
eclosão, o tempo propício, o tempo poético da realização em seu consumar-se
enquanto linguagem e sentido. É esse o telos
do educar poético-originário. O kairós
é a essência do instante poético.
Por isso, Cecília Meireles no poema “Motivo” canta o instante:
Eu
canto porque o instante existe
E
a minha vida está completa
Não
sou alegre nem sou triste
Sou
poeta.
(Meireles:
Nova Fronteira, 2001, 227)
Demos também um exemplo da vida cotidiana: a
mulher nasce, cresce e chega à adolescência,
ela está apta a gerar filhos, a tornar-se mãe. Eis um primeiro kairós. Numa decisão interna (ou acidental) resolve engravidar. Dentro
dela, na vigência do tempo enquanto aion e
kronos, o filho cresce no silêncio da
realização poética. É a silenciosa gestação de ser. Até chegar um novo kairós, o momento propício do dar à luz,
da Vida acontecer. Kairós é o momento
propício do acontecer poético, porque não é somente mais um vivente que nasceu.
Há o concreto, pois o princípio vigora como sentido do ser.
Manifestar
esse sentido é o educar poético-originário. Deve ficar bem claro que não é a
mulher-mãe que cria a Vida, ela gesta o vivente que não vive sem a Vida. Ela
não é autora de nada, ela é o lugar onde a Vida acontece. Só aparentemente ela
é a causa do nascimento da criança. Mas também a Vida não é “autora” de nada,
porque Vida não é fundamento. Ela dando-se no vivente se retrai como Vida. É
por esse motivo que a mãe-mulher pode gestar novos filhos. Não é ela que age.
Quem age é o princípio gerador da Vida. A este princípio gerador os gregos
denominaram Genos e o Platão pensador
denominou ousia, o feminino como
princípio gerador. (Ousia é a palavra escolhida por Platão
para denominar a essência, ela provém
do feminino do particípio presente do verbo einar/ser.
Ón é masculino e ousa é o
feminino). E é do genos que nos advém a moira, o destino, a doação do nosso próprio (ousia/eidos). Para isso
remete o aprender com, o con-crescer de vivente e Vida, de saber
e não-saber, de fala e silêncio, de língua e linguagem, de significado e
sentido, de ente/sendo e Ser. O aprender
com é o contínuo advento do inesperado
no estarmos acontecendo. Isso é a realidade, o humano, o destino. Não é um aprender
sobre ou aprender algo. É um aprender a que desde sempre
já estamos presos, por princípio, onde nós estamos implicados e necessitamos
nos desdobrar, desvelar.
Por
isso, em Poética, nós fazemos uma diferença, sem separar, entre aprendizado e
aprendizagem. Aprendizado é quando se aprende algo sobre ou algo de uma
disciplina. A aprendizagem é aquele processo pelo qual aquele que aprende está
jogado no próprio processo de realização ética e poética. Isso é o destino,
porque é o sentido eclodindo, o advento daquilo que os gregos denominavam telos. A virtude é o telos acontecendo.
O
educar poético originário se consuma no aprender com. Por que este acontece? Porque cada um de nós é um próprio.
Próprio não é subjetivo, não é o individuo, é aquilo que cada um recebeu como
propriedades e que é o seu destino. Destino não é fatalidade. Destino é o
próprio que cada um recebeu para realizá-lo, apropriando-se daquilo que recebeu
e lhe foi dado. O que somos não é nosso. Foi-nos dado e temos a tarefa poética
de fazê-lo eclodir e desabrochar em suas possibilidades. O próprio enquanto
possibilidades é sempre único e inaugural. O processo de realização do próprio
é o que nós chamamos aprender com.
Isso é a grande tarefa poética de nossa existência. A Poética diz esse processo
de realização, esse processo radical onde nós estamos jogados como destino para
nos apropriarmos do que nos é próprio. Esse é o educar poético-originário. Por
isso a virtude não pode ser ensinada. Já a recebemos. É a-letheia, o que os gregos denominavam significando desvelamento que não cessa de velar-se.
É a verdade do agir não-causal O difícil
é deixar que ela vigore desvelando-se, pois funda-se no velar-se: desafio do educar poético-originário.
Notas:
1 - No livro Poética e diálogo: caminhos do pensamento. Ed.
Tempo Brasileiro, 2011, p. 13-44, há uma entrevista minha aos organizadores,
onde discorro sobre o que é escola. Só
nesse sentido ela se torna o lugar do educar poético-originário.
2 – No meu livro: Arte: o humano e o destino, há um longo
ensaio que denominei: “Ser e estar”,
onde examino as relações e referência entre estar
e ser. Rio de Janeiro: Editora
Tempo Brasileiro, 2011.
Bibliografia
CAEIRO, Alberto (Fernando
Pessoa). Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Trad. Emmanuel
Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
---------------------------.
A origem da obra de arte. Trad.
Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. São Paulo: Edições 70,
2010.
MEIRELES, Cecília. Poesia completa. Org. Antônio Carlos
Secchin, v. I e II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, v. II, p. 1442.
ROSA, João
Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1968.
WITTGENSTEIN,
Ludwig. Tractatus logico-philosophicus.
Trad. José Arthur Giannotti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.