23 abril 2012

Por um educar poético-originário


Ao leitor: Este ensaio é longo, mas propõe alguns aspectos essenciais. Estou aberto ao diálogo e peço que me escreva, mandando email para profmanuel@gmail.com. Compartilhe comigo este modo poético de encarar e praticar o educar. Vamos questionar?




Manuel Antônio de Castro



Este ensaio é uma provocação para o diálogo. O presente tema resultou de uma pesquisa que diz respeito à questão do educar. É uma tentativa de repensá-lo enquanto um processo histórico. Foi inicialmente desenvolvido em um curso dado na Pós-graduação da Faculdade de Letras/UFRJ, no segundo semestre de 2011, onde, junto com os alunos, procuramos discutir essa questão que é simples e complexíssima. Todos nós, em nossos cursos de formação, sejam eles quais forem, estudamos sempre uma disciplina que se chama história: história da arte, da ciência, da literatura, da filosofia, da pedagogia etc. Alguma história sempre estudamos, até porque nossa vida é uma história também, uma narrativa viva. A história implica também o sentido do ser humano no tempo. E aí resolvi introduzir uma palavra única em relação ao ensino das diferentes histórias para tentar redimensionar, na nossa época, todas as disciplinas em seus conteúdos, em suas metodologias e em seu modo de realização e atuação. Ao invés de estudar simplesmente, por exemplo, a História da literatura, o que me passou a ocupar e a preocupar foi a História do sentido da literatura. Uma coisa é estudar Historia da filosofia, outra é estudar Historia do sentido da filosofia. Uma coisa é estudar Historia da educação, outra é estudar Historia do sentido da educação etc. Foi daí que surgiu a temática em torno de um educar poético-originário. É impossível, poeticamente, separar o educar do sentido do que seja educar, porque o educar é antes de tudo a difícil realização do sentido de existir.

Para o leitor é muito importante que perceba a posição que me provoca originariamente. É essa posição que exige dos provocados um deixar-se tomar pela dialética, num exercício contínuo de diálogo. É importante cada vez mais promovê-lo. É no diálogo, com o diálogo e pelo diálogo que acontece a dialética. Sem diálogo não há dialética. E sem dialética não há história. Quem dá sentido à dialética é o sentido do ser enquanto tempo. Isso é fundamental para nós nos compreendermos. E em todo compreender, como abertura originária, já nos movemos num aprender pessoal e comunitário. Aquilo que sempre reuniu e reúne as pessoas em torno de um diálogo são as questões que dizem respeito ao humano de todo ser humano enquanto seu sentido. Este independe de tempo e cultura. O sentido é a dialética da história porque esta é o destinar-se do sentido do ser.

Na vigência da dialética, a proposta é de que ela se torne para cada um a oportunidade de mergulhar e conhecer cada vez mais o sentido da sua condição humana. E não se importe tanto com o que aqui é proposto, mas com a questão que nos toma e envolve.



A virtude e o educar

Quais são as questões que implicam o educar poético-originário? E por que me centralizo sempre nas questões? Respondo com o desafio do grande pensador Martin Heidegger. Questionar e pôr em questão é a única tarefa do pensamento. Então vamos questionar? É isso que é importante para cada um e para todos nós como sociedade, no desafio poético do educar.

A grande questão que tomava os gregos no tempo de Platão e constituía a essência da sua paideia era algo muito simples e enigmático: É possível ensinar a virtude? Em grego, areté. Essa é a questão que perpassa todos os diálogos de Platão e este lhe dedicou um especialmente: o Mênon. E por dedução, hoje, podemos perguntar: Podem-se ensinar as artes, a literatura, a educação? Enfim, pode-se ensinar o humano? Mas as humanidades não são ensinadas há séculos? Sim. No entanto, temos que questionar. Pode-se ensinar algo que diga respeito ao humano sem que esteja no âmago daquilo que se ensina o sentido? Assumir esta posição, tentar ensinar as artes, toda arte, é tentar ensinar a virtude, a areté. Não há arte que não diga respeito ao humano e seu sentido. Será que o humano pode ser ensinado? É preciso entrar numa escola para aprender lá o que é o humano? E as pessoas que nunca entraram numa escola não fazem eclodir dentro de si o humano? O que é a escola? ¹ Essa é a questão em torno da qual se decide o que é educar, não qualquer educar, mas o poético-originário.



As questões

Para tentarmos encaminhar a possibilidade de ensinar e aprender o humano, a arte, a virtude, há três questões previas que as antecedem. São elas: O que é o ser humano? O que é a realidade? O que é o destino? Toda e qualquer posição de ensino e aprendizado, seja na disciplina que for, já pressupõe uma tomada de posição sobre essas três questões. O que é posição? Ela foi, é e será sempre uma doação da linguagem.  De modo que, se nós quisermos questionar aquilo que propomos como educar poético-originário, já temos que compreender qual seja a nossa posição em relação a essas três questões prévias e inevitáveis. Mas isso raramente é feito, porque não há um educar para o questionar. Não há um educar poético-originário na medida em que se tem esquecido cada vez mais o sentido de ser e do ser. E por que é raro esse questionar? Porque de antemão já houve por diferentes injunções uma decisão sobre as cinco questões que lhe são conaturais: a verdade/aletheia, a imitação/mímesis, a poiesis, a técnica/techné, o pensar/noein. Num círculo vicioso, se estas dependem daquelas, aquelas também dependem destas. A tarefa de um educar poético-originário é integrá-las concreta e dialeticamente num círculo virtuoso. O pano de fundo em que se move o educar poético-originário é esse, mas não poderemos tematizá-lo neste momento em toda essa amplitude, pois diz respeito ao próprio percurso da filosofia ocidental. Propomos algumas reflexões.



As duas respostas

Em princípio, ao longo de todo percurso ocidental, houve duas respostas para a tentativa de compreender e aprender o que é o humano, o que é a realidade, o que é o destino. Terei de ser breve e conciso, pois muitas são as variações históricas e culturais a propósito dessas respostas. Duas foram as modalidades de conhecimento escolhidas e praticadas e que constituem a trajetória do Ocidente. Quando digo duas modalidades não quero dizer que sejam opostas, antitéticas, dicotômicas. Pelo contrário, constituem uma dobra. De modo que ao se praticar o educar já se está tomando posição em relação a uma dessas duas modalidades de conhecimento. Quais são essas duas modalidades?



O conhecer causal

A primeira é o conhecer causal. Por ele nós reduzimos o educar ao instruir no sentido de formar. Não se pode pensar a forma sem pensar o ser humano em sua referência à realidade que ele é e que ele não é. Instruir significa levar alguém a aprender sobre ou aprender algo com uma determinada finalidade bem definida e funcional, dentro de um sistema. Como o instruir, enquanto sistema, se globalizou, hoje há dois desafios propostos para o educar enquanto instruir: preparar recursos humanos para o sistema de produção técnica, num esforço cada vez maior pela eficiência ou produtividade, e o projeto político de inclusão social cada vez maior, como possibilidade de participar da sociedade do conhecimento e do consumo.  É a palavra de ordem política do desenvolvimento. É uma posição global explícita de todas as ordens políticas. Mas desenvolvimento de quem e para quê? E qual o custo desse desenvolvimento a qualquer custo? E poderiam alguns usufruir dele e outros não? E qual seria o padrão a ser adotado? Noutros termos, essencialmente para o humano o que é necessário? Nesses termos, promover o desenvolvimento já é promover a justiça? E pode haver justiça sem a apropriação educativa do ético-poético? São questões que não podem ser caladas quando se trata de um educar poético-originário.

O conhecimento causal é importante porque nos dá a ilusão da possibilidade ilimitada de interferir na realidade, no humano e no nosso destino. E a ilusão maior de tudo poder explicar. Pode o ser humano viver sem explicações? Não é todo conhecimento explicativo? O que seria o conhecimento enquanto conhecimento, isto é, sem algum atributo? A certeza de tal poder se potencializou com o advento da Modernidade. Foi nesta que se expandiu este pseudo-poder. É uma fé que se planetarizou hoje. Não que o homem não possa interferir, mas que possa ter o poder absoluto e um dia achar a resposta definitiva para as três questões. Poderá o instruir levar a isso? As grandes obras de arte dizem que não. E por quê? Essas três questões não são uma questão de conhecimento. São um enigma, um mistério que não cessa de nos desafiar. O enigma se potencializa em outra questão que não cessa de desafiar o ser humano: O que é a verdade? Destas questões se alimentaram todas as obras de arte já realizadas e as que ainda se realizarão. Essa é a riqueza do humano e o desafio de um educar poético-originário.

Como se constitui esse conhecimento causal? Ele se apresenta em duas facetas interligadas. Pela primeira o ser humano se envolve na tarefa de procurar um fundamento em tudo. Um outro nome para fundamento é causa. Daí se falar frequentemente em fundamento causal. Estabelecido o fundamento causal, dá-se a outra faceta: a sua formulação numa regra, numa teoria, numa lei. Conhecer a realidade, o ser humano, o destino, é poder estabelecer uma lei que preveja todas as relações e funções possíveis dentro de um sistema. No fundo, já se reduziram as questões a sistemas de relações e funcionamento. Conhecimento se torna sinônimo de verdade por adequação entre a realidade e a sua medida representada matematicamente.  A certeza da lei ou da verdade depende da precisão. É esta que dá o aval da certeza da verdade do conhecimento. Dessa maneira não se fala mais de realidade, mas da representação da realidade enquanto conhecimento. A causalidade isolada cria uma dicotomia entre conhecimento e realidade. Tal precisão parte da aceitação de uma verdade que não é questionada: a de que o universo e de tudo que nele existe é regido por relações matemáticas, passíveis de serem expressas em números ou equações. Não é uma certeza teórica, mas necessária e universal. Noutras palavras, universal porque precisa. Nestes termos, essa precisão é o próprio destino do universo e de tudo que o constitui. Descobrir com precisão a causa é reduzi-la ao cálculo. A ilusão da precisão do cálculo está em que se esquece o sentido da realidade e com tal esquecimento o acontecer das diferenças. Se é uma possibilidade da realidade, não é toda a realidade. Por isso a técnica não cessa de perseguir a representação ideal de abarcar e igualar a própria realidade. É esse o horizonte em que se move todo instruir, ou seja, o formar pelo ensinar e aprender.

Se em português temos diferentes palavras, em grego, de onde nos provém esse primeiro conhecer, tudo se inter-relaciona. Em grego, ensinar e aprender se diz: manthano. Deste verbo se formou o substantivo máthesis, o que pode ser ensinado e aprendido, e mathémata, a manifestação do que pode ser ensinado e aprendido em cálculos e números. Eis o matemático. Por isso, científico é tudo que pode ser reduzido a algum cálculo ou estatística. Pensar e encontrar o cálculo é o próprio do científico. Só nesse sentido a ciência pensa. Mas jamais pode pensar o sentido. O princípio de todo instruir é o científico. Desde Pitágoras o universo é concebido como harmonia de esferas vibrantes. Eis a proximidade de música, harmonia e matemática.

Achada a causa, pode-se apropriar de e dominar as relações que regem o fundamento e o fundado, criador e criatura, autor e obra, sujeito e objeto, agente e paciente, determinante e determinado. Esse é o conhecimento técnico, hoje globalizado. Ciência é conhecimento técnico. Instruir é ensinar técnicas em nossa sociedade com o poder de determinar a realidade, o humano e o destino a partir da causalidade. É claro que só estudar a historia deste fundamento, das suas modalidades ao longo do percurso ocidental demandaria um tempo enorme. A dialética hegeliana é a tentativa de transformar a causalidade em sentido do processo histórico. Mas será então o sentido da causalidade e não o sentido da realidade, porque esta é questão.

O modelo ocidental do instruir se globalizou, porque nenhuma outra cultura realizou este conhecimento. O modelo de Universidade inaugurado pela Idade Média e decalcado nas academias helenísticas hoje se globalizou. Não podemos esquecer que este modelo de conhecimento traz consigo um modelo de verdade que também se globalizou, com o enorme perigo de uniformidade cultural, porque não se admitem mais outras possibilidades de conhecimento ou verdade. Se admitidas, elas serão lidas e compreendidas nesta teoria da realidade, do humano, do destino. É o grande perigo a que se veem submetidas as culturas milenares da China, da Índia, do Japão, dos árabes e das culturas de todos os demais povos não ocidentais. Mas estou querendo afirmar que esta é uma modalidade de conhecimento que não é o educar em sua plenitude. Se há o conhecimento causal, há também um outro conhecimento: o não-causal, que é o pensar. Entre eles há uma dobra e não uma dicotomia. O educar pleno implica o pensar e o instruir ou formar.



O educar para o pensar

Essa dobra do conhecer, que melhor seria denominada de saber, acompanha toda a trajetória do Ocidente. Porém, no século XVII, em pleno desabrochar do Iluminismo, as duas modalidades de saber foram sintetizadas por dois pensadores alemães que viveram na mesma época e morreram no mesmo ano, 1677: Leibniz e Ângelus Silesius. Leibniz formulou o princípio do fundamento nos seguintes termos: Nada é sem razão. Nada se faz sem causa. Ângelus Silesius formulou o princípio do não-fundamento num pequeno poema muito famoso:



              O por quê

              A rosa é sem por quê.

              Floresce porque floresce,

              Não se auto-contempla

              Nem pergunta se alguém a vê.



Seguindo Leibniz, se nada é sem causa, desde que se conheça a causa, é possível conhecer toda e qualquer coisa. As pesquisas no mundo inteiro são guiadas pelo princípio do fundamento. E é em torno dele que se estruturam todas as Universidades. Daí predominar o educar enquanto instruir, onde se perde a dobra. Para reintroduzi-la é necessário lutar por um educar poético-originário. Segundo o princípio do não-fundamento, há uma outra possibilidade no educar, porque implica um outro saber. Que saber é esse?  Reforçando este saber e nos lançando em suas trilhas, Guimarães Rosa disse no conto “O espelho”: Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo. Se o nada acontece e acontece como milagre, ele pode fundar, mas jamais ser compreendido ou conceituado/explicado como um fundamento, como uma causa. Os pensadores medievais já diziam: Ex nihilo nihil fit (do nada nada se faz). Mas todo milagre diz da presença de um poder não-causal, não redutível a uma explicação causal. É um poder certamente mais poderoso (se isso fosse possível dizer), porque irredutível ao domínio racional, causal. Aí não há causa, porque é o nada acontecendo. Este é o poder do pensar. É impossível querer reduzir toda a realidade à possibilidade de determiná-la através de um fundamento. Pergunto: Qual é a causa do silencio? Qual o fundamento do não-saber? Podemos lembrar Édipo, a personagem-questão do humano de sempre em sua dobra. Achando que podia saber tudo e determinar o seu destino, descobre no final que, em vez de vencê-lo não o cumprindo, o cumprira. Soube que nada sabia e arranca os olhos, o sinal para o grego do não-saber por não poder ver, de onde provém todo saber. Não podemos confundir ver com olhar. Quantas vezes olhamos e não vemos! O ver que sabe é prévio a todo olhar, assim como o que somos é prévio ao estar sendo. Só por já sermos é que podemos estar sendo. O saber do pensar é o desafio poético de chegar a ser o que já desde sempre nos foi dado para sermos: nosso próprio. Édipo ao arrancar os olhos demonstra que sabe que não sabe por mais que parecesse saber. É o eclodir do saber do pensar. Trata-se de um saber sem fundamento.

Uma leitura mais atenta dos diálogos de Platão e sem teorias prévias e pré-conceitos, descobre perplexa que ele não é o autor da teoria das ideias. O eidos de que fala é o tò mè ón: o nada criativo que, evidentemente, não tem a menor possibilidade de ser fundamento. O nada funda sem fundamentar, porque jamais pode ser entificado como fundamento. A grande questão de achar um fundamento é que se o entifica ao transformá-lo em causa de tudo que é, numa relação de agente e paciente, de determinante e determinado. Causa diz coisa. O fundamento é a coisa das coisas. E não se nota o paradoxo contraditório de que não há o menor motivo pelo qual a coisa das coisas é a última. Por que não haver a coisa/causa da coisa das coisas, e assim por diante?  Educar para o saber do nada é o educar para o aprender a pensar. Este acontece nas obras dos poetas e dos pensadores. Eles não cessam de o afirmar para comprovar que tal nada nada tem a ver com niilismo, porque este já é causal. Se Deus é fundamento, ele não existe, pois não pode ser coisa nem causa, muito menos ente com existência. Ele não pode ser o grande fundamento/causa, o grande “ente”, enfim, ele não pode ser reduzido a um “então”. Por que não acolhermos o silêncio do mistério em nossa finitude, sem querer explicar o que não precisa de explicação? Nós achamos que tudo precisa de explicação, mas não o mistério, não o sentido da realidade. Relembrando: sentido não é explicação, não é significado, estes dependentes do fundamento causal. Independente de nós, o mistério e o sentido acontecem. Voltando a Rosa: “Quando nada acontece...”. Se Deus é não-fundamento, ele é não-verdade. Ele é, paradoxalmente, Nada. Daí a referência de Rosa ao milagre. Do Nada nada se pode dizer ou explicar, pois já seria entificá-lo, reduzi-lo a um conceito, a uma explicação. Resta o silêncio da escuta, que funda toda a música, entendendo por música não uma das realizações artísticas, mas a Musa de todas as artes.  Musas são a geração de Mnemosine, a memória, unidade enquanto sentido de todas as diferenças. Os poetas e pensadores para operarem suas obras se dispõem para a escuta da voz da memória, na fala das Musas. Uma vez que a realidade é memória, todos os seres humanos precisam necessariamente ser educados para o pensar, acontecer do educar poético-originário. E como e quando se dá o pensar? Quando nos deixamos tomar pelas questões e fazemos de nosso agir um questionar incessante, produtivo, poético. No pensar não há a ação de agente e paciente, não há ação produtiva, não há ação de um fundamento. O pensamento nada produz, porque é o nada agindo que manifesta o sentido de tudo que é, vem a ser e será, do sentido de tudo que não é nem virá a ser. Eis o sentido não-causal da dialética.   

Essas duas modalidades de educar é que, de alguma maneira, constituem as diferentes condições de vigorarmos poeticamente nas três questões que nos dizem respeito, queiramos ou não queiramos. Não se trata de um problema de opção em que se poderia dar ou isto ou aquilo.  Não é um problema de teoria do que seja o ser humano, a realidade, o destino. Aí foi, é e sempre será a questão central o ser humano, mas este sem a referência ao sentido do ser perde sua essência. Os conhecimentos que partem de uma concepção prévia do ser humano e, portanto, da realidade, só operam no âmbito do ser humano como ente, como funcional, e não se abrem para o sentido. É então que se torna necessário um educar poético-originário. Este será sempre a referência do próprio ao ser e do ser ao próprio, na mesma referência de vivente e Vida. Uma coisa é dizer que ou só há fundamento ou só há não-fundamento. Há dobra.



O instruir e o educar

O ensino e as pesquisas de todas as universidades, institutos de pesquisas etc., por qual conhecimento se guiam e nos guiam? O daquele conhecimento que quer descobrir uma causa e automaticamente determinar a consequência ou daquele que se abre para o sem por quê, o conhecimento não causal? O esquecimento deste é desastroso em todos os níveis e até no alcance das descobertas e sua aplicação. O alcance das descobertas será o alcance do horizonte em que elas se dão. Esta é a grande questão, porque não deveria haver dicotomia. Por outro lado, sempre há a questão: pode-se ensinar a pensar? Mas então temos de perguntar ainda: o que é ensinar? O instruir pode ser realmente programado e efetivado.

Instruir vem do verbo latino in-strúere, ordenar num processo contínuo de estruturação. In- é conduzir algo a partir do que já está no íntimo, dentro, e constitui a possibilidade de todo horizonte, o vazio. Strúere é fazer tomar posição no vazio diferentes elementos com ordem e funcionalidade. A função uniformiza e torna indiferente quem se restringe à função. A lógica, o sistema, é eliminar o próprio, pois este já é dado de antemão pelo sistema, em função do qual se vive a existência que nos foi dada e não pode ser vivida como aquilo que já desde sempre somos e que temos que eks-istir para chegar a ser, apropriando-nos do que nos é próprio. Eis a essência e alcance de toda função. O próprio de todo sistema e em todo sistema é o horizonte sem horizontalidade, sem o que gera todo horizonte. Quando as obras de arte, todas as obras de arte, se constituem em sistema já deixaram de serem obras de arte. Passam a ser rotulações, classificações funcionais.

O vazio já contém em si a possibilidade da posição, do estar se estruturando, porque estruturar é determinar limites, horizontes (horidzo, grego, significa: limitar). Dessa maneira, temos o crescimento de um corpo, de um animal, de uma planta, logicamente organizados, daí se denominarem organismos. O princípio estruturante e lógico de todo organismo é a energia originária, poética, porque energia vital, luz, sentido. A luz enquanto sentido é a lógica do logos (não proposicional, não predicativo). A separação entre corpo e organismo, entre instruir e educar é dicotômica e falsa. No fundo de todo processo está o genos como princípio de energia estruturante. É nesse sentido que se pode falar em código genético, sem que este alcance determinar todo agir do genos. Por isso, educar não diz em primeiro lugar, embora se faça presente, dotar de organismo, de estrutura ou até de um código.

Formado do latim, e-ducar diz ducere, conduzir, levar, e ex-, para fora. Para fora, para onde? O sentido originário de ex- é ontológico, prévio ao espaço e tempo. Pelo contrário, fundado no ser, que não é, vigora, manifesta tempo e espaço. Não pode ser reduzido a uma categoria gramatical que indica espaço, significando, portanto, o levar, por exemplo, para fora de uma sala ou para um crescimento numérico e cronológico. A noção gramatical da preposição ex- já pressupõe o lugar existente como o que já está aí (posição). O sentido originário de ex- não é esse. Para melhor compreendê-lo temos que retornar às três questões primeiras entrelaçadas entre si. O que agora nos deve ocupar é: o que é o ser humano? O ser humano é radicalmente entre-ser. Como entre-ser se experiencia sempre na liminaridade. Só por isso pode acontecer nele o educar. Isto é, um conduzir ex-. Então ex- é conduzir do limite para o não-limite. Porém, o limite do não-limite é  o aberto, o livre. Educar, radicalmente, significa levar o ser humano, na sua constituição e condição de entre-ser, do limitado para o não limitado, isto é, para o livre. Libertá-lo, tirá-lo da mera relação entitativa: circunstancial, conjuntural e orgânica. Um educar que se limite a instruir quer realçar as condições de relações funcionais dependentes de um sistema já dado para cumprir as finalidades inerentes ao sistema. A questão da finalidade é algo complexo. Quando fazemos qualquer projeto de pesquisa temos que determinar nossos objetivos. Tudo tem que ter finalidades, objetivos. Será? O educar para além do instruir não pode ser determinado por finalidades. Se for determinado por finalidades, onde fica a liberdade? Onde está o não-limite de todo limite? É importante pensar o educar sem criar dicotomias, pois de qualquer modo o ser humano também é um ente relacional e que tem de cumprir certas finalidades funcionais. Estas predominam cada vez mais, o que leva o ser humano ao sem-sentido. Por isso mesmo, cada vez mais a questão é não haver a predominância, o domínio, de um conhecer sobre o outro. Há necessidade sempre de inclusão e diálogo entre o instruir e o educar para o pensar. E surge o desafio: enfim, o que é o ensinar e aprender para que haja um educar poético-originário?



O ensinar e o aprender

Vamos conduzir a reflexão aprofundando um pouco a questão do ensinar e do aprender. Para melhor compreendê-los temos que, num primeiro passo, levar a sério as palavras, porque o arraigado costume cotidiano da sua repetição e a predominância maciça dos meios de comunicação acabam uniformizando e impondo os significados superficiais e comunicativos, e não escutamos mais o vigorar da palavra, no ressoar do seu poder inaugural de realidade, de humano e de cumprimento do destino. Acaba predominando o estar em detrimento do ser. O humano vem à sua eclosão no sentido da palavra, na medida em que esta já vigora na linguagem. O ser humano é entre-ser. E o que a palavra palavra nos diz? Também ela vigora a partir de um entre. Usamos e abusamos das palavras e nem mais lembramos como ela foi constituída. A palavra portuguesa palavra vem do grego e forma-se de para-ballein. Para- significa junto a, entre. E ballein quer dizer: lançar, jogar, projetar. Portanto, ela diz a essência do ser humano: o que está jogado no entre. Do verbo paraballein formou-se o substantivo: parábola. Desta formou-se palavra. Ontológica e socialmente, o ser humano é um ente junto a outros entes. Ou como os gregos diziam, ontologicamente, é uma sin-ousia. Porém, algo o distingue e por isso pode acontecer o educar. Ele é um sendo entre o limite e o não-limite: entre-ser. Enfim, é um ser do sentido da palavra e do pensamento.

O primeiro passo para o educar, enquanto pensar, é começar a deixar-se tomar pelo poder do sentido das palavras e a apreender o sentido da sua ressonância para que elas retomem o seu vigor originário. Nesse horizonte poético-originário pensemos o verbo aprender. O horizonte de toda palavra inclui já o não-horizonte, o não-limite. Isso é o originário.

Usamos e abusamos dos verbos aprender e ensinar. Para começarmos a compreender um pouco da radicalidade do que significam aprender e ensinar, trazemos a palavra do poeta-pensador Guimarães Rosa. Em Grande sertão: veredas (Rosa, 1968. Doravante usaremos a sigla GSV), diz: Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Para onde foi toda estrutura escolar, fundada na relação professor e aluno, sujeito e objeto, como passagem obrigatória para o ensinar e aprender da formação e do aprendizado (instrução)? O professor ou mestre é quem ensina e cabe ao aluno aprender, programa-se assim a escola. Rosa diz o oposto. Mestre não é quem ensina, mas quem está aberto para o inesperado do aprender. É claro que Rosa não se refere ao instruir, mas ao educar pelo pensar. Por isso, GSV se constitui em uma grande reflexão sobre o educar poético-originário. Aliás, Riobaldo era professor. É como Zé Bebelo, o que se guia pelo agir subjetivo-racional, o trata. Porém, numa tradição já multimilenar, tendemos a dar maior importância ao enredo narrativo do que às questões. Mas estas na obra poética se tornam ficção e é como ficção que são constituídos os mitos. Porém, estes se fazem força histórica de manifestação das questões, o que afasta o significado usual e superficial de ficção. Esta diz muito mais respeito a duas questões interconectadas e muito importantes no educar: a mímesis e a aletheia/verdade. É nestas instâncias que se compreende e apreende o que é realidade.  É por esse motivo que sem as questões não há educar para o pensar, não há ensinar e aprender originário. É nesse sentido que a obra-prima de Rosa é uma profunda reflexão sobre o educar poético-originário. Este se essencializa num pacto. Neste recebe um poder não-racional nem subjetivo. Riobaldo é tomado pelo pensar, o sentido de ser. Ele faz parte da sua travessia que nos remete para o tornar-se mestre pelo aprender sem querer ou poder ensinar. Por quê? Quem lê e não se escuta no operar da obra não se dispôs a aprender. Notemos como na afirmação de Rosa há um deslocar do agir causal para o agir não-causal. Nesta acontece a essência do agir. Educar poético-originário é a incessante e persistente caminhada para o desvelamento do que já desde sempre se é, de onde nos advém a essência do agir, do poético.

Fora da relação causal do instruir, o que é ensinar? Ensinar, no fundo, é deixar aprender. Nesta perspectiva, agora se coloca o difícil problema de assinalar o lugar do professor ou mestre. Neste nível de reflexão, o Oriente tem muito a nos ensinar, a nos fazer pensar, pois entre eles a relação mestre e discípulo nunca é fundada numa relação causal. A título de exemplo poderíamos citar o excelente filme de Kim Ki Duk: Primavera, verão, outono, inverno... primavera. O título já mostra a circularidade infinita no lugar da linearidade causal e a referência essencial entre realidade, humano e destino. Neste filme se concentra a essência do educar poético-originário. Desse modo, o mestre jamais quer causar um aprendizado no discípulo com seus ensinamentos. O mestre nada ensina além daquilo que o discípulo já tem, mas ainda não sabe. Este encontra no mestre um espelho para que sua presença-especular seja a oportunidade de se iluminar projetando-se no processo do auto-conhecimento. É difícil e, no entanto, é o caminho da verdade. Só há verdade quando é verdade da não-verdade. A causalidade entifica a verdade, provocando exclusão, extermínios e morte. No educar poético-originário deve ser o próprio discípulo o sujeito da aprendizagem. E aqui já estamos sendo imprecisos, porque sujeito faz parte de uma estrutura de pensamento causal/gramatical. Não há, em verdade, nem sujeito nem objeto. Quem age? Aquilo que no discípulo é e demanda a eclosão no aprender. O discípulo age enquanto pensa.  Evidentemente, este é o aprender do pensar e não do instruir. No pensar aprende-se sentido, no instruir aprendem-se significados (causas, explicações).



O aprender

  Desse modo, o aprender é muito mais complexo do que em geral se pensa. Ele está diretamente relacionado às três questões prévias de que falamos no início, o que é o ser humano, o que é a realidade, o que é o destino?, e a palavra exata para se dimensionar o aprender do pensar é a questão do sentido. Por isso, o destino é a linha diretriz do horizonte das duas outras questões prévias. No destino está o sentido do que somos e não somos e, existindo, estamos a caminho de o realizar para chegar a sê-lo. Destino é o caminho a ser trilhado para manifestação do sentido que já nos foi dado. Se o destino é nosso próprio, o sentido é o caminho necessário do que somos. Desse modo, é impossível separar as três questões: o sentido da realidade é o humano se realizando em seu destino. O acontecer dialético da história é o sentido do ser destinando-se epocalmente. O horizonte de vigência do próprio é a época. Nunca podemos esquecer  que somos finitos e por isso estamos jogados em conjunturas. Estas são nossa condição humana de estar para ser. Mas também não podemos esquecer que enquanto entre-seres já estamos jogados também no livre não-limite do sentido do ser e não presos às e determinados pelas conjunturas do estar.

  Deve ser reiterado que o educar não se limite a dotar cada um de uma função ou, em termos de mercado, de uma profissão. Cada vez mais isso é importante, e não pode ser ignorado nem negligenciado, mas não é tudo. Por isso, para um educar completo, não basta conhecer a história de algo, é necessário conhecer o sentido da história de algo. Não adianta saber só historia da educação, é necessário saber a historia do sentido da educação ou, dialeticamente dito, sentido da história da educação. Em todo agir humano deve haver sempre a presença do sentido. A perda do sentido deixa o ser humano sem um motivo para viver. E aí surge o paradoxo do educar e aprender: é possível ensinar o sentido?  É possível ensinar ou negar o destino? Sejamos insistentes: destino nada tem a ver com fatalidade. Destino é a livre possibilidade de ser que nos foi doada.

Se ensinar, enquanto pensar, é deixar aprender, o que é aprender? O que a palavra aprender nos quer dizer? Que processo de compreensão e apreensão daquilo que somos como seres humanos, realidade e destino, se concentra na palavra aprender? Ela é constituída do prefixo latino: ad- e do verbo preendere, prendere. Este significa no latim: agarrar, prender, ser tomado por. E o ad- é aquele processo de travessia em que nós estamos já existindo em direção a, para fica junto de. Junto do quê? Daquilo que nos prende, daquilo que nos constituiu. O que nos prende? O que nos constitui enquanto sentido, ou seja, o que é o ser humano, a realidade, o destino. Esses nós já recebemos. Agora estamos a caminho de realizá-lo, em direção àquilo que nos prende e agarra, enfim, nos quer enquanto sentido a ser pro-curado. Deste querer advém o poder. Querer é poder. Todo querer desdobra-se num caminho que é aquele que nos conduz para nós mesmos, para o que nos é mais próximo: o princípio.

Ora, aquilo que nos prende e agarra, que constituiu a nossa essência, nosso próprio, é aquilo que os gregos chamavam de arché, que foi traduzido para o latim e o português como principio. Este é a essência de tudo o que é e é, portanto, seu sentido. Por conseguinte, de cada um de nós. É desse modo que o princípio funda sempre o social, porque ele é a unidade das diferenças. Esse é o modo de compreender o social originariamente e não enquanto sistema já constituído e apenas histórica e conjunturalmente. O poder social do educar vai depender da escolha pelo instruir ou pelo pensar. O ideal é que não houvesse separação. Mas não resta dúvida de que só o educar para o questionar do sentido do pensar potencializa cada um para um viver social harmônico e completo, porque o sentido do pensar leva à apropriação do próprio e assim jamais haverá anulação das diferenças. Pelo contrário, haverá uma valorização que potencializa o viver da comunidade e a comunidade do viver na unidade do sentido.

Aprender é ser aquilo que nos constitui enquanto próprio, no deixar vigorar o princípio. É nesse sentido que ensinar é deixar aprender. O próprio não é o subjetivo, o individual. E não é porque o pensar em que podemos aprender é o pensar do sentido do ser.



Dito sem rodeios, o pensamento é o pensamento do Ser. O genitivo exprime duas coisas. O pensamento é do Ser, enquanto, pro-vocado pelo Ser em sua propriedade, pertence ao Ser. O pensamento é ainda pensamento do Ser, enquanto, pertencendo ao Ser, ausculta o Ser (Heidegger: 1967, 28).



É nesse sentido que o educar poético-originário é a desafiante tarefa e disciplina da auto-escuta, isto é, a escuta do próprio no seu sentido: pertencer ao ser que já nos foi dado como tarefa de realizar, nosso destino. Educar poético-originário é pertencer ao sentido do ser. Portanto, pertencer diz o apegar-se ao que é essencial. Nesse sentido, apegar-se, prender-se é querer, é amar. “Esse querer é que constitui a própria Essência do poder...” (Heidegger: 1967, 29). De que poder se trata aqui? Não é o de causa e efeito, aquele que age ao nível dos entes. Trata-se daquela força, daquela energia em cujo vigorar algo pode propriamente ser. Sendo como somos possibilidades de e para possibilidades, originária e poeticamente já estamos presos ao princípio de nossas possibilidades. Aprender é tender para e deixar-se tomar pelo que nos é próprio e constitui nosso princípio. Nisso consiste o educar para o sentido do questionar, do pensar.

Agora podemos compreender o horizonte em que se move a pergunta inicial: Pode-se ensinar a virtude? Pode-se ensinar o ético? Pode-se ensinar o sentido de ser? Causalmente não. Ele jamais pode ser objeto do instruir, somente do educar para o pensar, porque aí ensinar é deixar aprender o sentido do que se é, ou seja, do ético. E este é a tarefa poético de todo educar enquanto questão. É do querer que se originam as questões.

  Contudo, em nossa condição estamos jogados no mundo e nele vivemos imediatamente na conjuntura e circunstância das relações entitativas. E dá-se a tendência de se esquecer o próprio, tendo em vista que predominam as relações funcionais. Nelas, o próprio se vê assediado pelos atributos circunstanciais, pelos quais se constitui e afirma o “eu”. E dependendo das circunstâncias vão mudando os atributos. Instruir é predominantemente educar para realizar-se segundo os atributos: Eu sou professor, mecânico, músico, engenheiro, médico etc. etc., eu sou alegre, triste, bom, alto, magro, brasileiro, religioso, ateu, antigo, moderno, romântico etc. etc. O estudo da gramática e da lógica reforça a percepção e determinação do que se é pelos atributos, não pelo sentido, pois são sempre eles que dão a consistência do “eu”, do sujeito. Este substantiva o ser na proposição predicativa, atributiva.

Por isso na instrução predomina o ensino objetivo da lógica e da gramática. E com isso já se julga que houve de fato um educar. Não houve, porque se esqueceu o essencial: o “sou”. Neste se concentra todo o poder do vigorar. E só há educar quando deixamos vigorar esse poder: o “sou” de todo “eu” e seus “atributos”. Podemos notar como o “eu”, enquanto sujeito, concentra o agir causal. Ele seria o autor disto e daquilo. Daí se parte para o grande equívoco de que é o ser humano, enquanto sujeito causal, que faz as obras de arte. Quem faz as obras de arte é a arte, assim como quem faz o ente é o ser, assim como quem dá voz às Musas é a Memória. Aprender é conduzir para aquilo que cada um é. Deixar-se tomar pelo que cada um é não é se deixar tomar pelo sujeito, pelo eu, mas o contrário. É deixar o “eu” ser tomado e querido pelo “sou”, que é o principio em que está vigorando.



O aprender e suas regências

  Nos verbos acontece o reger, mas não é o verbo que rege, mas o que nele vigora como possibilidade de toda regência. E o poder de toda regência é a linguagem. Sem linguagem não há regência porque não pode haver verbo nem nenhuma palavra. Desse modo, reger é o poder de determinar relações causais ou deixar o ser ser, gerando conjuntural e circunstancialmente, o sentido de todos os entes na sua organização lógica e mundificante. O mundo é o sentido de toda conjuntura e circunstância. Mundo não é ente nem conceito. Mundo é a abertura de acolhimento do ser humano em sua realização poética no manifestar-se e vigorar da realidade em seu velar-se. O poético das obras de arte é mundo, é verdade (aletheia). Sem mundo, que é o sentido do ser se doando enquanto linguagem, não há nem tempo nem espaço. Por isso, um mesmo verbo pode ter mais de uma regência.

Em português, o verbo aprender se move no âmbito de quatro regências: aprender sobre; aprender algo; aprender com; aprender de, a partir de. Desse fato se conclui a complexidade e riqueza do aprender, que é a riqueza e complexidade da nossa condição humana. O educar poético-originário, educar do e pelo sentido, deve estar aberto sempre para essa complexidade e riqueza. Ela se origina da presença insistente das três questões em que já desde sempre nos movemos. Questão tem sua proveniência no querer, daí o poder das questões. É que toda questão é questão do ser e é o ser que nos tem. Somos uma doação do sentido do ser. Platão chamou a essa doção ousia/essência ou eidos. Enquanto uma doação do sentido do ser dos seres, somos ontologicamente uma syn-ousia. Quando queremos aprender como questão ética, queremos ser a partir do sentido, do possível querer do ser. Se a virtude não pode ser ensinada (o sentido não pode ser ensinado), ela pode ser aprendida, pois querer aprender é querer ser e ser é poder pensar a partir do querer, da questão em que o sentido do ser já nos tem. É claro que estamos aqui além e aquém da posição da Modernidade, pela qual é o sujeito que age e ordena tudo, numa intervenção contínua como autor de tudo. O sujeito jamais pode agir dando sentido, só estabelecendo significados lógicos, aqueles inerentes ao funcionamento dos sistemas, determinados pela precisão passível de comprovação numérica. Esta jamais pode fundar sentido. E no educar poético-originário trata-se sempre de sentido e não dos significados inerentes ao funcionamento de um sistema. O poder interventivo do conhecer da Modernidade jamais pode criar sentido, porque jamais pode fundar o ético. Os sistemas são regidos pela moral e o alcance desta é o alcance do sistema que a rege. Daí acontece o conflito entre diferentes culturas. A moral não funda nem pode fundar diferenças, só fundamenta o universal da concepção lógica. E nem sempre o que é lógico é ético. Este é a unidade das diferenças que funda o sentido de tempo e espaço. É o poético.



O aprender sobre

Esse é o processo mais comum a que se reduz o educar no sentido restrito do instruir, por um motivo muito simples: somos seres temporais e nosso fundo essencial e humano é a memória. Esta é a essência do educar poético-originário. Porém, como acontece generalizadamente, confunde-se memória com passado, lembrança. E é esse equívoco que deve ser superado. Tendo em vista esse passado, educar tornou-se a prática de entrar numa sala para se falar sobre conhecimentos, ideias, representações, fatos, vidas, enredos já constituídos. Na época da internet pode-se aprender literalmente sobre tudo. Mas já nos advertiu o pensador Wittgenstein: “O que não se pode falar, deve-se calar” (1968: 129). Disso se conclui que nem tudo pode se tornar objeto de uma fala. Como transformar objetivamente o sentido do silêncio em fala? Sobre o que não se pode falar, não pode haver instrução. A fala do pensador já nos coloca a questão que subsiste a todo ensinar sobre: Como dar sentido às múltiplas informações e conhecimentos que nos advêm no aprender sobre? Mas não será exatamente isso o decisivo para o educar integral? Deve-se ter sempre o cuidado de não criar dicotomias nem exclusões. As informações são necessárias e importantes como é importante a totalidade de tijolos com que se pode erguer uma casa. Mas para erguê-la não basta ter tijolos suficientes. Uma ideia de casa precede e dá ordenamento aos tijolos. Sem tal ideia não há casa. As informações sem essa ideia prévia, sem um sentido que as ordene podem ser prejudiciais e até inúteis. Os tijolos são o instruir, a casa como habitação e lugar de acolhimento do ser humano é o sentido que ordena os tijolos. Ou seja, o instruir deve ter sempre em vista um sentido que transforme o simples amontoar informações nas cabeças dos alunos em educar. Educar é e será sempre deixar eclodir o sentido como recepção ordenada de tudo que se aprende sobre. Precisamos, sim, dos tijolos, mas eles sem o sentido perdem a razão de ser. Portanto, o aprender sobre deve estar sempre unido a algo essencial que direcione toda essa atividade. E quem na ideia de casa doa o sentido? A linguagem do vazio. É ela que é a alma da casa e a possibilidade de acolhimento. Em realidade moramos no vazio. Sem vazio não há casa como sem silêncio não há fala.

O importante no aprender sobre é que o aprendido tem um alcance circunstancial e funcional, estando à margem do que cada um é e da possibilidade de nos afetar essencialmente. Memoriza-se e esquece-se o que se ensina e aprende sobre. Funcionalmente talvez possa decidir um concurso de que participamos. O sobre é uma determinação funcional: não se passou neste concurso, fazem-se outros até conquistar o posto. Mas o concurso de cada vivente na prova do sentido da vida é um só. Por isso é necessário um outro aprender, um outro educar. O aprender sobre é o mais comum e ao qual é reduzido o instruir. Instruir é trazer um conjunto de informações sobre. Podemos notar que nossa vida acontece no tempo e as informações que nos advêm no aprender sobre limitam-se a tomar o tempo no seu discorrer, no seu fluir cronológico. Daí predominar no aprender sobre o dis-curso. Dessa maneira se constituem as histórias de todas as disciplinas. Nessa concepção e redução do tempo ao cronológico, o que fica sempre esquecido é o seu sentido. Mas é este que move, essencialmente, todo o nosso agir. Em nossa vida funcional e circunstancial tem sua importância e não pode ser excluído, mas não podemos reduzir a vida e seu sentido a esses estados, como não podemos reduzir o sentido da vida às sensações dos sentidos. Estes geram estados sem o sentido do ser. Por isso, o sentido da vida não se pode reduzir às sensações estéticas nem a estesias racionais ou simbólicas. A Estética diz respeito a estados não ao sentido de ser. A estesia é sempre causal. Já o poético é não-causal, porque vigora no sentido do silêncio do  ser. Em nossa realidade atual onde predominam os meios de comunicação com um poder enorme de  criação de estesias racionais e simbólicas, há uma tendência muito forte para as pessoas viverem dessas estesias e passarem a considerá-las como sendo a realidade. E isso ainda fica mais acentuado pela expansão e domínio cada vez maior da realidade virtual e seu poder de provocar sensações estéticas.

Denys Arcand, grande diretor de cinema canadense, no filme L’ère des ténèbres (traduzido para o português como A idade da inocência), nos apresenta uma reflexão profunda sobre o impacto dessa realidade ilusória na vida do cidadão simples. Este, diante da perda de sentido da vida, tende a substituir a vida concreta pelas estesias que dominam a realidade atual. O diretor se concentra em três aspectos essenciais da vida no contexto atual: As belas atrizes, as/os jornalistas (meios de comunicação) e seu poder, os pequenos poderes exercidos nos diferentes níveis das relações sociais dentro do sistema. E também a forte atração pelas drogas permitidas (e não permitidas), como o cigarro (exemplo do filme). A atração que eles exercem acaba deslocando o próprio de cada um para um viver na fantasia, numa substituição da vida concreta e suas agruras e até em seu sem-sentido. No filme, quando o personagem principal – Jean-Marc – resolve assumir seu próprio, uma a uma, tais fantasias com suas estesias se dissolvem no ar. E ele se reencontra na vida simples do contato direto com a mãe-terra, quando se volta para um viver trabalhando no meio rural. É evidente que o filme nos faz pensar outras dimensões, mas destaco estas na relação que vejo com a questão do educar poético-originário. Visto nesta ótica, é uma verdadeira obra de arte que tematiza aquilo que é essencial e próprio do ser humano, e da dificuldade de realizá-lo pelo poder impactante das diferentes estesias no educar, em sentido amplo, do ser humano.

Contudo, nós estamos procurando o educar que inclua tudo. Pois é ele que pode nos mover nos caminhos do pensamento enquanto sentido do existir. Trata-se, pois, de não excluir o aprender sobre, mas de inseri-lo no educar poético-originário de onde lhe pode advir o sentido. Como o aprender sobre vigora na concepção do tempo cronológico e procura o que constitui o passado, sem a unidade do que seja o tempo como memória, é impossível apreender/aprender o passado em seu sentido. Acontece que este é esquecido com o empobrecimento do que seja a história e a memória. É isso que precisa ser resgatado no aprender sobre, ou seja, dar-lhe sentido enquanto pro-cura.



O aprender algo

  A outra regência é o aprender algo. Este já é bem mais específico. Por exemplo, se alguém quer ser engenheiro e não aprendeu matemática, não aprendeu cálculos estruturais, não poderá exercer a profissão com responsabilidade e segurança. É que o aprender algo tem sempre uma finalidade. Desde tempos imemoriais esse algo era o fruto de experiências e do seu acúmulo. Experiência forma-se do grego: eks-peras. Podemos dizer que nas palavras gregas eks-peras, techné, aletheia e télos está concentrado todo o educar, o causal e o não-causal, o educar para o formar pelo instruir e o educar para o pensar. Será no horizonte desses dois princípios que serão compreendidas e traduzidas, com significados bem diferentes. Ligado ao aprender algo, télos foi traduzido por finalidade. É que esta está sempre em função da elaboração de algum instrumento ou daquilo que se pode fazer por meio dos instrumentos. O elaborar ou fazer se faz por meio da techné. De instruir se formaram os substantivos instrumento e instrução. Desse modo toda obra, seja artística ou técnica, sempre tem um componente instrumental, que diz respeito à sua elaboração. É esta que caracteriza o aprender algo e que, necessariamente, passa pelo aprendizado dado por uma instrução (técnica). O aprender algo diz, portanto, numa primeira instância, sempre respeito a uma instrução. Mesmo nas culturas em que não há escolas onde acontece instrução? Ela se faz presente nos mais diferentes ritos culturais, de iniciação ou não. Em toda festa, em toda comemoração, há um instruir ligado à memória. E isso é que é propriamente cultura em sentido geral. Porém, os ritos sem os mitos perdem sua força manifestativa de valores ético-poéticos. Diante da força avassaladora das realizações e informações técnicas, as identidades culturais estão se tornando espetáculos, ou seja, ritos representacionais porque neles se perdeu o sentido.

Aristóteles, examinando as causas presentes na elaboração (techné) de todo e qualquer instrumento, portanto, também dos ritos, distinguiu quatro causas: material (hylé), formal (morphé), eficiente, final (télos). Podemos notar que o aprender algo ou formar pelo instruir acontece no horizonte da instrumentalização do ser humano, enquanto meio ou enquanto finalidade, isto é, o exercício de uma função, pois quer torná-lo apto a exercer as mais diferentes finalidades ou funções. Em verdade, Aristóteles não pensou a causa eficiente, porque jamais poderia reduzir o operar da physis a uma causa. A palavra que Aristóteles usa também não tem o mesmo sentido que tomou no Ocidente a palavra causa. Ele fala de aition. E a sua tradução por causa é imprópria. Mas não podemos agora fazer todas essas distinções. Certamente isso resultou da apropriação do pensamento grego pelo Helenismo. Nesse quadro é que todo o aparato escolar de formação do ser humano, tomado como sinônimo do educar, se centraliza no aprender algo, que afinal de contas inclui o aprender sobre. Por isso, hoje tudo está reduzido a técnicas, pois são elas que determinam as mais diferentes ações humanas dentro de um sistema social ou de produção ou de reprodução.

Vejamos agora a palavra grega tão usada e presente em nossa vida em todos os tempos: eks-peras. Aristóteles usa também empeiria. Peras significa limite. Eks- é o que está originariamente além de, projetado para fora de todo limite. É o mesmo prefixo que aparece no verbo e-ducar. O que desde sempre caracterizou o sendo (on, em grego) é o limite. É a morphé. O que é o limite da morphé? Ele tanto diz algo positivo como algo negativo, o que somos e o que não somos já desde sempre, pois o que somos é uma doação do ser. O limite fica mais enigmático porque a tradução do on por ente acaba substantivando o que é verbal (morphé). Portanto, a melhor tradução do on é sendo. E disso decorre algo muito importante para o educar: não é algo substantivo, mas verbal, num contínuo estar sendo. Dessa maneira, essa é outra característica do educar poético-originário: algo em contínuo processo sem prazo de término, a não ser aquele determinado pela morte. Sermos doação diz que somos possibilidade de e para possibilidade, ou seja, entre-ser. Isto diz: já somos ontologicamente ex-perienciação, isto é, estar e ficar sendo limite e não-limite. É isto que diz o eks- de todo peras, de toda ex-periência. Para melhor manifestar esse acontecer, em poética preferimos dizer experienciação, aquilo que não cessa de estar acontecendo e envolvendo o próprio e o social. (A ideia do social como algo já estabelecido é uma abstração que não se sustenta concretamente). Como em e-ducar, o ex- ou eks diz o sermos livres originariamente. Desse modo, experiência e educação são indissolúveis. Mas o aprender algo pela experiência nos diz o alcance limitado desse aprender, limitado porque está em função de, é pré-determinado pelo sistema de produção dentro do qual será absorvido. Contudo, podemos facilmente perceber, de um lado, que a predominância do aprender algo seja sempre um instruir, um estabelecer os limites de uma forma, portanto, dentro de relações causais, de outro, a mesma experiência pode acentuar o eks- e nos remeter parar o educar como não-causal, porque este e só este e-ducar possibilita a efetiva libertação. Neste caso trata-se de experienciação. Toda possibilidade, em se realizando, nos remete para um estado que nos joga numa situação, onde nos deparamos com limites, mas como o limite não nos prende, uma vez que somos possibilidade de e para possibilidade, esta, fazendo do limite não-limite, nos liberta. É o agir do sentido do pensar, do não-causal. O educar pelo libertar é o pensar, que é o educar poético-originário. Disso já se pode tirar uma conclusão: todo aprender é ambíguo.  Tomemos como exemplo o ensinar e aprender as artes. Estas se tornam um algo. O que pode ser ensinado e aprendido? As artes? Não. Então o quê? Arte não é algo que se possa ensinar e aprender, porque não se reduz a conceitos gerais passíveis de reprodução. Devemos distinguir arte e obra de arte. E nesta o que é técnico e não-técnico? É a ambiguidade da techné grega. Se compararmos a obra a um instrumento, e é, notaremos que nela se vão fazer presentes as quatro causas. Então por que nem todo instrumento é obra de arte? Aquilo que na obra de arte é instrumental pode ser ensinado e aprendido, mas o que não é, o que não depende de um conhecimento causal, não pode nem ser ensinado nem aprendido causalmente. Caso contrário seria fácil produzir obras de arte. E não é. Por quê? Por que não se produzem Beethovens em séries? Por que não se criam Guimarães Rosas em série? A arte, como o humano e a virtude, vigoram na questão do sentido. E este é memória porque é destino. Com-preender as obras de arte e interpretá-las todos podemos. Produzi-las já é uma questão de destino. Mas não será o interpretar também de algum modo um produzir, desde que interpretar não seja uma tarefa do sujeito, mas um deixar-se tomar pelo sentido? Essa é a questão do educar poético-originário, um educar para o agir do sentido.

E se voltarmos à pergunta inicial que diz respeito ao poder ou não poder aprender-se a virtude, constatamos que a questão não se resolve num sim ou num não, mas que a questão nos joga num jogo ontológico de possibilidades que permeiam as duas regências vistas até agora. Isso é possível porque o prender de aprender e compreender são ambíguos, como veremos na terceira regência do verbo aprender. Aprender é um jogo onde se joga a partida decisiva de eros e thanatos. Esse é o jogo jogado no educar poético-originário. Um jogo regido pelo sentido. Este, como juiz, a todos nos julga, porque é ele a lei, a medida da virtude. Dele participam todos os seres humanos, porque esse jogo é seu próprio.  



O aprender com

  Esta regência não elimina as duas anteriores, mas lhes dá um novo horizonte que as redimensiona e reúne, sem criar jamais dicotomias. O educar poético-originário deve integrar para poder levar o ser humano à sua consumação, à realização na plena libertação. Entre os gregos o sentido primeiro de telos é consumação. Um educar que não liberte não é educar.  Techné, eks-peras, poiesis, mímesis e télos têm um sentido mais originário além do visto no aprender algo. Até agora vimos o aprender sobre e o aprender algo. No aprender sobre predomina a memória enquanto cronologia. Aprender sobre é fazer o aprendizado de um determinado conjunto de conhecimentos reunidos na memória e pela memória naquilo que, cronologicamente, se denomina passado. Se há, e há, reunião, o passado não é o que já passou, mas o que vigora como possibilidade do ainda não realizado: o futuro. O presente é a tensão entre passado e futuro, entre latência e patência. É por isso que para melhor nos defrontarmos no presente com o futuro temos de nos apropriar do passado. Ele é uma referência, sem ser tudo. Por isso o aprender sobre não basta, embora também seja necessário. A cronologia é um dado fundamental do ser humano, mas não é tudo. Há outros dois modos de o ser humano se realizar no tempo e com o tempo. O kronos indica a possibilidade de o tempo tornar-se número, pois está ligado ao manthano. O número introduz o tempo como sucessividade. Esta resulta do vigorar do sentido do ser no pôr e depor da linguagem (logos). É esta que reúne e possibilita o narrar do que é e está sendo, gerando as conjunturas e circunstâncias históricas. Nestas ser é estar². Estar é o narrado nos ritos enquanto discurso de toda língua. Se o discurso é o discorrer (dis-currere, discursus) do tempo enquanto ser da linguagem, a língua não é natural, é ontológica. É o sendo do entre-ser, a partir do qual são possíveis: ex-periências, ex-istir, e-ducar pelo vigorar da techné e da mímesis enquanto poiesis. Veja-se bem, sem experiência não há nem pode haver em ciência experimentos. Se bem observarmos, retomamos as questões originárias em que o educar poético-originário já se move. Originário é o vigorar do tempo enquanto sentido.

Não podemos excluir nada. Temos de tentar levar o pensamento para aquilo que é determinante em nossa vida, como um educar poético-originário onde todos, inteiros, e tudo, estão implicados. É para este tudo que nos remete a terceira regência do aprender. Se dissemos acima que a obra de Rosa, Grande sertão: veredas, é um pensar o educar poético-originário, notemos, neste momento, que ele o faz no deixar vigorar o sentido do agir do pensar, pois inicia a obra com o um traço, que indica vazio, ausência, negatividade, mas também expectativa de fala, ou seja, vigorar o sentido do silêncio, a fala de toda linguagem: “ – ”, seguido da palavra enigmática: “ - Nonada. A linguagem é o nada vigorando. E termina sua obra com o sinal matemático de infinito: ∞.

A terceira regência, em torno da qual giram as duas anteriores, é o aprender com. Toda língua, como o entre-ser de ser e linguagem, é um grande enigma. Nela se dá a referência misteriosa de Essência do ser humano e Ser. O núcleo de toda língua é o verbo. Uma tradição retórico-gramatical deslocou esse núcleo essencial para a oração, a proposição predicativa ou juízo lógico, origem da sintaxe. Esta é ambígua, como veremos. Até bem recentemente, o estudo sintático-gramatical da língua se denominava: análise lógica. Por quê? Juízo se diz em grego: krisis, substantivo do verbo krinein, que significa distinguir ou diferenciar a partir da unidade de tudo. (Diz Heráclito na sentença 50: “...hen panta”). Este sentido se perdeu na redução do estudo e da compreensão da língua a paradigmas e conceitos lógicos, onde o conceito é mais importante do que o operar do lógos. Com isso se perdeu o vigorar verbal do logos e no lugar foi escolhido pela gramática a proposição predicativa como núcleo essencial da língua. Um tal esquecimento ocasionou um empobrecimento radical, pois foi esquecido o sentido do ser. Esse esquecimento se deu pela redução do logos/linguagem à causa, ao conhecimento causal. Em virtude disso, o ensinar e aprender enquanto instruir já é excludente, mas quem, afinal, é excluído é o sentido do eks-sistir humano fundado no ser e não, evidente, no sujeito e seus estados. Perdeu-se o núcleo verbal e poético do educar.

Verbo, enquanto fala, se diz em grego rhema. Deste palavra se formou a retórica, daí o estudo conjunto da gramática e da retórica. O decisivo no ensino e aprendizado da língua era a retórica (falar bem para convencer, persuadir) e não a gramática, pois esta diz o estudo da língua já reduzida à representação da escrita (gramma, em grego). Grammatiké diz o estudo, a epistemé  da língua escrita. Inicia-se aí o afastamento da língua enquanto corpo (soma) vivo que se faz presente nas obras para no lugar ficar a língua enquanto código, organismo. Para o grego, o logos vigorando era a rhema. Como opera o aprender com na retórica? Rhema diz fala e logos diz linguagem. Sem linguagem (logos) não há fala (rhema). O vigorar do logos (linguagem) é o que se chama verbo: ação, pensar do sentido do ser, abrindo as possibilidades de todo e qualquer ser humano falar, possibilidade esta prévia a qualquer língua ou sintaxe. Um fato incontestável comprova isso: podermos aprender qualquer outra língua e também poder ser traduzida. Toda sintaxe gramatical já radica na sin-taxe da linguagem, do logos que funda sentido. Por isso elas são diferentes, dependendo do conhecer em que se funda ou fundamenta. 

 E de onde se origina a palavra verbo? Do verbum latino. Este tem seu radical na raiz indo-europeia *wer ou *wre. Em latim originou verbum e em grego hermes. O grande pensador da língua portuguesa, Guimarães Rosa, diz em Grande sertão: veredas: O que é um nome? Nome não dá. Recebe. O que é para ser são as palavras. Já dissemos acima que palavra diz o entre-jogado. E o que nos diz verbo e hermes? O entre-dito, aquilo que se torna a mensagem. Não é isso que nos diz o mito de Hermes? Não é ele o mensageiro, o entre os deuses e os homens? Com a redução da língua ao código, é este a origem dos significados, das mensagens e de toda comunicação. Isso só foi possível pelo esquecimento do sentido do agir não-causal. O ensino da gramática como comunicação esquece o aprender com porque não se funda mais no diá-logo, mas no domínio do código e sua sintaxe comunicativa. Portanto, o ensino e aprendizado está estruturado em cima de uma série de equívocos e esquecimento do essencial.

Examinemos melhor isto para compreendermos em toda a sua radicalidade o aprender com. De um lado temos os deuses (o daimon, o extraordinário, o sagrado), de outro temos os seres humanos. No “entre” faz-se presente o verbo, hermes. Este, o Verbo (logos), reúne o sagrado e os seres humanos. Ele é o mensageiro, não é a mensagem. Não que haja separação, mas no sentido de que o sagrado é a linguagem e Hermes a língua. Podemos fazer uma outra comparação: Memória é a mãe das Musas. A Musa fala, mas a Linguagem é a Memória, porque esta é a mãe de todas as línguas. Hoje, fala-se facilmente em linguagens artísticas. É um equívoco devido ao agir causal pelo qual se confunde matéria (hylé, em grego) com linguagem (logos). Às artes correspondem diferentes materiais e significados, mas a linguagem, o sentido é um só, porque é a unidade. Não há tantos logoi quantas são as artes. No âmbito dos significados pode haver diferentes discursos, diferentes narrativas. Para nós, entre-seres, isso se torna a questão. No âmbito do pensamento, quanto à questão de língua e linguagem, Heidegger acentua isso, ao falar da referência da Essência do ser humano e do Ser (§ 206 de A origem da obra de arte). Tal referência foi, é e será sempre a questão a ser pensada. Em verdade, em alemão, o autor usa no título de sua obra a palavra Ursprung, cuja tradução apropriada é originário (a tradução por origem já se ressente da cronologia causal). É este que dá unidade à referência de Ser e Essência do ser humano, de Sagrado e seres humanos, de Memória e fala das Musas.

Unidade recebeu nos pensadores originários a denominação: arché, o princípio das diferenças. E nos mitos Mnemosine. Esta unidade entre Ser e seres humanos foi manifestada no latim com a palavra cum. Os significados de cum são: com, em união com, ao mesmo tempo que, para (denotando o resultado de uma ação. É o que se dirá em grego telos); quando, todas as vezes que. O pensamento originário da língua grega jamais separava arché de telos. Isso fica bem claro na palavra arconte, o que vigora no poder e por isso comanda, está à frente de.

Desse modo fica evidente que não se pode pensar a unidade sem o acontecer do tempo. E o que a gramática nos diz do tempo enquanto vigorar da linguagem? Nada, porque só fala de código e representação. A sintaxe de que fala a gramática diz respeito ao código e jamais à língua viva, diz respeito a organismo e não a corpo (soma). O aprender com pressupõe unidade, tempo e linguagem.

 No grego, com se diz syn (daí sintaxe e síntese). O ordenamento subjacente à sintaxe diz da unidade pelo vigorar do princípio no aprender com. A sintaxe gramatical, enquanto ordenamento lógico-causal, é já um esquecimento do que de fato dá unidade no aprender com: o logos. Este, reduzido à causalidade, deu origem à lógica (episteme logiké).  A lógica causal serve muito bem para o instruir, mas não chega a realizar o educar. Portanto, não como fundamento causal, mas como fundar não-causal, o cum diz o operar da arché/telos do princípio e realização poética. Originariamente é impossível separar arché/telos, pois este diz o princípio se consumando em estar sempre principiando. O ensinar e aprender com diz, portanto, o deixar-se tomar pelo princípio para consumá-lo no seu sentido poético, no seu telos. Sem princípio não há unidade das diferenças.  Diante disso, é necessário voltar ao aprender com para deixar vigorar o princípio em seu consumar-se: educar poético-originário pelo e para o sentido: cum, arché.

Princípio não é fundamento, pois este só fundamenta significados, jamais o sentido. Por quê? Porque no fundamentar vamos ter sempre um agir ao nível dos entes, onde vigora o agir de causa e consequência, de agente e paciente, de determinante e determinado. O com, enquanto sentido do princípio, fica irrefutável no uso adequado da palavra portuguesa con-creto. Forma-se do verbo latino cum-crescere (cresco, cresci, cretum). Portanto, este diz o crescer das diferenças na unidade do princípio: cum. Noutros termos: o que faz crescer é o com, porque este, enquanto princípio, é a Vida que alimenta todos os viventes. A Vida é nada de vivente, pois não é sua causa, isto é, não pode ser reduzido a “algo”, ainda que este algo seja elevado a um “ente” infinito. O que não é ente é nada. Claro que na afirmação é nada, jamais podemos sair da aporia de tentar dizer o que não pode ser dito. O melhor seria, seguindo Wittgenstein, silenciar. Mas até para silenciar temos que deixar de falar, falando. Daí a aporia de sempre cairmos no é, na aporia da referência da Essência de ser humano e Ser, no fizer do pensador Heidegger.   

Há uma longa tradição no Ocidente pela qual sempre se identificou o princípio (arché/cum) com o logos. E não é sem motivo. O radical de logos é o indo-europeu: lg, de onde se formou o verbo grego legein e o latino legere. O radical lg diz de uma experienciação originária de pôr, depor, dispor e propor (daí pro-posição). Mas o dispor e propor de legein reúnem dando sentido ao pôr e depor, porque conduzem o posto, deposto, disposto e proposto para o pouso (silêncio, vazio que acolhe e faz vigorar) de seu ser e o faz assim repousar na vigência poética de sua realização. Vigorando no vazio pode o legein reunir e dar sentido, enumerar narrando, dizendo.

A quarta regência possível de aprender, o aprender de, desde, já vigora no aprender com, quando interpretamos este como sendo princípio. Aprender desde diz o deixar vigorar o tempo originário, o nada enquanto princípio, arché.



O com-preender

E por que todo este aparente desvio para falarmos da regência do aprender com? É porque nos desvios se podem aviar as vias de com-preensão do aprender com. É porque no aprender com já vigora o princípio de todo poder aprender: o com-preender (cum-prehendere). Sem com-preender não há a-prender. No aprender com já está vigorando o com-preender enquanto o prender a partir do princípio. Aprender com diz originariamente o aprender a partir de. De quê? Do que em todo aprender já vigora como princípio: com-preender. Sem compreender não há, não pode haver, o aprender em suas três regências: sobre, algo, com. Já vimos acima o que significa o verbo aprender. Agora podemos melhor compreendê-lo. Aprender forma-se do latim ad-prehendere  e diz: ad-  o posto em direção a, em direção àquilo que nos prende e agarra: prehendere/preendere/prender. E o que nos prende, agarra? O com no sentido de princípio. Por isso, no educar de todos nós para a Vida, não pode haver uma dicotomia entre o aprender sobre, o aprender algo e o aprender com. Porém, é o com que deve ser decisivo para dimensionar a presença, o alcance e valorização do aprender sobre e aprender algo, porque é ele que funda todo o compreender do aprender nas diferentes regências. Nestas já sempre está presente o com-preender.

Se até agora insistimos no educar que remete para o próprio de cada um como originário da doação do que cada um é, devemos agora dizer algo fundamental que já está implícito em tudo que foi dito até agora. Se o com diz o princípio ele também se mostra como o originário do ser com. Isto é apenas uma explicitação de algo evidente: a sociabilidade de todo ser humano. Esta se funda em algo irrefutável: vivemos socialmente, pois o próprio viver e perpetuar a vida é um ato fundado no cum-laborare, na co-laboração. O núcleo mínimo do perpetuar-se não acontece sem a sociabilidade pela qual o homem e a mulher se unem para procriarem a partir do que já sempre neles vigora: o ser com. Se olhamos o social pelo lado da linguagem, um dos modos tradicionais de caracterizar e diferenciar o ser humano diante dos outros entes, diremos que os serres humanos formam essencialmente uma co-letividade. É nesse sentido que podemos dizer que a inteligência é algo coletivo, porque constitui todos os seres humanos de toda e qualquer cultura. A palavra forma-se  do verbo latino: cum-legere, que tem o particípio: lectum. E o verbo légere tem o mesmo radical do verbo grego legein. Ambos por isso mesmo significam ao mesmo tempo: reunir e dizer, ou seja, todo reunir é essencialmente dizer e todo dizer é reunir. Guimarães Rosa, sempre atento ao vigorar das palavras, diz em GSV: O capinar é sozinho, mas o colher é de todos. Vemos como o pessoal e o social são indissociáveis ontologicamente.

Mas algo deve ser destacado e deve estar presente no educar como princípio orientador de tudo aquilo em que ele con-siste e ao que ele quer chegar.  Cada ser humano é uma doação do ser. Platão nomeia esta doação com as palavras gregas eidos/ousia. Se é uma doação o que somos, nós o recebemos e não dispomos dele e nem o podemos dar. Na vida do dia a dia só podemos dar o que já está pronto e faz parte dos entes. Mas nós somos possibilidade de e para possibilidade. Nunca estamos acabados. Se alguém quisesse doar-se a alguém tiraria do outro a possibilidade de ser outro, porque se eu recebesse receberia possibilidades para realizar que não são minhas. E não me apropriaria de meu próprio: as possibilidades que recebi para ser. E essas ninguém pode me dar, pois tiraria de mim a identidade e a diferença que me foram dadas.  Alienação diz exatamente o fato de que alguém se esquece de seu próprio para tentar realizar possibilidades que são de outro (alius, em latim). Nisso ele perderia sua identidade. Nesse sentido o viver com apresenta numerosas dificuldades, isto é, o viver em sociedade é ambíguo. De um lado, é necessário e ontológico, de outro, nos abre possibilidades de nos alienarmos. Como evitar isso? É o grande desafio do educar poético-originário. E ele consiste no manifestar o sentido do que somos. Sentido é o advir à luz. Mas luz no sentido grego: phos, energia irradiante. Jamais se trata de passar das trevas para luz. Isso é uma divisão dicotômica entre trevas e luminosidade externa ao acontecer da realidade (physis, em grego). Ambas vigoram na luz. Advir à luz enquanto sentido diz o deixar eclodir o latente. Eclodir na patência a latência é o que os gregos denominaram: verdade (a-letheia). Sentido é a verdade do que se é, o próprio.

O educar para o ser com, para o viver socialmente, apresenta o perigo da alienação, da perda do próprio, porque há algo que se generaliza de uma maneira assustadora: para o educar são apresentados modelos a serem seguidos e copiados. Disso se encarrega o educar decalcado no instruir: normas morais como princípios a serem externamente seguidos, vidas de personalidades e teorias da sociedade que se apresentam como as verdadeiras e, portanto, a serem seguidas. Ora, isso é que é impossível ensinar se se quiser preservar o próprio. E um educar que não preserve o próprio não é educar, é destruí-lo porque não se abre para as possibilidades absolutamente diferentes de cada um. Podemos notar que um tal educar não constitui uma sociedade integral, porque vai predominar a uniformidade de comportamentos, sem haver realização do próprio. Se isso, funcional e politicamente, é bom aparentemente, no fundo, provoca conflitos tanto externos quanto internos. Não há e nunca haverá modelo prévio. Por isso o poder de conviver politicamente não pode advir da uniformidade, mas do poder que faz vigorar o sentido das diferenças. Esse é o poder do sentido do pensar, do sentido do questionar. Porque neste é o ser que nos pensa e nos pensa porque é ele que nos doa o sentido do que somos. Pensar é chegar a realizar numa tarefa poética e de destino o que somos como doação do ser. Portanto, podemos compreender que a igualdade social e política só nos advém com a afirmação das diferenças, na medida em que estas são regidas pela unidade do sentido que é a linguagem. Educar para o sentido do questionar é educar para a linguagem. E esta, só esta, funda a coletividade e con-vivência política, porque originária e poeticamente já somos uma unidade de diferenças. Se a unidade funda a diferença, a diferença afirma e confirma a unidade. Há sempre um pólo de referência. Este pólo é o que os gregos denominaram pólis. No pólo de sentido e unidade todos somos iguais perante a lei da unidade e sentido da linguagem. Mas jamais somos iguais nas possibilidades que recebemos para ser. Desse modo, o educar poético-originário pensa radicalmente o político. Se no sistema conjuntural das diferentes relações de produção isso dificilmente acontece, não é querendo substituir um sistema por outro que poderemos chegar às diferentes produções de relações. Só um educar poético-originário, fundado no sentido, abre possibilidade de realizar umas e outras, numa harmonia de igualdade de condições, sem jamais anular ou coibir as diferenças. No sistema fundamentado no conhecer causal confunde-se unidade com uniformidade. Daí a necessidade de tensionar dialeticamente o sistema do instruir com o educar para o pensar, fundado no sem porquê, no sem causa. Nada pode ser excluído, porque a infinitude do princípio nada exclui. Se a língua oferta diferentes manifestações, isso só é possível porque se funda no poder da linguagem. Se a sociedade (pólis) oferta diferentes manifestações, isso só é possível porque se funda no poder do ser, o vigorar da unidade e sentido das diferenças. Talvez agora fique mais claro o que é doação e o que é próprio. E fique mais claro o sentido do educar poético-originário.



Os poetas-pensadores e o educar

Quando se fica no aprender sobre e no aprender algo, dá-se o esquecimento do sentido do ser e, portanto, não haverá educar poético-originário. Quando olhamos os programas e os modos de lidar com as obras de arte, notamos imediatamente que todo o educar está reduzido ao formar pelo instruir. O conhecer causal domina de princípio ao fim e, hoje, em todos os lugares, pois o modelo ocidental se globalizou. Contudo, os poetas-pensadores, fonte de todo educar poético-originário, nos alertam para esse perigo. Eis o que nos diz Caeiro no poema 46:

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Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.

O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado

Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.



Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos...

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  O poeta-pensador do educar poético se vê sufocado e em vez de o educar o tornar leve e libertar, provoca o  contrário. É esse um dos maiores perigos hoje, gerando nos educadores sérias dúvidas do que deve ser ensinado, seja sobre, seja algo, porque as pesquisas e as infovias geram uma quantidade de informações e conhecimentos impossível de serem acompanhadas e aprendidos. E o que essencialmente é necessário? Necessidade mesmo só há uma: ser o que recebemos para ser, realizar nossas possibilidades e termos sempre em mente o sentido: libertação, verdade, advir à luz que já vigora dentro de cada próprio e jamais pode vir de fora. A par da quantidade de informações há outro: a sua volatilidade. As informações são substituídas rapidamente por outras e os experimentos científicos e as pesquisas estatísticas descobrem que aquilo que era válido hoje, diante de novas descobertas, não é mais amanhã. E tudo isso lança o ser humano, que procura o sentido do que é e faz, numa grande desorientação. E o que então ensinar aos jovens? Além disso, cada vez mais distante fica o aprender com. E é disso que o poeta nos fala: “O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado//Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar”. “Fato” é roupa. Todos esses conhecimentos que não nos dão o sentido, dificultam a travessia do rio da vida, isto é, da existência, porque os conhecimentos circunstanciais podem nos encobrir o sentido do próprio com conceitos e representações, e dificultar o aprender com. Por isso continua o poeta: “Procuro despir-me do que aprendi, // Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, // E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos...”. Com estes pensamentos, o poeta-pensador nos confronta com o valor relativo do que é ensinado, isto é, das meras representações. Se ele procura despir-se do que aprendeu, o que se torna necessário aprender? E se, em vez de guardar na memória o aprendido, procura esquecer o modo de lembrar que lhe ensinaram, qual o modo de lembrar que deve ser ensinado, para que haja um educar poético-originário? E o poeta-pensador radicaliza: ele não quer apenas esquecer, quer raspar as tintas com que lhe pintaram os sentidos. São afirmações que dão o que pensar. Nota-se facilmente que os conhecimentos causais não lhe dão o que é necessário, quando se trata de dar um sentido à vida, isto é, fazer da vida um valor ético (areté, para os gregos). Sentido é o ético do existir. E ele não admite “tintas”. Só o ético e poético são dignos de serem guardados.  É em vista disso que é o aprender com que se deve tornar a linha diretriz do educar, sem abandonar o aprender sobre e o aprender algo. Ou seja, o educar poético-originário deve mover-se no conhecimento não-causal, sem nada ser excluído, mas também como o a ser pensado. O sentido, a virtude, o ético nos apontam sempre para um modo de ser do humano que nos lançam num paradoxo: aprender para desaprender incessante, porque nenhum conteúdo, nenhum conhecimento causal nos dá aquilo de que precisamos para nos libertar. E só este é o necessário. Experienciarmo-nos no princípio é o aprender necessário.

O princípio nos conduz sempre para nós mesmos. Porém, essa condução é uma caminhada de aprendizagem, ainda não está feita. E, no entanto, ela é tão próxima do que somos que até já a somos. Aprender essencialmente é empenhar-se nesta caminhada. Quando nos reduzimos às funções, aquilo que é o mais próximo, tão próximo que até o somos, ele se torna o mais distante. Funções se ensinam, se aprendem e se esquecem. No entanto, podem anular a identidade, aquilo que nos é o próprio, porque este jamais pode ser reduzido a uma função causal e finalista. Ele é livre e sendo livre se torna o livre penhor de eks-istir, pois eks-istir é sem por quê. A liberdade para ser liberdade é sem função e é sempre sem função porque para ser livre não pode estar em função de. Se está em função de já não é livre nem se torna o penhor de todo viver eks-istindo. Penhor é o sentido, a verdade enquanto luz iluminadora, a vigência da linguagem. A essência da liberdade consiste em, eks-istindo, chegar a ser o que já se é e ainda não se tem: nossa moira, nossa identidade, nosso próprio. A moira, o destino, é a essência da liberdade. E é aí que se dá a essência do sentido em seu mistério. Essencialmente, todo aprender e ensinar é um aprender e ensinar para ser livre.

É para essa procura que nos remete também Cecília Meireles, no poema “A constante aprendizagem”:



Hoje desaprendo o que tinha aprendido até ontem

e que amanhã recomeçarei a aprender.

Todos os dias desfaleço e desfaço-me em cinza efêmera:

todos os dias reconstruo minhas edificações, em sonho eternas.



Esta frágil escola que somos, levanto-a com paciência

Dos alicerces às torres, sabendo que é trabalho sem termo.



E do alto avisto os que folgam e assaltam, donos de riso e pedras.

Cada um de nós tem sua verdade, pela qual deve morrer.



De um lugar que não se alcança, e que é, no entanto, claro,

minha verdade, sem troca, sem evidência nem desengano



permanece constante, obrigatória, livre:

enquanto aprendo, desaprendo e torno a reaprender.

                                                                                                (1961)

(Meireles: Nova Fronteira, 2001)



 Temos neste poema o que é o aprender com. Fica bem claro nele que o aprender sobre e o aprender algo, em vez de nos libertarem podem nos prender, podem nos estratificar, imobilizar e fazer perder o sentido. Aprender com é permanecer no princípio para não se tornar algo e algo estático. Princípio é aquilo que cada um é, o que nos foi dado para nós sermos, nosso próprio. Nunca podemos confundir princípio com causa. Eis como Aristóteles explicita o âmbito do princípio na sua Metafísica: Arché é uma experienciação da realidade não estática, mas dinâmica; não linear, mas circular; não finita, mas infinita; não de exclusão, mas de inclusão.

É isso o que viemos tentando dizer com o aprender com. Só há educar poético-originário quando cada um se experiencia vigorando no princípio. Deixando-se tomar pelo princípio, desdobra-se originariamente o sentido, o ético, o poético. É nesse horizonte que nos lançam as três questões originárias que no fundo são uma única: Que é a realidade? Que é o ser humano? Que é o destino? Sendo a realidade o princípio, o ser humano é possibilidades de e para possibilidades a cada um destinadas. Porque somos sempre novas possibilidades que estão se desdobrando. É o que poeticamente nos diz Cecília Meireles, no último verso do seu poema: “aprende e desaprende e torna a reaprender”. É desse modo que o ser humano como possibilidade de e para possibilidade se torna um projeto em contínua realização poética. Mas dele faz parte tanto o aprender quanto o desaprender, tanto o ter quanto a renúncia. Só assim nos experienciamos livres. Livre é saber não ter o ter, é saber o não-saber, ser o não-ser. Isso nos foi destinado, isso é nosso destino: o sentido, o ético, o poético. Esse é o educar poético-originário, porque é a caminhada contínua de nunca cessarmos de nos estarmos compreendendo no aprendendo e no desaprendendo.

Desse modo, em uma primeira instância, o aprender com significa deixar vigorar o princípio, mas, numa segunda, é necessário deixar vigorar a memória. Só ela nos permite aprender e desaprender para deixar vigorar o tempo originário, porque a memória não é o passado. A apreensão, determinação e redução da memória ao passado é feita pela historiografia, pela cronologia. Porém, a memória para os gregos se fundava em três experienciações do tempo: kronos, o tempo que flui e é passível de enumeração e narração; aion, o que permanece e perdura infinitamente pela incessante criatividade, a eternidade; kairós, o tempo da maturação, da eclosão, o tempo propício, o tempo poético da realização em seu consumar-se enquanto linguagem e sentido. É esse o telos do educar poético-originário. O kairós é a essência do instante poético. Por isso, Cecília Meireles no poema “Motivo” canta o instante:



              Eu canto porque o instante existe

              E a minha vida está completa

              Não sou alegre nem sou triste

              Sou poeta.

                                                 (Meireles: Nova Fronteira, 2001, 227)



 Demos também um exemplo da vida cotidiana: a mulher nasce, cresce e chega à adolescência, ela está apta a gerar filhos, a tornar-se mãe.  Eis um primeiro kairós. Numa decisão interna (ou acidental) resolve engravidar. Dentro dela, na vigência do tempo enquanto aion e kronos, o filho cresce no silêncio da realização poética. É a silenciosa gestação de ser. Até chegar um novo kairós, o momento propício do dar à luz, da Vida acontecer. Kairós é o momento propício do acontecer poético, porque não é somente mais um vivente que nasceu. Há o concreto, pois o princípio vigora como sentido do ser.

Manifestar esse sentido é o educar poético-originário. Deve ficar bem claro que não é a mulher-mãe que cria a Vida, ela gesta o vivente que não vive sem a Vida. Ela não é autora de nada, ela é o lugar onde a Vida acontece. Só aparentemente ela é a causa do nascimento da criança. Mas também a Vida não é “autora” de nada, porque Vida não é fundamento. Ela dando-se no vivente se retrai como Vida. É por esse motivo que a mãe-mulher pode gestar novos filhos. Não é ela que age. Quem age é o princípio gerador da Vida. A este princípio gerador os gregos denominaram Genos e o Platão pensador denominou ousia, o feminino como princípio gerador. (Ousia é a palavra escolhida por Platão para denominar a essência, ela provém do feminino do particípio presente do verbo einar/ser. Ón é masculino e ousa é o feminino). E é do genos que nos advém a moira, o destino, a doação do nosso próprio (ousia/eidos). Para isso remete o aprender com, o con-crescer de vivente e Vida, de saber e não-saber, de fala e silêncio, de língua e linguagem, de significado e sentido, de ente/sendo e Ser. O aprender com é o contínuo advento do inesperado no estarmos acontecendo. Isso é a realidade, o humano, o destino. Não é um aprender sobre ou aprender algo. É um aprender a que desde sempre já estamos presos, por princípio, onde nós estamos implicados e necessitamos nos desdobrar, desvelar.

Por isso, em Poética, nós fazemos uma diferença, sem separar, entre aprendizado e aprendizagem. Aprendizado é quando se aprende algo sobre ou algo de uma disciplina. A aprendizagem é aquele processo pelo qual aquele que aprende está jogado no próprio processo de realização ética e poética. Isso é o destino, porque é o sentido eclodindo, o advento daquilo que os gregos denominavam telos. A virtude é o telos acontecendo.

O educar poético originário se consuma no aprender com. Por que este acontece? Porque cada um de nós é um próprio. Próprio não é subjetivo, não é o individuo, é aquilo que cada um recebeu como propriedades e que é o seu destino. Destino não é fatalidade. Destino é o próprio que cada um recebeu para realizá-lo, apropriando-se daquilo que recebeu e lhe foi dado. O que somos não é nosso. Foi-nos dado e temos a tarefa poética de fazê-lo eclodir e desabrochar em suas possibilidades. O próprio enquanto possibilidades é sempre único e inaugural. O processo de realização do próprio é o que nós chamamos aprender com. Isso é a grande tarefa poética de nossa existência. A Poética diz esse processo de realização, esse processo radical onde nós estamos jogados como destino para nos apropriarmos do que nos é próprio. Esse é o educar poético-originário. Por isso a virtude não pode ser ensinada. Já a recebemos. É a-letheia, o que os gregos denominavam significando desvelamento que não cessa de velar-se. É a verdade do agir não-causal  O difícil é deixar que ela vigore desvelando-se, pois funda-se no velar-se:  desafio do educar poético-originário.



Notas:

1 - No livro Poética e diálogo: caminhos do pensamento. Ed. Tempo Brasileiro, 2011, p. 13-44, há uma entrevista minha aos organizadores, onde discorro sobre o que é escola. Só nesse sentido ela se torna o lugar do educar poético-originário.



2 – No meu livro: Arte: o humano e o destino, há um longo ensaio que denominei: “Ser e estar”, onde examino as relações e referência entre estar e ser. Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 2011.



Bibliografia



CAEIRO, Alberto (Fernando Pessoa). Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.



HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.



---------------------------. A origem da obra de arte. Trad. Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. São Paulo: Edições 70, 2010.



MEIRELES, Cecília. Poesia completa. Org. Antônio Carlos Secchin, v. I e II. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, v. II, p. 1442.



ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.



WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Trad. José Arthur Giannotti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.