Ek-sistência é um termo posto em circulação por Martin Heidegger a partir da publicação de Ser e tempo. O apelo à origem latina da palavra quer destacar que não se trata do sentido tradicional de existência, termo usado na filosofia para se opor a essência. Mas o que então compreender por ek-sistência e qual a sua diferença de existência? São muitas as implicações e o esforço se inscreve na tentativa de repensar os fundamentos metafísicos da filosofia. É um enorme esforço de pensamento pelo qual tudo entra em questão. E seu esforço tem encontrado enorme ressonância em todos campos do saber. E, evidente, aí se inscreve o repensar a arte e sua nomenclatura esclerosada, com classificações de cunho formal, estéticas e ideológicas. Tudo externo ao próprio atuar das obras de arte.
O traço fundamental desse esforço consiste em algo muito simples, mas de enormes e profundas conseqüências: por em questão, sempre em questão, a questão da essência. Esse é o termo matriz em que está fundada a longa trajetória e construção do Ocidente metafísico. É impressionante como um único termo, um único conceito, teve uma influência tão vasta e devastadora. O que é essência? Esta pergunta já traz na sua formulação uma armadilha. Já se pergunta pela essência a partir do é. E, evidente, toda resposta se faz usando sempre um é. A essência é isto, é aquilo. E para nós seres finitos é muito difícil sair e fugir do âmbito e da dimensão do é. Quanto a nós, em si, não há problema, a questão muda é quando se quer de-finir a essência e dentro deste conceito o Ser. Não podemos falar de essência sem apelarmos para o Ser. Porém, ao cairmos e decairmos no é, já nos lançamos na de-cadência. Como seres finitos, entes, já nos movemos, parece, inapelavelmente no plano dos entes, do que sempre é. Isso é, parece, inevitável. E o mais importante a perceber e constatar ao longo da trajetória do Ocidente é que não só nos movemos no plano do ente, do é, mas também quando empreendermos uma compreensão e abertura para a questão maior do Ser, sempre o julgamos e conceituamos trazendo-o para o plano do é, do ente. Não somos somente nós, entes, que decaímos no plano e dimensão do é, do sendo, do ente, tornando-nos essencialmente decadentes, também pensamos, definimos e trazemos o Ser para o plano e dimensão da decadência, pois só compreendermos o Ser enquanto fundamento da essência dentro do é, ou seja, reduzimos o Ser ao plano e dimensão do ente, do sendo, da essência entitativa. Claro que não nos furtamos a dar uma proeminência ao Ser ao conceituá-lo como sendo o Fundamento, a Causa primeira, o Ser em geral. Ao darmos toda essa proeminência conceitual ao Ser só conceitualmente ele se destaca, pois enquanto essência não passa concretamente de uma essência vista, percebida e conceituada dentro do plano e da dimensão do é. E notarmos bem toda a linguagem metafísica está viciada nesta essência conceitual, até para nos referirmos a algo que nos aparece como o superior de tudo que é superior: Deus. Levamos sempre Deus para a decadência do é. Reduzimos inevitavelmente Deus a um conceito, ao plano e dimensão do é. A identificação da Causa (essência) primeira com Deus foi um pulo natural e uma dedução absolutamente lógica. E aí primeira já diz uma ordenação entitativa dos entes, de tudo que é. É que pela lógica das causas tudo se torna numérico, o que significa pela lógica das essências. Deus é? Se é é ente. Se não é, pela lógica das essências, é niilismo, pois jamais, partindo do plano e dimensão do é, tudo que não é é niilismo, cai e decai no plano e dimensão do nada. A força da essência do é é tão forte é tão pregnante que chega a entificar o nada. O que é o nada? Até para de-finir o nada temos que partir da entificação, do império do é, isto é, da essência.
Um dos meios de tentar fugir do império do é foi substituí-lo pelo existe. Mas então já apreendemos o existe partindo da sua oposição à essência. Ou seja, já estamos irremediavelmente dentro do jogo de cartas marcadas da essência metafísica. Por ele a existência se opõe à essência. Mas quando se procura a essência da existência de-caímos inevitavelmente no conceito de essência, até porque para dizer o que é a existência, ao conceituá-la, dizemos sempre: A existência é...
Por isso a questão com que nos defrontamos é sempre a questão da essência. Em tudo e por tudo. Nem a ciência com seus conceitos operacionais escapa dessa decadência. Talvez seja ironia do destino que isso tenha acontecido no Ocidente, que tem como raiz o mesmo verbo de decadência: Ob-cadere. O Ocidente tem como destino nos defrontar, nos colocar frente a frente com a questão da essência enquanto o plano e a dimensão da decadência. Se o Ocidente tem um cânone, e tem, este é sem dúvida nenhuma o cânone da essência. Toda vez que se tenta sair desse plano e dimensão apenas se geram inversões, porque se procuram palavras que digam o mesmo de outra maneira. Dizer o mesmo aí significa não levar a sério da questão que se coloca como a única questão a ser questionada. Notemos este último sintagma que escrevi: ...a ser questionada. Até a questão para ser questionada já vigora no Ser. E então surge aí também o perigo de o questionar se dar, acontecer simplesmente também no plano e dimensão do ente, da essência. A palavra decisiva aí o que foi dito bem claramente: há o perigo. Desse perigo podemos ou não podemos sair? E qual é o perigo? Sem dúvida nenhuma, o plano e dimensão da essência.
Quando Heidegger se dá conta desse perigo ele se põe como tarefa única e fundamental pensar a essência. Claro, não lhe dando uma nova versão com novas palavras. E o primeiro passo que deu foi pensar a lógica da essência. Temos aí três núcleos essenciais. Pensar, lógica, essência. A primeira e única tarefa do pensar é se desfazer das palavras que dão con-sistência ao perigo da decadência metafísica, isto é, do pensar o Ser a partir da essência. Numa primeira tentativa denominou esse esforço renovar e inaugural como a de-str-uição da metafísica. Destruição não significava aniquilação, mas descon-str-ução da metafísica. Trata-se, portanto, de desmontar o edifício duas vezes milenar da nomenclatura metafísica que nos levou inapelavelmente à decadência. Deve até soar irônica essa tentativa de desconstrução da nomenclatura e cânone que inventou o Ocidente e só o Ocidente inventou, uma vez que esse cultivo e crescimento inigualável (humanismos), em termos de outras culturas e de outros continentes, levou hoje à globalização, um modelo metafísico ocidental. Hoje o cânone metafísico ocidental se tornou cânone global. Todas as tentativas de desmontar esse cânone só o reinventaram com mais virulência. É caso e ocaso evidente hoje dos moralistas estudos culturais. Estes nada mais são do que a forma moderna de um humanismo ideológico e moralista ultrapassado. Todo humanismo é um paradigma de ser humano e de realidade prévia, teórica, canônica, que tenta em vão determinar a realidade. Se antes se julgava que o ser humano, pelas regras da razão, estava preso no determinismo religioso e social, e tratava-se de libertar o ser humano dessa prisão do destino religioso e sócio-capitalista, a receita de realidade, aparentemente libertadora, nada mais faz do que reinventar a decadência dentro do mesmo padrão, do mesmo cânone, da essência conceitual.
Essência conceitual. O que é isto? É a determinação do Ser pelo ente, pelo é. Tal determinação se faz em torno do raciocinar, da lógica e da essência. Porém, os termos lógica e raciocinar só surgiram tendo em vista o império da questão da essência. Se esta quer dizer o que é a realidade (em grego on, via latim, res, coisa e causa, embora o on seja o particípio presente de einai, ser), já o raciocinar diz o conhecer, em grego, noein. A palavra lógica é ambígua, pois diz, ao mesmo tempo: linguagem enquanto pro-posição, e verdade, enquanto esta seria, na lógica, a adequação da pro-posição ao on (sendo), a realidade. Raciocinar se formou da tradução da palavra logos para o latim como ratio. Portanto, raciocinar e lógica provêm do mesmo processo de afirmação do conhecimento lógico em detrimento da realidade em seu vigorar. A questão da essência vai gerando uma rede de conceitos que, em vez de melhor nos lançarem na questão da essência, pelo contrário, vão enredando a essência e a realidade num entrelaçamento de conceitos com transposição de significados das palavras que só fazem acentuar a decadência. E a essência enquanto questão fica intocada e reinando soberana. Acentue-se que são múltiplos os caminhos de versão para a questão da essência, na trajetória do Ocidente. A essas variações correspondem não só diferentes fundamentos, mas também diferentes humanismos. Seja como causa, seja como razão, o que sempre está presente como questão intocada e inquestionada é a questão da essência. Quando se funda a natureza do ser humano na razão e a ciência no conhecimento, como ciência, que essa razão elabora, o que está sempre presente, embora oculta e devastadora, é a questão da essência. O Ocidente não consegue sair de sua aporia, de sua decadência, ao não se defrontar com a questão, inicial e sempre presente, da essência.
A longa preparação de estudos persistentes e uma intuição originária levou Martin Heidegger a se fazer a pergunta que persiste sempre em tudo que escreve: Qual é o sentido e verdade do Ser? O que esta questão põe em questão? Notando que toda a trajetória do Ocidente nada mais era do que uma trajetória de retomada da resposta entitativa, ainda que causal primeira, essencialista, conceitual, a sua pergunta tem o explícito fim de sair da questão da essência, dirigindo a pergunta, e colocando a questão, não à essência, não ao ente, não à causa, não ao conceito, mas tão somente ao Ser. É o que ele não cessa de dizer e repetir, ao por a essência em questão, a trajetória do Ocidente, sua decadência, consiste unicamente no Esquecimento do sentido e verdade do Ser. Mas ao fazer a pergunta pelo sentido e verdade do Ser não a faz ele inscrevendo-a no plano e dimensão do ente, da essência, ter que dizer: é? Sim, com uma diferença: não lhe importavam agora as respostas dadas nem ele quis elaborar uma nova resposta, mais uma nessa trajetória ocidental. A pergunta se tornou para ele a questão, ou nas palavras dele, o a-ser-pensado. E aí começa toda a sua revolução, não propondo uma nova teoria, um novo paradigma, um novo viés para o cânone, como fazem os estudos culturais, mais recentemente. Ele inverteu os procedimentos. Para avançar, recuou, não cronologicamente, mas trouxe para o questionar os termos essenciais em que se deu a decadência, o esquecimento do sentido e verdade do Ser. No lugar de raciocinar propôs o pensar, no lugar da verdade da proposição e da lógica, propôes a volta ao termo para verdade dos pensadores pré-socráticos: a-letheia. E logo notou que não podia continuar denominando-os pré-socráticos, pois aí seria já se inscrever na tradição da essência metafísica da decadência do Ocidente. Voltou inicialmente aos pensadores originários. Estes não eram uns filósofos em formação, em gestação, uns proto-filósofos, eram radicalmente pensadores e pensadores não das origens essencialistas e conceituais, mas do originário, aquilo que não cessa de vigorar. Repensou a arché, não como começo, mas como princípio originário. Voltando a Heráclito, repensa o logos no lugar da lógica e dentro dessa revolução, retoma o valor verbal e poético da palavra em lugar da proposição. Restitui a densidade da palavra-verbo, em lugar dos nomes ou substantivos. Voltando a Parmênides, repensa no lugar da razão subjetiva, fundamento do conhecimento e abolidora do destino, três palavras-guias: a-letheia, noein, Moira (destino). E é nesse plano e dimensão que vai pensar, não definir nem conceituar, a essência. Esta não é causa, fundamento, razão, ciência, filosofia, disciplina, conhecimento. Com isso desfaz-se da razão como diferenciadora do ser humano enquanto animal racional. Animal, sim, mas racional. Animal é aí o orgânico, o que pode ser medido, determinado pelo controle matemático e conhecido pelas funções e finalidades, havendo, claro, uma complementaridade entre razão e organismo. Desfaz-se, enfim, de todas as formas de humanismo. Mas no lugar não propõe o in-humano, pois não está mais fazendo o fácil jogo das oposições metafísicas, fundadas na tradicional e intocada e inquestionda essência conceitual.
Disso tudo resulta, evidente, a pergunta: Esse trabalho todo acabou por levá-lo a uma nova concepção de essência, não? Mas evidente que sim, caso contrário teria sido ou mais um passo nas soluções metafísicas, com uma proposta de paradigma novo, de um novo plano e dimensão da essência, ou nada. Seria uma grande confusão de conceitos que propõe a destruição dos valores multimilenares tão caros aos humanismos, sem nada de concreto, de aplicável, de claro, de científico. Contudo, todo esse trabalho levou-o a uma nova proposta de essência, qual? Quem assim pergunta ainda não compreendeu nada de tudo aquilo em que consiste o pensar. Sempre se espera já uma resposta nos moldes da decadência metafísica. Não se pode conceber, pelo instrumento diferenciador do ser humano, a razão, que o originário não é algo que caiba numa resposta, num conceito, numa paradigma, num cânone. Não se percebe que o a-ser-pensado é, de fato, o a-ser-pensado. Não se percebe que não adianta reduzir a questão da essência a uma resposta dentro da vigência e horizonte do é. Como então evitar e fugir desse é? Para não reduzir tudo ao é, só resta um caminho, o caminho do Ser. E Ser não é, pois se fosse é, seria ente. E o originário da essência nunca, jamais, é o é. Só pode Ser o Ser. Mas este, o isto de toda essência, é o a-ser-pensado. Este abala os alicerces da decadência da metafísica, porque sai do plano e dimensão do ente, da essência conceitual, entitativa, racional, subjetiva/objetiva, causal. Temos sempre de voltar à essência enquanto questão. Por isso, não se cansou de dizer: Questionar e por em questão é a única tarefa do pensamento. Neste horizonte, o pensamento não é, pensa no e a partir do Ser. A linguagem não é, diz no e a partir do Ser. A verdade não é, manifesta e desvela, velando-se e retraindo-se. A verdade é verdade do Ser, não da proposição. Nesse sentido, a essência do pensamento é o pensamento da essência, a essência da verdade é a verdade da essência, a essência do agir é o agir da essência, a essência da linguagem é essência da linguagem. Na essência da linguagem, da verdade, do agir, do pensar, se dá o sentido do Ser. Na entificação da essência aconteceu, se deu, o esquecimento do Ser, da memória do Ser. O esquecimento da memória é a memória do esquecimento. Só saindo da decadência onde viceja o Ocidente podemos nos abrir para o dom que o Ser nos destina. Tal abertura se dá no pensar.
O pensar con-suma a referência do Ser à Essência do ser humano. Não a produz nem a efetua. O pensar apenas a restitui ao Ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser. Essa restituição con-siste em que, no pensar, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o ser humano. Os poetas e pensadores lhe servem de vigias. Sua vigília é con-sumar a manifestão do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a conservam na linguagem (Heidegger: 1967, 24).
O pensar nos abre para a Essencia originária. Porem, tal Essencialização não é um conceito paradigmático novo, a partir do qual tudo agora vai ser classificado. A Essencialização se dá numa referência: a do ser humano ao Ser. Nessa referência o pensamento não é causa eficiente, essência causal. A razão humana não a produz nem a efetua, pois a Essência do agir é o agir da Essência. A Essencialização foi e é uma doação do Ser para que o ser humano a re-stitua ao Ser como algo que lhe foi dado e doado, destinado, pelo próprio Ser. Essa re-stituição con-siste em que, no pensar, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua habitação mora o ser humano. Morar diz aí que o ser humano já está dentro da linguagem do Ser, diz que o ser humano já vigora a partir da própria linguagem. Quando o ser humano é caracterizado como aquele ente que é zoé que tem logos, diz então que viver é ec-sistir no logos, enquanto a casa do Ser. Ec-sistir é desde sempre, originariamente, con-sistir num re-stituir.