Estas reflexões desenham o lugar próprio da Poética em relação às mais diferentes disciplinas, porque em relação a ela não se trata propriamente de disciplina ou de área de conhecimento, trata-se, em verdade, de pensar o pensar que pensa o lugar do homem na paisagem e economia da realidade. Isso se faz em múltiplas tarefas e tomadas de posição bem precisas frente aos humanismos e às diferentes teorias. Deixar isso bem claro é a tarefa primordial da Poética, mas não só deixar bem claro, também indicar, apontar as tarefas e estudos a serem feitos. Não se trata bem de um delimitar fronteiras, mas de um abrir fronteiras apreendendo em profundidade as complexas veredas dos dois Ocidentes (consertar e concertar). Não se trata também de estabelecer uma nova dicotomia, dentro do verdadeiro e do falso, da exclusão da metafísica para afirmação da posição da Poética. No fundo trata-se de pensar o pensar como próprio do homem, na medida em que o próprio pensar não é o raciocinar, a afirmação da razão ou da não-razão (consertar). Trata-se no fundo de mergulhar fundo muito fundo nesse enigma do ser humano tão bem manifesto no mito de Édipo e, claro, em outros mitos. É que Édipo – o ser humano enquanto questão - é o próprio enigma (concertar-pacto). No mito, o questionar advém no epos do mythos. E é aí que se colocam duas questões em torno das quais gira o próprio enigma do ser humano: o da essência da linguagem ou logos e o da essência da verdade ou aletheia. Não é sem motivos que a verdade num Ocidente migrou da aletheia para o logos pela negação lógica do próprio mythos. Em verdade, a poiesis é a tensão de aletheia e logos, tendo ocorrido a techne (arte) como dominante. Mythos/poiesis se reduz à techne e aletheia/logos se reduz à episteme. Episteme e techne passam a constituir o Ocidente dominante (o agir que provoca, causa efeitos). O logos se torna linguagem lógica, formal, funcional (dando origem às mais diferentes teorias lingüísticas). Temos aí a base da dicotomia em que se funda o Ocidente dominante. Physis e zoé (einai)/natura/animalitas passam a ser vistas a partir do logos/episteme/techne. A barra entre os nomes indica sempre a poiesis. Assim a sentença órfica: zoion logon echon já vai ser lida dentro das duas linhas divergentes, gerando os dois Ocidentes.
É claro que tudo isso é algo muito misterioso. Não podemos esquecer no mito de Édipo, a presença da Esfinge (ver). Ela, de alguma maneira, é a presença no genos da Moira. Até porque a Moira é, dentro do genos, o que cabe a cada um. A presença do genos e da Moira está profundamente ligada a anagké. Também não se pode de maneira alguma separar o genos da zoé, até porque esta é a própria presença da Moira enquanto a presença da anagké. Zoé, Anagké, Genos e Moira são um e o mesmo. Quando juntamos a sentença órfica e o lema dos Argonautas é que vemos como aí se gestam os dois Ocidentes. Há neles uma ambigüidade radical, a mesma ambigüidade que se fará presente na dobra do agir: consertar e concertar. A grande questão não é a dicotomia e o predomínio de um Ocidente, mas o esquecimento do Outro. Com ele se esqueceu o próprio pensar e a face ambígua do próprio do ser humano. A tarefa da Poética é tematizar o esquecimento, o que só é possível no deixar o pensar vigorar. Deixar o pensar vigorar é o que denominamos Poética. É o que denominamos humano. O humano não é a vigência da essência da humanitas, mas a vigência da referência de Essência do homem e Ser (enquanto Memória/Esquecimento). A metafísica é a vigência de um Ocidente, pois nela se dá, acontece o esquecimento do Outro Ocidente. É que a metafísica não é algo feito por vontade e decisão da vontade humana, é o próprio destinar-se do Ser. A ambigüidade metafísica originária deu e dá lugar cada vez mais à dicotomia, substituindo a dobra pelo duplo. E assim a metafísica se foi constituindo numa série de duplos, esquecendo-se da sua ambigüidade originária, que é a própria ambigüidade do metá- (in,inter,entre). Trazer ao pensar o Outro Ocidente é trazer ao pensar o próprio pensar, onde acontece o vigorar da dobra. A dobra é o próprio pensar, ou seja, a própria referência de Essência do homem e Ser. A referência é a essência do pensar.
A questão da metafísica se dá num duplo, numa dicotomia, em duas dimensões que, conjugadas, vão gerando todas as outras e é nelas e a partir delas que se pensa o homem dos humanismos. São elas:
1ª. Animal e racional;
2ª. Essência e existência.
É nessa dupla dimensão que sempre se pensa e determina o que é o ser humano dos humanismos e da ciência. Nesta só se fala em organismos e funções orgânicas. A ciência, como os humanismos, só trata do como é, jamais do que é. Muito menos do isto em que todo é vigora. É nas dicotomias que se decidem os humanismos: do marxista ao existencialista e pós-moderno. E estes acabam, de uma maneira ou de outra, por ancorarem na subjetividade, onde todo ente é ente da objetividade. O que cabe então fazer? In-verter essa posição onde predomina como fundamento a subjetividade, mas uma in-versão que vá além e aquém dessa dupla dimensão, pois nela se dá e acontece a representação pela qual se dá o esquecimento do Ser e tudo aí gira em torno do plano dos entes. A in-versão a que se refere Heidegger na Carta é a mesma proposta por Rosa em G.s.: veredas quanto trata dos dois Ocidentes enquanto consertar e concertar. In-verter não é pela razão estabelecer conceitualmente o ser a partir dos entes (consertar), mas deixar o Ser na referência ao ser humano se tornar pensamento, isto é, linguagem. Aprender a pensar é aprender a ser o que se é a partir de e na vigência do Ser (concertar). A in-versão não é jamais um decisão do ser humano, mas o dispor-se para o acontecer do pacto. O decidir-se pelo pacto é abrir mão do poder da razão e do exercício do poder da vontade. Enfim, do eu para deixar vigorar o sou.
Heidegger precisa o duplo: Essentia (quididade)
Existentia (realidade)
Porém, tal esquecimento não é algo que a consciência do homem pode resgatar. E aí algo fundamental se dá: o pensar enquanto o lugar e próprio do ser humano, que faz o ser humano se tornar próprio a partir do próprio Ser. Mas um tal pensar não se confunde com o raciocinar. Muito mais vai estar ligado originariamente: a) à Verdade do Ser enquanto Essência da Verdade; b) à Linguagem do Ser enquanto Essência da Linguagem.
Então o pensar é um destinar-se no homem enquanto o originário da obra de arte. A arte enquanto o entre da verdade e não-verdade se torna o pensar da experienciação do desvelamento e velamento, do lembrar (memória) e esquecer do sentido do Ser, da sua presença e ausência. E nisso consiste propriamente a ec-sistência (Dasein).
Dentro destas dicotomias metafísicas, duas hoje estão em evidência:
Natureza e cultura.
Individual e social.
Daqui surgem duas questões:
1ª. É a obra de arte que funda a cultura ou as obras de arte não passam de manifestações culturais?
Só para lembrar: há diferentes culturas, mas a música de Beethoven fala a todas as culturas. Porém, os valores de certas culturas não falam a todos os seres humanos. Por isso é que há diferentes fundamentalismos.
2ª. A linguagem é uma criação social ou o social é uma criação da linguagem?
Notem bem que esse “ou” na formulação da questão já é decorrente da posição metafísica. Dentro e a partir da Poética nunca há um “ou”. Estamos entendendo linguagem enquanto logos. A questão é semelhante à anterior. Só para lembrar. Não se pode confundir sociedade com genos. Sem genos não há sociedade, embora hoje em dia o genos se tenha diluído no ajuntamento de diversas pessoas (multidões e ajuntamentos), sem que haja aí uma coletividade. Além disso não há sociedade sem mundo (que vai além do mundo cultural, pois numa sociedade podem conviver diferentes culturas). E não há mundo sem linguagem. Em sociedade, hoje, além do círculo comunicativo temos de falar em três diálogos. Mas é o logos que os funda. O terceiro diálogo é o pensar, ou seja, o logos vigorando. O logos vigorando é o destino. E todo destino é um destinar-se do Ser. Por isso Heidegger nega os humanismos, assim como qualquer ismo.
A partir do encaminhamento a acima já fica fácil saber onde se localizam as correntes críticas hoje dominantes: a Sociologia da literatura e os Estudos culturais. Fique logo claro que eles são um desdobramento das paideias ou humanismos ocidentais. Mas foi neles que o Ser saiu do seu elemento e se acentuou a de-cadência (de-cadere), ou seja, o es-quecimento (ex-cadescere) do Ser, isto é , da Memória enquanto a Essência da Verdade do Ser. A Essência da Verdade do Ser é a Essência da Linguagem. Damos a seguir uma bibliografia para aprofundar estas questões. As indicações se tornam leituras obrigatórias para que o pensar, lugar do ser humano enquanto concertar, encontre a sua diferenciação do raciocinar, lugar do consertar. Pensar isso se torna decisivo para pensar a arte e o lugar do ser humano na economia do universo, da realidade, da physis, dos entes.
Para Zoé:
a – Leão, Emmanuel Carneiro. Leitura órfica de uma sentença grega. In: --------. Aprendendo a pensar II. Petrópolis: Vozes, 1992.
b – KERENYI, Carl. Introdução: vida finita e vida infinita na língua grega. In: --------. Dioniso. São Paulo: Odysseus, 2002.
A sentença grega é largamente comentada ao longo de Sobre o humanismo.
Para Logos:
a - Leão, Emmanuel Carneiro. Leitura órfica de uma sentença grega. In: --------. Aprendendo a pensar II. Petrópolis: Vozes, 1992.
b – --------------. Permanência e atualidade do poético: lógos, mýthos, épos. In: Revista Tempo Brasileiro, 171, out.-dez., 2007.
c – HEIDEGGER, Martin. Logos. In: -----------. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
d - ----------------. Heráclito. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1998.
Ensaios que tratam das mesmas questões e se tornam referências obrigatórias:
LEÃO, Emmanuel Carneiro. O esquecimento da memória. In: Revista Tempo Brasileiro, 153, abr.-jun., 2003.
---------------------------. Alteridade, provocação do outro. In: MEES, Leonardo e PIZZOLANTE, Romulo (orgs). O presente do filósofo – homenagem a Gilvan Fogel. Rio de Janeiro: Mauad, 2008.
SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante. Para que língua se traduz o Ocidente. In: O que nos faz pensar. Cadernos do Dpto. De Filosofia da PUC/RJ, out. de 1996.
HEIDEGGER, Martin. La pobreza. Buenos Aires: Amarrortu Editores, 2006.
---------------------------. A essência e o conceito de Physis em Aristóteles – Física B, 1 (1939), 251. In: -------------. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.
---------------------------. A origem da obra de arte, edição bilíngue. Trad. Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. São Paulo: Almedina/Edições 70, 2010.
FOGEL, Gilvan. O desaprendizado do símbolo (a poética do ver imediato). In: Revista Tempo Brasileiro, 171, out.-dez., 2007.
A DOBRA
A Poética não é mais uma corrente crítica porque não trabalha com dicotomias e se volta para o esquecimento do Ser, onde o consertar e o concertar se dão numa dobra, que nega e não se guia pela subjetividade, pelo raciocinar, mas pelo pensar. Este é um deixar-se tomar pelo vigorar do Ser, onde acontece a dobra. Eis algumas indicações bibliográficas:
HEIDEGGER, Martin. Moira (Parménides...). In.: ---------------. Ensaios e conferências. Petrópolis; Vozes, 2002.
LUZIE, Marta. A dobra e o destino. Rio de Janeiro: 7Letras, 1999.
CASTRO, Manuel Antônio. A dobra e o duplo. In: Clepsidra ou mimeografado.
A proximidade como questão
A questão da referência vai ser pensada por Heidegger como proximidade. Esta se torna decisiva. Para compreendê-la é necessário partir do que ele afirma: a superação das dicotomias metafísicas, acima ex-postas é como tal muito simples. Porém, a simplicidade é a Essência da dobra. A inversão de que sempre falou do duplo para a dobra é a questão da proximidade. Por isso diz: “Essa proximidade se essencializa como a linguagem” (Heidegger: 1967, 54). A questão da proximidade remete diretamente para a questão da ec-sistência. Daí, naturalmente, surge a pergunta: “...como o Ser se con-duz frente à ec-sistência? O próprio Ser é a con-duta (Verhöltenis), porquanto ele con-duz e reúne em si a ec-sistência, em sua Essência ec-sistencial, isto é, ec-stática, como o lugar da Verdade do Ser no meio do ente” (Heidegger: 1967, 53). A metafísica do sujeito afirma e por isso se espera que essa con-duta seja um exercício da vontade-poder do sujeito. Isto é que tem de ser in-vertido. In-verter não é como se pensa semanticamente uma troca, mas diz a palavra em sua formação o verter, o realizar em direção ao in- ao que há de mais profundo em cada um de nós: o sou do eu. Mas todo sou só pode ser sou do Ser, mas jamais o Ser. Na in-versão acontece a proximidade, pois esta indica sempre a dobra como o “in/entre”. A con-duta é do próprio Ser e daí surge a proximidade. Temos de lembrar então que a ec-sistência não con-siste numa afirmação da vontade-poder do sujeito. Isto é o mais difícil de compreender, porque se ele não é ativo, raciocina-se, ele deve ser passivo, se não é racional é comandado pelos impulsos irracionais (animais, instintos, traindo-se o raciocínio já dentro da dicotomia animal/racional). Mas esta dicotomia não é o acontecer da realidade. Compreender a ec-sistência é apreender como se dá a di-ferença entre raciocinar e pensar (bem longe da dicotomia animal/racional), pois o logos comporta essa ambigüidade, essa dobra que pode também ser compreendido como o duplo da metafísica. Mas então, se não é raciocinar, o que é pensar? “O pensar con-suma a referência do Ser à Essencia do homem. Não a produz nem a efetua [não é um raciocinar crítico-causal do ser humano]. O pensar apenas a re-stitui ao Ser como algo que lhe foi entregue pelo próprio Ser [aqui fica bem claro que o con-duzir da con-duta origina-se no agir do Ser]. Essa re-stituição con-siste em que, no pensar o Ser se torna Linguagem” (Heidegger: 1967, 24). Ec-sistir provém da mesma raiz de re-stituir. Pensar é re-stituir e re-stituir é ec-sistir. Mas em que con-siste essa re-stituição? Con-siste em ec-sistir, ou seja, em pensar. Pensar é o agir do ec-sistir enquanto con-sistir em um re-stituir. A con-sistência da ec-sistência na re-stituição não resulta da ação do pensar enquanto tal, mas na medida em que a re-stituição con-siste em que no pensar o Ser se torna linguagem. Fica muito evidente aqui a dobra pela qual aquilo que o pensar pensa não é o objeto da sua ação enquanto o eu que pensa. Não. Aquilo que o pensar faz é con-sumar, plenificar, levar à plena realização, “...a referência do Ser à Essência do ser humano. Não a pro-duz nem a efetua (Heidegger: 1967, 24). É que ec-sistência não diz o modo próprio do ser humano agir diferenciando-se dos outros entes. Não é isso. Enquanto ec-sistência o ser humano já foi lançado na abertura do Ser e é isso que o prefixo ek- ou ec- diz. O ser humano é a locanda da clareira do Ser em meio ao ente. E então acontece a proximidade em sua ambigüidade de dobra e mistério. “Porque, enquanto ec-sistente, o ser humano chega a estar nessa con-duta (Verhältnis), em que o próprio Ser se destina, na medida em que o ser humano o su-porta ec-staticamente, isto é, na medida em que o ser humano o assume na Cura, por isso, em primeira aproximação, ele desconhece o mais próximo [o Ser] e se atém ao menos próximo (das Übernächste) [o ente]. Pensa até que o menos próximo [o ente] é o mais próximo [o Ser]. E, no entanto, mais próximo do que o mais próximo, e, ao mesmo tempo, mais distante, para o pensamento comum, do que o que para esse pensamento é o mais distante, é a própria proximidade: a Verdade do Ser” (Heidegger: 1967, 53). Porém, a Verdade do Ser nada mais é do que a própria linguagem, ou seja, como a Verdade, ela é a proximidade também. É o que diz o pensador: “Por ser simples , o Ser permanece misterioso, a proximidade calma de um vigorar (walten) que não se impõe à força. Essa proximidade se essencializa como linguagem” (Heidegger: 1967, 54).
A linguagem (logos/razão) e o corpo (animalitas/organismo)
Em verdade, como não podia deixar de ser, o ser humano não vive e depois raciocina. A vida/animalitas já desde sempre é vista, conhecida e determinada cientificamente a partir da razão, que deixou de ser o logos. É um grande engano achar que a prática enquanto o que é ligado diretamente à realidade/animalitas, precede toda teoria e todo conhecimento seja artístico seja científico. Isso é uma i-lusão, um jogo (ludus), que se fundamenta (in-) na razão. Primeiro, logicamente, a razão constrói a dicotomia animal/racional e depois determina a realidade/animalitas como sendo o fundamento dessa mesma realidade, pois ela é afirmada a partir de um conhecimento científico como sendo verdadeira. A razão fundamenta o verdadeiro que fundamenta a realidade. O real é o racional pois o racional é o real. Mas isto não acontece apenas com a realidade, também a mesma razão, que a tudo fundamenta, fundamenta-se a ela mesma como linguagem. Quando se reduz, cientificamente, a linguagem à língua e esta a um instrumento funcional, expressivo e comunicativo, no jogo oposicional e complementar estrutural, estabelecendo o código gramatical nada mais está fazendo do que definindo a linguagem dentro do mesmo para opositivo e estrutural de animal/racional. “E pensamos no fonema e no grafema o corpo, na melodia e no ritmo a alma e na significação (Bedeutungsmässige) o espírito da linguagem. Assim, de ordinário, pensamos a linguagem numa correspondência à Essência do ser humano, no sentido em que essa última é representada como animal rationale, isto é, como a unidade de corpo-alma-espírito” (Heidegger: 1967, 54).