20 janeiro 2010

O mito de Cura e o ser humano

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Enquanto cura , Dasein [Entre-ser] é o “entre” nascimento e morte.
Heidegger. Ser e tempo.

Muitas vezes ficamos alegres, tristes, decepcionados, perplexos diante do que nos acontece na vida. Porque a vida é um acontecer incessante para além das teorias, dos sistemas, das utopias idealizantes e dos sonhos simbólicos ou não. O acontecer é sempre misterioso, conforme nos faz pensar o poeta Guimarães Rosa, ao afirmar: “Aquilo que não havia, acontecia” (Rosa, 1967: 33). O vigorar do acontecer nos lança sempre à pro-cura disto e daquilo e até, essencialmente, de nós mesmos. O ser humano independente de cultura, tempo e lugar, sempre se depara com essa questão. O que é, afinal, a pro-cura e o acontecer? O que nos provoca, move e comove tão profunda e incessantemente, com e para além de nossa consciência? Agimos e nem sempre, aliás, na maioria das vezes, pro-curamos uma explicação. Quando nos damos conta do que aconteceu já é fato (feito, realizado) consumado. Assim nessas idas e vindas se passa, melhor, acontece, nossa vida. Até que de repente uma questão se coloca, insistente e provocadoramente: Qual é o sentido de minhas escolhas, de meus objetivos, de minhas pro-curas na vida? Qual é, enfim, o sentido do viver? É então que o acontecer encontra sua dimensão essencial: ele se dá sempre dentro de um sentido, nem estabelecido nem determinado por nós. Mas qual? A pergunta se torna mais angustiante e decisiva quando, por algum motivo, nos deparamos com algo, com a “coisa” definitiva, decisiva e irrevogável, a qual não se pode evitar e da qual não se pode fugir. Ela, “a coisa”, se torna a questão das questões. É a morte. É a angústia de nos descobrirmos mortais.
Porém, o horizonte do mortal já traz em si, independente de nós, no mesmo horizonte, o não-mortal. Da mesma maneira, só nos descobrimos mortais porque estamos vivos. Vida e morte, eis as questões em que já desde sempre nos vemos envolvidos. Em vista disso, a morte, como questão originou, origina e originará muitas respostas. O mesmo em relação à ávida. Mas elas não eliminam a questão, apenas mostram sua riqueza inesgotável. É o mistério de viver e morrer.
Se já nos descobrimos vivendo nas questões, queiramos ou não queiramos, também só podemos viver na pro-cura das respostas, sempre e inevitavelmente pro-visórias. O ser humano, sendo, é sempre radicalmente provisório. Mesmo o não se colocar a questão já é uma resposta, que jamais evitará a questão: a “coisa”, a morte. Porém, a questão só pode ser colocada por quem está vivo. Ao que se saiba, ninguém até hoje morreu e depois veio para indagar ou responder, enquanto vivo, à questão. Disso resulta uma constatação muito simples e direta: a morte só se torna questão porque estamos vivos. E é então que a vida se torna, de fato, a questão. Viver não é um fato de consciência ou de sistema ou de teoria. Para isso se dar já devemos estar vivendo. As respostas científicas, culturais ou religiosas já pressupõem que a vida se dê, esteja acontecendo. O acontecer é sempre um entre vida e morte. Esse e só esse é nosso campo de ação, escolha, pro-cura e de-cisão. Todo entre se dá, acontece num de e num para. E estes é que determinam a vida enquanto travessia, liberdade e destino. Para indica sempre um fim, uma finalidade, mas esta já está determinada pelo de onde nos originamos. Esta temática não será desenvolvida neste ensaio. Ela encontrou uma grande riqueza de reflexões entre os gregos, através de dois termos essenciais: arkhé e telos e aqui não vamos desenvolver, embora estejam diretamente ligados à questão que o mito de Cura traz.
Entre o horizonte de origem e o horizonte de chegada é que se coloca a questão do sentido. Sentido é “isso”: o entre um de e um para. Sem o de e o para é impossível pensar o sentido. De imediato e de uma maneira muito evidente para todos em qualquer momento e época e cultura, o entre acontece enquanto vivências e experienciações de vida. Mas dizer vivências e experienciações de vida quer dizer o mesmo que vivências e experienciações de morte, pois umas não acontecem sem as outras. Portanto, a medida do entre tanto é a vida quanto é a morte. Na medida está o sentido, no sentido está a medida. Toda pro-cura, no fundo, é sempre a pro-cura do sentir do sentido. E é isso que denomino aqui ex-perienciação e não e jamais experiência. Toda questão advém sempre enquanto experienciação. Todo conceito advém sempre enquanto experiência. É por isso que posso dizer: - Fulano é experiente no fazer artefatos de madeira, de barro, em dar aula disto e daquilo etc. Mas jamais posso dizer que alguém é experiente na experienciação de morrer. Das experiências surge um aprendizado, passível de ser ensinado, porque é um saber baseado em conceitos. Por exemplo, o carpinteiro que ensina o aprendiz a fazer móveis. A experiência gera um saber que pode ser aprendido porque pode ser repetido indefinidas vezes. Esse é o poder do conceito e sua universalidade abstrata, que tem sempre implícita uma medida precisa. É o saber próprio da tekhne. Das experienciações surge uma aprendizagem, algo absolutamente pessoal e único, e impossível de ser ensinado, porque não é redutível a conceitos. São as experienciações das questões. Beethoven jamais poderia ensinar o poder criativo que o movia, o mesmo se pode dizer de Rosa, enfim, de todo grande criador. Trata-se então da poiesis. A diferença entre tekhne e poiesis é a mesma entre experiência e experienciação, entre aprendizado e aprendizagem. Mas acentue-se que não se deve criar aí uma dicotomia, pois a experienciação passa pela experiência, assim como a poiesis passa pela tekhne, sem ficar nela presa e dela dependente. A poiesis é sempre inaugural. Mas devemos afirmar que os grandes criadores, todos eles, são exímios no domínio da tekhne. Para a maioria dos leitores, porém, o trato com a arte deve levar às experienciações. O saber crítico dos especialistas pode facilmente fechar as portas às experienciações, pois eles se acham possuidores de um saber que a tudo quer classificar. Com isso eles matam as obras de arte no que elas têm de mais próprio: a poiesis. Infelizmente, a maior parte do ensino da literatura e das artes não passa do ensino de classificações ou da tentativa de reduzir as obras a saberes de outras disciplinas. A obra em seu operar nesses casos nunca tem vez. Há também o crítico e o professor criativos que não classificam, mas provocam o leitor para as questões e o levam ao diálogo com a obra. Mas só há verdadeiro diálogo quando o leitor se deixa tomar pelo auto-diálogo. É que neste, o leitor, se deixa tomar pelo próprio, ou seja, as questões, o ser que ele é.
Enfim, arte sem experienciações da poiesis não é arte, seja para o artista, seja para o leitor, porque a arte, que é poiesis, vai direto ao coração das questões. Deve ficar bem claro que experienciação não é o domínio do subjetivo. Muito pelo contrário, é quando o subjetivo das opiniões e das impressões se deixa tomar e ultrapassar pelo poder da presença e vigorar das questões. Experienciação só pode ser experienciação de questões.
Quando agimos, e não paramos de agir, pois o agir é mais do que o simples viver a vida que nos move, temos sempre em vista alguma finalidade, algum fim, algum penhor. Agimos ao nos empenharmos por algum penhor. Talvez seja melhor e mais verdadeiro enunciar que o viver agindo é o viver em que acontece o sentido, uma vez que não somos um programa em que basta simplesmente iniciá-lo com um comando, um toque, como se faz hoje em geral com tudo que diz respeito à computação. Todo programa é orgânico e por isso, de antemão, o resultado e o fim e os processos já estão inscritos e previstos. Aí já tudo se regula por uma medida conhecida pelo programador e pela máquina. O que diferencia o agir do ser humano é que nele a vida se dá, acontece dentro da medida do viver e do morrer. Mas destes ninguém sabe a medida, pois eles mesmos são a medida e não nós. Então o entre se mede pela medida do viver e do morrer. Porém, estes são questões. Estas são sempre a não-medida de toda e qualquer medida dos conceitos. Eis uma constatação muito simples e evidente: o entre se faz de não-medida e medida. O impasse que o ser humano vive em relação à realidade e a tudo que o cerca é sempre querer determinar tudo por uma medida que ele impõe. Já o sofista Protágoras enunciou que o homem é a medida de todas as coisas. Devemos levar em conta a conjuntura em que isso foi dito e proclamado. Mas como saber que medida é essa se o ser humano não se conhece para que se possa determinar como medida? Sócrates não cessava de proclamar “Conhece-te a ti mesmo?” O olho que vê não se vê. A perspectiva que perspectiva não se perspectiva. Ele tenta medir tudo, mas não se mede, porque para se medir teria que usar uma medida que não fosse determinada por ele. Esta é e será sempre a medida da questão, porque esta é prévia ao seu próprio existir. As medidas com que o homem mede não são as medidas da realidade. Não passa esta da realidade de tais medidas. Sem esquecer as próprias medidas do tempo.
Toda ação, toda pro-cura, se dá, acontece sempre, queiramos ou não, dentro de uma não-medida e de uma medida, que lhe são inerentes, internas e externas. Todas as ações humanas se dão, acontecem, sempre dentro de um paradoxo, de uma encruzilhada, numa palavra, num entre, ora orientadas pela medida da não-medida, ora tendo como fim a não-medida da medida. Como já disse o pensador Aristóteles na abertura do primeiro livro da Ética: “em toda ação vive um empenho por algum bem”. Porém, não podemos confundir “algum bem” com “o bem”. É neste e por este que nos advém o sentido. Isso é o ético. Portanto, a palavra pro-cura tem em si a densidade do sentido. Ela se dá sempre de uma maneira muito presente e imediata: viver é pro-curar, tanto na di-mensão da medida quanto na dimensão da não-medida da medida, pois nunca, como seres do entre, podemos experienciar somente a não-medida. Somos, queira ou não queira nossa vontade, seres finitos, isto quer dizer que nos experienciamos vivendo sempre no limiar de limite e não-limite. O limiar diz já sempre uma abertura constitutiva de todo ser-humano. Essa abertura é o mundo enquanto sentido. É nela que se dá a Cura, o querer e cuidar. Mas esta abertura não é instaurada pelo poder da vontade do ser humano, mas pelo vigorar do querer-poder de Ser, que se torna a medida. Vigorarmos na questão já diz originariamente, o sermos abertos ao agir e operar do querer-poder de Ser. De outro lado, deixarmo-nos conduzir somente pela realidade e vivências das medidas, não nos dá o sentido pleno de nosso agir. Se bem observarmos e escutarmos o que a palavra pro-cura nos diz e con-voca a escutar há nela essa dobra permanente de medida e não-medida, densificada no entre de toda e qualquer pro-cura. É nas pro-curas que acontece o sentido do que somos.
Mas o que quer dizer pro-cura? Alcançar toda a densidade que nela se concentra exige algo para além-aquém do simples pro-nunciar discursivo. É necessária uma re-flexão, um voltar-se silencioso, em atitude de escuta, para o que na palavra acontece, enquanto operar da linguagem. Para fugir de uma distraída e dominante atitude de tudo entregar ao poder da con-sciência, onde se pro-cura o alcance do saber que se sabe sabendo, pelo domínio da razão operando, segundo a doutrina da modernidade, que coloca todo agir humano no horizonte do sujeito, temos que nos deixar tomar pela palavra em seu vigorar de linguagem. Um tal vigorar nos advém deixando a própria palavra eclodir em sua essência. Esta não deve diferir do que na essência acontece: “a coisa” se dando, eclodindo de dentro para a manifestação, onde a “realidade” é a essência acontecendo. Uma imagem-questão, certamente, se tivermos a paciência de escutar, nos con-duzirá ao que na palavra pro-cura se pro-duz. O que nela pode advir e se pro-duz acontece quando “chocamos” a palavra, para que ela ecloda no que ela, dizendo, é. “Chocar” a palavra é nos entregarmos a seu vigorar acontecendo, dela, não de nossa fala e consciência. Quando a galinha choca o ovo, é o próprio ovo que eclode no que é, o pinto, e este não é uma criação da imaginação da galinha. O mesmo acontece com a criação poética: o autor apenas choca o que a linguagem cria. A dita faculdade criativa da imaginação é um desvio enganoso do sujeito racional prepotente. Por isso, repetimos: O que quer dizer pro-cura?
Em toda procura há um agir, um produzir algo, um advir à manifestação (assim como o “chocar” um “ovo” faz advir o que nele não cessa de acontecer e manifestar-se. Não é quem choca que dá aquilo que a palavra já traz em sua essência, pronto para eclodir e ser). O que se pro-duz no “chocar”, na pro-cura? A palavra pro-duzir é composta da preposição pro que diz o diante de, em frente a, e do verbo ducere (latino) que diz a instauração do vigor que leva o modo de ser do ser humano para a frente da sua presença histórica. Produzir é pro-curar. Procurar é chocar. Chocar é pensar. Pensar é deixar a essência do que é advir em sua manifestação, em sua presença, que será sempre histórica. Histórica diz aqui a essência em seu acontecer enquanto destino, pois nada advém fora do seu destino, da sua história. Se pro- diz o advir para a frente, e o que advém é o nosso destino histórico, este já vigora na pro-cura. O que nos diz Cura, enquanto destino histórico?, pois o que advém para a frente e se manifesta é o que na Cura já é contido, assim como no ovo advém o que o constitui enquanto sua essência. O ser humano, o único que pro-cura, vive e se experiencia num dilema, numa dobra constitutiva do entre. De um lado, é constituído pela Cura, seu destino histórico, de outro, ele não se manifesta nem advém à presença se não houver pro-cura, onde a procura é “chocar” o que já é. Esse entre, essa dobra, se manifesta de muitas maneiras e sempre numa radicalidade inaugural, pela qual não cessa de mudar e de se tornar uma caminhada de realização, onde se é o que não se é. Mas não podemos aqui pensar o não-ser no âmbito e a partir do horizonte dos entes. Se em nós há procura incessante, e há, isso diz que o nosso não-ser é o vigorar do acontecer, no sentido em que o pensador Rosa nos faz pensar, conforme já o citamos acima, ao dizer: “Aquilo que não havia, acontecia”. O acontecer se dá sempre na terceira margem do rio. Então o não-ser de cada sendo é o Nada do Ser de cada sendo acontecendo. É o que nos diz a Cura de toda pro-cura. Eis aí, portanto, o enigma, a questão: O que é isto – a Cura?
Lançados na dobra de medida e não-medida, na finitude enquanto limiar, o tentar reduzir cada questão a uma resposta é uma tentativa inevitável de nossa condição. Porém, devemos pensar essa condição no horizonte não só do sendo, mas também do Nada. Toda dobra, todo entre, implica um conceito e uma questão. Toda dobra é, essencialmente, a questão se desdobrando. Noutras palavras, é o acontecer do pro-curar. Toda tentativa de reduzir o procurar a um conceito será querer que um pássaro voe apenas com uma asa. Dessa maneira não será nem pássaro nem voará. E jamais poderá experienciar a liberdade de voar. Sempre voamos e só podemos voar no aberto. Não é meu vôo livre que dá o aberto, aquele apenas presentifica este, o faz vigente, o realiza. É na pro-cura que a Cura se dá e acontece, mas não são as procuras que a constituem. Elas apenas, e já é muito, a manifestam. Mas será sempre, queiramos ou não, a presença de uma ausência. Não será, porém, uma ausência negativa, será a possibilidade de experienciarmos a proximidade daquilo que já desde sempre nos é próximo, embora sempre ausente, tão ausente que não cessamos de o procurar. E é nessa dobra de ausência e presença, de proximidade e distancia, que se coloca com mais intensidade e persistência a questão: O que é isto – a Cura? Essa questão já nos adveio imemorialmente num mito: “O mito de Cura”.

O mito

O mito é uma dobra com o rito e não e jamais um duplo. Porém, a dobra é, facilmente, nas vicissitudes do acontecer do humano, transformada num duplo. Foi o que aconteceu e acontece com o mito. Em verdade, tomada a palavra mito em si hoje, nas vicissitudes históricas, ela diz algo de geral, traz em si uma carga de significados que se reduzem facilmente a representações e símbolos. Uma das vias de matar o que há de vigor nos mitos é transformá-los em símbolos ou alegorias. Essa foi uma das estratégias da teologia, apoiada por uma filosofia de representações lógicas. O mito nunca, aparentemente, é lógico. Porém, não há nem jamais haverá lógica sem o logos. O logos é o sentido do mítico. O mito, enquanto dobra, vigora na simplicidade do concreto. Concreto é o vigorar da realidade no tempo.
É que todo mito se faz sempre presente no rito. O mito se desdobra nos ritos. Todo rito é a presentificação do mito. Mas este se retrai como mito em toda ritualização. Daí a reiteração das festas míticas da vida, como por exemplo, a festa hoje globalizada do Ano Novo, de que Janus é o personagem-questão, com seus dois rostos. Quando os mitos se tornam representações e símbolos, os ritos se tornam formas vazias de sentido e de vigor. Então o rito é a fórmula do mito. Algo decorado, encenado, onde nunca há, se dá, nenhuma experienciação das questões que o mito diz, manifesta e concretiza ao ser ritualizado. Nosso cotidiano, ritualizado nos gestos e codificado na repetição de lugares-comuns, se tornou o simulacro de um viver e procurar, sem o vigorar dos mitos. É um engano muito grande achar que a fuga dos deuses e dos ritos que os invocavam e convocavam anulou e destruiu os mitos, no bárbaro império das realizações técnicas globalizadas, espalhando o sem-sentido de toda ação e procura. De uma maneira misteriosa, acontece o florescer do deserto. Se no acontecer do deserto não há mais mitos, isso de maneira alguma anula a essência do mito: o mítico. Do mito, enquanto mito, sempre fica o mítico. O mítico é a essência do acontecer da técnica, do mundo técnico em sua essência. É que o mítico de todo mito é a realidade se realizando e manifestando em linguagem (logos). Sem linguagem não há línguas, não pode haver realidade. O mito é a linguagem da língua na medida em que esta é seu rito. Como hoje tudo está submetido a processos técnicos, acha-se, facilmente, que não há mais lugar para o mítico. É um engano. Seria o mesmo que houvesse pro-cura sem Cura. Esquecer a Cura ainda é um modo de a própria Cura acontecer. Cada ser humano então vive a experiência da proximidade apenas enquanto distância. Por mais que os meios técnicos anulem as distancias, isso ainda não quer dizer que experienciamos cada vez mais a proximidade do que nos é próximo. Muito pelo contrário, cada vez mais nos lançamos nas procuras que se bastam a si mesmas e nunca nos bastam, porque não podemos ser sem a Cura. É um destino enigmático, mas é destino. E é sempre deste que nos advém o apelo de escuta do que somos e da procura da proximidade.
O ser humano não pode acontecer a não ser em ritos, que é a concretização de sua transcendência. Transcendência não é nada simbólico fora da realidade, não é uma supra- realidade. Muito pelo contrário, é a essência da realidade realizando-se enquanto mundo. O real só subsiste e persiste porque a realidade não cessa de acontecer em realizações, isto é, mundo. Esse acontecer é o vigorar da transcendência, do mundo. Esta é a essência da finitude, do que não cessa de ser ex-perienciação. Se a palavra latina finis diz limite, fronteira, esta só pode ser fronteira do que já se deu como o que não é fronteira. Todo limite é limite do não-limite, assim como todo horizonte é o visível de todo não-visível acontecendo. Isso é a finitude. Isso é o mítico. Isso é o poético. Isso é o acontecer da Cura.
No longo percurso do ocidente, o mito foi uma das produções poéticas mais denegridas e desprezadas e, talvez, a que mais sofreu preconceitos. Estes vieram da filosofia, da teologia e da ciência. E, na dimensão da linguagem, da retórica funcional e instrumental. É uma carga muito pesada e destruidora. E isso impede que escutemos o mito no que ele é como mito, isto é, o que sempre perdura como mítico. O nome-verbo grego mythos, de onde se formou mito, diz o manifestar pela linguagem. Ocorre que do mesmo radical de mythos se formou outro nome-verbo essencial: mistério. O radical de ambos assinala, por isso, uma tensão de desvelamento e velamento. Nesse sentido, todo mito figura (fingit), enquanto língua, “imagens-questões” e “personagens-questões”. Por isso é que a tais personagens-questões se denominou na modernidade personagens ficcionais, algo que em si não existe, que é inventado. Esse modo de julgar acaba escondendo o poder de verdade de tais criações. Se o personagem não existe, é ficcional, as questões que elas colocam são muito reais. E de maneira alguma são invenções ou ficções. Então não nos devemos perguntar se tal personagem existe ou existiu historicamente, mas, sim, qual a questão que nela e com ela nos advém, se fez e faz presente? E é como questões e como imagens-questões que devemos ler-e-escutar todo mito, especialmente o mito de Cura, um mito que nos fala do originário do homem, de sua constituição e humanização, de sua finitude.
O mais importante, portanto, é sempre o mito e não a cultura onde se originou ou o nome do autor, até porque para os mitos é dificílimo saber quem é o autor e em muitos casos, cada cultura lhe dá uma versão específica, de acordo com o que move originariamente toda cultura e época. Toda cultura é uma ritualização do originário, do que vigora em tudo que é. É raro o mito que não seja comum a diversas culturas, com algumas variações. A atribuição de um autor a um mito, em geral, não passa de algo circunstancial, ele é atribuído àquele homem que, por diversas circunstâncias, um dia lhe deu uma forma escrita. Essa lição do mito seria importantíssima para nós, hoje, leitores de “autores modernos”. Por uma compreensão equivocada da subjetividade e sua pretensa faculdade de imaginação, que nunca pode vigorar e agir se não for a partir da essência originária, passamos a dar mais importância ao nome do autor do que à própria obra (a essência originária vigorando, operando). O mito nos prova exatamente o contrário. Essencialmente não há diferença entre obra-mito e obra de arte. Então por que dar tanta importância ao nome do autor? Aparentemente se faz uma análise objetiva, mas quase sempre o que prevalece é o “que o autor quis dizer”, como se o autor fosse um mensageiro de recados. É preciso mudar isso e voltar ao vigor das obras como voltar ao vigor dos mitos: o mítico. Seria sem propósito querer reinventar os mitos atualizando apenas os ritos, numa época em que só impera e só podem imperar os ritos das realizações técnicas. Porém, a essência da técnica já se move, queira ou não queira, no mítico.
A fala do mito é a linguagem do sagrado, por isso nele agem e falam deuses. Deuses não são entidades, mas as diferentes modalidades manifestativas do vigorar do sagrado. Deuses são forças misteriosas que constituem a realidade e o ser humano em sua realidade. Por isso, todas as culturas sempre tiveram deuses. Entificá-los é a primeira ação para eles se ausentarem. A segunda é negá-los como existentes, o que quer dizer negá-los como entes. Eis aí um círculo lógico-vicioso. Primeiro se denominam como sendo entidades existentes e depois se negam essas mesmas entidades, julgando enganosamente, em nome da própria lógica que as criou, que elas não passam de superstições, realidades i-lógicas, ir-racionais. Sermos mortais é lógico ou ilógico? Eis aí uma falsa questão. Independentemente da resposta e da escolha, já simplesmente por vivermos somos mortais. A realidade jamais se resolve num ou ou. O que se torna necessidade da qual não podemos fugir é deixarmo-nos tomar pelo que desde sempre é necessário: o vigorar mítico, o vigorar poético dos mitos.

O mito de Cura

O ser-humano, tempo, poesia e linguagem são, constituem-se no vigorar de Cura. É o que nos narra o mito Cura. Ele vige na memória originária e nos chegou na palavra da língua latina de Gaius Julius Hyginus, escravo egípcio de César Augusto, que morreu no ano 10 da nossa era. Eis a sua saga:

Cura cum fluvium transiret, videt cretosum lutum sustulitque cogitabunda atque coepit fingere.
Dum deliberat quid iam fecessit, Jovis intervenit. Rogat eum Cura ut det illi spiritum, et facile impetrat. Cui cum vellet Cura nomen ex sese ipsa imponere, Jovis prohibuit suumque nomen ei dandum esse dictitat. Dum Cura et Jovis disceptant, Tellus surrexit simul suumque nomen esse volt cui corpus praebuerit suum.
Sumpserunt Saturnum iudicem, is sic aecus iudicat: “Tu Jovis quia spiritum dedisti, in morte spiritum, tuque Tellus, quia dedisti corpus, corpus recipito, Cura enim quia prima finxit, teneat quamdiu vixerit.
Sed quae nunc de nomine eius vobis controversia est, homo vocetur, quia videtur esse factus ex humo”.

Enquanto caminhava através de um rio, Cura vê uma lama argilosa e, pensativa, recolhe-a e começa a dar-lhe figura.
Enquanto meditava no que já fizera, Jove interveio. Cura pede-lhe, então, que lhe infunda um espírito (ao que acabara de moldar) e facilmente o consegue. Como Cura quisesse impor-lhe por si própria um nome, Jove proibiu-lho, insistindo em que ele é que haveria de dar-lhe nome. Enquanto Cura e Jove discutem, ergue-se ao mesmo tempo a Terra, querendo dar-lhe nome, já que lhe fornecera o corpo.
Tomaram a Saturno como juiz e este busca ser equânime [e este julga ser justo, assim]: “Tu, Jove, porque lhe deste o espírito, recebê-lo-ás após a morte. Quanto a ti, Terra, porque lhe deste o corpo, então o receberás. E Cura, porque primeiro lhe deu figura, mantê-lo-á durante todo o tempo em que ele viver.
Mas porque há entre vós uma controvérsia sobre o nome dele, chame-se-lhe homem, porque parece ter sido feito do húmus”.

(Esta tradução do Prof. Dr. Carlos Tannus é aqui apresentada em primeira mão, pois, com sua bondade habitual, por solicitação nossa, nos presenteou com esta tradução rigorosa, concisa e fiel ao espírito do original. Caso o leitor tenha a curiosidade de ler outras traduções, verá diferenças essenciais, pois o prof. Carlos Tannus foi um erudito e cuidadoso estudioso do latim e da língua portuguesa, que ele dominava com profundo conhecimento. Divulgar esta tradução é dar o testemunho de seu saber e cultivar a sua saudosa memória).

Permanência do mito

Este é um dos muitos mitos que narra a origem do ser humano. Por causa de nossa tradição judaico-cristã, temos a posição equivocada de só considerar verdadeiro o mito relatado no Gênesis. É também um mito importante, mas que de maneira alguma esgota a questão da origem do ser humano. E há outros mitos em outras culturas. O principal a evitar é a idéia do ser humano como uma criação a partir de um criador. Aí tudo se resolve nessa idéia de criador. E a questão é bem mais complexa. Recentemente o mito de Cura foi aproveitado e tematizado profundamente pelo maior pensador do século XX: Martin Heidegger, na sua obra máxima: Ser e tempo. Dele trata no § 42. (Tendo em vista o profundo sentido que o pensador lhe dá em sua leitura e dialógo com o mito, não será aqui comentado, pois tornaria o ensaio muito longo). Diante, hoje, da ação destruidora desse mesmo ser humano através da expansão irracional da técnica, ocasionando seriíssimos problemas a nossa mãe Terra, tornou-se o mito de Cura também tema central no livro de Leonardo Boff: Saber cuidar. No meu entender, aí o mito é muito mais pretexto para comunicar as idéias prévias do autor do que uma séria reflexão em torno daquilo que é essencial no mito. Inclusive a tradução que usa é de péssima qualidade.
Nunca podemos esquecer de que não há uma leitura canônica e certa. Todo mito propõe questões e estas geram as perguntas que o leitor tem que responder, mas cujo caminho nunca é o mesmo nem é o único. Contudo, o cuidado com e o respeito ao original é uma condição prévia. Também vou encaminhar uma leitura-diálogo com as questões que no mito me provocam. São muitas e seria impossível desenvolver todas aqui no ensaio. É que o mito, numa simplicidade espantosa, consegue condensar aspectos essenciais em que todo ser humano está jogado. Não se trata apenas, no mito, de dar uma origem ao ser humano. Trata-se de pensá-lo a partir da Cura, onde esta não é algo que lhe advém de fora, mas constitui sua essência. E com o enunciado dessa palavra – essência – já nos introduzimos numa rede de conceitos complexos, onde há definições para todo gosto e tendência. Tal palavra se torna básica, fundamental, para as posições filosóficas e teológicas. Mas o emprego que fazemos da palavra essência se funda na questão que é o próprio ser humano, enquanto uma realização poética. Por isso pensamos a essência como o originário. Para tanto é necessário unir poética e pensamento, não como conceitos que são vistos do lado de fora do ser humano, mas como sendo o que lhe é próprio. Por isso, falamos em diálogo com o mito.

O diálogo com o mito.

Em geral, somos ensinados a fazer uma leitura de qualquer texto, procedendo a uma análise, tendo como objetivo explicar o seu sentido, falando sobre ele de uma maneira objetiva, extrínseca, que dê conta do que o texto quis dizer ou do que o autor quis dizer no texto. Trata-se simplesmente de achar a sua mensagem ou o que cada leitor acha que o texto diz. Há outras posições formais e ideológicas, onde o texto é um reflexo cultural ou econômico da época. Essas posições são conceituias, embora dominantes, porque falta-lhes rigor de pensamento e de abertura para a essência originária do poético. Toda análise procede a uma dissecação do texto-forma-organismo ou do conteúdo historiográfico-cultural. Nem se percebe que o mito é uma obra da memória, onde opera o vigorar da realidade. Porém, só se pode dissecar analisando, se previamente se mata o texto-corpo vivo. Pode-se alegar que um texto não passa de uma realização de um discurso numa ordem sintática, que lhe dá o significado. Esse pressuposto já esqueceu algo inicial: estamos, se é um mito ou obra de arte, o que é o mesmo, diante de uma obra. Uma obra só é obra se em sua constituição originária ela opera. O operar de toda obra exige e solicita um diálogo, não qualquer diálogo, mas um diálogo poético. (A distinção entre diálogo poético e outros diálogos não será aqui desenvolvida).

As leituras e o diálogo

Para que o diálogo aconteça alguns procedimentos e passos precisam ser dados. O primeiro é ter um entendimento semântico-literal do que, no caso, o mito diz (ou qualquer obra). Se não se sabe no mito quem é Jove, Saturno, a leitura do mito já está comprometida. Não se pode partir de achismos. No caso, é necessário consultar um dicionário de mitologia. Esta consulta oferece informações, mas ainda não o sentido que no mito se articula. Articular é provocar uma rede de nós, linhas e vazios, em que se entretece poeticamente o que nos limites do mito se faz presença. Jove, para a cultura latina, é o senhor dos céus, é Júpiter, está ligado à luz, à claridade. Já Saturno é o deus Tempo. E a mãe Terra não aparece no mito como um planeta. Terra é Gaia, a Vida.
De posse destas informações, realizamos a leitura do entendimento literal. Esta exige agora um segundo passo para que o diálogo comece a acontecer. Trata-se de apreender no texto poético aquelas palavras-chave, ou nós da rede, que dão consistência estrutural ao mito. São elas os pilares que constituem a sintaxe poética da obra. Na sintaxe poética não se parte da estruturação sintático-gramatical, mas da tensão das palavras com sua força de constituição: a linguagem. Não podemos confundir de maneira alguma linguagem com língua. Inversamente também não podemos separá-las, reduzindo a linguagem a um discurso instrumental, comunicativo, onde a língua se reduz a um código de enunciados. A linguagem é a mãe de todas as línguas, de todas as culturas. A linguagem é a essência originária do ser humano. A linguagem será sempre questão. Por isso, ela nos advém nas questões. E quais são as questões em torno das quais se tece e entretece o mito? Apreender essas palavras imagens-questões e os personagens-questões é a tarefa desta segunda leitura, para que se inicie o diálogo.
Diga-se ainda que não é a posição e forma narrativa que deve determinar o diálogo. É que não podemos reduzir a narrativa a uma posição formal. Para haver posição, já antes o narrador se acha posicionado no horizonte que a própria linguagem abre. Podemos denominar essa abertura a clareira do aberto, na qual todo horizonte acontece. A narrativa se dá, acontece, na tensão que o próprio horizonte estabelece: este indica sempre um limite, origem da forma que a narrativa toma, mas esta não tem vigência senão dentro da tensão em que o próprio horizonte acontece. Todo horizonte é uma linha vertical e horizontal instável entre limite e não-limite. Por isso, a narrativa torna presente, presentifica, enquanto língua, o vigorar do que se dando se retrai enquanto ausência, que é a linguagem. Essa tensão, esse entre, nos advém nas questões. A questão narrativa deve ser referenciada às questões e não e jamais às formas, porque estas não passam do que no vigorar da presença implica a instável linha do limite. A forma é uma linha instável porque a realidade em seu vigorar incessante, em seu mudar irrefutável, não pode jamais ser reduzida a um conceito ou essência abstrata, generalizante. A forma se baseia na concepção da obra como organismo, objeto, cuja ação se determina pelo funcionar do sistema ou teoria em que se estabelece o que é organismo. A presença é o tender permanente a uma plenificação, a uma realização que se dá no operar da própria obra. O que rege esse tender é a Cura. Daí tudo se centralizar, no que o ser humano é, em sua essência, em torno de Cura. Por isso, no mito, Cura é algo muito mais profundo do que os simples significados semânticos da palavra cura. Em latim, cura diz cuidado, cuidar. Em torno de Cura acontece o próprio constituir-se e plenificar-se ontológico do ser humano. Neste sentido, qualquer determinação de gênero ou cultura identitária, para a ontologia do ser humano, é reducionista. Identidade não passa de conceito, não é questão, porque a realidade e toda cultura não cessa de mudar, ser diferente. Trabalhar com um conceito de identidade é paralisar a realidade e qualquer cultura. Só o vigorar de todo acontecer pode nos lançar nas questões. A Cura que vigora em cada ser humano, sempre de uma maneira diferente, porque originária, não se reduz, seja ao feminino, seja ao masculino, seja a uma identidade cultural. O que está em jogo no operar de Cura é sempre o destino de cada ser humano. E este é absolutamente original para cada um. Não dá para reduzi-lo a nenhuma classificação. Na regência de Cura se decide o destino do que cada um deve e consegue realizar. Mas para isso, o ser humano, enquanto Cura, se defronta com questões essenciais e originárias. É isso que passaremos agora a ver.

As questões do mito

O mito está construído em quatro movimentos, muito bem entrelaçados e dentro de uma economia verbal admirável. Cada palavra é decisiva e se articula numa sintaxe poética precisa. A sintaxe poética não se prende às funções gramaticais e aos sentidos semânticos das palavras nem do discurso, que determinam a forma discursiva e narrativa do mito. Pelo contrário, dela advém uma presença vigorante que surge de dentro da força poética de cada palavra, por já estarem vigendo na linguagem, de onde lhe advém o sentido. É o sentido poético, havendo nesta afirmação uma tautologia, pois todo sentido só é sentido se for poético. Porém, este sentido mítico-poético só advém para quem se dis-põe e abre para o vigorar do silêncio, do acontecer da fala do silêncio.
No primeiro movimento poético, vamos ter a narração brevíssima do figurar do ser humano. Por isso, cada palavra é portadora de uma densidade única. E é logo importante dizer que devemos afastar de nossa mente a idéia de criação. O verbo aí empregado é preciso e fundamental. Trata-se de um fingere, que, sabiamente, o prof. Tannus traduz por dar-lhe figura, isto é, há uma ação poética enquanto figurar. Este verbo não diz de maneira alguma o mesmo de formar. No figurar algo advém do vazio à presença. Há uma ligação profunda entre presença e presente. É que na presença o ser se faz tempo-presente e o presente é o ser vigorando enquanto tempo, é uma doação: o tempo dá-se, se torna presente. É impossível desligar a presença do presente, enquanto tempo, daí que a forma jamais diz o vigorar do poético, porque a forma indica os limites em que algo se torna algo e termina, se de-fine, mas onde se esquece o vigorar do tempo, que não cessa de acontecer. Presença é o acontecer do ser enquanto presentificação. É pelo vigorar do tempo que toda presença está permanentemente tendendo à realização, à plenificação. Nada disso acontece com o conceito de forma, tanto que é através desta que se determinam as classificações. Mas classificar é reduzir o que não cessa de acontecer a um sistema operacional de funções. Porém, quem determina as funções é o âmbito do sistema. E o ser, enquanto tempo, jamais pode ser reduzido ou visto dentro e a partir de um sistema.
A palavra portuguesa pre-sença forma-se do latim: prae, que diz o que está antes e o que está à frente, mas no sentido de abertura, de lugar, o entre onde se dá a travessia destinal de cada sendo. Por isso, o radical de presença, sença, provém do latim sentia, que implica o verbo latino esse, isto é, ser.
A travessia, como lugar e tempo, é que inicia a narração do mito de Cura. Cura, personagem-questão, queira ou não, já está jogado no tempo, isto é, se somos figurados por Cura, ela mesma, nós mesmos, antes de sermos figurados, já estamos jogados no tempo. É isso que o mito diz: “Cura cum fluvium transiret...”, na tradução: “Enquanto caminhava através de um rio...”. Aí a conjunção temporal enquanto não se resume a uma partícula classificada pela gramática como conjunção temporal. Indica, fundamentalmente, a nossa condição ontológica como o já estarmos destinalmente jogados no tempo. Também não se trata de um tempo gramatical, pois o tempo aí se concretiza no estar caminhando. Sermos temporais é já radicalmente estarmos a caminho. Mas onde se dá essa caminhada, onde se dá a nossa caminhada? Não é num lugar qualquer. A narrativa poética se serve de uma imagem-questão, muito freqüente em outras narrativas. É um rio, de certo o rio da vida. A própria Cura já se move no rio da vida, mostrando assim o fluir incessante, reforçando a nossa condição temporal prévia a todo figurar. Por isso, Cura serve-se dos elementos que a própria vida-rio já oferece. Quando o escultor figura uma obra de arte, a physis já lhe ofertou aquilo a partir do qual algo vai ser figurado, não é ele que o cria. Quando o poeta “choca” as palavras, ele não as imagina com sua faculdade de imaginar. É a linguagem que lhe oferta as palavras da língua, mas que precisam ser acolhidas na escuta silenciosa do chocar, do fazer eclodir o que já em si está dado, mas que ainda não veio à presença. O fazer eclodir não é um ato do sujeito, agindo como causa eficiente. Não. O que age em todo ser humano, em todo artista, é a Cura. A Cura é um cuidar, desejar, amar o que se quer pelo vigorar da questão. O que radicalmente queremos e amamos é o que é. O que é, antes de tudo, é o Ser. Esse é o sentido ontológico de Cura, ou seja, cuidar, guardar e chocar para que surja a figura. Isso pode muito bem ser visto no famoso poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa. Diz: “O poeta é um fingidor”. Uma leitura superficial e gramatical dirá que o sujeito da oração é o poeta. Porém, este só finge a partir do que nele já vigora: “...é...”. Não é o poeta que põe o é, ele apenas finge. Mas só pode ser poeta fingindo a partir do Ser. É no vigorar do Ser que o poeta se torna poeta e o agir inerente ao poeta pode fazer surgir o que finge, figura, o poema. O que reúne o poeta e o finge é o Ser. Então o verdadeiro sujeito, se de sujeito se pudesse falar, do enunciado é o Ser, pois só este faz vigorar, age. Porém, não se trata, no mito, de um conceito de ser, baseado numa essência metafísica ou num sujeito substancial.
Se o poeta choca as palavras deixando-as vigorar a partir da linguagem, no mito nos é narrado que Cura se torna pensativa. O que é aí pensar? “Vivendo, os homens vão experimentando a paixão de viver e aprendendo com esta experiência. Pensar é a disciplina, a ascese e o ordenamento desta paixão” (Leão, 1997: 145). Enfim, pensar é cuidar da paixão de viver. Lançados no rio da vida, esta se torna questão, pois é no pensar que a questão se torna o desafio do pensar, do experienciá-la enquanto paixão. Cuidar é, essencialmente, deixar eclodir no pensar um figurar da vida.
Mas o que implicam o cuidar e o pensar a vida? É o que o mito no segundo movimento ex-põe. Nossa vida não é uma tarefa da nossa vontade como superficialmente se julga. Outras instâncias a compõem, isto é, outras questões nos envolvem. E de imediato são as personagens-questões: Céu e Terra. Então vemos que o ser humano se compõe em torno de três questões essenciais: Cura, Céu e Terra. Porém, há uma quarta, decisiva, que as reúne e gera a controvérsia: o dar nome. A disputa em torno do nome não quer dizer outra coisa senão que é na e com a linguagem que o ser humano chega a ser humano. Isto mostra o quanto é enganoso a redução da questão da linguagem a uma faculdade no homem: a discursiva, concebendo-a como mero instrumento comunicativo. Não há o ser humano a que depois se agregam algumas faculdades. Não. Ser humano é experienciar-se na linguagem, pois é ela e somente ela que reúne e compõe as demais questões. A própria Cura só acontece vigorando no poder da linguagem. Figurar o ser humano é dimensionar-se na e pela linguagem. Um tal dimensionar (entre-medir) gera uma disputa (pólemos em grego). É que nessa disputa o ser humano advém, se manifesta, na verdade que o constitui, isto é, no dar-se sentido, ou seja, constituir-se poeticamente. O ser humano é a tensão do realizar-se enquanto poiesis no vigorar da linguagem. Poética e Linguagem são o verso e anverso do mesmo ser: o humano. Esse é o fundo da disputa.
É então que comparece um outro personagem-questão, aquele a quem é dado o poder de decidir a disputa. Seu poder é tal que ele e só ele é o Juiz. E não podia ser outro senão o Tempo. É que tempo e ser são um e o mesmo, porque o ser é tempo. Nossa tendência natural é achar que o tempo é algo que está aí à nossa disposição para o medirmos e manipular em nosso proveito. Nosso linguajar nos trai. Achamos que temos ou não temos tempo. -Ainda tenho tanto tempo de vida. -Quando tiver tempo pensarei nisso. E assim por diante. Não é o que o mito nos diz. Nele tudo está dito de uma maneira bem diferente. É ele e só ele a instancia final não só de nosso viver, mas muito mais, de nosso ser. É ele e só ele que de-cide, que , isto é, dita a medida, a Lei. Enganados pelo poder atribuir medidas, medimos também o tempo e até o dividimos em passado, presente e futuro. Quando assim medimos o tempo, em verdade, não o estamos medindo a ele, mas a nós. Nós e só nós é que passamos, mudamos. O tempo não passa nem permanece, não é mutável nem imutável. O tempo é o que jamais deixa de estar e ser vigorando. O tempo é o próprio vigorar. E vigorando, é. Assim sendo, viver é deixar-se tomar pelo vigorar do tempo. Realizarmo-nos é caminhar do princípio até o fim enquanto uma caminhada de plenificação, ou seja, do chegar e advir ao vigorar, que é o pensar acontecendo. Cuidar, pois, enquanto caminhar, é assegurar a plenitude de realização. É pensar. É amar. “Amar é pensar” (Caeiro, 2004:98). Mas a realização, na sentença do tempo, é mostrar que há um percurso, um entre. E este entre é aparentemente um pertencer, seja ao Céu, que lhe infundiu o ânimo, seja à Terra, da qual é configurado por Cura. Essa disputa, essa controvérsia, entre corpo e ânimo é enganosa. É na e com a linguagem que se decide a essência originária do ser humano, pois é dela e com ela que advém o seu sentido e verdade. O ser humano é uma tarefa poética de se dar sentido e verdade, na medida e pela medida da linguagem. Seu nome é linguagem. Por isso toda Cura é Cura da linguagem. E assim sendo, estamos e somos sempre a caminho da linguagem. “A linguagem é a casa do Ser. Nela habita o homem. Os poetas e pensadores lhe servem de vigias” (Heidegger, 1967: 24).
E o mito se encerra com um quarto e último movimento. Nele, por decisão do Tempo, lhe advém finalmente o Nome. Isto é, ele será o que é em virtude do vigorar da linguagem. Ter um nome é deixar-se dimensionar em seu ser pela linguagem. É neste e só neste sentido que a “linguagem é a casa do Ser”. Casa é o sentido do ser humano na guarda da mãe Terra e no acolher o Céu. Casa é linguagem. Esta nos guarda, aguarda e acolhe em nossa caminhada. O nome e só o Nome é decisivo, pois só então o ser humano se constitui em ser humano. Nesta locução ser humano, o atributo não é o decisivo, como normalmente se pensa. Todo atributo só pode ser atributo se vigorar no e a partir do ser. O humano só chega ao humano se se dimensionar pelo ser. É o que o mito nos diz de uma maneira muito decisiva, ainda que sutil e enigmática. Sutil e enigmática porque o ser humano e todos os saberes que se constroem em torno dele partem sempre das aparências. Todo conhecimento é aparente e transitório, porque baseados no que aparece nas aparências sem o vigorar. Saber sem o vigorar não é saber. Nunca estão voltados para o essencial originário. Essencial é o vigorar do que não passa nem permanece, mas do que presentifica e realiza em plenitude o que o homem é: um sendo do ser. E de onde nos vem esse engano, essa aparência? O mito o diz: “... chame-se-lhe homem, porque parece ter sido feito do húmus”. Todos sabemos que o tempo é implacável, diante dele e nele não há como viver em aparência. Portanto, quando ele diz, na sentença, que o homem “parece ter sido feito do húmus”, isso não passa de aparência.
E agora só nos resta uma questão, diante dessa verdade proclamada pelo juiz implacável que é o Tempo: Se isso é uma aparência, em verdade, de que é que é que o ser humano é feito? É de nossa constituição de vida enquanto travessia estarmos o tempo todo à pro-cura. E nos experienciamos em muitas pro-curas, até descobrirmos, se descobrirmos, que uma só e só uma é a pro-cura única e necessária: a Cura. É nesse sentido que curar e salvar radicam no mesmo. Para tal é necessário deixarmos de pensar que acharemos a Cura quando acharmos a resposta, quando, em verdade, se achássemos uma resposta deixaríamos de viver. Porque toda resposta não passa de aparência. A Cura é nossa questão, porque a Cura deve ser a nossa única pro-cura. Mas então esta exige uma renúncia às pro-curas, para nos deixarmos tomar pela única pro-cura necessária, aquela que deve ser única para nosso querer. Então cuidar e procurar enquanto querer deve ser o querer do que em nós já sempre vigora: o que somos. E o que somos essencial e originariamente é questão. Viver em procura é deixar-se tomar pela questão, que diz a essência originária do querer. E então Cura e questão serão um e o mesmo. É que no querer da questão a cura se plenifica. Nesse horizonte, a travessia entre vida e morte é a difícil caminhada de renunciarmos a nossa vontade e poder para nos deixarmos tomar pelo único necessário em todas as procuras: a renúncia ao ter para vivermos e experienciarmos a liberdade de ser, simplesmente ser. Ser então por inteiro, integralmente, em plenitude, dimensionados e cuidados pelo que nos foi destinado: sermos no ser para sermos o que temos, que nos foi dado: nosso destino. E então adviremos ao nosso originário: o Tempo, onde caminhamos e por ele e para ele estamos sempre a caminho. Então Tempo e Linguagem são um e o mesmo. Sermos temporais é a maior dádiva que podemos ter para ser. Livres das aparências e das procuras circunstanciais, devemos reconduzir nossos saberes ao saber essencial e único: experienciar o Tempo enquanto Linguagem para sermos essencialmente livres e realizados. Só assim seremos poéticos, porque ser poético é ser realizando-se enquanto libertação. Temos que nos livrar das procuras aparentes para nos libertarmos para o que nos foi destinado e nos plenifica. Só a liberdade realiza e plenifica. Eis a demanda e tarefa poética enquanto Cura. Então a Cura não será um bem, será o Bem. O Bem é a liberdade sem atributos.

A experirenciação do mito

Há, finalmente, uma terceira leitura que só pode ser feita enquanto ex-perienciação. Ao levantarmos e examinarmos as questões que o mito coloca devemos nos perguntar: Afinal o que todas essas questões querem dizer? O que está em causa e nos quer fazer pensar o mito? Que verdade e sentido aqui advêm e acontecem? A resposta a essas perguntas só se instala no instante em que começar a brilhar em nós o que o mito não diz, mas quer dizer em tudo que diz. Diante de nós temos sempre um texto-obra-língua onde acontece uma experienciação de retraimento, que nos atrai em todos os empenhos de respostas e perguntas. Somos então provocados a pensar por um pensamento que é também nosso, que tem algo a nos dizer a cada um de nós mesmos. É quando então nos pomos a caminho da linguagem, onde somos jogados na terceira margem do rio, para que “aquilo que não havia comece a acontecer”. É a experienciação por cada um do que no mito se dá, retraindo-se, uma retração de máxima proximidade.
Regidos por Cura, nossa vida se desdobra em muitas procuras. É de nossa condição humana. Porém, jamais podemos deixar, no cuidar de tantas procuras, o ter sempre no horizonte a finalidade de nossa travessia. As procuras devem ter sempre em vista o sentido e verdade, que se oferta e se retrai, e, por isso mesmo, nunca devemos perder o sentido do caminho. Nossa vida se entrelaça em quatro procuras essenciais, em que todas são importantes, mas em que todas devem tender, enquanto cuidar, ao que é digno de ser cuidado. A vida é uma doação preciosa, onde nada é supérfluo se soubermos nos manter na paixão de viver. Mas então viver a vida enquanto paixão é deixar-se tomar pelo vigorar do pensar, do cuidar. Notamos então que há quatro cuidados fundamentais.
Somos todos e cada um de nós um ser em liminaridade e complexo, mas unos e harmônicos. Todo limiar já nos projeta em situações concretas de escolhas e decisões. Delas nos falam os quatro cuidados essenciais. Compreendê-los é pôr-se em estado de pro-cura e escuta.

1- O Cuidado profissional : em meio às coisas e outros entes do mundo e no mundo, em meio às relações intra-mundanas, temos que sobre-viver, pois nos deparamos com a necessidade. Porém, esta é uma doação da liberdade da Cura. No sobre-viver se manifesta o nosso Cuidado profissional como pro-cura de e livre apelo de Cura. O profissional aparece assim como algo essencial, desde que realizado no horizonte da pro-cura da Cura, onde nada se torna formal, funcional ou mecânico, mas apenas e tão somente como uma faceta e possibilidade necessária do livre apropriarmo-nos do que nos é próprio, sem cair no impróprio e no estranho. Ele se expressa como trabalho e co-laboração, que manifestam nosso ser livre, porque fundados na Cura. No e pelo trabalho advém a linguagem. E somos como cuidado profissional no e pelo trabalho/linguagem da Cura.

2- O Cuidado afetivo: todo cuidado aponta para uma possibilidade familiar, porque somos fundamental e essencialmente um diálogo, onde um eu e um tu fazem da con-vivência uma pro-cura afetiva e efetiva de realização com o outro/a como oferta e apelo da Cura. A convivência amorosa e familiar se inscreve no originário inaugural de Eros, no vigor do qual nos realizamos como compaixão, fraternidade e amor. E fazemos de Eros a livre realização de Thanatos. O cuidado afetivo amoroso-familiar é o que nos afeta, concerne e inter-essa em todos os nossos empenhos e desempenhos de ser e não ser, dialogando. Ser afetivo é ser atraído pela Cura enquanto penhor de todo cuidar de, ser desvelo, na con-vivência do amor. No horizonte de todo afeto nos apropriamos do que nos é próprio como medida e diálogo, reunidos na e pela linguagem da Cura.

3- O Cuidado do pensamento: pensamento é uma questão de experienciação na e de Cura. O cuidado do pensamento nos envia nas vias de ser, crer, conhecer e espera pela fala do Silêncio, que é a linguagem para além do lógico e ilógico. O cuidado de pensamento é a obediência (ob-audire) à Cura, enquanto proximidade e vizinhança do Nada. Nele nos advém a alegria na dor, o amadurecer plenificador no sofrimento, Eros e Thanatos, a realidade nas peripécias de realização do pensamento. A Cura do pensamento é atração incessante do que se retrai como vigência do Não-ser em tudo que somos, sendo. O cuidado do pensamento é a tarefa – pensum – que nos foi destinada enquanto ação integradora e apropriadora do que nos é próprio. Nele e por ele a Cura nos advém como linguagem do pensamento da Cura.

4- O Cuidado do sagrado: o sagrado é o originário de todo mito, de toda poesia, de toda religião, dando-se e manifestando-se nos ritos, nos poemas, nas liturgias. O mítico e o poético como palavras manifestativas trazem já dentro de si o mistério, o que como silêncio possibilita toda fala e escuta. A pro-cura do poético é o cuidado que nos projeta nos caminhos do mistério, atraídos pelo que ressoa e se faz presente em nós como voz da linguagem, que se retrai enquanto oferta de memória e tempo originários, a Cura. A Cura é o que se cala e fala em tudo que se diz e se quer dizer. O sagrado mítico-poético é a experienciação do mistério da voz do silêncio. Nela, o cuidado do sagrado se dá como escuta da voz da linguagem da Cura.

Ser o próprio

Cada cuidado pode realizar a Cura de alguma maneira, porque não somos um bolo dividido em quatro pedaços. E cada cuidado tem a sua doçura. O amor é a simplicidade e ciranda dos quatro, na qual cada um alegremente se dá e retrai de modo di-ferente. No e pelo amar se dá toda Cura. É o que nos diz toda experienciação de poíesis, como esta do pensador poeta:


Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe
quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

(Pessoa, 1965: 289)

Bibliografia

CAEIRO, Alberto. Poesia Alberto Caeiro /Fernando Pessoa. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. “Definições de filosofia”. In: Rio de Janeiro, Revista Tempo Brasileiro, 130/131, 1997.
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguilar, 1965.
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.