14 abril 2009

A Poética e a medida

 
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O ser humano e a realidade movem-se numa dobra misteriosa: mudam e permanecem. Rosa no maravilhoso conto “O espelho” afirma: “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (Rosa, 1967: 71). Embora muitas vezes nos pareça que está tudo parado, que há somente repetições, o autor vai justamente afirmar o contrário: há sempre algo acontecendo como milagre. Que milagre é esse? O milagre do mudar e permanecer. Estes constituem uma dobra e não e jamais uma dicotomia. Lançados na dinâmica do tempo é mais fácil, aparentemente, optar pela mudança. Digo aparentemente, porque é aquela mudança superficial e oposta a toda permanência. Dualizar o real é a atitude mais normal e corrente. Apreender a dinâmica do real em seu acontecer é o mais difícil, pois nos parece que há muita repetição, havendo a aparência de que os dias são iguais, de que as pessoas são sempre iguais, de que a noite e os dias são sempre iguais, enfim, de que não mudamos. Embora...

Retrato

Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro
nem estes olhos tão vazios
nem o lábio tão amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil;
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

(Meireles, 1987: 84)

A mudança é certa, simples, fácil. Mas não é tudo. Temos que ter o cuidado de não separar o como é dos atributos do que é, não podemos esquecer que o que é é sempre um sendo do ser. Para isso, há o espelho, o entre sendo E Ser. Houve, constata entristecida, uma perda na experienciação do sendo enquanto vivências estéticas atributivas. Não é a perda de algum bem descartável. É a perda da vida essencial. É a perda do que lhe é próprio, certo, inconfundível: a sua face. O que é a face aí poeticamente referenciada? Não são as idéias sem o eidos? E ela, nós, nos perguntamos: Em que espelho? Não basta viver, deixar a vida fluir, num dedicar-se exaustivo ao que muda e passa, às novidades, às modas, às curiosidades sem a cura do próprio, à ânsia de curtir externamente a vida no e pelos atributos. É necessário a ânsia do espelho, onde temos um encontro marcado com nossa face. Então a vida deixará de ser apenas vida vivida e se tornará no e com o espelho a vida experienciada. Não há nem deve haver uma dicotomia entre vida vivida e vida experienciada. As duas estão unidas indissoluvelmente no espelho, no “entre”. De “entre” vem interior. Este não é nem deve ser o subjetivo oposto ao objetivo, ao exterior. Não deve ser a oposição dual de corpo e alma, terra e céu, vida e morte, mortalidade e imortalidade. E assim por diante em todas as dicotomias. Não. O entre enquanto espelho é a medida. O “in” de interior é o “in” do entre. Este é o que somos e que jamais pode ser confundido com nosso “eu” oposto ao que cada um é, a cada sou. O sou é que funda o “eu”. Sou aí é verbo. Na substantividade do eu perde-se a verdadeira face. No delírio incessante das pro-curas externas ou interno-subjetivas, mutáveis e passageiras, colhemos uma perda, porque não quisemos ser, só ter o que não somos, quando a medida é o atributo. Ser é realizar o “eu” pelo “sou”, porque aí estaremos sendo o Ser do sendo: nossa verdadeira e própria face. Realizar aí é o verbo da historicidade e não das meras experiências estéticas. A renúncia ao passageiro e descartável não tira. Dá. É a pobreza livre e essencial, a medida. Dá porque nesse dar dá-se o Ser do sendo: o que nos é próprio, a medida. E então a mudança não se torna algo externo nem interno. A mudança é sempre a presença do simples, do certo, do fácil. O nada é a simplicidade do Ser. É que mudamos para permanecer no originário, plenificando nosso sendo. Plenificar diz aí realizar a medida do Ser, quando então a forma deixa de ser o limite para ser mais: o não-limite de todo limite. O não-limite de todo limite é o humano do ser humano.

Perceber a mudança profunda é o mais difícil, como nos diz poeticamente Cecília Meireles. Mas ela acontece. Em verdade, a realidade está sempre mudando. Tirar duas fotos iguais é impossível, ou como diz o mesmo Rosa: “Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes” (Rosa, 1967: 71).

Se só houvesse essa mudança irreversível e contínua, o ser humano e a própria realidade seriam impossíveis. Justamente por isso mesmo a questão da vida como mudança e crescimento tem como contrapartida algo que permanece e é sempre certo: a morte. Mas o que é a permanência enquanto morte? Na morte cessa a mudança? Mas também cessa a vida? Nesta dobra se coloca a questão maior. Se o tempo é vida, também o tempo pode ser permanência? Ou: o tempo pode ser mudança e permanência? Não é por isso que falamos frequentemente em a-temporal? Que falamos em eternidade? Não é esta um tempo que muda durando sempre, eternamente? A mudança, a própria vida nos joga numa angústia abismal. Movemo-nos já desde sempre num abismo. Viver a mudança é bom, muito bom, mas ela tem um encontro marcado, a cada instante de mudança irreversível, com a angústia da permanência, da eternidade. O que é isto – a eternidade? De que posição e horizonte falar de eternidade? Mas será que só se pode compreender e apreender a permanência como eternidade? E de que posição falar de eternidade, nós que estamos irreversivelmente mudando? Como falar de fora do tempo, que não cessa de fluir e mudar? Como falar de fluir e mudar se não houver posição, isto é, limite e relação? Só porque somos finitos é que no horizonte projetamos a eternidade. Adotar o ponto de vista da eternidade é fácil porque é conceitual, mas não será num operar como a avestruz, enfiando a cabeça na terra e fazendo como se a realidade não continuasse fluindo? Adotar a dicotomia de corpo e alma, numa posição de negação ou afirmação, também muda alguma coisa em relação à questão? Em ambos os casos não se está ignorando o milagre da questão? Não é isto que nos diz Rosa, quando afirma: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.

Mas a questão da permanência não vive só nesse âmbito extremo, a presença irreversível da morte como a permanência certa. Até porque a morte não é algo que um dia vai chegar. O grande mistério é que ela desde que nascemos já chegou, só fazemos como se isso não fosse verdade, como se a vida é que fosse algo certo, imediato e permanente. Sim, a vida como vida também tem uma permanência. Que permanência é essa da vida, da realidade? Essa permanência é real e tudo o que fazemos já o fazemos dentro de um horizonte de permanência. Se a vida muda, e muda, também constatamos que sabemos que muda e que esse saber permanece como referência até para sabermos que a vida está mudando, pois se a vida só fosse mudança nem saberíamos que haveria mudança, porque não teríamos nenhuma possibilidade de referência, relação e limite.Compreender a medida, a questão, é diferenciar e discernir referência, relação e limite. Mas só podemos discernir porque já nos movemos na medida do criticar (krinein). É a medida da Poética: o que se manifestando se vela. Então a questão da permanência e mudança passa pelo saber. Porém, já nos advertiu Parmênides na sentença III: “ O mesmo é saber e ser”. A questão de permanência e mudança passa pelo ser e pelo saber, mas enquanto são o mesmo. Que é isto – o mesmo?

O mesmo de mudança e permanência foi sempre a grande questão para o ser humano e ele a procura desde que é ser humano, isto é, ser ser humano é já estar lançado nesta procura. Sabermo-nos em segurança é apreender e compreender o que é regular e previsível. E isto na relação conosco mesmo, com os outros e com as coisas. A regularidade do comportamento de tudo é o que nos dá certeza e confiança. Por outro lado, tudo que foge a padrões previsíveis de normalidade, tudo que é inesperado e incontrolável é sempre visto com muito medo. Viver é viver no império da medida, da lei, do padrão. Talvez isto cause estranheza também, frente ao livre agir. Mas se pensarmos um pouco em nosso cotidiano veremos que todo ele está estruturado em cima de comportamento regulares. E estas regularidades é que guiam nossa vida. Imaginemos que saímos de casa e ninguém segue as leis do trânsito. Seria impossível viver. E assim em tudo. Até a sucessão das estações e dos dias e da noite. Enfim, tudo está estruturado por leis, por padrões de ação. Mas tais leis e normas são uma construção humana ou são algo inerente à realidade, à natureza, seja a nossa própria natureza interna, seja a natureza de um modo geral? A regularidade deste cotidiano, a realidade enquanto os fatos visíveis, não é a realidade determinada pelas relações sociais enquanto funções? As funções são o funcionar do sistema enquanto sistema. Se mudar o paradigma do sistema mudam as funções das coisas, das formas. Função é convenção. No Japão o branco indica luto. No Ocidente isso é função da cor preta. Função ou forma é uma lei de relacionamento causal num sistema.

Todos os fenômenos são regidos por leis. Porém, estas existem na medida em que se fundam num conhecimento. E este precisa de posições, perspectivas e horizontes, enfim, precisa de limites e relações. Além destas há também as referências. Em nossas vidas tomamos ou deveríamos tomar sempre como princípio do agir, das escolhas, alguma ou algumas referências. Mas em geral somos guiados pelas funções ou formas de relacionamento. É que toda função serve para algo, tem uma finalidade. É dentro desta perspectiva que se pergunta sempre: Qual a função da arte? Ter função é servir para alguma coisa dentro de um sistema causal. Isto causa aquilo. A obra de arte é sem causa, é sem por quê. A obra de arte é obra de arte porque opera. Ela não causa nada porque não explica nada, daí a inutilidade de toda análise explicativa:

..........................................................
Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.
...............................................................................
(Caeiro, 2004: 109).

As referências constituem as medidas do agir, do viver e do procurar, do questionar, dialogar e experienciar. Nas referências não há causas. Há metábole da realidade.

Mas qual é a medida essencial da vida? O que sempre atormentava os heróis trágicos em seu agir – a questão - era a hybris, a desmedida ético-poética. O que é a medida para que possamos chegar a agir na e pela des-medida? A medida não pode ser compreendida em abstrato: uma norma, um princípio, um conceito. Esse foi o equívoco que sempre desorientou a metafísica sofística e a crítica na modernidade. É que a medida se tornou a medida do homem. Esse isolamento da medida acabou por sobrepor à realidade a realidade da idéia, do princípio, da lei, do gênero etc. que deu origem, no exercício da crítica, ao julgamento, ou seja, o estabelecimento de princípios ideológicos, estético-formais, sofístico-retóricos, morais, onde fundamenta o julgamento. E isso é o que predomina em geral.

Porém, se nos voltarmos para a vida na sua riqueza, constataremos que ela não é algo abstrato. Temos sempre presente e no presente e como presente um “sendo”. Viver é sempre estar sendo, para além e aquém de formas e limites, das perspectivas do horizonte, porque o horizonte é a dobra do ver e não e jamais o duplo enquanto proposição do sendo, onde se reúne formativamente, não o sendo e sua manifestação de limite de não-limite, mas o sujeito com seus atributos. É o juízo estético-proposicional e não o deixar-se tomar pela medida da palavra poética. Toda palavra poética se dá enquanto diálogo do lógos e percepção originária (dia-noia) do nous. Pois, como nos diz o pensador Parmênides: “Ser e perceber são o mesmo” (Frag. III). Perceber é pensar e pensar é amar, porque “Amar é pensar ” (Caeiro, 2004: 98). Ao sendo os gregos denominaram “on”, o particípio presente do verbo einai. Este sendo foi recebendo traduções no latim que nos afastaram dessa simplicidade do misterioso estar sempre sendo. No sendo tudo se concentra. Mas o que rege esse sendo é a sua medida, ou seja, o que no sendo é sendo é a sua medida. E então os pensadores originários pensaram essa medida como anagké (necessidade). Mas se do ponto de vista da medida temos uma medida que se torna aquilo que o sendo enquanto sendo tem como medida, podemos dizer que a medida do sendo é a moira (o quinhão, o próprio em relação ao genos). Nesse sentido, a medida é anagké, enquanto esta é uma arché, aquilo que vigora na moira e no genos, enquanto o sempre vigente como o que permanece na mudança e é, ao mesmo tempo, a própria mudança. Mas uma tal medida como moira acontece já enquanto Genesis: nascimento, origem genética, não enquanto forma e limite. Todo nascimento já traz a sua moira, ou seja, a sua medida.

Tentar compreender o sendo é lançar-se na compreensão da moira. Mas é uma compreensão que não consiste num exercício abstrato. Muito pelo contrário, compreender aí é realizar a moira enquanto o que é próprio, como já nos advertiu Parmênides: “O mesmo é ser e compreender”. Então compreender sendo e sendo na compreensão é achar o horizonte, a partir da medida da moira (a dobra do sendo), da krisis, do julgamento como critério, como medida. E o horizonte ou medida do sendo vivente é a moira.

Pensar a medida é pensar a moira. Pensar é trazer ao krinein (questionar, criticar, discernir, dia-logar) a moira do sendo. Sendo o sendo o desdobrar-se da moira, já o próprio sendo é o horizonte do krinein (questionar), ou seja, já a moira é a possibilidade de krinein (questionar enquanto dialogar).

Em última instância trata-se de na questão da medida, em que já sempre nos movemos e nos move, pensar a moira, o que como medida é a medida do que nos é próprio. A moira do sendo vai estar ligada ao limite, à relação, tendo a posição, a perspectiva e o horizonte como componentes, implicados sempre na medida como referência. A medida como referência, ou seja, a moira, é a referência de permanência e mudança. A medida é sempre questão e como questão foi dando origem a diferentes critérios, até porque sendo a medida do sendo a moira, não há uma medida para o sendo uniforme e abstrata ou seja, a medida da forma. Toda forma é forma da não-forma, do não-limite. É que esse “não” não é entitativo, vigora no nada, o véu do Ser do sendo. Retomamos Rosa: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.

O critério recebe muitos sinônimos no percurso ocidental, mas é fundamental atentar sempre para as questões em que se move um tal vocabulário e não se perder nos desvios dos conceitos, mas ser renitente e disciplinado no retornar sempre às questões, que são sempre originárias. A disciplina pede o permanente avio dos envios das questões, para achar a via como caminho (metá-hodos) em que o próprio do real se dá como o sempre permanente e atual. Nesse entre-laçamento comparecem: sendo, limite, critério, medida, dobra, travessia, amor, todos vigorando no “entre”, fonte e foz de toda mudança e permanência. O “entre” é a terceira margem do rio acontecendo. O espelho como terceira margem é o espelho, a medida.

O discernir, voltando-se para ele próprio, criou diversas palavras que indicam uma posição, seja teórica, seja epocal: critério, idéia, teoria, princípio, essência, cânone, paradigma, suporte, padrão, regra, forma, lei, medida. Estas diversas posições originam-se de uma de-cisão ou pela dobra ou pelo duplo. É possível não de-cidir? Isto quer perguntar se é possível nos movermos no real sem o limite. Mas o que funda o limite para que possa haver uma de-cisão? Nesse quê está toda a questão de: poética, crítica e real. Nesse quê está todo o operar da verdade enquanto sentido do agir. Pro-curar esse quê é fazer o que sempre toda a filosofia fez: deixar-se tomar pelas questões, isto é, deixar-se tomar pelo “taumadzein”. Deixar-se tomar, pôr, posição, perspectiva, horizonte, limite e medida, eis o âmbito do caminho em que já estamos sempre jogados. Deixar-se tomar para tomar posição é já se abrir no aberto para a escuta e a visão do que se dá a ver e a ouvir. Não é nossa perspectiva que o dá. Só por se dar é que podemos ver e ouvir. A esta posição os gregos denominaram teoria, que não é a teoria da ciência e da perspectiva. A teoria da perspectiva não é a perspectiva da teoria: o que alguém por ver narra. O operar da obra de arte é mais do que o narrar do narrador. Não há narrador sem o que na perspectiva se dá a ver, sem o que na obra opera: a verdade da não-verdade. Ou como nos diz Rosa no conto “O espelho”, repetindo a citação: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. Ver o milagre é a possibilidade do narrar e dar forma à perspectiva. Porém, isto nunca é uma de-cisão do narrador. É que então o operar não é o operar da forma, mas do milagre que não estamos vendo. É este não ver como milagre que possibilita o ver do autor e dos leitores, uma vez que o narrar é o vigorar do dialogar. O lógos é a palavra poética. Então tanto ouvir como ver já se movem no krinein. Portanto, qual o âmbito do krinein?

Krinein é o questionar acontecendo como dialogar. É que no questionar a questão é o originário (permanente e atual). Portanto, o krinein é a pro-cura do originário, é a pergunta pelo originário como fonte de todo krinein, ou seja, como o critério pro-curado: a media do sendo, do genos da moira. Daí que no krinein como medida se pro-cura o originário como fonte de toda verdade. Mas a fonte e verdade de toda verdade é a não-verdade. Esta é que dá o horizonte da krisis, ou seja, do julgamento, da de-cisão, onde o valor ético-poético (este é a medida ou critério da krisis, da proposição) é a proclamação e afirmação da verdade, porque tem como medida o originário em que se dá a questão do questionar, na pergunta. Mas perguntar pela verdade do julgamento é perguntar pela realidade e não simplesmente pelo verdadeiro da proposição, enquanto coesão e coerência. Para além destas existe também o paradoxo e a metáfora, que são muito mais do que meros recursos retóricos.

Pensar tal critério não consiste numa simples escolha de teoria, suporte, arquétipo, paradigma, cânone, idéia, princípio, essência, padrão, regra, lei. Estes podem variar no tempo como posições formais, ideológicas e estéticas. Tal critério será sempre externo, funcional, operacional-causal e explicativo. E será avaliador para classificar, admitir ou negar. Na escolha do critério, o que somos como a possibilidade de nos apropriarmos do que nos é próprio já nos implica e, portanto, não pode ser apenas externo nem, dicotomicamente, só interno. Desse modo, um critério nunca serve para estabelecer relações e formas de juízo avaliativo. Na relação já vigora uma intencionalidade que se mede pelo critério, sendo este prévio. Disso resultarão sempre conceitos, traduzindo universais abstratos. Como critérios universais abstratos (conceitos) é que surge o variado vocabulário de interpretação sofístico-retórica e metafísica da realidade: teoria, suporte, arquétipo, paradigma, cânone, idéia, princípio causal, essência, padrão, regra, lei, fundamento, causa, perspectiva, símbolo, alegoria.

Somos, cada um é, um sendo, um entre-acontecimento poético-apropriante. Todo sendo vige nesse horizonte vivo e originário. Portanto, como sendo há sempre uma referência de arché e telos, de zoé e bios. É o con-creto poético (que nada tem a ver com a experiência dos fatos ou estética). Em termos de pensamento poético, cada sendo é a afirmação e realização do que é próprio (autopoiese). Este auto é a medida.

Mas então qual é concretamente o critério se não é nem pode ser aquele da relação? O critério deve ser aquele em que já se move desde sempre o sendo, todo sendo enquanto referência: a de genos e moira. Pensar o critério da referência é pensar o critério originário. Neste, o sendo sempre acontece como questão e não e jamais como conceito, porque na questão sabemos e não-sabemos, não abstratamente, mas con-cretamente, experiencialmente no círculo poético de desvelamento e velamento. Se o krinein é questionar, o critério é a questão. E a questão originária, enquanto entre-acontecer poético-apropriante, é sempre a referência de Ser e essência-originária do humano. É a questão da dobra em que se dá a moira do genos.

A tradução tradicional de moira é destino. Mas o que compreender como destino enquanto a medida da dobra de ser humano e Ser? A moira não diz apenas um destino pessoal, aquele quinhão que cada sendo recebe. Toda moira provém originária e concretamente de um genos. E este, como Gênesis, diz do nascer em que se dá toda a physis. Porém, não podemos esquecer que a physis ama velar-se. A própria physis se dá uma medida: o amar. O amar é o a-ser-pensado: o critério, a medida. Então moira se funda numa medida que nos mede como questão não só pessoal e social, mas igualmente epocal, ou seja, como destino histórico. Toda época enquanto destino histórico é o acontecer poético da realidade. Por isso, todo sendo já traz em si o que enquanto destino lhe é destinado e, ao mesmo tempo, a sua relação e referência com o que historicamente se dá. É a memória destinal enquanto a dobra da physis, cujo originário poético é o amar. É a medida poética enquanto a poética da medida. Esta acontece nas e como obras poéticas, em todas as obras de arte, porque é seu originário.
Bibliografia

ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 3.e. Rio de Janeiro, José Olympio, 1967.
MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar: 1987.
CAIEIRO, Alberto (Fernando Pessoa). Poesia. São Paulo, Cia. das Letras, 2004.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002.

12 abril 2009

Poética: o insólito e os gêneros


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Os grandes poetas sempre se movem em torno de uma profunda Poética do insólito. Mas o que compreender aí por insólito? Trata-se de gênero, conceito ou questão? E o que diz aí Poética? Pode haver uma Poética do insólito? Pode, desde que o insólito seja a própria Poética. Então Poética não pode ser modelo ou conjunto de regras através das quais se avaliam e definem os gêneros. Numa leitura e tradução equivocada do livro Peri poietikés téchnés, do pensador Aristóteles, os gêneros passaram a dominar a leitura das obras de arte, sobretudo as de literatura e poesia. É um grande equívoco. Devido a quem? Devido aos sofistas através da invenção da gramática e da retórica e da determinação da metafísica pela Sofística. Elas funcionam sempre dentro de estruturas e de regras de relacionamento. Mas todo relacionamento se dá na proposição atributiva. Logo, também as obras de arte. Então não há gêneros? Sim e não. O maior problema para entender isso e até para me comunicar no vocabulário vigente está no fato de que há dois mil e quatrocentos anos o Ocidente foi sendo moldado pela Sofística e o que se ensina nas faculdades a propósito da literatura não passa de uma Sofística emoldurada pela Retórica e formada por conceitos metafísicos. Toda Teoria Literária e seu vocabulário e todas as Correntes Críticas têm por fundamento os conceitos metafísicos e sofísticos.

Por detrás do surgimento da Sofística está uma disputa entre os sofistas e a filosofia. Se bem notarem, as duas palavras têm em comum a palavra grega: Sophia. A questão disputada diz respeito ao conhecimento ou saber. Sophia é sabedoria e sophos é o sábio. Mas quando alguém tem e ensina conhecimentos já é sábio, já se move necessariamente na sabedoria? E a sabedoria pode ser ensinada ou não?

Porém, a questão do conhecimento diz respeito a duas questões prévias: a realidade e a verdade. Entre a Sofística e a Filosofia há uma terceira personagem, aquela que nos interessa mais especificamente: a Poética. O lugar de encontro e desencontro destas três realizações é a referência de ser humano e Ser. É que neles vai estar a medida do que é realidade, verdade e conhecimento. O que é o ser humano? O que é o Ser? Realidade, verdade e conhecimento são diferentes segundo a Sofística, a Filosofia e a Poética, porque as três têm posições diferentes sobre o que é o ser humano e o que é o Ser. É que realidade, verdade e conhecimento são questões e não podem jamais serem reduzidos a conceitos como o fez a Sofística e a Metafísica.

A sofística apropriou-se da reflexão filosófica, reduziu-a a conceitos metafísicos e, através da Retórica e da Gramática, apropriou-se da Poética dimensionando-a também pelos conceitos. É a Poética sofística e metafísica. O conceito é a questão sendo tomada pela medida do ser humano e não do Ser. O que se ensina hoje sobre literatura não passa de posições e conceitos retóricos e gramaticais de uma Sofística dissimulada. Nessa dissimulação o próprio da Poética ficou esquecido, pois o próprio da Poética são as questões. Quais questões? O que é a realidade? O que é a verdade? O que é o conhecimento? Nessas e com essas questões está em questão a referência de ser humano e Ser.

Mas por que as questões são diferentes dos conceitos? A questão só se torna verdadeira questão quando quem questiona já se deixou envolver por isso – o que na questão se dá como questão. Propriamente o que é isso – é a questão. Então quem questiona só pode questionar se no questionar se questiona. Para o questionar não basta conhecer, é necessário ser o que se conhece. É esse o profundo sentido da questão quando afirmamos – e não poderia ser de outro modo – não somos nós que temos as questões, mas são elas que nos têm. Só podemos querer questionar porque já desde sempre vigoramos nas questões. E três são as questões que estão por detrás da literatura e dos gêneros, e do problema se há um gênero insólito, isto é, se o insólito é um gênero. Por isso, o insólito está em questão. Como, porém, tentar responder positiva ou negativamente sem tematizar antes as três questões: realidade, verdade, conhecimento? Sem pensar antes o que é literatura como obra de arte? E esta a partir da referência de ser humano e Ser?

Quando se cai na epistemologia e gnosiologia da Sofística, parece que o caminho para se resolverem as questões da realidade e da verdade consiste em fazer o caminho do conhecimento advindo das proposições. Nestas se fundam os conceitos. Estes resultam da relação de um sujeito com um predicativo, de um substantivo com um adjetivo, de uma forma com um fundo, de um significante com um significado. Mas ter tal conhecimento é dominar a relação de causa e conseqüência, é dominar a finalidade e a utilidade do conhecimento, enfim, dos conceitos. No e pelos conceitos se arquiteta a formação do homem. É a Paidéia sofística. Tal utilidade e finalidade formativa é a novidade da Sofística em relação à Poética e ao Pensamento originários. Estes se movem na sabedoria do ético e do poético, que jamais são passíveis de aprendizado e ensino. Só de aprendizagem.

Os conceitos movem-se numa essência essencialista e não numa essência originária. O caminho da essência essencialista, os conceitos, foi o caminho da fundação e afirmação dos gêneros, surgidos, pela mão da filosofia através da lógica conceitual e genérica. Tomemos o exemplo da literatura. Como arte, do ponto de vista da retórica da Sofística, ela se subdivide em gêneros. Por exemplo: Literatura trágica, lírica, narrativa etc. Dessa subdivisão genérica, que atende somente ao aspecto do conhecimento atributivo, predicativo, podemos fazer uma nova subdivisão: Narrativa épica, romanesca, insólita. Chegamos finalmente ao nosso terreno através do quê? Dos adjetivos, dos atributos. Mas será que os atributos são a realidade e a verdade? São a essência originária da obra de arte? Dependendo da posição, não podemos dizer que uma pessoa é boa ou má? Que uma obra narrativa é artística ou não-artística? Os atributos dizem o próprio das pessoas ou das obras, o isto que cada pessoa, cada obra é, ou substituem as pessoas e as obras no que têm de próprio pelos atributos externos a elas mesmas e que mudam de acordo com as posições teóricas e épocas etc.? Quando estudamos e ensinamos a literatura através dos gêneros, isto é, dos atributos, só falamos sobre as obras, sejam narrativas ou não. Falar sobre é falar de fora. Por isso, falar sobre ainda não é ensinar a literatura, claro, não como um conceito genérico, mas como o que cada obra é e como tal é inclassificável, irredutível a um ou a mais atributos vistos de fora.

A questão do ensinar está no centro e origem da Sofística, pois os sofistas sabiam que podiam ensinar muitas coisas, mas aquilo que era fundamental ensinar para a formação do homem, do cidadão, da Polis, se tornou para eles e para nós ainda hoje uma questão incontornável. Qual? Podemos ensinar o saber, os conhecimentos. Mas será que podemos ensinar o que é sábio, o justo, o ético? A resposta foi, é e será: Não. Por isso, literatura, enquanto constituída por obras singulares e originárias, jamais se pode ensinar, seja através dos gêneros, seja através das classificações epocais, seja através de qualquer atributo. Então não devemos mais ensinar a literatura e esquecer as obras de arte? Mas claro que não. Devemos deixar de lado a Sofística retórica e gramatical e cada vez mais nos voltarmos para as obras como obras, eliminando todos os conceitos mediadores.

Então o que será o ensinar a literatura sem os gêneros, as classificações, os atributos? Como nos aproximarmos da obra em si, como ela é, em sua realidade operante e persistente? Não há outro caminho senão o diálogo com a obra de arte. Dialogar é se abrir para a escuta da fala da linguagem. E o que seria então a linguagem que fala na obra de arte? A linguagem não é um meio retórico e sofístico, algo útil para comunicar e persuadir. A linguagem é essencialmente a manifestação da verdade da realidade. Por isso, a obra de arte é sempre o pôr-se em obra da verdade. A linguagem enquanto verdade é que fala, não o homem. O homem só fala quando corresponde ao apelo da linguagem, corresponde ao pôr-se em obra da verdade. A verdade, não o verdadeiro, nos libertará. Dialogar é libertar para o vigorar do que em cada um de nós é, aquilo que nos foi dado e temos que cultivar. Cultivar pelo dialogar é apropriar-se do que é próprio. O conhecimento pelos atributos não dá conta da verdade, apenas pode fundar mais um atributo: tal pessoa e tal obra é verdadeira. Mas será que pode haver o atributo sem o substantivo? E pode haver o substantivo sem a realidade? Enfim, para pensarmos as obras de arte, aí incluída a literatura, não temos que partir da realidade?

O que é isto – a realidade? E o que a Poética tem a ver com o isto da realidade? A realidade é uma questão ou já a conhecemos adequadamente através dos conceitos atributivos, dos substantivos e adjetivos? A realidade é uma questão que não pode ser reduzida à proposição e aos significantes e aos significados, à forma e ao conteúdo. Como pode haver pro-posição com significante e significado, sujeito e predicado, se antes a própria realidade no que lhe é próprio não se manifestou? Sem abandonarmos os conceitos sofísticos e retóricos de linguagem e de realidade como representação será impossível dialogar com a literatura, entendida esta como reunião de obras de arte e não e jamais como um sistema. Quem funda sistemas são as teorias e os conceitos. Por isso mesmo, literatura não é um conjunto de gêneros e estilos. É necessário abandonar as classificações de gênero e de época, porque externas ao operar da verdade da obra. Não será melhor tentarmos logo o caminho das próprias obras de arte naquilo que lhe é próprio? Para isso temos que nos despir dos conceitos ou como diz poeticamente o grande Caeiro:
............................................................................
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos
(Caeiro, 2004: 84)

Infelizmente, pouco nos falam da realidade, porque ao se ensinar literatura não se ensina literatura, mas representações conceituais que falam sobre a realidade e não deixam a realidade, a verdade e o saber falar. O próprio do conceito é uma ideia geral permanente, atemporal, aplicável à realidade mutável ou, no caso do gênero, a diferentes obras, que teriam em comum algumas características enunciadas pelos conceitos. Nada mais falso. Isso não existe a não ser conceitualmente. Conceitos são a tinta com que pintaram nossos sentidos. Está na hora de acordarmos, raspando a tinta de todas as representações.
Não podemos identificar a realidade com os fatos, o que se vê, o que se toca, o material. Isso é falso. O próprio da realidade não são os fatos, não é uma representação conceitual. O próprio da realidade é o insólito. Mas então o que entender por insólito? Não podemos cair aqui no atributo e achar que há realidade insólita, como há realidade romântica, científica, psicológica, sociológica etc. etc. A obra de arte manifesta a verdade da realidade, porque a realidade é o próprio insólito. Como assim? Voltemo-nos para as próprias obras e escutemos, por exemplo, o que nos diz o conto “O espelho”, do narrador Rosa, em Primeiras estórias:

O senhor, por exemplo, que sabe e estuda, suponho nem tenha ideia do que seja
na verdade – um espelho? Demais, decerto, das noções da física, com que se
familiarizou, as leis da óptica. Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a
ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando
nada acontece, há um milagre que não estamos vendo
(Rosa, 1967: 71).

Note-se logo que o tom narrativo se dirige ao leitor solicitando dele uma tomada de posição, um questionamento, um diálogo pelo qual questionamos as nossas posições ou idéias já feitas, já pintadas em nossos sentidos. É que a obra de arte nos solicita sempre uma tomada de posição. Só assim a verdade da obra opera no e com o diálogo. Não só com este conto estranho, insólito. Porém, com toda obra de arte. Em verdade o que se tematiza no conto “O espelho” é justamente o insólito que é a realidade. Tal insólito nos advém quando nos perguntamos: O que é um espelho? Espelho vem da palavra latina speculum, substantivo do verbo speculare, que significa especular. Especular é refletir, pensar e conhecer não um conhecimento que se pode ensinar quando se expõe algo sobre. No especular o que se especula como espelho onde estamos projetados é o que somos. Mas o que somos não como imagem ou representação dada pelos sentidos e pelos conceitos. Especular, refletir é nos apreendermos no que somos como questão. O que somos como questão é o que é a realidade como questão. E porque a realidade é questão? O narrador de “O espelho” o diz: “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive os fatos”. Se tudo é mistério, não é o mistério o próprio insólito?
In-sólito tem dois sentidos. O radical sólito, do verbo latino solere, habituar-se, diz o costumeiro, o que se faz hábito, o habitual, o cotidiano, o que se tem como o verdadeiro e real pelas representações dos diferentes discursos sobre a realidade. No habitual há uma sentido profundo do ser humano jogado no mundo. Mundo é então o habitar, quando este diz o entre-ser entre Terra de Céu. Habitar diz o poder ter-se por habitar no entre, no mundo. Mundo é abertura como projeto de ser enquanto vigência da linguagem. Este poder não depende de uma de-cisão pelo ter, só pelo ser o que se tem: o habitar. Porém, este habitar pode tornar-se um hábito, onde este indica o esquecimento do que somos na sofreguidão de termos, de aproveitarmos a vida, que não cessa de mudar. O hábito, o costumeiro, é o habituar-se ao repetir mecânico e costumeiro, aos ritos habituais sem o seu originário, que são os mitos. Todo mito é o Ser do sendo como vigor inaugural a cada momento, porque o Ser é não só mudança, mas também a permanência. Os ritos, os hábitos, os costumes, as representações, os conceitos, os atributos e formas só nos dão uma ideia abstrata e arquétipa do originário, do in-sólito. No sendo do Ser nunca há um “tipo”. Todo sendo é sempre inaugural, ou pode ser. As tintas com que nos pintaram os sentidos são as representações, as formas e os discursos sobre a realidade.
Já o prefixo in pode ser pensado em dois sentidos fundamentais e paradoxais: 1º. O in- indica negação daquilo que o radical afirma. Então o in-sólito será o não-costumeiro, o não-habitual. Porém, habitual é o que se tem por real e verdadeiro, aquilo em que de imediato já estamos lançados. Habitual (do verbo latino habere: ter) é o que temos e tendo, somos. Todo ter algo se move na redução das coisas da realidade a um limite ou forma. É este limite que nos possibilita ter coisas, ter conhecimentos sobre literatura ou até, numa sociedade sofística e consumista como a nossa, ter alguém. Mas será que podemos ter alguém? Ter ainda não é ser. É que só somos o que somos sendo. Neste, o limite é o não-limite. O ter é ter algo ou alguém previamente delimitado e formatado. O que somos é nosso maior bem, pois só assim podemos ter realmente o que somos. O sendo que somos sempre se dá num entre limite e não limite, forma e não-forma, verdade e não-verdade. Porém, não é isso que acontece nas representações. O ter do habitual (note-se a tautologia) nos lança através dos atributos no externo, no impróprio, nos conhecimentos sobre. É que os conhecimentos sobre, em que consiste em geral nossa formação, inclusive a formação em literatura, não nos dão jamais o que é sábio, o justo, o ético.
Por isso é que devemos ultrapassar a sofística consubstanciada no ensino tradicional da gramática e da retórica. A sabedoria como tal é uma questão poética, porque a Poética originariamente é sempre ética. Poética diz aqui a essência do agir. O ético é a fala da linguagem levando ao desvelamento do que somos. Por que o insólito nos pode dar, presentear esse desvelamento ético? 2º. É aí que aparece o segundo sentido do prefixo in-. In só pode ser negação porque ele diz em primeira instância: o entre, o radicado em, ou seja, desde sempre viemos e voltamos ao abismo, o irredutível a qualquer atributo. O “entre” como abismo é o Nada. O in-sólito é o que se origina do Nada. E que é o Nada? Nada não é só negação. É mais, muito mais. No conto com que dialogamos, no final do percurso, o narrador se vê numa contingência estranha, mágica, maravilhosa, fantástica. É que o progressivo e radical despojamento (o tirar as tintas com que lhe pintaram o rosto, a face), a aparente negativa ou renúncia a “tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra...” tem um depois: “o salto mortale” (Rosa, 1967: 78). Nele a manifestação e presença do Nada. Mas se o Nada não é a pura e simples negatividade, o que é? Quem reintroduz o Nada no pensamento ocidental como questão foi Heidegger, embora ele sempre estivesse presente em todas as grandes obras de pensamento e poesia.
No ensaio: O que é metafísica? lança-nos no mistério do Nada: “O nada enquanto o outro do ente é o véu do Ser” (Heidegger, 1969: 58). Quando Heidegger pensa o Nada como o véu do Ser, ele nos lança no abismo que é a realidade enquanto a realidade é o próprio insólito. Não esqueçamos que a realidade se forma da palavra latina res e que foi usada para traduzir o to on grego, isto é, o sendo. O insólito, enquanto o Nada, não é o atributo de alguma obra como gênero: é o próprio real misterioso que não cessa de acontecer. Mas não é isso o que afirma também Rosa? Sim. Basta dialogarmos com a verdade que a obra manifesta. Para isso, devemos deixar a obra falar. E o que ela nos diz? “Quando Nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (Rosa, 1967: 71). Tomemos a sério o que Rosa escreveu. “Quando” é uma conjunção temporal que mostra uma inserção necessária no tempo, mas no tempo do acontecer e não em qualquer tempo. Para o grego, o tempo do acontecer é a memória, enquanto o kairós do áion. Kairós é o tempo oportuno, de amadurecimento do que é o tempo originário, o áion, isto é, o tempo do acontecer poético. E qual é o tempo do acontecer, isto é, qual é o seu agente, aquilo que no acontecer acontece? Rosa o diz: o Nada. O acontecer do tempo é o próprio Nada. Usando a terminologia sofístico-gramatical ao dialogarmos com a fala do narrador, que diz: Quando nada acontece..., o “nada” aqui é o sujeito de acontecer. E quando nada acontece dá-se, presenteia-se o insólito. Por quê? Diz o narrador: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. Se não podemos reduzir o insólito a representações narrativas, muito menos ainda querer determinar e reduzir a realidade àquilo que nossos olhos veem. No fundo, enquanto insólito, ou seja, enquanto milagre, o Nada é o que não se vê em tudo que se dá a ver. É o que acontece. E acontece sempre enquanto tempo, sempre num quando.
O ver não é a medida do tempo e muito menos da realidade. E por quê? Responde o narrador: “Ah, o tempo é o mágico de todas as traições... E os próprios olhos, de cada um de nós, padecem viciação de origem, defeitos com que cresceram e a que se afizeram mais e mais” (Rosa, 1967: 72). Não reconhece ouvinte-leitor as mesmas tintas a que se refere Caeiro? Rosa não afirma que a viciação é só de seus olhos narradores. Não. São “... os próprios olhos de cada um de nós...”. E reafirma: “Os olhos, por enquanto, são a porta do engano: duvide deles, dos seus, não de mim” (Rosa, 1967: 72). O tempo usado é o imperativo para se dirigir a nós, nos desafiando a nos questionarmos e a dialogarmos. A dúvida deve nos abrir os olhos para o insólito, esse “mistério que não estamos vendo”. É um mistério que não está distante, em algum lugar mágico, fora do habitual, que não se sabe onde e que de repente baixa nesta terra. Isso é uma representação infeliz, baseada numa metafísica do fundamento distante no espaço e no tempo, aquele fundamento que deu origem a tudo e depois se afastou porque estava cansado e foi para um lugar de onde tudo acompanha descansadamente e que de vez em quando resolve nos visitar. Isso é uma ideia absurda, porque é uma ideia baseada em relações causais, proposicionais, sofísticas. Alguém causou alguma coisa e foi embora. Disso também se desfaz o pensador Rosa, porque nos lança na Poética do insólito. E o que ele nos diz. O Nada como o mistério da realidade, como o insólito da realidade e a realidade do insólito não deixa permanentemente de acontecer. O Nada acontece sempre. O que se mostra não pára de acontecer. E onde a realidade acontece em primeiro lugar? Em nós mesmos. Não somos um “eu” conceitual, uma representação abstrata, indiferente à mudança. Somos o próprio insólito, porque a realidade não é o que está fora de nós, mas o que em nós sendo nos leva a ser o que somos. Será isto verdade? Pensemos com o poeta. Eis o que ele nos diz:

Como é que o senhor, eu, os restantes próximos, [vocês], somos no visível? O
senhor dirá: as fotografias o comprovam. Respondo: que, além de prevalecerem para
as lentes das máquinas objeções análogas [ao do ver de nossos olhos], seus resultados
apóiam antes que desmentem a minha tese, tanto revelam superporem-se aos dados
iconográficos os índices do misterioso [do insólito]. Ainda que tiradas de imediato um
após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso,
é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos, das coisas mais importantes (Rosa, 1967: 71).

O impróprio é a distração incorrigível em relação às coisas mais importantes. Quem não questiona vive distraído, na culta festa dos atributos. Ora, o próprio dos atributos, dos conceitos, dos gêneros, é querer reduzir a mudança, a variedade e multiplicidade da realidade, a uma identidade abstrata, genérica. Isso nega a própria dinâmica e mudança da realidade, pois como nos afirma poeticamente o narrador: “Ainda que tirados de imediato um após o outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes”. O maravilhoso da realidade é que cada um de nós, cada sendo é único, inaugural, irrepetível e num acontecer con-criativo de toda a realidade, incessantemente de uma originariedade e originalidade que não cessa de se presentificar, de dar-se. Por isso, o tempo é o próprio insólito, porque a realidade é o tempo se dando, presenteando-se.

Mas então em que consiste o viver? O viver como o tempo não é apenas o deixar a vida fluir. Algo de misterioso também acontece nesse fluir da vida. Eis o que nos diz o narrador: “Ah, meu amigo, a espécie humana peleja para impor ao latejante mundo um pouco de rotina e lógica, mas algo ou alguém de tudo faz frincha para rir-se da gente...” (Rosa, 1967: 72). O ser humano sabe que não basta viver como um fluir sem parar. Há “algo ou alguém de tudo faz frincha”. Como chegar a este algo ou alguém? Como diz Rosa, para isso não basta tentarmos impor um pouco de rotina e lógica através dos conceitos e dos gêneros, representações abstratas e atemporais. Por quê?
Se no espelho que nos espelha e reflete, a realidade acontece num mistério incessante, numa mudança inegável, como um rio que não cessa de fluir, ao refletirmos pro-curamos no fluir sempre o que permanece, o originário. O originário é a memória do tempo. No conto “O espelho” o que acontece é uma profunda reflexão poética como uma viagem em demanda do originário, não que ele esteja e se dê lá no fim. O originário é o Nada, o abismo, que exige de nós renúncia e decididamente um “salto mortale”. O “salto mortale” enquanto o originário ou o Nada, o Insólito, é o salto para, na e desde a terceira margem do rio.
Este salto não pode ser ensinado por nenhuma Sofística retórica ou Metafísica essencialista, não pode ser ensinado pelo aprendizado dos gêneros, mesmo quando nos voltamos para as obras de literatura e as procuramos classificar como insólitas, maravilhosas, góticas, fantásticas, realismo mágico etc. Feitas as classificações nos damos por satisfeitos e achamos que já dissemos tudo sobre as obras. E vamos para casa, o habitual, ou para um bar aproveitar a vida, porque quando se está aprendendo, faz-se sacrifício. É algo funcional, cansativo e frustrante. Mas como aproveitar a vida se vivermos distraídos das coisas mais importantes? Quando chegará para tais pessoas a sua hora e vez, o seu kairós? Não adianta falar sobre se na leitura algo não aconteceu como diálogo e nos conduziu ao espelho. Porque o espelho é o lugar do entre, onde o diálogo entre a mudança e a permanência em que desde sempre já estamos jogados é possível.
Para tal reflexão também nos joga um famoso poema da poetisa pensadora Cecília Meireles:

Retrato
Cecília Meireles

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro
nem estes olhos tão vazios
nem o lábio tão amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil;
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?
(Meireles, 1987: 84)

A mudança é certa, simples, fácil. Mas não é tudo. Há o espelho, há o Nada, há o Insólito. Houve, constata entristecida, uma perda. Não é a perda de algum bem descartável. É a perda da vida essencial. É a perda do que lhe é próprio, certo, inconfundível: a sua face. E ela, nós, nos perguntamos: Em que espelho? Não basta viver, deixar a vida fluir, num dedicar-se exaustivo ao que muda e passa, às novidades, ás modas, às curiosidades sem a cura do próprio, à ânsia de curtir externamente a vida. É necessário a ânsia do espelho, onde temos um encontro marcado com nossa face. Então a vida deixará de ser apenas vida vivida e se tornará no e com o espelho a vida experienciada. Não há nem deve haver uma dicotomia entre vida vivida e vida experienciada. As duas estão unidas indissoluvelmente no espelho, no “entre”. De “entre” vem interior. Este não é nem deve ser o subjetivo oposto ao objetivo, ao exterior. Não deve ser a oposição dual de corpo e alma, terra e céu, vida e morte, mortalidade e imortalidade. E assim por diante em todas as dicotomias. Não. O “in” de interior é o “in” do entre. Este é o que somos e que jamais pode ser confundido com nosso “eu” oposto ao que cada um é. O sou é que funda o “eu”. É aí que se perde a verdadeira face. No delírio incessante das pro-curas externas ou internas subjetivas, mutáveis e passageiras, colhemos uma perda, porque não quisemos ser, só ter o que não somos. Ser é realizar o “eu” pelo “sou”, porque aí estaremos sendo o Ser do sendo: nossa verdadeira e própria face. A renúncia ao passageiro e descartável não tira. Dá. É a pobreza livre e essencial. Dá porque nesse dar dá-se o Ser do sendo: o que nos é próprio. E então a mudança não se torna algo externo nem interno. A mudança é sempre a presença do simples, do certo, do fácil. É que mudamos para permanecer no originário, no in-sólito, plenificando nosso sendo.
Nele e por ele realidade, verdade e conhecimento se tornam a medida da referência de ser humano e Ser. O Ser em nosso sendo é a medida do que nos é próprio, uma medida que é a essência originária da mudança e da permanência. Vivemos (mudança) para morrer (permanência). Somos sempre insólitos. Por isso, no discurso da Academia, Rosa, o poeta pensador disse: “Não morremos. Ficamos encantados”. Insólitos. Insólito em questão.

Bibliografia

CAIEIRO, Alberto (Fernando Pessoa). Poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica? São Paulo: Duas Cidades, 1969.
MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1987.
ROSA, João Guimarães. Primeira estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.