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O ser humano e a realidade movem-se numa dobra misteriosa: mudam e permanecem. Rosa no maravilhoso conto “O espelho” afirma: “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (Rosa, 1967: 71). Embora muitas vezes nos pareça que está tudo parado, que há somente repetições, o autor vai justamente afirmar o contrário: há sempre algo acontecendo como milagre. Que milagre é esse? O milagre do mudar e permanecer. Estes constituem uma dobra e não e jamais uma dicotomia. Lançados na dinâmica do tempo é mais fácil, aparentemente, optar pela mudança. Digo aparentemente, porque é aquela mudança superficial e oposta a toda permanência. Dualizar o real é a atitude mais normal e corrente. Apreender a dinâmica do real em seu acontecer é o mais difícil, pois nos parece que há muita repetição, havendo a aparência de que os dias são iguais, de que as pessoas são sempre iguais, de que a noite e os dias são sempre iguais, enfim, de que não mudamos. Embora...
Retrato
Cecília Meireles
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro
nem estes olhos tão vazios
nem o lábio tão amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil;
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?
(Meireles, 1987: 84)
A mudança é certa, simples, fácil. Mas não é tudo. Temos que ter o cuidado de não separar o como é dos atributos do que é, não podemos esquecer que o que é é sempre um sendo do ser. Para isso, há o espelho, o entre sendo E Ser. Houve, constata entristecida, uma perda na experienciação do sendo enquanto vivências estéticas atributivas. Não é a perda de algum bem descartável. É a perda da vida essencial. É a perda do que lhe é próprio, certo, inconfundível: a sua face. O que é a face aí poeticamente referenciada? Não são as idéias sem o eidos? E ela, nós, nos perguntamos: Em que espelho? Não basta viver, deixar a vida fluir, num dedicar-se exaustivo ao que muda e passa, às novidades, às modas, às curiosidades sem a cura do próprio, à ânsia de curtir externamente a vida no e pelos atributos. É necessário a ânsia do espelho, onde temos um encontro marcado com nossa face. Então a vida deixará de ser apenas vida vivida e se tornará no e com o espelho a vida experienciada. Não há nem deve haver uma dicotomia entre vida vivida e vida experienciada. As duas estão unidas indissoluvelmente no espelho, no “entre”. De “entre” vem interior. Este não é nem deve ser o subjetivo oposto ao objetivo, ao exterior. Não deve ser a oposição dual de corpo e alma, terra e céu, vida e morte, mortalidade e imortalidade. E assim por diante em todas as dicotomias. Não. O entre enquanto espelho é a medida. O “in” de interior é o “in” do entre. Este é o que somos e que jamais pode ser confundido com nosso “eu” oposto ao que cada um é, a cada sou. O sou é que funda o “eu”. Sou aí é verbo. Na substantividade do eu perde-se a verdadeira face. No delírio incessante das pro-curas externas ou interno-subjetivas, mutáveis e passageiras, colhemos uma perda, porque não quisemos ser, só ter o que não somos, quando a medida é o atributo. Ser é realizar o “eu” pelo “sou”, porque aí estaremos sendo o Ser do sendo: nossa verdadeira e própria face. Realizar aí é o verbo da historicidade e não das meras experiências estéticas. A renúncia ao passageiro e descartável não tira. Dá. É a pobreza livre e essencial, a medida. Dá porque nesse dar dá-se o Ser do sendo: o que nos é próprio, a medida. E então a mudança não se torna algo externo nem interno. A mudança é sempre a presença do simples, do certo, do fácil. O nada é a simplicidade do Ser. É que mudamos para permanecer no originário, plenificando nosso sendo. Plenificar diz aí realizar a medida do Ser, quando então a forma deixa de ser o limite para ser mais: o não-limite de todo limite. O não-limite de todo limite é o humano do ser humano.
A mudança é certa, simples, fácil. Mas não é tudo. Temos que ter o cuidado de não separar o como é dos atributos do que é, não podemos esquecer que o que é é sempre um sendo do ser. Para isso, há o espelho, o entre sendo E Ser. Houve, constata entristecida, uma perda na experienciação do sendo enquanto vivências estéticas atributivas. Não é a perda de algum bem descartável. É a perda da vida essencial. É a perda do que lhe é próprio, certo, inconfundível: a sua face. O que é a face aí poeticamente referenciada? Não são as idéias sem o eidos? E ela, nós, nos perguntamos: Em que espelho? Não basta viver, deixar a vida fluir, num dedicar-se exaustivo ao que muda e passa, às novidades, às modas, às curiosidades sem a cura do próprio, à ânsia de curtir externamente a vida no e pelos atributos. É necessário a ânsia do espelho, onde temos um encontro marcado com nossa face. Então a vida deixará de ser apenas vida vivida e se tornará no e com o espelho a vida experienciada. Não há nem deve haver uma dicotomia entre vida vivida e vida experienciada. As duas estão unidas indissoluvelmente no espelho, no “entre”. De “entre” vem interior. Este não é nem deve ser o subjetivo oposto ao objetivo, ao exterior. Não deve ser a oposição dual de corpo e alma, terra e céu, vida e morte, mortalidade e imortalidade. E assim por diante em todas as dicotomias. Não. O entre enquanto espelho é a medida. O “in” de interior é o “in” do entre. Este é o que somos e que jamais pode ser confundido com nosso “eu” oposto ao que cada um é, a cada sou. O sou é que funda o “eu”. Sou aí é verbo. Na substantividade do eu perde-se a verdadeira face. No delírio incessante das pro-curas externas ou interno-subjetivas, mutáveis e passageiras, colhemos uma perda, porque não quisemos ser, só ter o que não somos, quando a medida é o atributo. Ser é realizar o “eu” pelo “sou”, porque aí estaremos sendo o Ser do sendo: nossa verdadeira e própria face. Realizar aí é o verbo da historicidade e não das meras experiências estéticas. A renúncia ao passageiro e descartável não tira. Dá. É a pobreza livre e essencial, a medida. Dá porque nesse dar dá-se o Ser do sendo: o que nos é próprio, a medida. E então a mudança não se torna algo externo nem interno. A mudança é sempre a presença do simples, do certo, do fácil. O nada é a simplicidade do Ser. É que mudamos para permanecer no originário, plenificando nosso sendo. Plenificar diz aí realizar a medida do Ser, quando então a forma deixa de ser o limite para ser mais: o não-limite de todo limite. O não-limite de todo limite é o humano do ser humano.
Perceber a mudança profunda é o mais difícil, como nos diz poeticamente Cecília Meireles. Mas ela acontece. Em verdade, a realidade está sempre mudando. Tirar duas fotos iguais é impossível, ou como diz o mesmo Rosa: “Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes” (Rosa, 1967: 71).
Se só houvesse essa mudança irreversível e contínua, o ser humano e a própria realidade seriam impossíveis. Justamente por isso mesmo a questão da vida como mudança e crescimento tem como contrapartida algo que permanece e é sempre certo: a morte. Mas o que é a permanência enquanto morte? Na morte cessa a mudança? Mas também cessa a vida? Nesta dobra se coloca a questão maior. Se o tempo é vida, também o tempo pode ser permanência? Ou: o tempo pode ser mudança e permanência? Não é por isso que falamos frequentemente em a-temporal? Que falamos em eternidade? Não é esta um tempo que muda durando sempre, eternamente? A mudança, a própria vida nos joga numa angústia abismal. Movemo-nos já desde sempre num abismo. Viver a mudança é bom, muito bom, mas ela tem um encontro marcado, a cada instante de mudança irreversível, com a angústia da permanência, da eternidade. O que é isto – a eternidade? De que posição e horizonte falar de eternidade? Mas será que só se pode compreender e apreender a permanência como eternidade? E de que posição falar de eternidade, nós que estamos irreversivelmente mudando? Como falar de fora do tempo, que não cessa de fluir e mudar? Como falar de fluir e mudar se não houver posição, isto é, limite e relação? Só porque somos finitos é que no horizonte projetamos a eternidade. Adotar o ponto de vista da eternidade é fácil porque é conceitual, mas não será num operar como a avestruz, enfiando a cabeça na terra e fazendo como se a realidade não continuasse fluindo? Adotar a dicotomia de corpo e alma, numa posição de negação ou afirmação, também muda alguma coisa em relação à questão? Em ambos os casos não se está ignorando o milagre da questão? Não é isto que nos diz Rosa, quando afirma: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.
Mas a questão da permanência não vive só nesse âmbito extremo, a presença irreversível da morte como a permanência certa. Até porque a morte não é algo que um dia vai chegar. O grande mistério é que ela desde que nascemos já chegou, só fazemos como se isso não fosse verdade, como se a vida é que fosse algo certo, imediato e permanente. Sim, a vida como vida também tem uma permanência. Que permanência é essa da vida, da realidade? Essa permanência é real e tudo o que fazemos já o fazemos dentro de um horizonte de permanência. Se a vida muda, e muda, também constatamos que sabemos que muda e que esse saber permanece como referência até para sabermos que a vida está mudando, pois se a vida só fosse mudança nem saberíamos que haveria mudança, porque não teríamos nenhuma possibilidade de referência, relação e limite.Compreender a medida, a questão, é diferenciar e discernir referência, relação e limite. Mas só podemos discernir porque já nos movemos na medida do criticar (krinein). É a medida da Poética: o que se manifestando se vela. Então a questão da permanência e mudança passa pelo saber. Porém, já nos advertiu Parmênides na sentença III: “ O mesmo é saber e ser”. A questão de permanência e mudança passa pelo ser e pelo saber, mas enquanto são o mesmo. Que é isto – o mesmo?
O mesmo de mudança e permanência foi sempre a grande questão para o ser humano e ele a procura desde que é ser humano, isto é, ser ser humano é já estar lançado nesta procura. Sabermo-nos em segurança é apreender e compreender o que é regular e previsível. E isto na relação conosco mesmo, com os outros e com as coisas. A regularidade do comportamento de tudo é o que nos dá certeza e confiança. Por outro lado, tudo que foge a padrões previsíveis de normalidade, tudo que é inesperado e incontrolável é sempre visto com muito medo. Viver é viver no império da medida, da lei, do padrão. Talvez isto cause estranheza também, frente ao livre agir. Mas se pensarmos um pouco em nosso cotidiano veremos que todo ele está estruturado em cima de comportamento regulares. E estas regularidades é que guiam nossa vida. Imaginemos que saímos de casa e ninguém segue as leis do trânsito. Seria impossível viver. E assim em tudo. Até a sucessão das estações e dos dias e da noite. Enfim, tudo está estruturado por leis, por padrões de ação. Mas tais leis e normas são uma construção humana ou são algo inerente à realidade, à natureza, seja a nossa própria natureza interna, seja a natureza de um modo geral? A regularidade deste cotidiano, a realidade enquanto os fatos visíveis, não é a realidade determinada pelas relações sociais enquanto funções? As funções são o funcionar do sistema enquanto sistema. Se mudar o paradigma do sistema mudam as funções das coisas, das formas. Função é convenção. No Japão o branco indica luto. No Ocidente isso é função da cor preta. Função ou forma é uma lei de relacionamento causal num sistema.
Todos os fenômenos são regidos por leis. Porém, estas existem na medida em que se fundam num conhecimento. E este precisa de posições, perspectivas e horizontes, enfim, precisa de limites e relações. Além destas há também as referências. Em nossas vidas tomamos ou deveríamos tomar sempre como princípio do agir, das escolhas, alguma ou algumas referências. Mas em geral somos guiados pelas funções ou formas de relacionamento. É que toda função serve para algo, tem uma finalidade. É dentro desta perspectiva que se pergunta sempre: Qual a função da arte? Ter função é servir para alguma coisa dentro de um sistema causal. Isto causa aquilo. A obra de arte é sem causa, é sem por quê. A obra de arte é obra de arte porque opera. Ela não causa nada porque não explica nada, daí a inutilidade de toda análise explicativa:
..........................................................
Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi coisa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum. ...............................................................................
(Caeiro, 2004: 109).
As referências constituem as medidas do agir, do viver e do procurar, do questionar, dialogar e experienciar. Nas referências não há causas. Há metábole da realidade.
Mas qual é a medida essencial da vida? O que sempre atormentava os heróis trágicos em seu agir – a questão - era a hybris, a desmedida ético-poética. O que é a medida para que possamos chegar a agir na e pela des-medida? A medida não pode ser compreendida em abstrato: uma norma, um princípio, um conceito. Esse foi o equívoco que sempre desorientou a metafísica sofística e a crítica na modernidade. É que a medida se tornou a medida do homem. Esse isolamento da medida acabou por sobrepor à realidade a realidade da idéia, do princípio, da lei, do gênero etc. que deu origem, no exercício da crítica, ao julgamento, ou seja, o estabelecimento de princípios ideológicos, estético-formais, sofístico-retóricos, morais, onde fundamenta o julgamento. E isso é o que predomina em geral.
Porém, se nos voltarmos para a vida na sua riqueza, constataremos que ela não é algo abstrato. Temos sempre presente e no presente e como presente um “sendo”. Viver é sempre estar sendo, para além e aquém de formas e limites, das perspectivas do horizonte, porque o horizonte é a dobra do ver e não e jamais o duplo enquanto proposição do sendo, onde se reúne formativamente, não o sendo e sua manifestação de limite de não-limite, mas o sujeito com seus atributos. É o juízo estético-proposicional e não o deixar-se tomar pela medida da palavra poética. Toda palavra poética se dá enquanto diálogo do lógos e percepção originária (dia-noia) do nous. Pois, como nos diz o pensador Parmênides: “Ser e perceber são o mesmo” (Frag. III). Perceber é pensar e pensar é amar, porque “Amar é pensar ” (Caeiro, 2004: 98). Ao sendo os gregos denominaram “on”, o particípio presente do verbo einai. Este sendo foi recebendo traduções no latim que nos afastaram dessa simplicidade do misterioso estar sempre sendo. No sendo tudo se concentra. Mas o que rege esse sendo é a sua medida, ou seja, o que no sendo é sendo é a sua medida. E então os pensadores originários pensaram essa medida como anagké (necessidade). Mas se do ponto de vista da medida temos uma medida que se torna aquilo que o sendo enquanto sendo tem como medida, podemos dizer que a medida do sendo é a moira (o quinhão, o próprio em relação ao genos). Nesse sentido, a medida é anagké, enquanto esta é uma arché, aquilo que vigora na moira e no genos, enquanto o sempre vigente como o que permanece na mudança e é, ao mesmo tempo, a própria mudança. Mas uma tal medida como moira acontece já enquanto Genesis: nascimento, origem genética, não enquanto forma e limite. Todo nascimento já traz a sua moira, ou seja, a sua medida.
Tentar compreender o sendo é lançar-se na compreensão da moira. Mas é uma compreensão que não consiste num exercício abstrato. Muito pelo contrário, compreender aí é realizar a moira enquanto o que é próprio, como já nos advertiu Parmênides: “O mesmo é ser e compreender”. Então compreender sendo e sendo na compreensão é achar o horizonte, a partir da medida da moira (a dobra do sendo), da krisis, do julgamento como critério, como medida. E o horizonte ou medida do sendo vivente é a moira.
Pensar a medida é pensar a moira. Pensar é trazer ao krinein (questionar, criticar, discernir, dia-logar) a moira do sendo. Sendo o sendo o desdobrar-se da moira, já o próprio sendo é o horizonte do krinein (questionar), ou seja, já a moira é a possibilidade de krinein (questionar enquanto dialogar).
Em última instância trata-se de na questão da medida, em que já sempre nos movemos e nos move, pensar a moira, o que como medida é a medida do que nos é próprio. A moira do sendo vai estar ligada ao limite, à relação, tendo a posição, a perspectiva e o horizonte como componentes, implicados sempre na medida como referência. A medida como referência, ou seja, a moira, é a referência de permanência e mudança. A medida é sempre questão e como questão foi dando origem a diferentes critérios, até porque sendo a medida do sendo a moira, não há uma medida para o sendo uniforme e abstrata ou seja, a medida da forma. Toda forma é forma da não-forma, do não-limite. É que esse “não” não é entitativo, vigora no nada, o véu do Ser do sendo. Retomamos Rosa: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”.
O critério recebe muitos sinônimos no percurso ocidental, mas é fundamental atentar sempre para as questões em que se move um tal vocabulário e não se perder nos desvios dos conceitos, mas ser renitente e disciplinado no retornar sempre às questões, que são sempre originárias. A disciplina pede o permanente avio dos envios das questões, para achar a via como caminho (metá-hodos) em que o próprio do real se dá como o sempre permanente e atual. Nesse entre-laçamento comparecem: sendo, limite, critério, medida, dobra, travessia, amor, todos vigorando no “entre”, fonte e foz de toda mudança e permanência. O “entre” é a terceira margem do rio acontecendo. O espelho como terceira margem é o espelho, a medida.
O discernir, voltando-se para ele próprio, criou diversas palavras que indicam uma posição, seja teórica, seja epocal: critério, idéia, teoria, princípio, essência, cânone, paradigma, suporte, padrão, regra, forma, lei, medida. Estas diversas posições originam-se de uma de-cisão ou pela dobra ou pelo duplo. É possível não de-cidir? Isto quer perguntar se é possível nos movermos no real sem o limite. Mas o que funda o limite para que possa haver uma de-cisão? Nesse quê está toda a questão de: poética, crítica e real. Nesse quê está todo o operar da verdade enquanto sentido do agir. Pro-curar esse quê é fazer o que sempre toda a filosofia fez: deixar-se tomar pelas questões, isto é, deixar-se tomar pelo “taumadzein”. Deixar-se tomar, pôr, posição, perspectiva, horizonte, limite e medida, eis o âmbito do caminho em que já estamos sempre jogados. Deixar-se tomar para tomar posição é já se abrir no aberto para a escuta e a visão do que se dá a ver e a ouvir. Não é nossa perspectiva que o dá. Só por se dar é que podemos ver e ouvir. A esta posição os gregos denominaram teoria, que não é a teoria da ciência e da perspectiva. A teoria da perspectiva não é a perspectiva da teoria: o que alguém por ver narra. O operar da obra de arte é mais do que o narrar do narrador. Não há narrador sem o que na perspectiva se dá a ver, sem o que na obra opera: a verdade da não-verdade. Ou como nos diz Rosa no conto “O espelho”, repetindo a citação: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”. Ver o milagre é a possibilidade do narrar e dar forma à perspectiva. Porém, isto nunca é uma de-cisão do narrador. É que então o operar não é o operar da forma, mas do milagre que não estamos vendo. É este não ver como milagre que possibilita o ver do autor e dos leitores, uma vez que o narrar é o vigorar do dialogar. O lógos é a palavra poética. Então tanto ouvir como ver já se movem no krinein. Portanto, qual o âmbito do krinein?
Krinein é o questionar acontecendo como dialogar. É que no questionar a questão é o originário (permanente e atual). Portanto, o krinein é a pro-cura do originário, é a pergunta pelo originário como fonte de todo krinein, ou seja, como o critério pro-curado: a media do sendo, do genos da moira. Daí que no krinein como medida se pro-cura o originário como fonte de toda verdade. Mas a fonte e verdade de toda verdade é a não-verdade. Esta é que dá o horizonte da krisis, ou seja, do julgamento, da de-cisão, onde o valor ético-poético (este é a medida ou critério da krisis, da proposição) é a proclamação e afirmação da verdade, porque tem como medida o originário em que se dá a questão do questionar, na pergunta. Mas perguntar pela verdade do julgamento é perguntar pela realidade e não simplesmente pelo verdadeiro da proposição, enquanto coesão e coerência. Para além destas existe também o paradoxo e a metáfora, que são muito mais do que meros recursos retóricos.
Pensar tal critério não consiste numa simples escolha de teoria, suporte, arquétipo, paradigma, cânone, idéia, princípio, essência, padrão, regra, lei. Estes podem variar no tempo como posições formais, ideológicas e estéticas. Tal critério será sempre externo, funcional, operacional-causal e explicativo. E será avaliador para classificar, admitir ou negar. Na escolha do critério, o que somos como a possibilidade de nos apropriarmos do que nos é próprio já nos implica e, portanto, não pode ser apenas externo nem, dicotomicamente, só interno. Desse modo, um critério nunca serve para estabelecer relações e formas de juízo avaliativo. Na relação já vigora uma intencionalidade que se mede pelo critério, sendo este prévio. Disso resultarão sempre conceitos, traduzindo universais abstratos. Como critérios universais abstratos (conceitos) é que surge o variado vocabulário de interpretação sofístico-retórica e metafísica da realidade: teoria, suporte, arquétipo, paradigma, cânone, idéia, princípio causal, essência, padrão, regra, lei, fundamento, causa, perspectiva, símbolo, alegoria.
Somos, cada um é, um sendo, um entre-acontecimento poético-apropriante. Todo sendo vige nesse horizonte vivo e originário. Portanto, como sendo há sempre uma referência de arché e telos, de zoé e bios. É o con-creto poético (que nada tem a ver com a experiência dos fatos ou estética). Em termos de pensamento poético, cada sendo é a afirmação e realização do que é próprio (autopoiese). Este auto é a medida.
Mas então qual é concretamente o critério se não é nem pode ser aquele da relação? O critério deve ser aquele em que já se move desde sempre o sendo, todo sendo enquanto referência: a de genos e moira. Pensar o critério da referência é pensar o critério originário. Neste, o sendo sempre acontece como questão e não e jamais como conceito, porque na questão sabemos e não-sabemos, não abstratamente, mas con-cretamente, experiencialmente no círculo poético de desvelamento e velamento. Se o krinein é questionar, o critério é a questão. E a questão originária, enquanto entre-acontecer poético-apropriante, é sempre a referência de Ser e essência-originária do humano. É a questão da dobra em que se dá a moira do genos.
A tradução tradicional de moira é destino. Mas o que compreender como destino enquanto a medida da dobra de ser humano e Ser? A moira não diz apenas um destino pessoal, aquele quinhão que cada sendo recebe. Toda moira provém originária e concretamente de um genos. E este, como Gênesis, diz do nascer em que se dá toda a physis. Porém, não podemos esquecer que a physis ama velar-se. A própria physis se dá uma medida: o amar. O amar é o a-ser-pensado: o critério, a medida. Então moira se funda numa medida que nos mede como questão não só pessoal e social, mas igualmente epocal, ou seja, como destino histórico. Toda época enquanto destino histórico é o acontecer poético da realidade. Por isso, todo sendo já traz em si o que enquanto destino lhe é destinado e, ao mesmo tempo, a sua relação e referência com o que historicamente se dá. É a memória destinal enquanto a dobra da physis, cujo originário poético é o amar. É a medida poética enquanto a poética da medida. Esta acontece nas e como obras poéticas, em todas as obras de arte, porque é seu originário.
Bibliografia
ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 3.e. Rio de Janeiro, José Olympio, 1967.
MEIRELES, Cecília. Obra poética. Rio de Janeiro, Nova Aguilar: 1987.
CAIEIRO, Alberto (Fernando Pessoa). Poesia. São Paulo, Cia. das Letras, 2004.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2002.
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