31 outubro 2010

Ler e deixar a obra falar


Quando estamos diante de uma obra poética e vamos começar a ler, diversas podem ser as atitudes. Mas, basicamente, podemos apontar três, fundamentadas em dois princípios que podem ser opostos e formar um duplo ou acontecerem numa dobra. A existência de cada um não é um duplo. É uma dobra. E isso depende do que se compreende tanto por princípio (arché, em grego) quanto por finalidade (telos, em grego). Há duas compreensões canônicas dessas palavras fundadoras. E, de fato, aí se decidem os dois Ocidentes.

Os dois princípios:

A – Causalidade e finalidade

O primeiro princípio, o da separação entre leitura e vida, baseia-se na causalidade. Tanto a vida quanto a obra são concebidas como sistemas, onde cada ser humano ou cada parte da obra exerce uma função. Por isso, nessa leitura, predomina sempre a finalidade. Tudo é feito tendo sempre por objetivo um fim, que pode variar muito, mas onde o leitor, a obra e a realidade ficam submetidos a essas finalidades. Todas as ações são determinadas pela análise. Esta pressupõe um sistema, seja social, seja psicológico, seja histórico, seja orgânico. Desmontar o sistema ou o organismo, quando se pensa em obra, em suas partes ou funções é o modo de ler para conhecer tudo, seja o ser humano, seja a arte, seja a realidade. Com isso visa-se tanto o conhecimento objetivo quanto o estético. Há uma separação entre o que é (ontologia) e o que se conhece (epistemologia). Toda a análise é determinada pela racionalidade epistemológica. Mesmo a fruição estética é dirigida por processos racionais. Eis as leituras dentro desse princípio:

1ª. Para melhor compreender esta primeira leitura, podemos perguntar: Qual a finalidade (telos)? Quando se compra uma obra poética e se inicia a leitura, esta já está influenciada pelo motivo que levou à compra ou ao seu empréstimo numa biblioteca ou ainda ao empréstimo por um amigo/a. Esses motivos podem variar. O nome do autor, a leitura de uma outra obra desse autor de que se gostou muito, o interesse por determinado assunto ou temática, o sucesso que faz no mundo ou no país etc. etc. O que, em geral, menos contribui é o interesse que a própria obra deve despertar pelo que ela tem a dizer. Esse é um motivo interno. A leitura é determinada por motivos estritamente subjetivos e externos ao valor da obra. Em geral, o leitor procura idéias que venham confirmar as suas ou satisfazer sua curiosidade. São, em geral, leituras superficiais e externas, tendo interesses passageiros e circunstanciais. Como se vê, aqui finalidade (telos) se reduz a algo que nos vem de fora, embora pareça satisfazer algo interno que, em verdade, é fundado no “eu” e seu narcisismo representacional e mascarado. É a subjetividade como fundamento estético.

2ª. Também aqui podemos perguntar logo: Qual é a finalidade (telos)? Em termos de ensino, ou seja, por motivos escolares, que deveriam servir à educação, a leitura da obra já está direcionada ou pelo nome do autor e sua importância para determinado períodos literário ou pelo seu estilo. Outro motivo deriva das posições críticas sobre a obra e sobre a própria compreensão do que seja uma obra poético/literária. A mais comum é determinada pela época e suas circunstâncias históricas e sociais, ou seja, há um motivo histórico e social. Pensa-se, infundadamente, que a obra é um produto da sua época e de determinadas estratificações sociais. Os personagens serão representação dessas relações sociais com seus valores e posições ideológicas. Em geral, tais posições críticas tem por finalidade ou louvar o autor por sua crítica social ou mostrar a dependência da obra e do autor desses preconceitos sociais, históricos, culturais e econômicos. Se bem observarmos, a obra é um pretexto para aplicação de conhecimentos advindos de outras disciplinas, que podem ser: história, sociologia, psicologia, política, cultura, antropologia, linguística etc. Claro que aí uma pergunta importante se coloca: Por que a obra deve ficar dependente desses conhecimentos externos à própria obra. É evidente que toda obra poético/literária é uma fonte preciosa de dados para o desenvolvimento dessas disciplinas. Isso não está sendo negado. O que se questiona é a total dependência da obra dessas disciplinas. Não terá a obra uma autonomia e uma realidade própria? Todo o seu poder criativo consiste em reproduzir algo que lhe é circunstancial? É isso criação? Esta limita-se a reproduzir e representar e a pensar o já penado e repensado? Em se tratando de poesia, acha-se que tudo se resume aos sentimentos subjetivos do poeta ou do leitor. É isso verdade? Claro que não.
A compreensão da finalidade (telos) continua a mesma, apenas voltada mais para o exterior enquanto ação objetiva originada na razão. Portanto, só aparentemente se opõe à primeira, pois continua baseada no sujeito racional, o que se denominou um “eu” universal, causal, representacional, funcional. E a palavra grega telos significa isso? Pode significar isso, mas não é seu sentido essencial. É derivado e até secundário, por isso forma uma dimensão da dobra. A finalidade aí está sempre dependente do que funda tudo isso, ou seja, a finalidade essencial e não funcional nem representacional. Esta finalidade nunca funda sentido, só significados dentro do sistema de oposições complementares. Mas estas não podem existir sem o fundar do sentido em que consiste o próprio telos e o próprio do telos. Como vamos ver, telos é sentido poético-fundador de mundo.

B – Não-causalidade e não-finalidade

Nem tudo na vida e na realidade está sob o princípio da causalidade. Pelo contrário, a existência e a realidade em sua essência são não-causais. E quando há não-causalidade não há, evidentemente, finalidade. Toda finalidade é determinada por uma relação de agente e paciente, de causa e efeito, onde se espera sempre algo como resultado. Este conhecimento causal se dá sempre dentro de sistemas e estes dependem de teorias e conceitos. Como a realidade e a existência são essencialmente dinâmicas tais teorias são obrigadas, com o tempo e no tempo, a mudar, ou seja, embora os conceitos sejam definidos por conhecimentos objetivos, universais e permanentes, tal objetividade, universalidade e permanência ou duração estão diretamente ligadas às teorias. A realidade é mais, muito mais, do que as teorias. E isso acontece porque a realidade não se restringe ao princípio causal e final. Daí surge uma pergunta: Se a realidade não se conhece só por meio de conceitos, em que outro modo de conhecer a realidade se dá, acontece? Tanto a realidade quanto a existência é constituída por questões. Estas têm algo de enigmático e da evidência. Elas são prévias a qualquer teoria e seus conceitos. Por isso mesmo não dependem de finalidades. Elas são válidas e existem ao simplesmente existirem, ao se darem como a própria dinâmica da realidade. O Tempo, a Vida, a Morte, a Existência, o Amor, a Alegria, a Felicidade, a Finitude, a Solidão etc. etc. independem de conceitos e finalidades. E como tais são a própria realidade se dando continuamente em sua dinâmica de acontecer. Por isso mesmo, jamais podem ser dependentes de sistemas, sejam eles quais forem. E se não dependem de sistemas não são causais nem funcionais nem são determinadas pelas finalidades. A vida não tem outra finalidade senão ela mesma. O tempo também. A felicidade também. O amor também etc. Vejamos bem que tais questões não dependem de nenhuma subjetividade nem de nenhuma época ou cultura. Elas são prévias, atuais e futuras. Viver consiste em consumar a vida. Amar consiste em consumar o amor etc. É então que as questões se tornam questões. Como consumar? Como experienciar no viver e existir as questões?

O sentido ético-poético de telos

Antes de responder às perguntas anteriores, vejamos como elas se deixam fundar no princípio (arché e telos). Princípio é a energia fundadora que não deixa de vigorar em todo acontecer da realidade em seu eclodir enquanto finalidade, telos. Mas o que aqui quer dizer finalidade? Jamais significa objetivo, pois este sempre resulta de um agir causal. É uma finalidade sem causa. E o que é isto? Simples: a finalidade que consiste em levar o que já desde sempre é à sua plenitude. Então telos é finalidade no sentido de consumar, levar à plena realização do que se é, e não a uma finalidade determinada pelas funções bem realizadas dentro de um sistema causal e representacional. E o que é mais importante e próprio para cada um senão consumar o que já desde sempre é e que no desdobrar da dobra consiste em chegar a ter o que já se é? Ora, este desdobrar é o que se chama em grego e é seu sentido originário, telos. Portanto, estamos diante de uma finalidade não-causal nem simbólica nem representacional, porque não depende de função dentro de qualquer que seja o sistema. É que este telos, este consumar diz o vigorar da questão em cada sendo, onde se dá e acontece a dobra, ou seja, o que é se consuma no como é. Temos aqui o princípio em sua circularidade poética, e não linear, não estática, mas dinâmica, não-finita, mas infinita, não de exclusão, mas de inclusão. Isso é a dobra de arché e telos. Deste modo a leitura das obras de arte se dão sempre num diá-logo, onde se dá a dobra de língua e linguagem, de rito e mito, de vivente e vida.
É então que acontece o agir não-causal nem final. É o agir que conduz à eclosão das obras de arte. Todas as obras de arte são experienciações das questões, esses enigmas que nos motivam para viver e existir. Desse modo, o experienciar a existência é fazer desta uma obra de arte. E como se pode fazer da existência uma obra de arte? Experienciando as obras de arte, aprendendo com a arte a ser o que desde sempre já somos. Aprender é sempre tomar posse do que somos e ainda não temos mas existimos para chegar a ter. E como acontece tal experienciação em relação às obras de arte e à arte? Dialogando com as obras de arte. Ler uma obra de arte é sempre na leitura e pela leitura abrir-se para uma escuta e nesta e com esta estabelecer um diálogo. Este não é uma decisão subjetiva. As obras de arte só falam se para com elas nos abrimos e assim deixarmos o diálogo acontecer. Essa é a atitude da leitura: deixar a obra falar. Ler do ponto de vista das obras poéticas é deixar a obra falar. Ler as obras poéticas é deixá-las falar. Elas solicitam de nós esse ato amoroso. Seja amoroso, amigo leitor, escute, dialogue, deixe a obra falar.
A atitude mais importante e decisiva é valorizar a obra pelo que ela é. É deixar a obra falar sem qualquer preconceito prévio. E como é que a obra fala? A obra fala quando começamos a dialogar com ela. Todo diálogo pressupõe um respeito mútuo pela abertura ao que outro tem a dizer. Isso pressupõe algo fundamental na nossa vida: a escuta. É necessário que valorizemos a escuta, sem a qual não nos abrimos para as questões que constituem e envolvem nossa vida. Outro modo de deixar a obra falar é procurarmos nela as questões de que ela trata e que, de algum modo, também são sempre nossas questões. Para essa leitura onde a obra fala, temos de partir de algo muito simples: Toda obra se faz, se cria numa tensão profunda entre duas instâncias decisivas: a – Entre poema (obra) e poesia; b- entre língua e linguagem; entre vivente e Vida. Esse entre, a energia amorosa e dialogante atuando, parte de uma constatação muito evidente: não há separação nessas três instâncias. Elas constituem uma dobra. Nossa existência consiste no desdobrar (historicidade) dessa dobra, desse entre. Esse existir em seu sentido é a energia irradiante que é a Vida se fazendo claridade, advindo à verdade na manifestação do que somos. Vida, existência e luz constituem aquilo que somos e temos de conquistar para chegar a ser. Cada vivente é diferente do outro. Mas não há vivente sem estar em tensão com a Vida (a língua grega tinha duas palavras bem claras para marcar essa diferença: bios era o vivente, zoé era a Vida). Pois bem, o mais importante para o leitor é deixar-se tomar na obra pelas questões que a Vida põe, depõe, dispõe e propõe. É aí que surge o diálogo, desde que haja uma escuta. Quando escutamos as obras, isto é, a poesia, a linguagem, a Vida que pulsa nas obras, então estamos deixando as obras falarem. Esse, sem dúvida nenhuma, deve ser o principal motivo de toda leitura de obras poético/literárias. E lemos não por causa da escola nem por causa delas obras, mas de nós mesmos, pois somos os maiores interessados. Simples. São interesses onde se decide o nosso motivo de existir. Inter-essar-se é deixar-se tomar pelo ser na dobra (inter/entre), pois mais importante do que viver simplesmente é dar à existência um motivo de viver.
Toda leitura pressupõe um contato do leitor com a obra. E é então que uma condição essencial se torna necessária para deixar a obra falar: a escuta. Parece algo muito óbvio e simples, mas não é. Talvez um exemplo pudesse ser dado para mostrar esta dificuldade em deixar a escuta nos tomar para que a obra fale e a escutemos. Quando olhamos, nosso olhar se move continuamente atraído pelas muitas coisas e objetos e até pelas pessoas. É algo absolutamente natural. Porém, devemos notar que tudo aparece porque o vigor irradiante da luz as toma e lhes dá a condição de serem olhadas e vistas. Sem luz não há como nosso olhar atingir essa riqueza mutável e constante da realidade. Embora a luz seja o princípio de eclosão de tudo naquilo que é, ela mesma nos fica em segundo plano. Nunca lhe damos a atenção que deve ter. Pois o mais comum em nossa vida é aquilo que nos envolve dentro do sistema de relações chamar mais nossa atenção. Vemos tudo e tudo só se dá a ver com a presença e vigorar da luz. E, no entanto, de tudo que vemos e não paramos de olhar não vemos a luz que a tudo envolve e lhe a visibilidade e nem vemos os olhos com que vemos. Agora podemos dizer o que é a escuta. Seria o mesmo que no olhar tudo ficasse em segundo plano e só tivéssemos olhos para a luz. Ter olhos só para a luz é o mesmo que nos deixarmos tomar pelo silêncio em meio às múltiplas vozes. Assim como não há coisas sem luz também não há vozes sem silêncio. Praticar a difícil arte da escuta é isso: em tudo que vemos só olhar e ver a luz e, em meio a tantas vozes, só escutar o silêncio, para que em sua plenitude a voz da obra nos fale. Não é fácil e exige nossa concentração e ascese disciplinada. Mas dela uma riqueza incalculável nos advém. Se é o eu que escuta, a fala da obra fala ao que somos. O que somos tomado pela voz da obra opera algo novo, diferente: a iluminação não do eu, mas do sou de cada um. Eu e sou formam uma dobra que não cessa de acontecer. E o que uma tal luz ilumina? Sem dúvida nenhuma, o que nos é próprio. Por isso, a voz das obras poéticas só ilumina e nos envolve com suas questões porque elas se tornam as nossas questões, irrompendo em novas iluminações. Iluminar algo é manifestá-lo na sua verdade. Ler e deixar as obras falar, enfim, é eclodir na verdade do que somos.
Vale a pena escutar para deixar as obras falarem, pois são as vozes das questões que são nossas. As questões são sempre próprias, pois não há questões como idéias ou conceitos gerais. Sobre questões não se pode falar, pois caso se fale sobre, já não são as falas das questões. As questões somos nós mesmos sendo.

12 outubro 2010

Época e arte

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Transformar em linguagem cada vez esse ad-vento permanente do Ser que, em sua permanência espera pelo homem, é a única causa (Sache) do pensamento. É por isso que os pensadores Essenciais dizem sempre o mesmo (das Selbe); isso, no entanto, não significa que digam sempre coisas iguais (das Gleiche). Sem dúvida eles só o dizem a quem se empenha em repensá-los (Heidegger, 1967: 98).

Na maior parte das vezes, a nossa felicidade ou infelicidade não deriva da vida propriamente dita, mas do sentido que lhe damos. Dediquei minha vida a tentar explorar esse sentido (Pamuk, 2007: 66).



A questão da época pode ser examinada do ponto de vista do conceito ou da questão. Porém, não podemos ter a pretensão de reduzir a questão ao ponto de vista nem ao procedimento do exame. Por quê? É que a questão sempre permanecerá uma questão, para além de exames ou pontos de vista. Toda questão nos advém no questionar e “questionar e pôr em questão é a única tarefa do pensamento”, diz repetidamente Heidegger. Pensar é exatamente isso: deixar-se atravessar pela pergunta, deixar acontecer no saber o não-saber.

Sobre a pergunta Heidegger diz o seguinte: A resposta à pergunta é, como cada autêntica resposta, a última saída do último passo de uma longa seqüência de passos questionantes. Cada resposta somente conserva sua força como resposta enquanto ela permanecer enraizada no questionar (§ 159 de A origem da obra de arte). A tentativa de compreender e responder ao que é época só se mantém em seu vigor se continuar enraizada no questionar. Época é uma questão. Ela se configura, porém, no que se desdobra em outras questões. E talvez a mais fundamental é a questão: O que é o tempo? Há, no entanto, uma questão prévia a esta: O que é memória? É que nesta além do tempo comparece a questão da linguagem. Como tempo há a permanente mudança, mas como linguagem há a permanente permanência. Ao que muda e permanece e além disso é linguagem, desde sempre se chamou poiesis. Poiesis é o entrelaçamento de memória e linguagem no verbo-palavra. Mas este é sempre a fala do silêncio. Só então o verbo se torna palavra. O verbo é a insustentável leveza da palavra, sua condensação e densidade. Esse jogar entre do verbo – a fala E o silêncio – é o mistério de todo mito. No mito nos advém o tempo circular, onde mudança e permanência se dão. Daí que todas as manifestações artísticas são míticas, é que elas são ao mesmo tempo também manifestações da memória enquanto palavra. Porém, os mitos são experienciações do sagrado: é o mistério de todo mito, o seu originário. Originário é, pois, o sagrado se dando enquanto tempo, memória e linguagem no verbo-palavra. A esse dar-se do sagrado é que se verbo-denominou: poiesis.

Tentar compreender as épocas é deixar-se atravessar pela pergunta da mudança e da permanência enquanto experienciações da poiesis.
Normalmente a época é vista dentro do conceito linear de tempo. Para melhor entendermos esta posição é necessário, além de saber que há outras possibilidades de entender o tempo, ficar atento à questão do princípio. Ver aqui o que digo sobre princípio nas notas de A origem da obra de arte e aí o que se entende por Ursprung.
Do ponto de vista historiográfico, a época é algo muito pregnante, muito próximo, pois tudo ao nosso redor nos fala de relações, influências, uma certa rede em que nos enleamos e tentamos cumprir nossas funções e achar nosso ser, nossa afirmação, realizar nossos desejos, sempre em estado de procura, de plenificação das possobilidades que já latejam dentro de nós. Vemo-nos imersos não apenas nos acontecimentos históricos, mas também nos ambientes do país, da cidade, do trabalho, dos amigos, da família, para enfim, termos o nosso encontro marcado conosco mesmos. Estamos, queiramos ou não, lançados numa conjuntura que assume diferentes facetas: sociais, econômicas, ambientais, políticas, psicológicas, familiares, afetivas, profissionais. Há todo um contexto em que todas as nossas decisões encontram parâmetros já estabelecidos e contra os quais nos vemos muitas vezes jogados e colhemos desencantos, frustrações, desânimos. Mas também há um jogo que queremos ganhar e um jugo de que queremos nos libertar. E muitas esperanças e procuras vão-se concretizando e o perfil do que somos se vai configurando: com perdas e ganhos, erros e acertos. Viver é muito perigoso porque é o desafio da errância no horizonte do não-limite, sempre dentro e a partir da época.

E então surge dentro de nós uma certa dúvida: de um lado, os estudos e o próprio fluir do tempo, na sucessão de dias e anos, estações e festas, nos diz que temos um encontro marcado com um fim. Às vezes, as doenças ou acidentes trágicos fazem esse jogo de vida e morte mais inapelavelmente presente. E tudo mergulha num grande mistério, onde o sem sentido é um grito pungente e profundo. Mas só nos defrontamos com o sem-sentido, porque já estamos jogados originariamente no sentido, na verdade, isto é, na essência da realidade. E então procuramos, cada um à sua maneira, melhor compreender todas essa conjuntura, toda esse contexto, toda essa linearidade irreversível, mas ao mesmo tempo, sempre repetitiva, circular, certa, inevitável, terrivelmente verdadeira. Não é isso compreender a época ou será que só podemos falar da época ou das épocas que já passaram? Quando procuramos compreender o atual, o contemporâneo, o que em verdade procuramos é o sentido da época. Pois toda época é a vigência do sentido, da verdade do Ser, mesmo quando o esquecemos e nos lançamos com denodo na familiaridade e freqüentação dos entes.

Então se visto de fora tudo isso parece verdadeiro na sua linearidade e causalidade, na força das circunstâncias a tudo dominando e determinando, no poder da história em comandar e traçar nosso destino, mas visto dentro de um horizonte maior e ao mesmo tempo mais profundo e interior surge uma outra experienciação, onde tudo é mais complexo. E a sensação e até certeza de um certo retorno e até repetição é mais verdadeiro. Isto porque as circunstâncias históricas, em sua mutabilidade e surpresa, são sempre desafiantes, criando expectativas e a sensação de que ainda podemos exercer nossa vontade de sujeitos. Experienciamo-nos como seres temporais em processo de eclosão e construção no pleno domínio de nossas decisões. Mas diante do inesperado, dos insucessos, dos acontecimentos inexplicáveis e fortuitos, nossa fé na nossa vontade e no processo histórico começa a sofrer algumas dúvidas. E surge um outro tempo, uma outra história, uma outra vontade, uma outra inexorabilidade, onde o traço dominante é uma estranha sensação do já visto, do já vivido, do já sabido, do desde sempre inevitável. E um outro tempo nos advém com seu poder imemorial. O viço do novo e da novidade dá lugar à vivência da memória que dentro de nós salta viva e atuante. É uma memória que está para além e aquém do que as circunstâncias e contexto parecem mostrar e querer ignorar. É uma memória que não nos vem de fora nem de algo interno psicológico. É um esquecimento que de repente se faz lembrança, onde nos lembramos do que somos em meio ao embate do que sempre quisemos ser e que já estava incrustado em nós como um projeto que sentimos ter realizado ou não. A origem de nosso projeto de ser se torna então o próprio originário para além das influências e determinações do momento, das circunstâncias, do contexto. Sabemos que tudo isso está aí bem presente, mas sabemos também que mais profundo e real do que tudo isso surge a figura do que fomos realizando ou não. E então todas essas circunstâncias surgem como um palco onde nossa vida foi representada, mas a ação de representar e o que representamos é originariamente nosso e somente nosso, para o bem ou para o mal, para o sim ou para o não. E então constatamos constrangidos que não podemos representar para os outros, senão não nos encontramos. E para nós não podemos representar: só ser e conhecermo-nos, isto é, conhecermos para sermos.
E então a época meramente circunstancial e histórica é experienciada numa época radicalmente poética, radicalmente originária, sem modelo, sem comparação, sem precedentes. É a grande aventura de tornar ventura sermos o que já desde sempre éramos, a grande ventura de nos apropriarmos do que nos era próprio. Era para sermos. E então o circunstancial e contextual é como que um conjunto de adjetivos possíveis em que o que era para ser se concretiza. E no lugar de dizermos eu fui isto e aquilo e aquilo outro, vivi isto e aquilo, compartilhei isto e aquilo, só podemos dizer: eu sou eu. O próprio do eu é então o que ele é, onde o eu sou só é eu na medida e no horizonte do sou, porque o sou é, sem dúvida, o próprio. E ser nessa experienciação não tem predicativos. É um ser verbal sem trasitividade e, no entanto, pleno de ação. Mas onde também não há mais diferença entre eu e sou. O tempo não foi linear e circunstancial, mas de amadurecimento do ser que já desde sempre somos, o eu é o que é em seu tempo poético-ontológico. O eu, no que lhe é próprio, se tornou um acontecer poético absolutamente inaugural e irrepetível.
Toda obra, se é inaugural, é poética, é obra de arte. O seu tempo é o acontecer. Não que ela ocorra no tempo poético. Não. Ela é o próprio tempo poético acontecendo. Arte é tempo poético. Todo ser humano é um apelo de realização poética para além de seu aparente tempo linear e cronológico, de seus adjetivos e circunstâncias.

A diferença fundamental da época historiográfica e da época poética pode ser bem compreendida quando fazemos a diferença entre conhecimento e saber. O conhecimento trabalha com os conceitos, que variam com o tempo cronológico. Fundado na lógica, muda diante de novas hipóteses e de novas experiências, daí a aparente idéia de progresso, de um conhecimento novo. Há, na realidade, a sucessão de conceitos que variam também tendo em vista os novos suportes inventados e a conjugação com outros conhecimentos. Tais conhecimentos estão muito próximos das meras informações. As histórias das artes (e qualquer história) é um acúmulo de informações, consignadas nas épocas, mas que em si não dizem nada, além do fato de serem informações. Só aparentemente se tem a idéia falsa de um conhecimento maior da arte ou de qualquer outra “coisa”. Porque, em verdade, nunca há um progresso no conhecimento do humano do ser humano, entendendo aí por humano a essência do que faz cada ser humano ser sempre uma realização do próprio, do que é. Humano é o Ser essencailizando-se. As aparentes mudanças epocais são mudanças circunstanciais que apenas provam em última instância o vigorar do humano, isto é, a Essencialização do Ser. Em tal Essencialização somos sempre o mesmo, o Ser. Daí não se poder pensar a época numa oposição entre o eu e o nós, o social, o histórico e um outro social e outro histórico. A época é sempre a realização de todo sou no é e de todo é no sou. Do sou e do é nada sabemos a não ser que somos, isto é, vigoramos no e partir do Ser.

Em princípio, os conceitos nascem do jogo lógico da proposição e têm a pretensão de serem permanentes e universais. Hoje se sabe que não são uma coisa nem outra, ou seja, sua universalidade se restringe ao modelo e paradigma que os gerou. Por ser lógica e poder, portanto, ser transformada em experimentação numérica, essa dimensão numérica é que lhe dá a aura da universalidade. Não se nega com isso o valor dos conhecimentos como não se nega o valor das informações. Mas um tal valor fica restrito ao seu âmbito de aplicação, que se dá de acordo com o paradigma que a gerou. Hoje, a produção de conhecimentos é de tal ordem que fica muito difícil pretender aprender todos. E o que é necessário aprender, fora do funcional e circunstancial? Época jamais pode ser um conjunto de conhecimentos funcionais? O que toda época exige sempre um depurar seus saberes para que advenha em cada realização do sou, a sabedoria. Deixar-se tomar pela sabedoria é deixar advir o sentido e verdade da Essencialização do Ser, que é sempre o Mesmo e que de maneira alguma é a mesma coisa. Como entes sendo não podemos prescindir dos conhecimentos, porém, estes jamais podem determinar o sentido do sendo naquilo que ele é. O sentido vigorando é uma fonte que irriga uma grande horta de sendos em processos de manifestação, de realização. O crescimento real de todos não é dado pelo acúmulo de conhecimentos entitativos, funcionais. E então qual é o limite? No caso da ciência, novas teorias, novas experiências produzem continuamente novos conhecimentos não só verticalmente, mas também na interdisciplinaridade. E uns vão substituindo os outros, assim como um meio de locomoção vai superando o outro. Dada a mutabilidade tanto das informações como dos conhecimentos, fica para o atual ser humano um sério problema para proceder a um aprendizado.

Já a época poética se funda no saber e por isso este provém do originário. E aqui a questão da universalidade toma um outro sentido muito diferente. Ele é permanente na mudança, daí ser originário, e ao mesmo tempo muda em sua concreticidade. É que o saber é saber de questões, onde para além do aspecto meramente lógico há também o saber que só a sensibilidade pode presentificar e densificar. Mas é uma sensibilidade que não provém de quem sente, mas da fonte que gera o saber: o originário, o poético, o ético, o sentido. E isso é a arte, porque todo o seu saber e sabor é poético. Sendo originário institui e manifesta o tempo enquanto tempo e a linguagem enquanto linguagem. Entenda-se aí o manifestar como o próprio vigor da poiesis. Nesse horizonte, tempo e linguagem são o próprio ser se manifestando enquanto acontecer poético. Este acontecer poético é o originário porque consiste tanto num salto para como num salto de, num saltar sempre inaugural.

Quando no final do ensaio A origem da obra de arte, Heidegger vai retomar o Ursprung, depois de percorrer o círculo, ele o faz estabelecendo a diferença entre conhecimento e saber.

§178 – Sempre que a arte acontece, quer dizer, quando há princípio, a história experimenta um impulso. Então ela principia ou torna a principiar. História não significa aqui a sucessão de não importa o que no tempo, mesmo que sejam importantes fatos. História é o desabrochar de um povo em sua tarefa histórica, enquanto um adentrar no que lhe foi entregue para realizar.
§183 – Uma tal reflexão não pode forçar a arte e seu devir. Porém, este saber reflexivo é a preparação prévia e por isso imprescindível para o devir da arte. Somente tal saber prepara o lugar (a) à obra, o caminho aos criadores, a posição aos que desvelam.

§183 (a) Edição Reclam de 1960: Lugar da de-mora.

O saber da arte como salto inaugural: §184-185

§184 – Em tal saber, que apenas lentamente pode crescer, decide-se se a arte pode ser um originário e, então, precisa ser um salto-prévio, ou se ela deve permanecer apenas um apêndice e, então, somente pode ser acompanhada como uma manifestação cultural, tornada normal.

§185 – Em nosso Entre-ser estamos nós historicamente no originário? Sabemos nós, quer dizer, consideramos nós a essência do originário? Ou em nossa relação com a arte somente nos referimos ainda aos nossos conhecimentos eruditos do passado?



1ª. Parte
Para pensar a época é necessário desdobrar o pensamento metafísico em dois: de um lado os estilos tradicionais de época, de outro a época como acontecer poético.

A leitura comum é linear, causal, finalista: Mito/poesia/pensamento/filosofia > Antigüidade > Idade média > Idade moderna > pós-modernidade. Nesta seqüência são vistos os estilos de época. Heidegger vai pensar isso assim: onto-teo-logia, ou seja, as épocas do ponto de vista do modelo de verdade que as informa e conforma. Então ser, tempo e verdade são um e o mesmo. As épocas metafísicas são vistas a partir do tempo linear, cronológico e historiográfico, onde tudo tem uma origem e uma causa. Mas se pensarmos a vigência do sagrado enquanto mítico-poético, então teremos um tempo não-linear, porém, circular, onde a cada círculo correspondem novas modalidades de experienciação do sagrado, não linearmente, mas dentro de cada experienciação. Por exemplo: o mítico medieval não é o mítico moderno. Não há aí uma linearidade, mas diferentes experienciações do mítico. A visão linear e de origem quer-nos sempre fazer ver tudo com início, desenvolvimento, evolução, em progresso, onde, implicitamente há uma idéia moral de “melhora” a que corresponde o progresso, pressupondo sempre um modelo crítico explícito ou implícito, equacionado na dupla: causa e fim. Como não há melhora real, as pessoas ou sonham com um tempo “ideal” do começo ou com um tempo “utópico” do futuro, só não aceitam o presente. A “medição” e a “mediação” desse progresso se localizam nas “formas”, daí, dentro dos estilos de época, as “vanguardas” etc. É ainda necessário distinguir toda uma época de um simples estilo, embora eles se correlacionem. É o exemplo da Modernidade e dos estilos dentro da Modernidade. É o caso hoje da Pós-modernidade e do pós-modernismo. Mas fique claro que esses são problemas da historiografia e não e jamais da época poética. Tudo se dá nas formas e sempre nas “novas” formas (o estranho é o conceito de novo). O que seja a forma e a sua mudança é o que a caracterização do estilo quer marcar e esclarecer, não se notando que se experimenta um círculo vicioso: é uma caracterização formal em que se parte das formas, se encontram características formais e se chegam às formas. O peso das formas é tão determinante que tudo se lhe submete. A forma é fundada na idéia de causa e fim.
Mas se sairmos:
a) do tempo causal e linear para o circular e mito-poético;
b) das matérias e formas para Terra e Mundo;
c) da origem para o originário;
d) do ser-humano como sujeito para o ser-poético como abismo-inaugural, então eros e thanatos, como fonte originária de diferentes experienciações se dão em diferentes épocas, onde não há nenhuma linearidade, nem progresso, nem comparação de formas. Não é a forma que cria conteúdo nem o conteúdo que cria forma, mas a obra enquanto verdade poética de Terra e Mundo. Cada época, num círculo poético de manifestação e ocultamento, de desvelamento e velamento, se dá em obras e elas, enquanto verdade do ser (eros e thanatos), produzem épocas. Já a verdade enquanto adequação (conceito e proposição) produz as épocas formais, mais conhecidas como estilos de época. No círculo-poético se fazem necessários não só os criadores, mas também os desveladores. Nesse sentido, tanto as obras como os desveladores devem ser sempre epocais, isto é, devem pro-duzir épocas ou mundos, ou melhor, experienciações do real/ser enquanto mundo, na medida em que mundo significa o sentido e verdade do ser se manifestando e velando. Esse “e” (entre) desfaz qualquer verdade predicativa, propositiva, e ultrapassa o princípio da contradição, porque o real é desvelamento e velamento ao mesmo tempo e sem complementaridade. Estas experienciações epocais não se fazem só a partir das obras mais recentes, mas a partir das obras como tais, independentemente da sua datação cronológica ou de aparecimento. Muito menos de autor.

É que as épocas não se dão numa linearidade a partir de uma origem causal e finalista. Não. Elas pressupõem as obras, seja enquanto criadores, seja enquanto desveladores, como obras originárias, fundando épocas. As obras têm um tal poder que podem até “regredir” cronologicamente. Isso é provado num ensaio famoso de Borges: “Os precursores de Kafka”, onde a obra deste autor possibilita a “releitura” das obras de outras autores que o precederam, na linha de manifestação de mundo que sua obra mais realiza. No originário, acontece sempre a doação e a retração. Isso fica claro no fragmento 123 de Heráclito: Physis kryptestai philei. Este fragmento pensa radicalmente o originário. É no seu apelo de pensamento que podemos compreender o que são as épocas poéticas. A época é poética quando há um acontecer poético. Mas esse fragmento diz o real ou o sagrado enquanto experienciação de pensamento no qual há uma suspensão pela qual o que se retrai se dá no que fica suspenso: a época. Suspender diz o fixar, enquanto pendurar no ar, isto é, no vazio, no que se retrai para que a época apareça. A palavra grega epoché significa exatamente isso: suspensão. Por isso toda época indica sempre uma posição, não em relação a outra mas no vigorar do logos enquanto pro-por, de-por, reunir, dizer, mundificar. As épocas advêm nas obras dos poetas e pensadores, porém, quem as funda não são nem os próprios poetas nem as formas. Elas irrompem a partir do próprio vigorar manifestativo do Ser, na medida em que o Ser se destina epocalmente. Este irromper manifestativo é sempre não-causal, pois justamente constituem experienciações inaugurais para as quais não há padrão, paradigma.

Vista a época na Essencialização do Ser, há sempre um Essencializar-se da Verdade. Porém, esta é sempre perpassada pela errância, a insistência do agir humano no âmbito dos entes e de todas as relações que lhe dizem respeito. Temos no caso sempre o agir como o produzir efeitos e nesse envolvimento, diante do alcance a ação pela qual se dá o esquecimento do Ser, o ser humano em suas ações funcionais se lança e é tomado pelo frenesi do consertar. Este consiste na estranha convicção no poder do ser humano com sua vontade em determinar o curso, percurso e realização da real dentro das finalidades propostas relativas ao conjunto de convivências e satisfações das relações humanas e das suas funções estruturais. O consertar sempre acontece numa vontade e poder interventivos no conjunto das relações e funções histórico-humanas. E isso acontece no e a partir de um saber operativo, transformador, baseado no conhecimento estabelecido pelo poder técnico-científico da razão. O ser humano se lança no frenesi da produção de conhecimentos e transformações operativas que atingem sempre o externo, ocasionando um confronto de valores e satisfações nos quais todos se vêem envolvidos, mas jamais satisfeitos, porque tudo vive sob o império do novo, dos novos conhecimentos, das novas produções, das novas relações, sem se perguntar em nenhum momento pelo sentido disso tudo. Todo este agir operativo toma com base e medida a própria razão como medida e é ela que se torna o fundamento da verdade, uma verdade que opera e opera muito bem no âmbito dos entes, não se levando em consideração o esquecimento do ser. e tudo está relacionado à questão fundamental e nunca superada da essência. O que esta traz como questão? É que na essencia como questão o que está em questão é a medida. Esta é a essência da verdade na própria medida em que a essencia da verdade é a verdade da essencia. Porém, a verdade da essencia jamais advém do frenesi dos conhecimentos e produções efetivas. Ela tem e estranho poder se dar tanto mais quanto o ser humano se deixa tomar pelo ser e se entrega a seu agir. É o estranho agir do concertar.

Porém, o fragmento diz a realidade ou o sagrado enquanto expecienciação de pensamento. Já enquanto experienciação mítico-poética teríamos eros e thanatos.

Nesse sentido, o estudo dos “estilos de época” assinala uma linearidade historiográfica fundada nas linguagens, no sentido de técnicas de produção, e suas formas, a partir de quatro linhas:

1ª. Antigos e modernos;
2ª. Tradição e novo;
3ª. Passado e futuro;
4ª. Reacionários e progressistas.

Esta tomada de posição é fundada na razão, na moral, na ideologia, no progresso (ciência), sob a égide do sujeito racional como poder instituidor da realidade ou objetividade a partir de utopias racionalistas, idealistas. Tais paradigmas de leitura e raciocínio fundam uma progressiva dessacralização, ou seja, uma secularização técnico-científico-política. Os sinais visíveis são: a) a globalização; b) a funcionalização de tudo; c) a perda do humano do homem; d) a submissão do poder político ao poder técnico-científico; e) a história determinada pelo investimento maciço em pesquisas para novas descobertas científicas.

A hegemonia da secularização acaba por predominar não só nos seus produtos, mas também se faz presente nas produções resultantes das diferentes experienciações da realidade: de pensamento, artísticas, religiosas, míticas, místicas, numa palavra: poéticas. Dada a centralização na época dominada pela subjetividade tais experienciações múltiplas da realidade tendem a ser vistas como diferentes visões de mundo. Acontece que então é determinado pela visão ou teoria enquanto suporte racional, variado, mas de qualquer modo racional ou disciplinar. Porém, o fundo das obras é justamente esse contraste de visões de mundo. Não se percebe que tal contraste é para melhor fazer aparecer a realidade poética, o sagrado, que se vela. Até porque a época se dá nesse contraste. Caso contrário não haveria época. Fica evidente que cada vez mais prevalecem as visões de mundo e cada vez mais se ausenta o sagrado. Têm tantas visões que o que se dá a ver velando-se não é visto. As visões de mundo lançam tudo no ordinário do classificável e do conceituável. Há um enorme desconforto se algo foge às classificações e parte-se para uma denominação redutora e contrastante com o racional: o que não é racional é irracional. Tudo se vê e torna acessível na rede. O que não se vê e foge ao conhecimento são os buracos da rede, os seus vazios, aquilo e somente aquilo que permite que apareça a rede e os conhecimentos que ela veicula. Tudo se torna complexo e labiríntico. O simples em sua presença e transparência e pregnância se torna inacessível. E perdida esta não há mais época, porque tudo parece acessível na e pela rede.

Daí que as leituras predominantes caminham para uma uniformidade em relação às diferenças da realidade em seu vigorar e só vêm um mundo virtual, fora do qual nada mais existe. A realidade se tornou uma grande teia ficcional, onde o ser humano colhe e é colhido pelas fantasias irreais como se fossem a realidade em seu vigorar. Perdidos nas agitações do mundo dos entes produzíveis e consumíveis vivem o impróprio como se fosse o próprio enquanto estética ou funcionalidade. E ao humano afetivo sucede a realização do consumo estético, renovado pelas inovações e novidades infindáveis, onde o ser humano se vê enleado pelo valor quantitativo e onde não tem mais tempo para o próprio. Deslocado na atração da quantidade das novidades nem percebe o duplo viver voltado ou para fora ou para dentro. Um e outro nunca se encontram. A realidade esquizofrênica procura se anestesiar em novas e contínuas descobertas e remédios que cobrem todo o âmbito da vida. Morte e destino não fazem parte dessa realidade. Como vigoram sem serem visíveis, são negados pelas procuras e realizações visíveis. Não há mais época, não há mais poético, não há mais sagrado. Estes são temidos e evitados, pois eles não são funcionais. Porém, nesse sonho-pesadelo da realidade virtual o sensível, o afetivo, a disponibilidade, o diálogo, o tempo de escuta e espera e realização é algo que não mais faz parte do viver e advém a solidão onde tudo perde o valor e o sentido. O quantitativo e numérico substitui progressivamente o qualitativo e gratuito.

A predominância das leituras formais, utilitárias e ideológicas se deve à conjugação dos três conceitos de “on”, em que se manifestou o pensamento filosófico-metafísico, conforme explica Heidegger no ensaio: A origem da obra de arte. O tornarem-se exclusivos e paradigmáticos é que determinou uma progressiva secularização, devido ao fato de que, das três, a que se baseia nas quatro causas é que absorveu as outras duas e se tornou hegemônica e paradigmática para todo “ente”, ou seja, para o “on”. Mas visto mais profundamente, é a primeira que subjaz a todas e as determina. É importante ficar claro que nenhuma nem a junção das três dá conta de dizer ou explicar o que é o “on”. Por quê? Porque o reduzem a uma proposição de sujeito e predicado, de fundamento e fundado, de causa e finalidade. Mas o “on”, em si, é verbal e irredutível a qualquer conhecimento proposicional e predicativo. No princípio era o verbo e não a proposição, pois o que é para ser são as palavras. Logos é verbo, palavra e não lógica da proposição. Os conceitos surgem da proposição, jamais do verbo ou da palavra. Uma palavra, um verbo nos basta e tudo o mais é secundário. A ação do próprio é sempre verbal, é ser, e jamais proposicional. O pensador Agostinho de Hipona já disse: “Ama. E faz o que quiseres”. Como todo “sendo” é sempre verbal, é sempre “arché”. Ele continua uma “questão”. E onde o “on” como questão se dá é na obra de arte. Por isso, os conceitos de coisa não dão conta do que seja a obra de arte (que sempre permanece um mistério, não fosse ela uma manifestação do mistério que é eros e thanatos). Mistério diz aqui a finitude radical do real, do humano, do poético, porque em tal finitude acontece sempre o insolúvel e indiscernível acontecer de teoria E prática, não-ação E ação, vida E morte, ou seja, finito E não-finito. Isso é época.

O conceito de coisa das quatro causas já trazia em si a secularização técno-científica, porque ela se originou da explicação do que é o utensílio e o instrumento. Ela tem implícito o reduzir o “on” a funções, a pensar o “on” nas suas possibilidades de funções. Nessa perspectiva, tudo se vê na funcionalidade e causalidade. O real originário não é causal nem funcional. Ele é sem porquê e sem para quê.

Para nos afastarmos de uma tal leitura, compreensão e interpretação, e deixarmos as diferentes experienciações da realidade aparecerem em sua inaugurabilidade, é necessário deixar as obras das experienciações inaugurais da realidade aparecerem em seu vigor originário. Para isso é necessário:

1º. No lugar de matéria e forma falar de Terra e Mundo;
2º. No lugar de coisa, objeto ou texto falar em obra e verdade;
3º. No lugar da linguagem instrumental enquanto significante e significado, falar em linguagem poético-manifestativa de Terra e Mundo, onde o significante é, em si, a terra e o significado é, em si, o mundo e não pode ser reduzida a realidade a um signo nem a um símbolo, porque ambos só são compreensíveis como representações de. Porém, terra e mundo não se dão numa dicotomia conceitual, mas numa disputa;
4º. No lugar de origem, influências e autor criador, falar em originário, memória e physis/kruptestai ou logos originário;
5º. No lugar de obras de ficção e processos retórico-narrativos, fundados nos conceitos, falar em obras-questões com personagens-questões, imagens-questões, eventos-questões, narrações-inaugurais;
6º. No lugar de épocas estilístico-formais, falar em épocas enquanto diferentes experienciações poéticas de Terra e Mundo.

É claro que não adianta nada trocar umas palavras por outras, se não forem acompanhadas por um empenho de pensamento, de transformação interna E externa, de se deixar atravessar pelas questões. Um tal atravessar não é uma mera aventura racional, é um diálogo de pensamento onde se diz ética, poética e originariamente o sentido do que somos.

A aposição dos adjetivos: mítico, primitivo, antigo, medieval, barroco etc. devem ser usados com a ressalva de que se trata de um processo de manifestação do que é no como é, da essência (obra) nos acidentes (antigo, medieval etc. etc.), onde o acidente não pode determinar a essência do operar originário da obra, mas onde também o conceito de essência não pode anular o operar originário da obra, de tal maneira que as denominações epocais das obras não se podem sobrepor às próprias obras, enquanto época poética, fundada no tempo inaugural. Neste horizonte, novos desvelamentos não podem ser jamais determinados e enquadrados paradigmaticamente nos atributos epocais das obras, entendidas estilístico-formalmente. Isso quer dizer apenas que as obras enquanto época-poética podem sempre produzir, no pro-vocar os desvelantes, novas dimensões de terra e mundo, de tal maneira que isso leve o ser humano a novas experienciações do que é, ou seja, de homem humano. No dizer de G. Rosa, seriam as travessias sempre inaugurais. Tudo isso pressupõe a ultrapassagem da verdade como adequação pela verdade manifestativa, da proposição conceitual e sintaxe gramatical, pelo verbo e pela sintaxe poética, da metodologia pelo método.
O falar de ou o falar em pressupõe que se faça uma escuta da linguagem que fala nas obras. O poder de reunir que é inerente à fala da linguagem é sempre originário, porque se dá enquanto memória. Por outro lado, esse dar-se implica um agir fundado no tempo e como tempo. É a poiesis. Enquanto linguagem e memória, poiesis e tempo, é que as obras são sempre e inauguralmente epocais.

Nesse horizonte, fundando mundo deixam a terra se manifestar em sua verdade. A terra se dando em mundo enquanto verdade é a dimensão ética de toda obra de arte, porque nela o ser se dá em seu sentido e verdade.

Na questão da consideração das obras de arte em relação às épocas, o parágrafo 67 do ensaio de Heidegger: A origem da obra de arte, é fundamental. Diz:

§67 – Alguma vez a obra será acessível em si? Para que isto pudesse ser bem sucedido seria necessário retirar a obra de todas as referências ao que ela não é, para a deixar repousar em si, só e em si mesma. Mas para isso já se encaminha a intenção primordial do artista. A obra deve, através dele, ser liberta para a seu puro auto-estar-em-si. Justamente na grande arte, e aqui só se fala dela, o artista posta-se diante da obra como algo indiferente, quase como uma passagem que se auto-aniquila diante do surgir da obra, no ato de criar.

Heidegger insiste no “puro estar-em-si” para deixar a obra operar sem as visões que dela se têm fundado na instância dos estilos de época e suas circunstâncias ou “referências” historiográficas, como já explicamos acima. Mas também tem em vista o se afastar da concepção da obra de arte através do terceiro conceito de coisa, ou seja, daquele que concebe e interpreta o utensílio através das causas. É que o conceito de causa toma então em relação à obra três significados:

1º. A obra como tal é devida sobretudo às causas material e formal;
2º. Mas como há também as causas eficiente e final, a obra vai ser devida à ação do artista, que é movido pelas circunstâncias históricas, e nem poderia ser de outra maneira, pois não podemos viver fora de espaço e tempo, ou seja, sempre em determinada conjuntura. Tais circunstâncias assumem diferentes aspectos: sócio-econômicos, psíquicos, religiosos, seculares, materiais, ideológicos etc. Interpretado o próprio tempo como causa, surge a historiografia em conjunção com as formas, onde assumir uma forma é ser formado pelas forças históricas. Movemo-nos aqui claramente num círculo vicioso. O estudo da sucessão das formas e também das influências das formas precedentes no criar dos novos artistas se move claramente na causalidade e na interpretação do tempo histórico-causal; Não se leva em consideração o acontecer poético como um destinar-se de Ser. E este vigorando é que faz surgirem as épocas e as forças históricas e não o inverso.
3º. Implicitamente, como base de tudo isto, está o primeiro conceito de coisa, enquanto fundamenta, como essência causal, o tempo e o ser humano. Essencialmente o ser humano e o seu fazer e criar é o resultado de causas históricas, sendo a essência da história algo causal. Esta causa essencial difere de acordo com a época e com a teoria (ser/idéia, Deus, subjetividade/técnico/ciência). De qualquer maneira tanto o ser humano como o que ele cria, a arte, depende dessa causa. O próprio artista como causa eficiente vai depender dessa causa (ou causas, porque fica na dependência do que se entende por causa fundamental). O sentido mais profundo da representação vai estar relacionado a essa causa como fundamento. Daí que todas as teorias causalistas são sempre representacionais. Sem fundamento e sem fundado não há representação. E toda causa é linear, progressiva. Mas não é uma linearidade cega, mas dialética, surgida das contradições epocais e suas forças dominantes, gerando na e pela negatividade o par, o duplo que, metafísica e dialeticamente, a tudo explica: o dominante e o dominado, o senhor e o escravo, o colonizador e o colonizado, a cultura do dominante e a do dominado, o discurso elitista e seus valores e o discurso do pobre e seus valores, que devem ser negados e substituídos. Não se nota que nessa dialética se gera uma contradição: o dominado pode-se tornar dominante e a uniformidade também nada resolve, pois pela própria essência da negatividade e do polemos em que se dá terra e mundo, vida e morte, eros e thanatos, dominante e dominado, uma mudança de posição ainda não supera a dicotomia dialética, onde a síntese não passa de uma ilusão que nada mais tem de real, pois seria negar a própria luta pela integração dos excluídos nos incluídos. Mas qual o critério que determina a inclusão? É ético ou quantitativo? Em que nível se dá a inclusão? Que poder rege a inclusão? Se o poder é político-ideológico ele será sempre funcional e como funcional prevê o dominante e o dominado, o que manda e o que obedece. Haverá apenas uma troca de poder e de funções. A ditadura aristocrática ou burguesa é trocada pela ditadura do proletariado ou do partido único. Mas há aí uma catetgoria e critério intermediário que não é redutível nem à dialética nem ao ideológico: a ciência, o técnico, o progresso. Aí advém o choque de dois poderes: o político-ideológico e o técnico-funcional. Em última instância quem sempre se impõe é o poder técnico-funcional. Um terceiro poder foge a essa dicotomia: o poder judiciário. Mas de onde vem esse poder? Quem ou o que o legitima? Claro que ele em parte vai estar ligado ao poder político-ideológico, mas em última instância, na atual conjuntura, provém do poder do voto, que é majoritário e plebiscitário. Aí se funda uma pretensa e contraditória preservação das diferenças. É na demo-cracia que se anulam por princípio as diferenças e até as minorias. O jogo do poder em todas as instâncias se torna um jogo de poder de grupos e interesses guiados pelos interesses que se sobrepõem ao direito que os deveria legitimar. Como se pode ver, o poder baseado na quantidade não gera de maneira alguma o ético e justo e humano. Há sempre uns grupos que se sobrepõem aos outros e toda a aparente justiça da dialética é em geral um jogo ainda mais injusto de tomada de poder, sempre em detrimento de outros.
É nesse horizonte que se impõe um outro poder: o poético. E é neste que florescem as épocas.

Heidegger ao postular o afastamento das referências, de qualquer referência, está se afastando, no fundo, do princípio essencialista-causal e não do ser como tempo de historicidade e muito menos do ético e justo, ou seja, do humano fundado no Ser. A obra é um puro auto-estar-em-si. Este não pode ser concebido como uma “idéia” ou “essência”. Interpretá-lo assim ainda é se mover num horizonte causal-essencialista, num tempo linear e causal, pressupondo esta um fundamento, que variou ao longo do percurso do Ocidente. E o que ele propõe no lugar? Em relação ao primeiro conceito de coisa, ele propõe, no lugar da essência, o “Ursprung” (originário). Aqui há três aproximações. Logo no início do ensaio ele diz: “Ursprung ist die Herkunft seines Wesens” (O originário é a proveniência de sua essência). Isso é o que é. O como é é o cerne do seu ensaio, o que ele propõe e que só ao longo do ensaio se dará. Por isso, nos últimos parágrafos ele retoma, tendo em vista o que desenvolveu, o que agora é o “Ursprung” (originário). Mas ainda se move de alguma maneira no primeiro conceito de coisa, quando trata do que é no como é. Nesta interpretação do “on” surge a questão da identidade. Para ir além da identidade causal-essencialista, entende o Ursprung não como origem causal-essencialista, mas como originário. O que seja originário não sendo causa-essencial isso ele trata propriamente no ensaio, mas remete em notas para o seu outro ensaio: “Identidade e diferença”. Aí vai aparecer também a palavra Ursprung (cf. o original de Identidade e diferença), mas não como causa fundamento substancial, mas como Abgrund, cuja melhor tradução é salto mortal, o que é fonte, o que se dando se retrai, ou seja, o que no fragmento 123 Heráclito nos diz: Physis kryptestai philei (A physis ama retrair-se). Neste horizonte, a physis é já desde sempre obra de arte, ou seja, a própria physis no que lhe é próprio é a própria arte, mas aí não podemos entender a physis como a soma dos entes (ta onta), mas a totalidade concreta dos entes, que, como totalidade como o que não cessa de vigorar, ama velar-se e, nisso, consiste a sua verdade, ou seja, a sua aletheia. Na aletheia nos advém a própria physis como obra de arte já fundamentalmente como eros e thanatos, daí o sentido radical de mythos e mystério. À aletheia está interno o rio Lethes. É esse rio que é eros e ao mesmo tempo Lethes. Por isso, a travessia do sertão é navegar as difíceis veredas – riachinhos do grande rio que é o ser-tão – do sertão, ao mesmo tempo que só se atravessam as veredas do sertão quando nos deixamos atravessar pelo próprio ser-tão. Esse atravessar e ser atravessado é o que Heidegger vai chamar mundo, que acontece na obra de arte, porque a physis acontece como mundo, mas é um acontecer movido por e que se move em eros. Por isso ama o quê? Lethes, velar-se, thanatos. O ser-tão aparece então como obra de arte em que se dá a disputa de ser-tão e veredas. As veredas como veredas tortas e mortas são veredas de mundo e do mundo. Por isso o mundo do sertão é originário e não e jamais primitivo. É nesse sentido que Guimarães Rosa, na entrevista a Günter Lorenz, diz que ele é sertanejo, porque foi, dos críticos, o de que mais gostou, e se aproximou das grandes e fundamentais questões da vida e da morte que Rosa propõe ficciopoeticamente.

Quando Heidegger, em A coisa diz que o mundo mundifica, ele só pode mundificar a partir da obra de arte. E aí a coisa como utensílio e confiabilidade encontram o seu lugar, isto é, no mundo que a obra de arte manifesta. A confiabilidade provém do mundo que a obra de arte manifesta. Como o utensílio encontra o seu sentido na obra de arte, a confiabilidade provém da obra de arte na medida em que ela é a coisa enquanto o mundo operando, ou seja, mundificando. No mundificar do mundo, a coisa enquanto utensílio consiste na confiabilidade em que o mundo se mundifica. No mundificar é que acontece mundo. E acontece fazendo eclodir em seu sentido tudo que advém como mundo. Por isso, jamais tanto o mundo quanto a obra de arte não resultam das referências ou circunstâncias historiográficas ou epocais em sentido cronológico. Para compreender o que é época poética é necessário deixar a coisa enquanto eclosão da obra de arte mundificar. A época jamais é a reunião das funções das obras de arte segundo o estilo e o conteúdo.

A coisa enquanto confiabilidade de mundo se mundificando nunca é reduzida a uma mera função, porque aí o essencial é o mundo. Quando o mundo se globaliza e deixa de ser mundo e terra, então a coisa tornou-se objeto disponível para o sistema. Num tal sistema é impossível falar ainda de mundo e terra. O mundo ao se globalizar deixou de ser mundo. Há aí então uma dicotomia entre ser e função, o que não ocorre com a coisa enquanto utensílio com sua confiabilidade. No sistema não há confiabilidade, porque não há mundo, há funcionalidade do sistema enquanto disposição. Tudo está em disposição e à disposição do sistema. A disponibilidade é a coisa tornada função do sistema, sem a confiabilidade de mundo mundificando.

A obra de arte manifesta a terra enquanto mundo. O mundo mundificando é a coisa se dando no jogo da ciranda de mortais e imortais, de céu e terra. Quando tal acontece, temos a realidade enquanto época poética.

2ª. Parte

Acima já indiquei alguns desdobramentos dos três conceitos de coisa, que marcam e fundamentam a trajetória ocidental. No ensaio de Heidegger, o tema central é a arte, mas como ele diz no parágrafo 206, o tema central é a “referência do ser e da essência humana”, não apenas neste ensaio, mas em toda a sua obra desde Ser e tempo. Em poucas palavras, a questão se apresenta da seguinte maneira: partindo da questão em torno do “on”, os gregos formularam quatro respostas, mas nenhuma delas dá conta do mistério que é o “on”. O que eles em última instância procuram é o que desde sempre se denominou essência. Esta é a questão. A questão da época está ligado ao modo como se encaminha a compreensão do que seja a essência. Essa será a questão constante do Ocidente, em todas as obras de seus grandes pensadores, porque cada pensador é epocal, isto é, sua obra é sempre, como obra de pensamento, a inauguração de uma época. O ser se destina nas obras dos grandes pensadores. Pensar o Ser é se deixar tomar pelo seu Destino. Toda época é um desdobramento da dobra originária da referência da Essencialização do ser humano e do Ser. Não é à toa que por detrás das grandes mudanças há sempre obras poéticas inaugurais e obras filosóficas de pensamento. Algumas se conjugam para configurarem uma grande época, como a modernidade, que gira em torno de Descartes, Leibniz, Kant, Fichte e Hegel. Nesta questão temática de Heidegger, o núcleo de sua reflexão, numa primeira instância, é o primeiro conceito de coisa, porque tematiza a questão do ser e da essência humana. Mas não há separação entre este conceito e o terceiro. Propondo um ir além, entendido como ultrapassagem da metafísica, Heidegger nos quer lançar na busca do sentido do ser enquanto a sua verdade. Parte do primeiro conceito de coisa, mas dá um passo atrás para dar um passo adiante. O primeiro conceito de coisa nos propõe o ser humano, em duas instâncias: 1ª. O “on” seria constituído de um cerne: a essência, e de qualidades: os predicativos. Então o “on” deve necessariamente ser aprendido e compreendido na proposição, onde se dá a reunião como logos do que é no como é, ou seja, de sujeito e predicado. A proposição é sempre discurso do logos e sendo discurso deste este passa a ser o fundamento do próprio “on”, porque no logos enquanto reunião se dá a verdade do “on”. Mas é uma verdade de dupla adequação ou homoiosis: 1ª. Adequação do que é ao como é; 2ª. Adequação do “on” ao logos; 3ª. Adequação da estrutura do “on” à estrutura discursiva e gramatical do “on”, enquanto proposição. O “on” se vê enquadrado numa redução ao que é e ao como é, ao enunciado e enunciação enquanto logos do “on”, mas onde o “on” passa a ser compreendido a partir do logos enquanto proposição, pois esta, na sua estrutura de sujeito e predicado corresponde à estrutura do “on” como essência/sujeito e predicativos/acidentes. Neste conceito de coisa se funda a verdade que irá estar sempre presente nos conceitos de verdade, na trajetória do Ocidente. Esta verdade funda a representação. Porém, uma tal representação poderá se basear na causa essencial (mistura do primeiro conceito com o terceiro), e será verdadeira, ou poderá basear-se apenas na aparência, e será falsa. É que pertence ao “on” a dissimulação e a denegação. Pode mostrar ser o que não é. Por outro lado, o logos enquanto razão pode querer se impor ao “on” na medida em que se desloca do “on” para a razão (logos) o fundamento, o sujeito (hypokeimenon). É isto o que caracteriza a Modernidade.

Na crítica a esse conceito de “on”, Heidegger vai questionar a redução do ser à essência geral do ser dos entes, onde tal essência não fala mais do ser, mas do ser enquanto essência abstrata geral. O ser é entendido como verdade e a verdade é entendida como adequação, representação. Há, então, uma perda nesse entendimento da verdade com a consequente perda do sentido do ser. A metafísica se inicia com o esquecimento do Ser. E o que Heidegger propõe? A volta ao “on” para além e aquém dos três conceitos. Ele então passa a ser “o-a-se-pensar” na constância do seu pensamento. Trata-se numa primeira instância do abandono do conceito de essência e acidentes. Como essa essência foi entendida como sujeito, trata-se de se centrar na questão do sujeito, não como conceito e como uma discussão em torno de conceitos, mas porque ao questionar o “on” como essência e como sujeito, o que está em jogo é a própria “essência” do ser humano, porque não pode haver ser humano senão se fundando no ser, senão o predicativo “humano” determina o ser do humano, ou seja, estamos de volta ao primeiro conceito de “on”. Só que agora invertido: os predicativos é que determinam a essência do ser. No sintagma “ser humano”, é o sujeito “humano” que determina o “ser”, ou seja, os predicativos acabam por determinar o núcleo, a essência. Também não adianta fazer uma inversão. Essa inversão são as duas grandes faces da trajetória ocidental: na Idade Média, a essência precede a existência (predicativos); na Idade Moderna, a existência (sujeito) precede a essência (ser). É aí que ele dá um passo atrás para dar um passo adiante. Como?

Trata-se sempre da “referência do ser e da essência humana”. Antes de partir do “on” é necessário voltar ao surgimento dessa questão em torno do “on”. Trata-se, pois, de voltar aos pensadores originários. E é na esteira de suas obras sobre eles que vai aparecer, em primeiro lugar, o questionamento da physis. O que é o ser humano é a pergunta não pela sua essência, mas pela physis. A physis é ambígua. Ela é ao mesmo tempo Terra e Mundo. Por isso, a questão do “on”, uma vez que desde os pensadores originários se pensa a physis como “ta onta”, tem o seu caminho de acesso, ou melhor, ele se dá no caminho que a obra de arte inaugura. A obra de arte é a disputa de Terra e Mundo. Essa é a essência da physis. Como assim? É o que nos diz o fragmento 123 de Heráclito, como já vimos a propósito da época. Mas o retomamos aqui para pensar a referência de época e essência do ser em sua referência ao ser humano. O núcleo desse fragmento nos coloca inauguralmente diante da ambigüidade da physis. Ela como “on” é e não-é. Ou seja, a physis, o que sempre se dá como desvelamento, o que é desvelamento é, ao mesmo tempo e sem dicotomia, velamento, pois ela ama velar-se. O “on” é desvelamento e velamento. Originalmente é isso o que significa a palavra epoché. Portanto, não vai mais se pensar o ser humano a partir desse sintagma no que é e no como é, mas o pensar o ser humano implica algo mais profundo para além desse ser e como ser: implica que o ser e o como ser só se apreendem em sua essência se se pensar o que é sempre digno de ser posto em questão: que o que é no como é é mais fundamentalmente velamento. E nisso consiste a sua verdade. Enquanto desvelamento e ao mesmo tempo velamento, num jogo amoroso, a verdade da physis é aletheia. Mas “isso” é o “on” como obra de arte. Porém, a obra de arte não se dá em “qualquer on” (esta distinção ainda parte da separação entre o “on” dentro do primeiro conceito de coisa e o ser humano como sujeito, lido dentro do mesmo conceito, pelo qual, a distinção do ser humano como “on” frente aos outros “on” não parte propriamente do “on”, mas da estrutura do “on” como proposição, ou seja, da reunião do que é no como é, ou seja, da essência e da aparência). Mas esta estrutura é a estrutura da proposição. E esta é o produto do logos. Ora, só o ser humano “tem” logos, ou como se diz metafisicamente: o ser humano é o “animal rationale”, onde a razão é a tradução do logos. O ser humano é o ente que se distingue dos outros porque tem a faculdade da linguagem. Por isso ainda se insiste em ver e sempre ver a obra de arte no horizonte do logos, da linguagem, o que é insuficiente, mesmo entendendo o logos como a linguagem poético-manifestativa. Disto Heidegger se deu bem conta e, por isso, diz no parágrafo 207:

O que aqui vigora como digno de ser posto em questão se concentra, a partir deste momento, no lugar próprio da discussão, para lá, onde a essência da linguagem e da poiesis se tocam levemente, tudo isto, uma vez mais, na perspectiva de co-pertença de ser e narrar inaugural.

Fica bem claro que na questão do “on” enquanto obra de arte, a questão se coloca “lá, onde a essência da linguagem e da poiesis se tocam levemente...”. E no parágrafo 169 é ainda mais enfático:

A poiesis é aqui pensada em um sentido tão amplo e, ao mesmo tempo, numa unidade essencial tão íntima com a linguagem e a palavra, que precisa ser deixada em aberto a questão se a arte, em verdade, em todos os seus modos, - da arquitetura até a poesia - esgota a essência da poiesis.

Por que é importante colocar a questão, como o faz Heidegger, da linguagem (Sprache) ao lado da questão da poiesis (Dichtung) ? Por que se trata da questão, que percorre todo o percurso ocidental, a “referência do ser e da essência humana”. Senão caímos facilmente no entendimento do ser e do ser humano, na questão do “on”, a partir do primeiro conceito de coisa, ou seja, a essência do “on” é a essência da linguagem, entendida depois como razão. É a tradicional definição do ser humano como “animal racional”. Trata-se de superar essa definição essencialista de sujeito, de razão como linguagem e de linguagem como razão.

Como já dissemos acima, para além do entendimento do ser humano como “animal racional”, há a questão colocada pelo pensamento desde os pensadores originários, em que o “on”, isto é, a physis traz em si já o desvelamento e o velamento. Como também já dissemos acima, Heidegger vai entender essa physis dos pensadores como a disputa de Terra e Mundo. Mas do ponto de vista da própria arte, das obras de arte, Terra e Mundo perpassadas pelo philei nos jogam na poiesis (Dichtung). E esta enquanto philei se dá como Eros e Thanatos, onde o philei enquanto Eros já é também essencialmente Thanatos. Então podemos pensar que a questão da “referência do ser e da essência humana” nos advém no entre Eros e Thanatos. Por isso, o ser humano vai ser entendido em Heidegger como Da-sein, ou seja, o Entre-ser. Mas este Entre-ser deve ser visto e compreendido em duas outras instâncias, tratadas em Ser e tempo: como Mit-sein e In-der-Welt-sein. A referência de Da-sein e Mit-sein se dá na tensão de logos e poiesis. Heidegger neste ensaio só anota a questão, conforme foi dito acima. Trata especificamente disso no ensaio: Hölderlin e a essência da poesia, quando cita a palavra de Hölderlin: “Seit ein Gespräche wir sind” (Desde que nós somos um diálogo).

Se a questão da “referência do ser e da essência humana” está no âmbito do primeiro conceito de coisa e essa questão traz para cena a discussão da questão de linguagem e poiesis, “ a essência da linguagem e da poiesis se tocam levemente”, esta não é abordada a partir do primeiro conceito de coisa, mas do terceiro. Como?

A questão inicial dos gregos diz “respeito” ao “on”, mas tendo que considerar a obra no seu aspecto “coisal”, Heidegger examina o “on” nos três conceitos de “coisa”. Nenhum dos conceitos de coisa dá conta do aspecto ou base coisal, porque a consideração da base coisal na obra não vem da obra mas da interpretação do “on” do ponto de vista das quatro causas, ou seja, da interpretação do “on” enquanto instrumento. Num primeiro momento ele caracteriza o utensílio pela “confiabilidade”, como já vimos acima. Isso abre um outro caminho que o próprio instrumento ou utensílio não pode mostrar, pois devemos antes partir para a obra como tal. Mas nenhum dos três conceitos de “coisa” vai permitir este acesso. Não permite o acesso nem à obra nem à própria “coisa”.

Vai ser na obra que o “on” vai se dar como “on”, ou seja, como Terra e Mundo, Verdade e Não-verdade. Vamos ter então a questão da Essência da liberdade. E esta remete, necessariamente, para a questão da Essência do agir, isto é, da Essência da Poiesis. Esta é a Essência da Polis. Nunca podemos esquecer que a o poder da Polis não vem de um ajuntamento de vontades que fazem entre si um contrato, salvaguardado pelo diálogo comunicativo. Isso se faz e é possível ao nível dos entes, mas jamais na Essêncialização do Ser. Esta e só esta tem o querer poder de dar a unidade e a medida. Ela e só ela é o Mesmo, isto é, a Lei. Esta é o acontecer poético, que rege todas as instâncias de realização, sejam as histórico-sociais, sejam as psico-afetivas. Todas elas só podem chegar a ser o que são quando se deixam tomar pelo vigorar do Ser, isto é, do Mesmo.

Na medida em que o “on” é essencialmente obra de arte, só então podemos ir em direção à escuta da “coisa”. Como? Partindo do “mundo” que a obra de arte abre e manifesta e manifesta porque na obra de arte enquanto verdade e mundo, o Ser se destina enquanto linguagem. O que seja mundo passa a ser a grande questão, porque tanto diz respeito à obra como diz respeito à coisa. Quando no início de A origem ... Heid. examina os três conceitos de coisa e os rejeita, é apenas o passo preparatório para o desenvolvimento do que essencialmente é a obra de arte. Na medida em que encaminha a fenomenologia poética desta é que, pari passu, está nos levando para o âmbito da compreensão do que seja a coisa, o on. E faz isso na medida exata em que estuda e aprofunda a questão da arte no que ela é enquanto arte, isto é, techné. Mas esta palavra diz em grego conhecimento. Em alemão vamos ter Kunst, palavra formada de kennen, conhecer. Toda a reflexão de A origem ... é uma caminhada pelas veredas da grande questão do conhecer. Essa é uma caminhada que Heid. faz mas de que dá poucas indicações, embora o diga em passagens essenciais. E onde ele desenvolve esta questão? No ensaio Moira. É aí que vamos ter em profundidade o que é conhecer, ou seja, o que é obra de arte, em que arte é tomada como Essencialização do Ser enquanto Essencialização do conhecer. Este vai estar ligado, como fica mais claro em Carta sobre o humanismo, à Essencialização do Ser enquanto Linguagem. Mas uma tal Essencialização é o que denomina Pensar. E é neste com este que se dá a Essencialização do humano, isto é, a humanidade de todo ser humano. A uma tal Essencialização é que podemos denominar Época Poética. Agora estas duas palavras tomam toda a sua densidade. Época Poética é o vigorar do Mesmo. Agora dá para compreender a profunda ligação desde Aristóteles entre techné e poiesis. Só aprofundando essa ligação através do estudo detalhado do ensaio Moira é que se pode chegar a compreender essa ligação, essa dobra. É tendo como fundo tudo o que se desenvolve no ensaio Moira que podemos compreender a distinção que ele faz entre Sprache, Poesie, Dichtung e Sagen, na passagem do §... E depois no último § do Ensaio. Para se compreender o que desenvolve no ensaio A questão da técnica, devo levar em consideração tudo o que acabei aqui de escrever. Nessa questão vamos ter bem clara a questão dos dois Ocidentes, isto é, o Ocidente do esquecimento do Ser e seu envolvimento com o âmbito dos entes e o Ocidente da Poiesis, onde se dá a Essencialização do Ser enquanto pensar, ou seja, linguagem e conhecimento, Sprache e Dichtung. Uma compreensão mais profunda do que seja Dichtung só nos chega pela meditação profunda de tudo o que é tratado no ensaio Moira. E agora posso melhor compreender que a questão da técnica passa necessariamente pela tematização dos ensaios A origem da obra de arte e Moira. E, ao mesmo tempo, este estudo se torna o pano de fundo em que posso desenvolver o presente estudo a propósito de Época e arte. Se de um lado podemos e devemos afirmar que Logos é Mundo, também devemos afirmar que conhecimento é Mundo. Isso fica mais fácil de compreender se retivermos a afirmação do pensador a propósito de Mundo. No ensaio Logos, ele afirma que Logos é Mundo. Mas no ensaio Moira ele afirma que o que é Logos para Heráclito é o mesmo que Phasis-Dichtung para Parmênides. Neste horizonte de questões podemos afirmar com certeza de que o fundo da questão da técnica é a questão mundo.
Mas o que é Mundo? É aqui que retorna o mito em seu fundar originário. Os mitos de quase todos os povos falam de um Kaos e de um Kosmos. Mas não podemos entendê-los apenas na dimensão do racional estabelecido. O Kaos seria a desordem, o ainda não criado, e o Kosmos seria a ordem, o lógico. Do ponto de vista mítico, Kaos é o aberto que tudo engole, o abismo primordial, o nada, o vazio. Já Kosmos é o mundo em tensão com o kaos. A biologia mais recente trabalha exatamente com esses dois dados do realidade: há uma realidade caótica, frente à qual cada ser vivente reage e a transfigura em ordenamento vital, ou seja, em autopoiese.
Porém, o entendimento do que é mundo não pode ser feito nesse horizonte, mas a partir da complexidade do que é a arte. Em primeiro lugar ela é um enigma. Isso significa que vigora no Kaos, ou seja, do ponto de vista do pensamento, no velar-se. Este, no entanto, como fonte se dá em tudo que todas as obras de arte manifestam, desvelam. Mundo é, então, todas as experienciações possíveis que nos advêm na e com as obras de arte. Na arte nos advém a realidade em sua excessividade poética, mas também, e ao mesmo tempo, em seu nada excessivo. Por isso o âmbito do mundo vai ser Eros e Thanatos, porque neles nos advêm o ser e o sentido e verdade do ser. E então as questões primordiais de mundo, Eros e Thanatos começam a se desdobrar: mundo implica verdade, sentido, ethos, linguagem, poiesis, narrar, ser, não-ser, tempo, memória etc. Esse é o âmbito do mundo. Mas não só. Quando os gregos intentaram conceber o “on”, pois no pensamento de Parmênides “to gar auto noein estin te kai einai” (pois o mesmo é pensar e ser) (frag. III), eles elaboraram os três conceitos.
Estes acabaram por ir entre-tecendo um grande complexo, uma grande rede conceitual. É nessa rede que estamos enredados, quando queremos experimentar e experienciar a presença das obras de arte. Tendo em vista essa rede, elenco a seguir alguns conceitos. Para entendê-los poeticamente é necessário transformá-los em questões. Alguns já foram abordados anteriormente, mas os repito para que os vejamos em conjunto.

1º. Identidade; 2º. Causa e causas; 3º. Sujeito; 4º. Tempo linear; 5º. Historiografia; 6º. Tempo mítico; 7º. Proposição e verbo; 8º. Sintaxe gramatical e sintaxe poética enquanto mundo; 9º. Função; 10º. Texto, obra, corpo; 11º. Verdade por adequação e verdade manifestativa; 12º. Análise e explicação como verdade por adequação e enquanto causa; 13º. Interpretação e diálogo como verdade manfestativa enquanto escuta e abismo; 14º. Logos, causa e fundamento, daí conhecimento como busca racional das causas enquanto fundamento; 15º. Esquecimento do ser e esquecimento da Terra; 16º. Essência, princípio e causa; 17º. Linguagem e poiesis; 18º. Linguagem (funcional) e práxis (funcionamento da função); 19º. Os três “teloi” (sentidos); 20º. O destino.

Como vemos, as questões da arte movem-se em torno de um certo Vocabulário. Ele resultou da complexa rede conceitual baseada nos três conceitos, a partir dos quais se classificam as épocas e os estilos de época. Desfazer-se desse Vocabulário é praticamente impossível. Ele já faz parte de nosso cotidiano e está incrustado nas mais diferentes línguas do Ocidente. O que fazer? É necessário redimensionar esse Vocabulário e lhe dar novas densidades e sentidos, mas quando for possível o melhor é usar as palavras mais adequadas, se já existem. A tentativa de usar palavras muito específicas pode trazer o perigo de uma certa conceituação. O pensamento e as questões vivem dos interstícios poéticos dos conceitos e do uso cotidiano das palavras. Reinaugurá-las é a grande tarefa dos poetas e pensadores. Rosa, no famoso diálogo com Günter Lorenz diz ser essa a sua proposta: negar o uso cotidiano e metafísico do vocabulário e escrever um dicionário, onde cada palavra será um poema. E cada palavra é um poema. Nós é que não temos olhos para ver nem ouvidos para ouvir. Falta-nos a virtude da escuta.

A obra de Caeiro também consiste em grande parte nesse trabalho meticuloso de reinauguração de vocabulário já estabelecido pela metafísica em sua multi-tradição. Caeiro vai trabalhar não só os interstícios dos conceitos mas também os paradoxos, além das imagens-questões. Inaugura assim uma sintaxe poética onde o real se dá originariamente. É claro que não é apenas a obra de Fernando Pessoa, embora Caeiro seja mais incisivo e mais tematize essas questões. Nesse sentido sua obra se aproxima muito da obra de Hölderlin. Mas também as obras dos grandes autores fazem o mesmo, mas não fazem coisas iguais. Em suas obras as questões nos advêm de uma maneira oblíqua. É sempre a linguagem acontecendo obliquamente. Desse fato se cai facilmente no engano de achar que elas estão presas a suas circunstâncias histórico, político e psico-sociais. Nelas a época acontece de uma maneira ambígua, oblíqua. Nessas obras todo o âmbito da linguagem cotidiana é repensado de uma maneira profunda e poética. A sintaxe operacional e a funcionalidade das palavras se redimensiona na conjugação de uma tematização das questões, que advêm transfiguradas em novos conhecimentos e revigoradas no seu operar e acontecer poético. Apreender e compreender essa dinâmica como um todo é que é apreender o seu vigorar epocal. De um lado, temos a nítida sensação de um painel e até documentário dos usos e costumes sócio-histórico-culturais, mas, de outro, a densidade e Essencialização do ser humano em sua finitude, em sua pro-cura de sentido, em seu agir ético-existencial (ek-sistencial), em sua solidão e falta amorosa, em sua tensão de vida e morte, nos advém de uma maneira muito forte e permanente, vigorosa. A época vista nesses dados circunstanciais nos é testemunhada pela obra como um todo, quando a partir dela, nos seus personagens, nas suas regras morais contraditórias, nas relações econômicas e sociais, nas procuras sinceras e nas ações dissimuladas, nas faltas afetivas e inconscientes, sobre tudo isso a obra nos fala como um grande documentário social e histórico. Esse diálogo epocal é possível. O estranho começa quando constatamos que as épocas passam e se sucedem e sempre que voltamos à leitura atenta de tais obras e dialogamos com elas a partir de um auto-diálogo, então as obras se transfiguram e elas se tornam atuais, vivas, presentes, densas, questionantes, qual espelho mediador do que em nós pulsa e se procura em suas caminhadas pelas escuras veredas da vida, isto é, pelas questões que se tornam não dos personagens, mas nossas. São experienciações que falam do mesmo, mas nunca dizem coisas iguais. Isso é a época poética, isso é o acontecer poético. E o que era oblíquo e dissimulado se torna presente e atuante. E um conhecimento novo, inaugural surge de uma maneira inusitada e sem causa. Se dá, acontece. É concreto, operante. É o vigorar da obra de arte. Deixa de ser um conhecimento sobre para se tornar um conhecimento de. Deixa de ser simples conhecimento acessível e tematizado pelas diferentes disciplinas. Torna-se sentido. Acontece a sabedoria. Esta é o vigorar do saber poético eclodindo em mundo, em sentido. É a realidade transfigurada ética e poeticamente.

Transformar em linguagem cada vez esse ad-vento permanente do Ser que, em sua permanência espera pelo homem, é a única causa (Sache) do pensamento. É por isso que os pensadores Essenciais dizem sempre o mesmo (das Selbe); isso, no entanto, não significa que digam sempre coisas iguais (das Gleiche). Sem dúvida eles só o dizem a quem se empenha em repensá-los (Heidegger, 1967: 98).

Época e tempo poético

Toda mediação é uma fórmula. Não é possível medição sem dois pontos distantes entre si, nem que essa distância, dia-stare, seja na macro-física inimaginável, o Tudo, seja na micro-física a fronteira entre a extensão e o Nada. É o que nos ensina Rosa em sua obra-prima: Grande sertão: veredas. É nesse entre que se dá a possível relação entre dois pontos para a representação. Algo é verdadeiro quando essa representação estabelece um resultado que afirma (e nisto está a verdade) a identidade entre a medida da fórmula ou teoria ou sistema e a realidade. Aí a linguagem é um instrumento de representação, um misto de enunciado matemático e lingüístico. A suprema tentativa é elaborar uma fórmula matemática que dispense a linguagem, mesmo instrumental, e apreenda toda a realidade em seu vigorar de realizações, realizações previsíveis ou explicáveis pela lei que a fórmula formula. Porém, num círculo vicioso, a formulação comprova nas experiências a lei. E a lei representa a identidade da realidade. Já se pressupõe nas hipóteses que a realidade tem uma identidade representável. Ora, no tempo poético, no lugar da identidade temos o mesmo que não se reduz a uma lei nem resulta de uma relação representável pela linguagem instrumental ou da mensuração. No tempo poético temos sempre o acontecer da posição e do vazio, da fala e do silêncio. Essa referência é a adveniência da linguagem no pensamento e na poiesis. O tempo poético é sempre linguagem, isto é, mundo. A essa disputa ou referência é que se denominou “epoché”. Transposta para o português, essa palavra se tornou ambígua, pois ora indica um tempo mensurável de acordo com uma fórmula, ora indica o que se dando se retrai. Esse dar-se como que fica suspenso, não entre dois pontos, na leitura da fórmula, mas como doação do vazio. A época é uma dádiva do vazio, um entre céu e terra. E o que o vazio nos doa? O sentido poético, o ético da ec-sistência e de toda ação poética. No sentido ético-poético se manifesta o humano do ser humano.

O que está em causa é a forma e o limite como tempo e espaço. Porém, o que aí nunca é pensado é o télos originário do tempo poético. A época da linguagem instrumental reproduz a forma formulada no telos como finalidade ou objetivo. O objeto do objetivo é o tempo da subjetividade racional como medida da representação conceitual da realidade. Sua realidade temporal e histórica se representa na objetividade da subjetividade enquanto relações e funcionamento das funções das diferentes instâncias das teorias ou disciplinas em que as realizações da realidade são apreendidas: social, econômica, antropológica, psicológica, política etc.

Duas figuras: vazio e . (ponto). Silêncio e fala. Com o ponto e a fala surge o espaço e o tempo. Mas não são estes que possibilitam o aparecimento do ponto e da fala. Simplesmente porque eles em si não são portadores de sentido e sem sentido é impossível a relação e determinação do ponto enquanto posição. Daí a impossibilidade de determinar o ponto do ponto de vista de medida ou mensuração. É então que surge a questão da quarta dimensão de tempo enquanto linguagem ou mundo, uma vez que o tempo é a quarta dimensão do espaço. Na realidade a quarta é a primeira. Vejamos três pontos de diferentes tamanhos. No vazio é impossível determinar a medida, a representação. Só os três entre si possibilitam determinar uma medida. Nos três pontos o tamanho é determinado pela relação entre eles e não por eles em si mesmo quanto ao tamanho.

O mesmo
O mais difícil em nossas vidas é compreender o que é isto – o mesmo. Como diz Rosa numa de suas obras. Não é um ele ou um ela: é o que e o quem das coisas. Jamais podemos ou devemos reduzi-lo ao conhecimento de um conceito. Como tal é a questão, o a-ser-pensado. Não nos advém nunca no e pelo raciocinar. Advém enquanto linguagem no pensar. Mas é o nunca cessar de advir porque não tem início nem fim, vigora. Isto é o mesmo.

Esse poder que as obras de pensamento têm é que propriamente constitui o próprio de todo e qualquer ser humano, a essência de sua humanidade. Em verdade não há as obras e os seres humanos. O humano, isto é, a essência de sua humanidade consiste em deixar-se tomar pelo vigorar do Ser. O pensar é o vigorar se dando em poiesis e linguagem. Em seu vigorar espera pelos poetas e pensadores para que o digam e, dizendo-o, assim pro-duzem o Ser, isto é, o trazem enquanto obra para a manifestação de seu vigorar. Isso é a arte, é o conhecer originário de toda arte. As obras o dizem, isto é, o dispõem enquanto linguagem e sentido. Cabe a cada leitor deixar-se tomar por um tal vigorar. E isso acontece quando cada um re-pensa na obra o dizer. É no horizonte desse sentido e linguagem que consistem as épocas poéticas, pois elas constituem o deixar vigorar pelo re-pensar o mesmo de cada um em sua época, em seu momento histórico. Isso é sempre um acontecer poético.

Este de maneira alguma é uma repetição das mesmas coisas. Não há o vigorar do Ser e o existir de cada sendo. A originalidade inaugural de cada sendo se funda no vigorar do Ser e de tal modo que não cessando de ser o mesmo, é sempre diferente. Esse é o mistério de toda obra de arte: ser sempre a mesma sendo diferente para cada um que a repensa. Repensar é deixar acontecer poeticamente o mesmo. Partindo da historiografia, um músico teve a idéia de re-constituir o som original das obras musicais de Bach, refazendo os instrumentos musicais em que as obras de Bach foram, em seu tempo, tocadas. Achava que dessa maneira reconstituiria as circunstâncias históricas do som original de suas obras. Hoje as obras nos soavam diferentes porque os instrumentos eram diferentes. Bastaria reconstruir os instrumentos e assim teríamos em nós as obras de Bach soando em sua inaugurabilidade. Confundia o inaugural de toda obra de arte – o mesmo – com as circunstâncias epocais. Confundia época com cronologia. Acontece que a realidade nunca se repete, a não ser conceitualmente e em aparência, porque a aparência é a representação que parece representar a mesma coisa, jamais o mesmo. Se retorno se entende como volta, não há retorno. O mesmo não é o que retorna, mas o que não cessa de vigorar, mas um vigorar que exige de nós uma escuta, um estar atento e aberto para seu acontecer. A inaugurabilidade das obras de arte é este poder acontecer poético. Isso é o vigorar da época em toda obra de arte. Pois bem, como o Ser não cessa de vigorar e de se destinar nas obras de pensamento e de arte, a nós jamais é possível retornar ao som original das obras pela reconstituição dos instrumentos. Só podemos deixar acontecer o som originário. E jamais será o som igual ao do tempo e circunstâncias históricas da época de Bach, por mais que se tente reconstituir tudo. O originário não se reconstitui, ele não cessa de vigorar em novas manifestações. Nossos ouvidos, se bem abertos, só poderão ouvir o som originário, jamais o som original, até porque não há som original, numa realidade que não cessa de acontecer. E agora é que vem algo muito importante para compreender o mesmo. A cada nova obra musical originária para quem escuta acontece o mesmo em novas e inaugurais experienciações. O vigorar do mesmo diz sempre experienciações inaugurais incessantes. E é no horizonte dessa inaugurabilidade que experirenciaremos sempre a obra musical de Bach. Ela não nos advém na execução musical por instrumentos iguais. Até porque não serão jamais os mesmos instrumentistas nem os ouvintes escutarão com os mesmos ouvidos. Escutar jamais pode ser reduzido a um ato fisiológico repetitivo. Para quem escuta sempre há a possibilidade da inaugurabilidade. Uma obra de arte nunca se reduz a seu suporte ou forma. Uma obra de arte é sempre presença, fundada no mesmo. Uma época é sempre a presença do mesmo tanto mais se dando em sentido e linguagem quanto mais se vela. Todo vigorar de época é uma dobra que não cessa de se desdobrar. Apreender e compreender o des-dobrar é deixar-se tomar pelo mesmo. Todo desdobrar é um vigorar do sentido. Sentido é o vigorar do Ser, é a Essencialização do Ser, se dando em verdade e linguagem. No e pelo vigorar do sentido o suporte teórico-orgânico do ser humano acontece na transfiguração mundificante de seus sentidos e razão. O mesmo é a unidade de sentidos e razão em que se estrutura todo corpo humano e jamais a constituição deste em um organismo que sente e raciocina. Por isso é que toda análise racional só me dá e só pode me dar significados, funções, analogias, relações sistêmicas e estatísticas, dados numérico-quantitativos, quadros comparativos a partir de algum ou de alguns paradigmas. Jamais o sentido. nas obras de arte o sentido explode, advém, transborda, de dentro para fora, não havendo mais fora nem dentro. Uma obra e arte só é epocal por estar sempre transbordando, se desdobrando no sentido dos sentidos e do raciocinar. O sentido é o incessante pro-vocar a pensar. Pensar é o acontecer poético do mesmo e enquanto o mesmo, sem jamais originar coisas iguais. Não é tão difícil apreender e se entregar ao mesmo, se sairmos da banalização da linguagem em seu uso comercial e cotidiano, se sairmos da repetição das idéias e valores já feitos e estabelecidos, se sairmos da funcionalidade dos sistemas, fonte de conceitos que não cessam de nos lançar na repetição e aniquilação de nossa originalidade e originariedade, se sairmos da aparente novidade dos conhecimentos dos entes em suas relações sempre funcionais e operativas, se sairmos do esquecimento do Ser e nos deixarmos tomar por sua memória, a unidade vigorante do mesmo. Nos deixarmos tomar por sua Essencialização. É fácil muito fácil nos entregarmos ao mesmo. Para tanto é necessário pensar. Pensar o mesmo que é a vida, a morte, o amor, o tempo, a linguagem, a verdade, a solidão, o cuidado, o ético, o sentido. E são estas questões que aguardam sempre nossas experienciações que constituem em verdade a realidade, uma realidade que não depende de nós, não é construída pelos nossos conceitos ou vontade ou desejos. É uma realidade que de repente e sem causa nos toma, nos advém quando tudo parece um grande vazio e um sem sentido. Nos toma brotando do mais íntimo e profundo silêncio tanto em relação ao que nos cerca quanto ao que dentro de nós pára de falar para deixar se instalar o mesmo, o silêncio fundante de sentido da realidade. Isso acontece quando dentro de nós se instala a crise. Toda crise fundante traz para nós o estreito campo do agir e vigorar da vida corrente, das funções de cada dia e dos trabalhos esperas de resultados que resultam numa sobrecarga que não nos satisfaz nem nos dá a satisfação prometida. É que a vida cotidiana em sua repetição das mesmas coisas entulha o Ser com os efeitos dos significados do agir e operar dos entes. E com a instalação da crise fundante acontece um desdobrar novo, sem causa, numa procura de significados novos que só se tornam realidade quando eclode o sentido do mesmo. E então a crise fundante nos traz a verdade da realidade. É a questão do sentido vigorando. É o mesmo vigorando, tão novo e tão antigo, tão inaugural e tão atual, tão sempre o mesmo sendo diferente em sua inaugurabilidade. A época não é jamais algo geral que está aí para nos tomar e nos determinar. A época só é época enquanto acontecer poético. E todo acontecer é sempre acontecer do mesmo. A época é o mesmo acontecendo. É o humano se desdobrando poeticamente. Quando o humano acontece poeticamente, então o pensar do Ser se dá.


Bibliografia

HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Rio, Tempo Brasileiro, 1967.
PAMUK, Orhan. A maleta de meu pai. São Paulo: Cia. das Letras, 2007).

As Musas e a essência da criação poética

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Quando se quer pensar a essência da criação poética, uma questão retorna inevitavelmente: a sua origem. E pensar a sua origem é pensar as Musas. Com diferentes nomes elas são uma constante. Qual é a essência das Musas?

Em geral, hoje, tende-se a opor poetas e filósofos, poetas e cientistas. Esta distinção encontra sua base em algo muito antigo: a contraposição e o choque entre mito e razão, ou em sua origem grega, entre mythos e lógos. Por que surgiu essa oposição? Não se trata simplesmente de uma divergência de concepções. Trata-se de algo mais fundamental. Hoje essa oposição poderia ser caracterizada entre sagrado e profano. Há um consenso muito aceito de que vivemos uma dessacralização da realidade. Essa dessacralização vai fazer-se presente sobretudo nas artes. E dela não escapa a poesia. No entanto, essa oposição se escamoteia numa distinção em geral muito aceita: a de que a realidade criada pela arte é uma ficção. E esta distinção se justifica em algo muito grave, a que nem sempre se dá a devida importância: em nosso cotidiano, dominado pela ciência, teríamos a realidade verdadeira. Já a realidade que surge das obras em prosa ou em verso, seria falsa, ficcional. Ficcional é tudo a que nada de realidade corresponde.

Esta distinção provém de idéias mais antigas. Trata-se da oposição entre mitos e existência real. Não há a menor dúvida de que os mitos têm sua origem na relação direta do ser humano com a natureza. Dessa maneira os mitos configuravam e de alguma maneira estabeleciam as leis desse relacionamento. A distinção entre seres divinos e seres humanos era bem clara para o próprio mito. Porém, a idéia de divino que deu origem aos mais diferentes deuses foi sofrendo transformações profundas. E à medida que o ser humano deixava prevalecer a vida da cidade sobre a vida da natureza, isto é, à medida em que a vida era regida pelas leis da cidade, essa nova realidade originava outros tipos de relação dos próprios seres humanos entre si. Daí originou-se uma oposição entre as leis da cidade e as leis divinas. Dentro de todo esse complexo processo é que o mito foi cada vez mais perdendo seu poder e vigência e deixando que o logos tomasse o lugar.

No fundo, a disputa se baseia na tensão entre o sagrado e o profano. Para o mito ao sagrado correspondia toda a realidade. Esta não era vista como a criação dele, porque não havia a idéia de criação e criador. Esta idéia tornou-se dominante posteriormente. O sagrado como tal, em meio aos múltiplos mitos, jamais foi identificado com alguma figura ou causa. Era uma força que se fazia presente e operava em toda a realidade.

No Ocidente, em determinado momento, lá pelo século VII antes de Cristo, começa a ter cada vez mais importância o logos. Paralelamente, pela mesma época, a realidade passa a ser vista de um modo diferente daquela apresentada pelos mitos. Por realidade entende-se a physis, que foi traduzida para o latim como natura, ou seja, a natureza. Mas esta não era concebida como hoje, onde se dá uma oposição entre natureza e cultura. Natureza eram todos os entes e cultura era tudo que a natureza não fazia e precisava do ser humano para que fosse feito. Este fazer que a natureza não fazia e era realizado pelo ser humano, levando a própria natureza a uma plenitude que em si mesma ela não realizava, isso se dava pelo princípio da techné. Techné diz conhecimento.

Fazer em grego, aquele fazer que se constitui como uma força de transformação, ou seja, como diz Platão, tudo que passa do não-ser para o ser, se dizia poiein. Esta força, esta energia, é inerente tanto à natureza quanto ao ser humano. Porém, aquelas obras que a natureza não fazia e precisavam da intervenção do ser humano para existirem, através do princípio da techné, eram os artefatos. Não havia uma oposição entre estes e aqueles realizados pela physis, pois, em última instância tudo provinha da physis, da natureza. Esta palavra diz o que não cessa de nascer. O artefato era também um produto de um nascer, apenas diferente daquele que provinha pela ação direta da natureza, pois ele precisa da intervenção do ser humano. Mas em termos de physis, natureza, todos os produtos eram denominados entes. Ente é tudo que é. É que a physis ou natureza passou a ser denominada ser. Ora, aquele que fazia entes que a natureza não fazia denominava-se, em grego, technités. Com este termo denominavam os gregos tanto o artesão como os artistas, claro, aí incluídos os poetas. É que techné não dizia de jeito nenhuma para o grego algum fazer dominado pela razão. Ela tinha sua relação mais direta com a emperia, com a experiência. Portanto, em grego, techné diz um conhecimento e os processos de execução. A palavra techné foi traduzida para o latim como ars, artis. Desta se formou nossa palavra artista.

Na modernidade, há uma diferença radical entre artesão e artista e o conhecimento técnico. Hoje tudo é dominada pela técnica. E ao longo do percurso Ocidental a Poética reduziu-se simplesmente ao estudo e ao conhecimento das normas técnicas para compor as obras poéticas, dentro de modelos paradigmáticos, denominados gêneros. Esta palavra grega, tão importante dentro das artes, tem três significados básicos: Primeira: origem; Segunda: família, raça, sexo; 3ª. Categoria lógica com determinada extensão de universalidade. Genos enquanto origem diz a essência de algo. Em termos simples o que quer dizer essência? É um termo filosófico, mas que, em seu sentido, está na raiz de toda criação poética, pois essência quer dizer sentido e sentido é a eclosão da realidade em sua verdade. Verdade é o que tem poder de presença e constitui mundo. E justamente isso é o próprio das obras poéticas. Portanto, nestas, o sentido que decide é o primeiro. Os dois outros são secundários, não passam de atributos acidentais.

A questão da origem das obras de arte ou poéticas sempre esteve presente ao longo de todos os momentos do percurso ocidental. A criação das Musas pelo mito foi o modo de levar as pessoas a pensarem a origem das obras de arte. E nesse modo já podemos constatar uma peculiaridade essencial: a própria origem se torna um mito. Isto nos faz pensar que a origem das obras poéticas não pode ser diferente das próprias obras.

O maior mistério que sempre se colocou para o ser humano quando se defronta com tudo o que o cerca e com ele mesmo é: O que diferencia o ser humano de toda a realidade. Entre os gregos, esta questão tomou dois caminhos. O primeiro foi pelo sagrado, manifestado nos mitos, onde essa diferenciação não constituía problema, porque havia uma integração muito grande. Mas note-se que o sagrado era mais do que os deuses e os seres humanos.

A palavra mythos vem do verbo mytheomai e diz o advir da realidade à palavra, à voz. Do mesmo radical deste verbo se formou o verbo myein, que diz, silenciar. Temos em português a palavra mudo, o que não fala, originada desse radical. Eclodir na palavra quer dizer advir à linguagem. Mas devemos notar que o radical desses dois verbos se dá numa dobra originária: voz e mudez provêm do mesmo fundo: o silêncio. Portanto os mitos nada mais são do que a eclosão da realidade nas múltiplas tonalidades da linguagem. A ligação aqui das obras poéticas com os mitos é evidente. A questão das Musas está ligada à questão da linguagem.

Para os gregos, o que hoje denominamos linguagem tem uma outra fonte. Entre eles linguagem não está ligada a língua, parte do aparelho fonador. Esta palavra se diz em grego glossa. O que entendemos por linguagem provém da palavra grega lógos. E é este que se vai tornar propriamente um pomo da discórdia. De um lado, vai determinar a filosofia pela lógica. De outro, vai entrar em choque com as obras poéticas, porque elas não podem simplesmente ser classificadas de lógicas. As inspirações trazidas pelas Musas são o oposto do lógico. No entanto, falamos tranquilamente em linguagens artísticas. Por que não falamos em linguagens míticas, correspondendo à fala de cada Musa, que cria as diferentes artes? Linguagens lógicas também têm um outro sentido. Se bem observarmos, as questões levantadas dizem respeito aos atributos, às qualificações do substantivo linguagem. E sem compreendermos a essência da linguagem, será muito difícil compreender o significado dos atributos e, com isso, o próprio das diferentes criações poéticas. Isso já indica que as linguagens artísticas não podem ser decididas pelos atributos. A cada arte não corresponde uma linguagem diferente do ponto de vista de sua essencia. Mas também não podemos ter um conceito genérico de linguagem especificada pelo atributo, isto é, pelo tipo de arte realizada. Isso quer dizer que cada arte, cada linguagem artística só é artística quando a arte realiza a essencia da linguagem em sua identidade.

É aqui que vamos compreender porque o mito, enquanto linguagem, acabou por ficar em segundo plano. Linguagem não é um conceito genérico, uma essencia abstrata, a que diferentes modalidades de fazer e de matérias viriam se agregar. Essa não pode ser a essencia originária de linguagem. Ela deve ser de tal natureza que reúna em si todas as demais. Linguagem, se bem observarmos, diz propriamente mundo. E este nada mais é do que a reunião das múltiplas manifestações da realidade em sua unidade. E é um poder tão abrangente e originário que podemos chegar a dizer o misterioso mundo do silêncio. As artes, em termos essenciais não são diferentes. Elas apenas realizam a riqueza essencial da linguagem, que não se limita a uma simples reunião formal. E neste sentido, as artes, as realizações poéticas, têm, em verdade, sua origem nas Musas e não no lógos. Melhor dizendo, o lógos, em sua essencia, não é diferente da origem das Musas. Mas por que toda a tradição ocidental optou pela predominância do lógos?

Esta palavra grega é enigmática se forma do verbo legein, que congrega uma tal amplitude de sentidos que não podem ser logicamente determinados. Numa aproximação podemos indicar os seguintes: 1- Pôr e depor; 2 – Reunir; 3 – Dizer; 4 – Mundificar. Todos estes sentidos estão condensados na palavra linguagem. Tomando a palavra grega lógos, de maneira alguma podemos reduzi-la aos procedimentos lógicos. O seu empobrecimento na trajetória ocidental foi motivada pela palavra escolhida para dizê-la em latim. Lógos tornou-se ratio, em português, razão. E esta concebe-se como o fundamento de todo o saber e do próprio julgamento das ações humanas, bem como a diretriz de tudo que se faz. Quando se diz que algo é científico pensa-se em algo que é verdadeiro. É verdadeiro o que é racional. E é aqui que ficam excluídas, evidentemente, as Musas enquanto modos de produção poética. Alguém inspirado pelas Musas não pode ser dirigido pela razão. É o oposto. Predominou, entre os romanos a idéia de obra de arte como algo que tem uma função e está dominada pelo fazer técnico, pois uma coisa implica a outra. A função implica não só o técnico, muito mais implica o lógico, o racional. Todo sistema se baseia nas relações funcionais. E todo sistema é tanto mais funcional quanto mais for racional. Esta interpretação do lógos e da techné já expulsara as Musas como origem das diferentes obras de arte. Mas ficava sempre a questão da origem das obras de arte. Esta não cessa de se colocar para todos os poetas, em todos os tempos.

Para entendermos a relação dos poetas com as Musas devemos pensá-las naquilo que elas sempre foram: as manifestações da linguagem. Pois mythos e lógos, do ponto de vista da origem, não são diferentes. São duas palavras diferentes para dizerem o mesmo, pois numa e noutra predomina aquilo que as constitui como tal: a unidade. A linguagem somente sendo unidade é que funda sentido. Sentido não pode ser confundido com significados. Por isso a essencia do lógos, da linguagem, é a unidade enquanto sentido. Sentido é o ético-poético de todo agir essencial, isto é, da realidade se fazendo presença e mundo. É o sentido que orienta nossas ações e empenhos no acontecer da realidade. O sentido surge quando nos perguntamos pelo penhor de tudo que fazemos e em tudo que fazemos. Qual é o penhor de nossos empenhos? Essa é a questão do sentido.

Para melhor compreendermos isso, temos que pensar agora as Musas e sua origem. No mito diversas são as origens das Musas, mas a que a tradição consagrou diz que Zeus, querendo preservar a memória dos seus feitos em relação ao Tempo, pois foi na luta contra Cronos que ele conquistou seu lugar supremo de deus do Olimpo, se uniu com Mnemosine em nove noites seguidas. Em cada noite foi gerada uma das Musas. Em relação aos mitos temos de entender três dimensões fundamentais: Primeiro: Nenhum mito tem autoria. Isto elimina a noção moderna de autor. Segundo: Os mitos não são símbolos de nada, pois eles radicam na linguagem. Terceiro: Os mitos não são explicação de nada, nem de fenômenos psíquicos nem de fenômenos naturais. O que são os mitos em sua essencia? Linguagem e como linguagem eles, em cada realização, trazem à fala questões. Portanto, ler um mito é sempre, pelo diálogo com a fala do mito, se perguntar: Qual a questão que o mito nos quer fazer pensar?

As Musas são o mito que nos quer fazer pensar a origem da criação poética. Origem diz sempre essência. Elas são filhas de Mnemosine. A tradução corrente é memória. O que é memória? Qual a essencia, isto é, o sentido da memória? O radical de Mnemosine é mn, que diz unidade. Cronos é o tempo. Mas que tempo? Aquele que se constitui como mudança, transformação, puro devir. Daí a nossa percepção muito viva do tempo como sendo o passado, o presente, o futuro. A memória sendo unidade vem dar ao tempo uma outra faceta: o da permanência. Porém, devemos evitar logo o equívoco de fazer do tempo algo dual: o tempo cronológico seria o que passa, não restando senão a lembrança, quando resta. E há um outro tempo, o da eternidade, aquele que se contrapõe ao cronológico. É isso que memória não é, pois ela é unidade. Ela contem em si essas duas facetas essenciais do tempo. Nesse sentido memória, enquanto unidade, é o vigorar do tempo, o que não cessa de acontecer. Para melhor entendermos isso e o lugar das Musas e sua mãe, Mnemosine, o tempo deve nos advir como questão. Nesta, o tempo é uma dobra entre o que se desvela e o que se vela. O desvelado é o que denominamos passado, o futuro é o que no desvelado se vela. O presente é a dobra que não cessa de se desdobra, sem jamais perder a unidade. Por isso, quando se querem caracterizar as obras poéticas, em oposição aos outros entes da realidade, se diz que elas são a-temporais. Ora, isso é falso, pois fora do tempo não há nada, onde o nada é o tempo enquanto vigorar. Portanto, memória é unidade como essencia do tempo.

E o que essa unidade, a Memória, tem a ver com as obras de arte? Ora, a essencia das obras de arte é a linguagem. E já vimos que linguagem, enquanto lógos, é essencia da fala, é a origem de tudo que ocupa posição, é o fazer eclodir mundo. Mas estas dimensões não são apenas diversas entre si, elas constituem uma unidade, pois a linguagem as reúne. Enfim, essencialmente, a linguagem é reunião. Na medida em que as obras de arte, as obras poéticas, se constituem em diferentes linguagens, estas não são a essencia da arte. Pois, se são linguagem, e são, elas vigoram enquanto unidade. É esta unidade que as torna radicalmente temporais, no sentido de Memória, vigorar do tempo. No entanto, se Memória é a mãe, Zeus é o pai. É dessa união e unidade que nascem as Musas. Não podemos, portanto, considerar apenas a mãe, temos que considerar o pai também. E o mito de Zeus nos coloca qual questão? Ele é o deus do Olimpo, onde vigora a Luz. Mas aí Luz é a luminosidade do Céu, que constitui com a escuridão da Terra uma unidade. Luz não é apenas luminosidade. É também escuridão, pois Luz como princípio diz energia irradiante. É esta energia irradiante que constitui a essencia, a unidade e o sentido das Musas. Estas são filhas da Luz irradiante, da unidade de Terra e Céu.

Essa Luz irradiante é o que se denomina lógos, linguagem. Para nós, agora se torna essencial, para entender as Musas, penetrar no mistério profundo da linguagem, no sentido de lógos. Ele está ligado ao próprio sagrado. É a presença do sagrado em tudo que ele origina. Ele é energia, luz irradiante, presença, mundo, sentido. A linguagem não é uma faculdade do ser humano, seja como fala, seja como razão, seja como meio de realizar obras poéticas. Em verdade, na invocação das Musas, o que se con-voca é a linguagem, a unidade fundadora do poético. Pois poético vem do verbo grego poiein e diz agir. Toda poesia só é poesia caso se funde na essencia do agir, isto é, da linguagem, o vigorar do tempo. Quando o poeta invoca as Musas, o que de fato está invocando é a linguagem enquanto essencia do agir, da poesia. É esta e somente esta que torna as obras poéticas. Por isso todos os poetas, todos os artistas, são artistas e produzem obras quando nelas não está o que pensam ou sentem, mas a essencia da linguagem. Toda técnica de fazer é já um resultado desta presença da essencia da linguagem.

Eu poderia, neste momento, citar dois grandes poetas brasileiros, onde isto se realiza. Não é, portanto, o que expus, uma teoria minha. É um diálogo com a obra desses dois grandes poetas.

O primeiro é Drummond. O poeta é um destinado, não é ele que escolhe ser poeta. E quem nos diz isto é ele e com uma visão e profundidade admirável. O primeiro verso do primeiro poema – “Poema das sete faces” - do primeiro livro de Drummond – Alguma poesia - é: “Quando nasci, um anjo torto, desses que vive nas sombras, disse: Vai, Carlos, ser gauche na vida”. Como não ver no anjo – aquele que anuncia – um outro nome para Musa? Como não entender o viver do anjo nas sombras, ser ele filho de Mnemosine? E como não compreender, finalmente, o gauche, como aquele que está fora do sistema?

Sistema diz sempre o uso da linguagem reduzida a uma função. É a linguagem informacional, comunicativa e retórica. Poesia, em sentido originário, não tem função. Manifesta a realidade. Quando a poesia é funcional não passa de retórica.
E como Drummond, tomado pelas Musas, realiza seu ser poeta? Não é ele o autor. Não quer em suas poesias produzir mensagens ou expressar seus sentimentos. Sua tarefa como poeta é mais densa, é deixar-se tomar pela linguagem. E onde nos advém a linguagem? Nas palavras. Se a prática da poesia exige um abrir-se para a linguagem, este abrir-se denomina-se diá-logo. Mas não é só o poeta que tem que dialogar com a linguagem, também o leitor. Só dialogando com a linguagem o leitor se torna leitor de poesia. É o que nos diz o poeta. E ele sabe do que fala, pois é um destinado da Memória. Isso se torna claro no poema: “Procura da poesia”. O poema se articula numa tensão entre o “não”, em que se negam os falsos lugares da essencia da poesia, para, depois, nos indicar o caminho do “sim”. E qual é ele? Cito só começo:

Penetra surdamente no reino da palavra.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
......................................................................

O reino das palavras é a linguagem, a unidade que se torna o princípio de todo sentido, mundo e presença. E a segunda palavra do primeiro verso já nos indica o próprio ser e essencia de toda palavra, de todo poema: “surdamente”. A surdez é o convite para erradicar todo falatório e deixar-se tomar pelo vigorar do silêncio. Este e só este é a unidade de todas as falas, porque é a fonte de todo sentido, a própria essencia da linguagem. Escrever poesia é um diálogo contínuo onde mais do que falar é escutar a voz do silêncio. Ler poesia é um diálogo contínuo onde mais do que querer achar mensagens é se deixar tomar pelo vigorar do silencio. As Musas são o vigorar do silêncio.

Numa entrevista a Günter Lorenz, grande crítico alemão, Rosa diz a respeito das Musas. “Não preciso inventar contos, eles vêm a mim, me obrigam a escrevê-los. Acontece-me algo assim como vocês dizem em alemão: Mich reitet auf einmal der Teufel...”. “De repente o diabo me cavalga”. Diabo, aqui, é um outro nome para Musa. E quanto à linguagem? O crítico pergunta a Rosa se ele é um pensador. Diz que é. E o nota frequentemente durante o seu trabalho. Esclarece: “Chocamos tudo o que falamos ou fazemos antes de falar ou fazer... E também choco meus livros. Uma palavra, uma única palavra ou frase podem me manter ocupado durante horas ou dias... Temos de aprender outra vez a dedicar muito tempo a um pensamento; daí seriam escritos livros melhores. Os livros nascem quando a pessoa pensa; o ato de escrever já é a técnica e a alegria do jogo com as palavras”.

Rosa usa uma imagem-questão maravilhosa: “Chocar” para denominar a criação poética. No chocar podemos perfeitamente unir linguagem e vida. E ele coloca com perfeição a criação em sua essencia. Pensemos no chocar da galinha. Pelo choco ela é transformada, se retira e cai num profundo silencio. É este seu calor. Aí o silencio age e é por ele que advém a criação. Vejam como é interessante. O não-agir do silêncio do choco é que cria. E não o agir como normalmente o entendemos: causar efeito, produzir algo dentro do esquema funcional de causa e consequência. A galinha não é causa de nada em relação ao que no ovo acontece. O agir em sua essencia está no ovo não na galinha. O agir é do ovo não da galinha. Isso nos convida a pensar o ato criativo em poesia de um outro modo, num outro horizonte. Não se trata nem de possessão nem de técnica. Só o recolhimento no pensar, no silencio, na doação. Mais do criar se acolhe a criação. Isso é ser tomado pelas Musas. A criação vem do próprio ovo. É ele que já traz em si a obra em que se vai tornar. É a vida a grande gestora de tudo. A nós compete acolhê-la em silêncio para que o ser que o ovo é chegue ao desvelamento. A vida é linguagem. Chocar as palavras é chocar a linguagem. É que nesse chocar a linguagem se torna vida e vida se torna sentido, isto é, linguagem. E pergunto: Não é o mesmo que acontece com a mulher quando gesta dentro de si, em silêncio e acolhimento, o mistério da gestação da vida? Gestar um filho é a maior obra poética. Não se gesta apenas um ser vivo. Gesta-se a linguagem, gesta-se mundo, gesta-se sentido, gesta-se presença. Acolher no ventre a vida que se gesta é acolher a poesia, a linguagem gestando-se. Ser poeta é gestar a vida enquanto sentido, porque é gestar a linguagem. Sem linguagem não há mundo. Esta é o ser da realidade. Vivemos para ser. E somos, sendo poetas. As Musas são o Lógos, porque este é a essencia da vida, a linguagem, o sentido de tudo. E é sentido porque na poesia se dá o sentido do ser humano como doação do ser.