17 março 2009

A Poética e a Sofística: os discursos

 
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O surgimento e afirmação da Sofística acabou por dar início aos discursos, base das disciplinas, que se vão configurando na medida da afirmação de vocabulários e terminologias. Nisso vai ter papel central a Retórica. E é nesse horizonte dos discursos e sua apropriação que se funda a Sofística como Paideia. Formar o homem, plasmá-lo em determinado sentido e conhecimento é plasmá-lo no domínio de um vocabulário. É lhe dar uma identidade cultural. Neste vocabulário específico vão-se delineando os saberes. Aprender algo é apropriar-se do vocabulário em que ele está formado. Claro que o saber implica outras questões assim como a Sofística também se move em outras questões.
A Sofística vai se fundar na proposição e na tensão de significante e significado, de forma e conteúdo. O real (para os gregos to on) então será o real dos discursos no ensino da Sofística e da Retórica. E a linguagem será a língua dos discursos. A Paidéia sofística surge já de uma finalidade: a educação dos cidadãos da Pólis. Mas desde logo este ideal amplo se limita à formação dos futuros dirigentes da Pólis, dos líderes e magistrados. Foi o mesmo processo no Iluminismo e continua até os dias de hoje.
A Pólis enquanto organismo de poder se separa da aristocracia e de sua origem e estirpe mítico-religiosa. Mas todo exercício do poder se funda numa medida, em grego nómos. Na passagem da aristocracia para a democracia é a medida, a lei, que gera questões fundamentais. A Paidéia sofística tem como centro e origem a Pólis e suas leis, que se vão opor às leis que regiam o poder da aristocracia, ligada não à Polis, mas aos mitos e aos deuses, em última instância, à phýsis. Desde então todo processo de formação do homem tem uma base dupla em conflito: a cultura e a natureza. É no âmbito deste duplo que se gera a ideologia sofística, que vai determinar tudo com sua funcionalidade e finalidade. E, portanto, desde então submeterá a Poética e a Metafísica ao seu domínio.
A formação do homem, o ideal do homem, tem como fundo a Pólis em seus múltiplos sentidos. E ela consiste em levar o homem a ser plasmado na e pela Sophia, de onde vem o nome sofista, ou seja, aquele que ensina a Sophia. Mas devemos distinguir entre ensinar a sabedoria e ensinar o saber. Os sofistas ensinam o saber, pois muito se discute se a sabedoria pode ser ensinada. Do embate se configuram então três vias, três discursos: o poético; o sofístico; o metafísico. O metafísico procura fundamentar as questões que se dão no embate da Poética e da Sofística. A questão principal diz respeito ao fundamento do saber. Há um profundo embate entre Doxa e Episteme dentro da Sofística, pois a questão de fundo era se a sabedoria podia ser ensinada ou não, isto é, era objeto de mera doxa ou se dava dentro de um episteme. Que o saber, as técnicas podiam ser ensinadas e aprendidas (mathesis) isso era tranquilo. Mas será que dentro do saber também se poderia ensinar e aprender a areté?, ou seja, a virtude (no fundo trata-se da questão do ético). É nesse horizonte que se passa a determinar a verdade e a linguagem.
A Sofística elabora a Gramática para estudar a linguagem enquanto uso da língua com finalidade e funcionalidade (diríamos hoje expressão e comunicação), mas vai se servir dos conceitos metafísicos. Desde então, duas disciplinas profundamente ligadas estudam a linguagem: Gramática e Retórica. É que a Gramática faz do lógos, da linguagem, um conhecimento (episteme) lógico. Aqui já temos a de-cisão de reduzir o “sendo” verbal ao império do atributo. Este, enquanto lógico, se torna o determinante da verdade, isto é, ela fica reduzida aos atributos como algo verdadeiro. Porém, se a Gramática busca seu fundamento na Metafísica conceitual, a outra disciplina, a Retórica, parte deste domínio, mas acrescenta o âmbito próprio da Poética. É um âmbito complexo e paradoxal, que poderia ser enunciado numa palavra grega de sentidos amplos e originários: pathos. O paradoxo desta palavra é que tanto denomina a paixão, o envolvimento de todas as forças vitais, espirituais e psíquicas do homem, como também a dor. Dor e paixão andam juntas nas tragédias. Por exemplo, Édipo, Electra etc., como também nos poemas líricos. Estas forças do pathos são apropriadas pela Retórica para atingirem o peitho (o persuadir). Isto é muito importante saber, porque ocorreu no Ocidente um fenômeno estranho, decorrente da disputa em torno de uma palavra central e muito esquecida nos debates: nómos. O âmbito desta palavra é essencial e complexo, gerando sentidos diversos e paradoxais. Em torno dela dois caminhos se formam, ora num duplo, ora numa dobra. Mas a questão que sempre subjaz é a questão da essência originária do agir. Eis a questão: A essência do agir tem como originário o homem ou a physis?
Esta questão tem três respostas:
- É o homem para a Sofística;
- É o sagrado para a Poética;
- É o ser para a Metafísica.
Estas vias enviam para muitas sendas e sentidos e se misturam muitas vezes entre si ao longo do percurso ocidental. Daí a dificuldade de apreender o originário da obra de arte. Elas não são bem delimitadas e claramente apreensíveis. Pelo contrário, elas se entrelaçam, ora num duplo, ora numa dobra. Daí surgem os dois Ocidentes. De qualquer maneira as duas vias são importantes. Porém, a questão está sempre na redução de uma à outra, ou seja, da via poética à via sofística. Quando se procura recusar e negar esta determinação de maneira alguma se está negando a necessidade e importância da outra. Em palavras simples diria: pode-se ensinar o saber mas não a sabedoria. Isto significa: A Poética não pode ser reduzida à Sofística, mas isso não afirma que não seja importante o saber.
Quando a medida é o homem, a Sofística, através da Retórica, acaba por incorporar a Metafísica e a Poética, determinando-as. Então o estudo da Poética ocidental restringe-se ao estudo sofístico-retórico das produções poéticas, enquanto formas determinadas pelas técnicas retóricas. Um outro Ocidente, um outro percurso precisa ser estabelecido e feito. Modernamente da Gramática surgiu a Lingüística como estudo mais geral. Pois bem, alguns lingüistas quiseram fazer da Poética uma sub-disciplina da Lingüística. É o caso de Roman Jakobson.
Como a Gramática e a Retórica eram ensinadas tendo como finalidade a preparação dos dirigentes da Pólis, tudo se move dentro da ideologia política, mas tendo como pressuposto (em parte falso) a formação do cidadão. Isso explica em parte as leituras sociológicas dominantes na Modernidade até hoje e também a exigência do engajamento da literatura e da arte. E também todo o âmbito da Metafísica fica determinado pelo domínio sofístico da verdade da proposição. Na realidade, a Metafísica acaba por adotar a medida da Sofística – o homem – e ao mesmo tempo também dá à Sofística os conceitos que ela elabora. A Metafísica adotando a medida do homem acaba por reduzir a questão do ser ao ser do sendo enquanto sendo, nas diversas versões e traduções do on grego, no percurso ocidental. O que desde então fica esquecido nessas camadas de cinza da Metafísica sofística e da Sofística metafísica é o Sentido e Verdade do Ser. Para o pensamento a medida é o Ser e para a Poética a medida é o Sagrado. Ser e Sagrado são um e o mesmo.
Esse esquecimento, entre outras dimensões, se deu porque tanto a Sofística-retórica como a Metafísica sofística determinaram o Ser a partir da proposição. Desde então toda a Lógica – a doutrina da verdade - se funda na verdade da proposição. O ser da metafísica, enquanto o ser dos entes, é um ser atributivo como sujeito e predicados, fundamento e fundados, criador e criaturas, sujeito e objetos. E então na Modernidade tudo passou a ser determinado pela subjetividade que, no fundo, é a Sofística reafirmando o homem como medida. Essa medida é a razão. Na medida em que a ciência se funda no exercício da razão, toda ela provém da Sofística e se move dentro não só dos mesmos pressupostos, mas também tem em vista fins funcionais e utilitários. Os projetos e pesquisas já devem trazer sempre os fins e objetivos. Nada mais estranho à Poética do que fins e objetivos. A rosa, a vida, o canto, é sem por quê. Que a ciência se mova dentro dos conhecimentos técnicos também é uma decorrência do modelo sofístico. No fundo, para os sofistas a formação do homem tinha em vista a formação técnica, o poder ensinar o saber em sentido amplo, ou seja, onde predomina a téchne. Em grego téchne é sempre um conhecimento. Por saber entendemos hoje todo conhecimento científico e sua verdade. Porém, a questão para a Poética é: Pode-se ensinar o saber, mas pode-se ensinar a sabedoria, a virtude (areté)? Com a Retórica e a Sofística há um aprendizado. Com a Poética exige-se mais: uma aprendizagem, ou seja, o ético (virtude).
O importante a perceber é que também a Poética, no sentido retórico, tradicionalmente se reduziu ao aprendizado das técnicas retóricas. E quando se funda a Estética – o conhecimento oriundo da aisthesis -, esta é a visão metafísica da essência da arte que tem como fundamento a subjetividade. Mas, no fundo, é também ainda a Sofística enquanto subjetividade sensível retórica. Se inicialmente o pathos da Poética ficou a serviço da Retórica sofística, com fins político-ideológicos, agora na Modernidade, o pathos retórico fica a serviço de fins estéticos – centralizados nas formas, daí a posterior arte pela arte – ou também, numa continuidade ainda sofística, a serviço do Estado, substituto da Pólis. Sociologia da literatura, estudos culturais etc. não passam de uma postura com novas palavras e vocabulário da mesma Retórica sofística. Seus fins: a formação do homem consciente e ativo politicamente, num politicamente correto, isto é, num político formatado a priori. Correto ou verdadeiro é o que nas teorias propositivas, ou seja, sofísticas e retóricas, baseadas na proposição, se considera verdadeiro. No verdadeiro a verdade se torna um atributo. O que é verdadeiro para uns não necessariamente é verdadeiro para outros. Quando a medida é o homem (ente) a verdade se torna algo relativo. Só não se torna relativa a medida. Será?
E a determinação da “realidade” da Poética fica na dependência da determinação da verdade da Metafísica sofística ou da Metafísica subjetiva da Modernidade. Todas as artes são determinadas por estes âmbitos.
Porém, a questão da essência do agir, que diz respeito à medida do homem ou à medida da phýsis, tem dois encaminhamentos metafísicos enquanto a essência da sofística.
Em si, tanto a Poética como a Metafísica não têm uma origem sofística e seus desdobramentos retóricos. A Poética da poiesis, ou simplesmente Poética, tem como medida o sagrado, que, com as Musas, filhas da Memória, instaura as vozes dos poetas para ele falar nas e com as obras. Já a Metafísica originária pensa o Ser do sendo, ou seja, a essência originária de tudo que é e está sendo enquanto sendo do Ser. A essência originária (questão) é a dobra como vigor da realidade. A essência essencialista (conceitual) é o duplo de fundamento e fundado, como o estruturante da proposição ou o formante da forma, na medida em que esta é a representação da realidade (to on – o sendo). Todos os conceitos se limitam a serem representações universais abstratas.
O duplo esqueceu o originário da dobra e foi-se duplicando em diversos discursos ou disciplinas (em termos de conceitos uns não se distinguem dos outros), que segmentaram e segmentam a realidade até hoje. É o domínio da ciência, como essência essencialista da realidade. A Sofística, enquanto saber e formação do homem, também é um modo de revelar o sendo do homem e da realidade. A questão é que se tornou de tal maneira hegemônico que corre o perigo de se tornar o único. Esse é o perigo da técnica.
Hoje, em termos de arte, quando se quer saber dela, se pergunta logo pelo emprego de novas técnicas que, conjugadas com as formas, seriam o sinal do novo na arte. A apropriação das técnicas científico-sofísticas torna-se o horizonte das obras de arte, esquecida a questão que desde a origem se coloca: Pode a Sofística ensinar o saber e a sabedoria? Ensinar o saber (técnicas) pode, a sabedoria não. Ensinar a sabedoria é manifestar a realidade. E assim a realidade técnico-científica hoje se apresenta numa ramificação infinda de discursos e terminologias, que têm como fundamento a Metafísica essencialista, de origem sofístico-retórica. E hoje está surgindo cada vez com mais premência a questão da ética, num mundo e realidade sem valores. Como falar em valores sem tocar no que é essencial: a questão da medida?
Hoje, a realidade das obras de arte faz parte da segmentação científica da realidade e as obras de arte sofrem três assédios, pois a realidade enquanto realidade não é mais a questão, só os atributos:
1º. O dos estudos sofístico-retóricos em que elas são classificadas por atributos. O seu fulgor originário de manifestação da essência do agir da realidade e do homem, que deveria dar a medida do homem na e com a medida da realidade, perdeu-se nos descaminhos da Sofística-retórica e da Metafísica essencialista. O seu poder de Paideia poética ficou reduzida ao estudo de classificações atributivas das obras de arte e da literatura. Mero objeto passivo, formal e funcional. É mais importante estudar as formas do que o operar das obras. Mas será que o operar das obras poderá ser objeto de estudo ou só de experienciação?;
2º. Na segmentação da realidade pelos saberes científico-sofísticos (discursos), as obras ocupam os Museus, lugares aptos a exporem as obras segundo os atributos classificatórios. A única distinção das obras em depósito nos Museus e suas exposições, o saírem do estado de depósito, está em expô-las segundo critérios funcionais, classificatórios, formais, historiográficos. Nada mais estranho ao Museu, como depósito e exposição, do que a obra enquanto essência do agir, enquanto operar da verdade, do pathos do homem com e a partir da realidade em toda a sua densidade e enigmaticidade, seja interna, seja externa;
3º. A outra forma de existência está na conjugação do julgamento dos críticos e a determinação, pelos especialistas, do seu valor no amplo comércio e mercado das obras de arte. Elas são bens de compra e venda, de acordo com as regras do mercado. O preço quantitativo é determinado pelo valor resultante da interpretação e do juízo crítico sobre a obra e não e jamais a partir do valor da obra como obra. O valor ético-poético da obra, ou seja, a essência poética de seu agir jamais é pensada, até porque foge a qualquer apreciação critica, tendo como critério a medida do homem, (é a questão sofística do poder se ensinar ou não a areté) e a qualquer valoração de mercado. O significativo desta situação é que a obra comprada ou vendida tem dois destinos: ou vai para o cofre de um colecionador particular. Guarda-a no cofre como se guardasse barras de ouro. Ou vai para o acervo de um Museu, onde fica no depósito para eventual exposição.
O que de ético acontece em quem julga, em quem vê ou em quem compra, nunca está em causa. Mas será que pode haver obra de arte fora da questão da essência do agir? A obra de arte enquanto operar da verdade, e nisso consiste o ético, nos defronta com a medida que nos mede e a medida da realidade. A medida da obra de arte é sempre a medida da realidade enquanto téchne, pathos e poiesis. Esse “enquanto” traz para questão a memória como tempo no seu acontecer poético, porque, em última medida, a medida das obras de arte é o sagrado enquanto memória. A memória ou o sagrado é o Ser do sendo. Por isso, quando Heidegger se põe a questão do que é isto – a Metafísica, afirma: “O pensador diz o ser. O poeta nomeia o sagrado”.
Ao jogo de poder da Sofística, transfigurada na Ciência enquanto Metafísica essencialista, é que se deve a “fuga dos deuses”. O poder dos deuses está em fuga diante do poder da Sofística, modernamente tornada Ciência. É uma fuga que não cessa de se renovar e as armas poderosas pelas quais eles são postos em fuga continuam sendo os atributos. Tal fuga traz um perigo: o domínio planetário da técnica, não enquanto maquinário técnico, mas enquanto a determinação da essência do agir e sua medida pelo conhecimento do homem enquanto medida. Não deixa de ser um destino do ser. Mas o que em tal destino se nos destina? Não está na hora de voltarmos à mathesis e pathos de Édipo?
O que está sempre em causa é a humanidade do homem. O que entender aí por humanidade? É a essência do homem humano. Mas o que é isto – o humano? Vamos nos mover no âmbito sofístico-retórico, determinando o humano pelos atributos dos humanismos? Ou vamos pensar o isto do humano em sua essência poético-originário? Qual é a medida do critério? Em todo perguntar já está vigente um questionar. Mas questionamos porque sabemos e não sabemos. Procurar em todo saber o não saber é sempre a questão da Poética. Para a Sofística basta o saber da proposição e dos discursos. Tudo se resolve com o domínio dos discursos. Pois um discurso é a via do saber que ainda não se sabe mas pode ser aprendido. Mas jamais será a via da sabedoria. Diante desse impasse, o pensador Platão, assim explicou a palavra filosofia: A Sophia só cabe aos deuses. Ao homem apenas cabe a procura da sabedoria. Procurar a sabedoria é procurar o que nos é próprio. Isso, o próprio, os gregos diziam com a palavra philos. Porque não somos deuses, só nos cabe a procura da filosofia, ou seja, aquilo que nos é próprio: a philos-sophia. Nesse sentido, ser filósofo é a tarefa poética própria de cada um. Uma tal tarefa não cabe nos discursos, só na tarefa poética.

14 março 2009

O próprio e os atributos


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Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser
um outro, nem convém...
(Rosa, 1968: 347)


O que neste ensaio se procura desdobrar já está aí manifesto no dito poético de Rosa. Convocados e provocados pelo isto do dito poético, nosso diálogo com ele consiste em tematizá-lo, fazendo uma caminhada de compreensão, na qual nos adentremos e nos compreendamos melhor porque “... a gente não pode ser um outro...”. Ao menos ... não convém... . Mas como ser o próprio e não os outros é que é a questão. Há tantas teorias, tantos modelos, tantas verdades prontas! A tentação de se identificar com a teoria mais convincente e agradável é tão mais fácil! Mas quem disse que viver é fácil! Viver é muito perigoso... e sem receitas. Como evitar a verdade dos atributos?
Metafísica é uma palavra originária grávida de muitos sentidos. É uma dobra. Porém, desde o início predominou um sentido duplo, com profunda influência no Ocidente. Por esse sentido, a metafísica é atributiva como atitude e princípio, funda-se nos predicativos da proposição. Dicotomizou, duplicou a questão, a realidade. Então a metafísica fundou a determinação da verdade do Ser a partir do ente enquanto ente, ou seja, dentro de um princípio como fundamento e representado na proposição. Nesta, a verdade fica reduzida aos atributos propositivo-relacionais, aos predicativos. No atributo e com os atributos temos sempre um saber “sobre”, jamais “com”, jamais na dinâmica do entre-acontecer poético. Chamar a alguém de heideggeriano ou freudiano ou deleuziano ou nietzschiano etc. etc. é identificá-lo com um atributo de algo que lhe é externo, que se incorporaria a ele, mas não surge do que lhe é próprio. Apenas externamente há uma identificação. Externamente diz aí a projeção de idéias (conceitos) com as quais se identifica alguém e a partir das quais experiencia suas vivências, seu ser sendo. E que se tornam a medida da realidade e da verdade. Pura alienação, onde não há um apropriar-se, uma metábole, uma referência com o que se lê, se pensa e se é. Passa-se a pensar – se isto por acaso se pudesse chamar pensar – e a julgar a partir do que outros dizem. E que é assumido passivamente, de fora. Enfim, não há pensar, somente identificação e mimetização externa.
Nesse caso, o atributo é uma forma de classificação de alguém por algo que é de outro, a partir de outro e não do que lhe é próprio. Toda identificação é abstrata, ideal e alienante, porque a identidade enquanto identificação é sempre uma falsa questão. E é falsa porque é baseada em atributos relacionais, ou seja, tem uma base metafísica entitativa.
Cada um é um sendo inaugural e irrepetível, daí a impropriedade do atributo externo e relacional, que é sempre universal abstrato, essência conceitual. Porém, o próprio só se conquista a partir do que é próprio e como o próprio, nunca numa projeção em direção ao que cada um não é nem pode chegar a ser pela identificação ideal com qualquer outro, com qualquer ideia como ideia. Cada um de nós é um “sendo” que não cessa de se inaugurar. Então ser o que já desde sempre se é é “a questão”. E a questão nunca cabe em conceitos, atributos, ideias prévias, teorias, perspectivas. Em cada sendo a questão é corresponder, no e pelo agir, ao apelo de Ser o sendo, não a partir do sendo enquanto sendo (ente), mas do sendo enquanto sendo do Ser. Apropriar-se é o concreto poético de realização sempre em processo, onde o Tempo é o Ser enquanto doação. Presentificar esse presente é o desafio, é o pensamento da questão.
E como se dá essa caminhada de apropriação? Pensando. Pensar é o desafio cotidiano de se apropriar do que se é, mas ainda não se tem, para chegar a ter e a ser o que se é, onde o que se tem não são atributos, mas a manifestação do que se é sendo, no, com e a partir do Ser. A essa apropriação se pode denominar atribuição interna ou referência. Mas será que então ainda se pode falar de atributos ou predicativos? Na referência o referente do referido é o Ser e não o ente. Então a referência não diz algo fundado na proposição, mas no “como” do Ser do sendo. Tal “como” é do desdobrar-se do princípio originário na plena realização do próprio. “Télos” diziam os gregos. Por isso, jamais alguém que pensa e não é mero repetidor de conceitos de outros se pode identificar com um atributo que lhe seja externo. Será que então alguém pode ser heideggeriano, deleuziano, nietzschiano etc.? No caso, por exemplo, ser heideggeriano seria adotar o sistema, a teoria, os conceitos prévios de Heidegger, com os quais se identificaria e passaria a aplicar a algo, falando “sobre” determinada obra, poema, texto ou assunto ou, ainda, pessoa. Isto para julgar a realidade e os outros. As ideias de outros se tornariam o parâmetro (medida) para pensar e ser.
Quem assim raciocina, só usa a razão, porque só sabe se mover na metafísica rácio-conceitual, pois a essência da metafísica essencialista é a ciência física (episteme physike). Vemos aqui como já se determinou a phýsis (Ser) a partir do atributo. E assim procedemos com tudo na nossa vida ativa e contemplativa, espiritual e material, intelectual e afetiva. Só nos guiamos por atributos que são determinados pela ciência (episteme), por um determinado saber. Quem sabe, por apenas raciocinar, nunca chega a saber o sabor do pensar do Ser. Quem só sabe se mover no âmbito da metafísica ideal não sabe se auto-comportar e não sabe ver e julgar o comportamento dos outros a não ser a partir desse âmbito que a tudo precede. Mas quem assim julga sempre se acha a salvo de qualquer atributo e identificação, o que é uma contradição, pois só sabe se mover nos atributos relacionais como fuga das questões. Ou não? Dentro desse âmbito, seremos sempre determinados e julgados por um atributo: heideggerianos, marxistas, freudianos, desconstrutivistas, católicos, protestantes, crentes, espíritas, vascaínos etc. etc. E as obras de arte serão antigas, modernas, barrocas, românticas, realistas, engajadas, alienadas, vanguardistas, inovadoras, criativas etc. etc. Resta a questão: O que serão as obras sem os atributos? Qual a essência da obra sem os atributos crítico-judicativos? Então a obra fica dependente de um “juízo” que tem sua “medida” em quê ou em quem? Mas será a proposição no juízo que lhe dá o que é? Este, o que é, ela o recebe do Ser e não do autor ou do crítico. Em cada obra, isto, o que ela é, só o pode ser no e pelo vigor do Ser. Esse “isto” que vigora em cada obra é a questão. É a questão de sempre. Ela se tornou a questão da essência originária, desde que os seres humanos foram tomados pela admiração do sendo do Ser. Em grego se passou a falar de “ousia do on”. Qualquer tradução é problemática, sobretudo as conceituais, as essencilistas, as genéricas.
A propósito de Heidegger (e de todo grande poeta e pensador), podemos distinguir o seguinte. Quem não leu ou quem leu e não pode entender Heidegger não notou e nem pode notar que justamente todo seu esforço de pensamento se dá na luta permanente pela denúncia da perda do sentido do Ser, na trajetória da metafísica essencialista. Daí a tentativa incessante como caminhada na direção desse sentido, ou seja, pela negação dos atributos como lugar do que é próprio. Ocorre que esse sentido esquecido não ficou esquecido em algum autor, em alguma época, em alguma teoria (acusa-se geralmente Platão ou o platonismo). Isso não corresponde ao que Heidegger não pára de nos advertir e tentar reverter. Ele não tem nenhuma teoria mágica que seria superior (ou a única) a todas as teorias metafísicas e que, adotada, nos daria, finalmente, o sentido do Ser, perdido nas sendas metafísicas ou científicas (o que seria o mesmo). Não. Porém, o que afirmamos de Heidegger poderia ser dito a propósito de Guimarães Rosa também e de outros poetas e pensadores. E até nos servimos de passagens da obra de Rosa, no desdobramento das questões que dizem respeito ao próprio e aos atributos. Isso de maneira alguma quer dizer que sejamos rosianos. Dialogo com a obra de Rosa (e com outros) para encontrar e desdobrar no e com o diálogo o que me é próprio, sem atributos, sem identificação, sem modelos.
A propósito de Heidegger, constatamos que aquilo que ele não cessa de dizer é completamente diferente e não cabe em nenhuma teoria, porque o Ser, (a Realidade), é mais complexo do que qualquer teoria. Em vista disso, suas obras não tentam formular uma nova teoria redentora, única detentora da verdade, hipostasiada num discurso hermético, acessível apenas aos iniciados, aos então denominados “heideggerianos”. Isso é um equívoco lamentável, inventado pelos fechados à convocação do pensar e do poetar, aos dominados pelas classificações atributivas para tudo e para todos (exceto eles), aos que se tornaram surdos pela algazarra dos conceitos das teorias. Porque se isso fosse verdadeiro, ainda continuaríamos nos movendo no âmbito dos atributos, desse domínio fundado na “episteme physike”, desse domínio da retórica e da gramática da proposição. As teorias das correntes críticas não passam de sofística numa retórica renovada, baseadas sempre no mesmo princípio e essência metafísica. A teoria gramatical é a teoria dos atributos, invenção sofística e retórica. Não há atributo ou predicado sem sujeito, nem sujeito sem predicado. É a estrutura da proposição e da realidade. Não há real sem proposição, seja para a sintaxe proposicional, discursiva ou gerativo-transformacional etc.), não há disciplinas que não sejam atributivas. Dizem e ensinam sempre a mesma coisa em novidades aparentes. Todas as análises disciplinares partem sempre de uma teoria atributiva. Analisar é manifestar e comprovar os atributos (ex-plicação causal). Mas será que a realidade não precede a proposição? Como haver pro-posição sem a realidade se manifestar no que é enquanto linguagem (mundo)?
Não podemos ser heideggerianos ou marxistas ou culturalistas ou freudianos etc. etc, porque não somos dependentes de atributos externos. Ou não deveríamos ser, pois ...não convém... . Isso é negar o próprio e viver de atributos, consciente ou inconscientemente. Infelizmente, a formação sofística e metafísica molda o sendo desde cedo nos atributos. Naquilo que nos ensinam predominam os atributos. Quando se ensinará para a liberdade de Ser? O que cada um é se dá sempre na referência ao Ser, isto é, à essência da liberdade e sua medida.
Falar por meio de ou a partir dos atributos é sempre falar “sobre”. Ora, todo “sobre” já pressupõe uma “posição” (perspectivista, realista, simbólica etc.) que se põe de fora, ainda que frente a, do objeto a ser perspectivado e analisado. “Sobre” surge de uma teoria prévia do real. Se essa teoria é falsa ou verdadeira - domínio dos atributos – isso será comprovado pelas análises “sobre” (não importa o quê). Todo “sobre” pressupõe um pôr-se “de fora”. E pode haver “posição” fora da realidade e do que nela acontece enquanto manifestação? Se a realidade não se der, como tomar posição e mover-se nela, seja teoricamente ou não?
Todo atributo entitativo externo, no fundo, é equívoco porque não vê ou não quer ou não pode ver que toda posição para estar “de fora” (sobre) já deve estar “dentro”. Essa constatação tão simples é melhor captada nos momentos criativos que são sempre simples, sem jamais serem simplórios. Se compreendermos (equivocadamente já) a realidade como mundo seguido de um atributo: espiritual, material, teórico, prático, antigo, moderno etc etc.) facilmente se nota que qualquer posição “sobre” o mundo não é “sobre” o mundo, mas no mundo tomado a partir do atributo. Então nunca estamos fora do mundo, nem ao lado, nem sobre, porque até para tomarmos qualquer “posição”, a partir da qual se determina o “sobre” (e qualquer atributo), essa posição já pressupõe o mundo. O que é “mundo” enquanto “mundo’ sem atributos? Mas então a variação e mudança e análise se dá na “posição”, perspectiva e teoria do atributo, sem se questionar: O que é isto – o mundo? É isso que se quer afirmar quando se denomina alguém com qualquer atributo. E como os heideggerianos poderiam ser diferentes? Não é isso uma pretensão descabida? Talvez uma passagem da canção de Raul Seixas, o irônico, nos torne evidente a contradição (e não e jamais o paradoxo) a que ele alude. Na canção “Eu também vou reclamar” diz:
..........................................................
Ligo o rádio e ouço um chato
Que me grita nos ouvidos
Pare o mundo que eu quero descer
...........................................................


Como parar o mundo? E saltar do mundo onde e para onde? Devemos é saltar fora dos atributos, pois há alguém mais chato do que o repetidor e citador de atributos? O que devem ser abandonados são os atributos com que nos ensinam, e nos acostumamos passivamente, a gerir e a ver o mundo, o real, a realidade e as realizações, a nós mesmos. Por que não simplesmente só ser? Num outro rasgo criativo Alberto Caieiro diz também:

............................................................................
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.

Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos
(Caeiro, 2004: 84)

É muito difícil desaprender os caminhos fáceis e trilhados dos atributos. É muito difícil questionar o esforço constante das pesquisas para gestarem novos atributos, novas leis, novas teorias, novos ismos. É que o fato (a vestimenta) dos atributos, que os homens o fizeram usar, lhe pesa, pesa no pensamento. E só muito devagar ele atravessa o rio da vida, de ser o sendo que nos é próprio, de ser o próprio sem atributos.
As pessoas se acostumam a mudar de teorias, formas, perspectivas, enfim, de atributos. Só não têm a coragem de serem sem atributos. Como diz o Poeta, isso é uma pro-cura contínua e diuturna O costumeiro repetidor de atributos tem preguiça em pensar no ensinado o não-pensado, pois o pensar exige um despir-se do que se aprende sobre. E uma disciplina de renúncia ao já contido nos conceitos atributivos. É difícil raspar a tinta, isto é, os atributos conceituais com que se revestem e se dão ar de cultos, aptos sempre a distribuírem atributos aos que os questionam. Porém, como o poeta, a pro-cura é outra, porque outro é o seu cuidado. Pensar é ter o cuidado da Cura em toda procura. Para os tributários dos atributos dá a impressão de que se não se aprende um “ismo” nada se aprende (e vem uma ladainha de autores e obras citadas, na maioria das vezes lidas e não pensadas). Ah, como é difícil a aprendizagem do “nada”! E qual o caminho? Pensar. Pensar no “com” o “entre” e se afastar definitivamente do “sobre”.
Se Heidegger (mas poderia ser também Rosa e alguns outros. Aliás Rosa afirma corajosamente que são alguns raros (Rosa, 1968: 79)) repito, se Heidegger não propõe uma nova teoria de atributos, o que propõe? Quando houve em sua vida a necessidade de ordenar e publicar as suas “Obras completas”, ele se viu imediatamente diante do perigo que um tal título já sinalizava – obras como sistema – e que daria já uma indicação equivocada de todo seu esforço em desconstruir a metafísica essencialista, pois poderia indicar tal título que seu conjunto de obras propunha apenas um sistema novo, que seria, enfim, de qualquer maneira, um sistema. É no e pelo sistema que se geram os atributos classificatórios. Ora, todo seu esforço de pensamento consistiu em mostrar a incoerência de qualquer sistema atributivo, frente à provocação da retomada da procura do sentido esquecido do Ser. E então exigiu que se escrevesse: “Weg nicht Werke” (Caminhos, não Obras). O que essa mudança implica? Poderíamos resumi-la na seguinte indicação: Caminhos no “entre”, diá-logo com a questão, não “sobre”. O que Heidegger não cessa de propor em seus escritos é essa mudança: abandonar definitivamente os atributos fundados no “sobre” proposicional e empreender uma caminhada de “diá-logo com”. “Com” diz sempre caminhada junto e unido ao que é digno de ser questionado e pensado: o Ser. Se compreendermos que “sentido” é o próprio caminho do caminhar, então, de onde nos vem o sentido do caminho e o caminhar no e com o Sentido? Não esqueçamos que sentido é a verdade do Ser se manifestando. Podemos desdobrar tal pergunta em dois sintagmas: “Com quem?”, “Com o quê?” Mas será que são, de fato, dois sintagmas separados? O “Com quem” não implica o “Com o quê” e este não implica aquele? Claro, caso contrário, reintroduziríamos a vigência do atributo vigente no “sobre”. Todo “sobre” se move num duplo e na denegação da dobra. Rosa, o poeta-pensador, já disse que andava à pro-cura do “quem das coisas”. Ora, o que reúne o “quem” e o “quê” é a phýsis, pois ambos, para serem o que são, já são vigentes na, pela e com a phýsis, isto é, o Ser. Porém, a phýsis se dá sempre num “entre”, numa dobra, num diá-logo (consultar a sentença 123 de Heráclito). Pois o que manifesta e reúne os entes do Ser é o lógos (linguagem). Ser e linguagem constituem o ser humano. Este, para ser o que é, só o pode ser “com” o Ser e “com” o lógos, enquanto diá-logo, até porque sem Ser e sem Lógos o ser humano não é. Queira ou não queira o ser humano já se experiencia vivendo, pensando, amando etc. etc., sendo “com” e “no entre-Ser”, enquanto lógos. Enquanto não é aí uma categoria gramatical, mas o acontecer poético do Tempo/Ser.
Porém, o ser humano e tudo o que é só são “sendo”. Diz-nos Heráclito na sentença 84: “Transformando-se, repousa”. Isto nos remete ao Ser do sendo, pois todo sendo só pode ser sendo do Ser. Todo repouso é repouso do transformar-se, como todo transformar-se é transformar-se do repouso. Por isso a sentença de Heráclito reúne o limite e o não-limite. Isto é o desdobrar-se da dobra. Nenhum atributo dá conta do sendo, pois estatiza a dinâmica do Ser, do transformar-se sem cessar e que, por isso mesmo, repousa. Repousar é permanecer na e com a dinâmica do entre-acontecer poético da mudança. Esse “e” é a dobra vigorando em toda forma (morphé). Permanecer é não deixar de ser sendo: entre-acontecer poético. “Poético” é aqui o atributo interno, não propositivo, inerente ao próprio sendo enquanto entre-acontecer. O “entre” remete para a ambiguidade do sendo enquanto sendo do Ser. É que todo “sendo” só pode ser sendo a partir de e com o Ser. Os “atributos” do “sendo” não são e nem podem ser algo “de fora” ou “ao lado do” Ser. Eles são no sendo o Ser sendo, onde o “sendo”, todo sendo, é sendo do, no e a partir do Ser.
O conhecimento pelos atributos, o saber sobre, é o próprio esquecimento do sentido do Ser. Não podemos esquecer que aqui “saber” e “Ser” são o “mesmo” de que nos fala Parmênides na sentença III. O que significa aí “esquecimento do Ser”? Não significa que os seres humanos podem sofrer física ou psicologicamente de “amnésia”. Esquecimento diz aí a perda da “memória” do Ser, pois, metafisicamente, o homem (ente) se propôs como a medida de todas as coisas. A medida é o Ser do sendo. Também não é uma perda física ou psicológica da “memória”. Diz Heidegger: “O entrelaçamento das respectivas verdades “sobre” o sendo em seu conjunto se chama “metafísica” (Ver em Marcas do caminho, ensaio “A essência e o conceito de phýsis em Aristóteles – Física B, 1 (1939), 251”. Heidegger: Vozes, 2008). Ao tecer teorias “sobre” o ente e mesmo “sobre” o ser do ente, desde então aconteceu o esquecimento da “memória” do Ser, do sentido do Ser. Nisso, a “memória” do Ser se tornou “a questão”. Porém, questão não é conceito nem problema. A questão também não pode ser pro-posta de fora ou sobre o Ser, porque fora do Ser o que pode ser?
Surpreendemo-nos então numa con-juntura de questão: nós, seres humanos, cada sendo só é e pode ser no, com e a partir do Ser. Porém, o Ser não é, pois se fosse seria ente e não Ser. De um lado, só somos com, no e a partir do Ser. De outro, como antes e depois nunca abrangemos o Ser, nunca somos o Ser. Somos sendo no entre-acontecer poético. Dentro dessa aporia, cada sendo deve apreender-se e compreender-se já desde sempre vigente no Ser, mas como o Ser não é, pois se fosse seria ente e não Ser, o Ser sempre de novo se nos dá e convoca a pensá-lo como “a questão”. Na resposta da “questão” o Ser se dá e, ao mesmo tempo, se retrai como Ser. A retração diz a presença da ausência, o repousar no transformar-se, a essência originária da forma (morphé). A presença da ausência diz sempre o extra-ordinário do ordinário, o insólito do habitual, ou como o poeta-pensador diz: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (Rosa, 1967: 71).
Contudo, essa questão, como “a questão”, não é algo que um dia foi descoberto, formulado e resolvido. Não. Jamais. Ser é memória. O sentido é a memória do Ser. Sentido é o caminhar de todas as caminhadas enquanto unidade, memória. E memória é a unidade do que foi, é e será. É a unidade do “tudo um” (hen panta) da sentença 50 de Heráclito. A memória, enquanto sentido do Ser, é a unidade da pro-posta como “o a ser pensado” na sentença 84 de Heráclito: “Transformando-se, repousa”. “A questão” é algo permanente no transformar-se, é o contínuo permanente “a ser pensado”, isto é, a ser questionado. É nessa con-juntura (re-ferência) que se dá o “com” do entre-acontecer, do “dialogar” entre sendo e Ser. O “dialogar” nos joga, pois, a cada um e a cada momento e época, na con-juntura da questão. Época diz, então, o desvelar-se da verdade do Ser sendo como presencia de ausência. É um desafio de caminhada a ser pensado sem parar e que ninguém pode fazer por nós. E que não se resolve em nenhum atributo, em nenhum “sobre”. Dialogar com é sempre uma conjuntura de memória (passado, presente e futuro). Isto significa que o “com” é o a ser pensado por cada um sem cessar no dialogar, porque é nesse pensar (ou criar) que se dá a tarefa, apelo, vigília e desvelo dos poetas e pensadores. Ser poeta e pensador é o apelo vigente desde sempre em cada “sendo”. No e pelo sendo, que já desde sempre somos, todos somos propriamente poetas e pensadores, enfim, artistas. Ser artista é a vocação irrefreável para nos apropriarmos do que nos é próprio. Quem classifica o outro facilmente com um atributo não quer pensar e nem dar o direito ao outro de pensar o que lhe é próprio. Pensar é pensar-se a partir do Ser.
Todos os escritos de Heidegger não cessam de repetir com uma insistência de apelo, a cada um que o lê, que faça conforme o pensador Heráclito já o sentenciou na sentença 50: “Auscultando não a mim, mas ao lógos é sábio corresponder ao: tudo é um”. Co-responder (homolegein) é experienciar “a questão” sempre na con-juntura do: “tudo é um”, isto é, no dialogar enquanto entre-acontecer. Ninguém, se leu e procurou compreender Heidegger a partir do que nele é “a questão”, pode-se tornar um atributo a partir de Heidegger. Todo sendo só pode ser “com” e no entre-acontecer do Ser. Mas se esse é o próprio apelo do Ser em cada um (e não por um milagre miraculoso em Heidegger ou seja lá em quem for), Ser o sendo não é algo prévio ou de fora e que alguma teoria possa dar previamente (próprio das teorias atributivas, manifestas de antemão sobre). De maneira alguma. É sempre o desafio e apelo de ser o próprio.
Ser o sendo que cada um já é e recebeu como próprio, como “moira”, é “a questão”. É isso o que quer dizer o “dialogar com”. “Com” o Ser é ser “com a questão”, como a questão do Ser. Ser sendo é tão simples e natural quanto misterioso, insólito. Ser, em suas etimologias, é surgir, viver e permanecer. Para cada um o verbo mais simples, direto, imediato e cotidiano é ser. Embora estejamos sendo e jamais possamos deixar de ser, Ser é o enigma que todos temem. Por quê? É que é muito mais fácil trilhar os caminhos dos atributos, presentes nos saberes das disciplinas, dos estudos culturais, das teorias. Porém, todos temos um ‘encontro marcado’, no e com o Ser, porque, misteriosamente, até os atributos para serem atributos têm sua vigência no Ser. Descobrir e enfrentar o desafio de que somos um projeto (cada um) de ser poeticamente “com” o Ser é o desafio que só cada um pode e deve enfrentar, sem medo e com coragem. Realizar o próprio é a travessia do Ser.
Aí nenhum “sobre” pode fazer nada, ou seja, nenhum atributo pode resolver, pois todo atributo não sai nunca do âmbito do “como” o sendo é, isto é, todo atributo como atributo só nos joga no âmbito do “como” externo, do sendo, do ente. Externo é o que se enuncia e anuncia na proposição como fundamento e representação. Resgatar em nós, em cada um, o esquecimento do sentido do Ser, “pintado nos sentidos e nos ensinamentos que nos ensinam”, é a “grande tarefa”, ou seja, sem mudarmos de atitude pelo abandono do “sobre” e optarmos pela disciplina do entre-acontecer poético-dialogante, jamais compreenderemos o que, em seu caminhar de pensador, Heidegger não cessou de, ele também, tentar: responder e corresponder ao apelo e convocação do Ser.
E outra faceta desse apelo do pensar nas obras de Heidegger é que ele faz isso mesmo “com” as obras dos grandes pensadores. Pois todo pensador de todas as épocas pensa a “questão” como e a partir da época. Por isso, como Heidegger faz (e todos os grandes pensadores fizeram) com as obras dos grandes pensadores e poetas, pensar é pensar no pensado de tais obras o não-pensado “como” “o a-ser-pensado”, a questão. Heidegger, em seus ensaios, jamais retoma e relê as obras dos grandes pensadores para classificá-las. Não cessa de repensar nelas o que se dá como questão. Muitas vezes retoma e relê apenas um parágrafo, uma pequena passagem, uma palavra. E então as obras de tais pensadores saem das classificações atributivas, classificatórias, e nos aparecem numa luz inaugural, pois as grandes obras poéticas e de pensamento são sempre inaugurais. E são inaugurais porque a “questão” é sempre inaugural, epocalmente inaugural. Reduzi-las a atributos é matá-las. Mas o que nelas se mata é a questão, encobrindo-a com os estudos “sobre”, onde só se fazem análises e não se escutam no que elas têm digno de serem escutadas, porque fruto da fala da questão. Falatórios atributivos não são a fala da questão.
Nesse horizonte (e não numa perspectiva teórica), a época não pode ser fruto de uma historiografia atributiva, mas o originário do inaugural. O pensador não repete, para o certo ou para o errado, o que nelas se diz. Traz para o questionar o que nelas é a “questão” e assim nos provoca a pensar também o que, no que ele diz, é digno de ser pensado por nós: a questão. É que a época, toda época, é o entre-acontecer poético do Ser. Por isso, a Poética é o entre-acontecer do poético, da questão, ou seja, do originário do inaugural, um inaugural que se torna para cada “sendo”, enquanto entre-ser, “a questão”, a questão da referência de Ser e sendo.
Porém, devemos ter bem presente que o “dialogar com” só é a partir do e com o Ser, porque já somos também em reunião com todos os outros “sendos”. Não somos uma justaposição de “sendos”, assim “como” uma casa não é a justaposição de tijolos ou a biblioteca de livros a serem citados. Somos sendo no e a partir do Lógos, pois a Linguagem é a Casa do Ser. Somos, segundo a sentença 50 de Heráclito: “hen panta/tudo um”. É que a questão é uma tarefa de todos. O lógos, a reunião que põe, depõe e propõe, no ditar do dito poético, reúne todos os pensadores em torno de, na e com “a questão”, num diálogo sempre originário inaugural. Pensar é pensar com “todos” a questão, mas em que cada “sendo” é sempre insubstituível, irrepetível, em que a tarefa de pensar a questão não pode ser delegada a ninguém, daí a impropriedade dos atributos externos, do denominar a alguém de heideggeriano, sartriano, rosiano etc. etc.
Rosa, o pensador-poeta, disse isto de uma maneira admirável: “Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho ...” (Rosa, 1968: 47). “Capinar” é aí o trabalhar (agir poeticamente) a tarefa que nos foi dada, não em comodato, mas como destino. Capinar diz aí o inclinar-se para a Terra, tratá-la, cuidá-la, cuidando-nos. E a extrair dela o que nos leva a Ser o sendo, não a reduzindo a mero recurso disponível para fins funcionais, consumistas. Capinando se prepara a Terra para receber a semente fecunda a ser manifestada pelo água e pelo luz do Céu, no agir silencioso da Terra e do Sol. Da Terra e do Céu nos advém o alimento de consumação de nosso destino, da sina e tarefa que nos foi confiada: o próprio.
E como esquecer nosso destino, a questão em nós? Tarefa se diz em latim “pensum”. De “pensum” se formou a palavra portuguesa “pensamento”. Pensamento, portanto, é a tarefa de pensar a questão enquanto o destino que nos foi destinado no cuidar da Terra, Gaia, e nos abrirmos para o agir poético do Sol na e com a clareira. A estranheza e o insólito está na grandeza e mistério de “o a-ser-pensado”: a questão. A vertigem e o abismo que se nos abre nesse desafio, como o “a-ser-realizado”, nessa tarefa poética, nos jogam desde sempre na essência do agir, isto é, do Ser. Mergulhar, como essência do agir, no abismo é uma tarefa de todos, é uma “colheita” de todos. Na colheita – cum legere – já temos sempre o apelo da escuta do Lógos: “hen panta”, onde todos somos no dia-logar com o que nas obras de todos os pensadores e poetas é digno de ser pensado. A colheita é comum, mas quem quer colher no recolher-se “a questão” não pode se atribuir atributos seus ou dos outros. Colher é colher com todos, acolhendo e recolhendo-se ao um (hen panta). Na colheita entre-acontece a unidade, a vigência da memória..
Heideggerianos? Platônicos? Etc.? ... não convém...
Colher com todos é dialogar. É nesse horizonte que devem aparecer as “obras-caminhos” de Heidegger e de todos os grandes pensadores e poetas: como caminhos dialogantes que convocam ao diá-logo com e a partir da questão. E não e jamais a uma doutrinação e a um formar e formatar, próprio das teorias atributivas. Como se defrontar com o Ser do sendo como “a questão” se não for um diá-logo de todos e com todos no “hen panta”?
Ler, viver, pensar é dialogar “com”, pois, dialogar é cada um e, coletivamente, acolher “a questão”, a memória e sentido do Ser para, vigorando na arché chegarmos à plenitude de nosso télos (o que nos é próprio), para que, no apelo da “questão”, sempre inaugural, transformando-nos, repousemos. Mas isso só pode entre-acontecer se rasparmos as tintas com que nos pintaram os sentidos: se rasparmos e abandonarmos os atributos.
O desvio fundamental do atributo nunca está no atributo como tal, pois os atributos do sendo nunca podem ser negados. A questão está em que, na retórica e sofística metafísico- proposicional e lógica, o atributo se atribuiu o lugar da verdade do ser. E, consequentemente, reduzindo-se o Ser enquanto verdade ao atributo (o sendo verdadeiro, alto, baixo, mau, bom etc. etc.). Porém, o Ser vigora no sendo, que é, e como sendo, que é, o Ser se dá e presenteia e presentifica como presença. Como presença e ausência, o Ser se desvela no sendo. Portanto, a verdade do Ser do sendo é o desvelamento e não e jamais pode ser confundido e reduzido aos atributos. No sendo, como possibilidades do Ser sendo no que é, as qualidades, os atributos podem comparecer positiva ou negativamente. É que os atributos já estão relacionados ao limite (morphé) que o sendo é e não é. Um atributo positivo é o que não é fundado pelo ente, mas doação do Ser, dimensões de o Ser se manifestar, tendo, portanto, o Ser como medida, e não fruto da proposição relacional. A morphé não é a medida, mas a plenitude do Ser sendo, manifestando-se. O atributo positivo ou manifestação do Ser é sempre referencial.
O sendo como presença é presente do Ser e é este que se faz presente sempre como presença e como presença da ausência, como Essência originária, determinando o que é como limite. E não o inverso. Portanto, a medida dos atributos é o limite (morphé), mas este tem como medida a Essência originária que nele vige e o pro-duz e o con-duz à con-sumação. Nesta realização, os atributos são subsumidos pelo não-limite do entre-acontecer poético-apropriante. O verdadeiro depende da verdade. E não o inverso. Mas a verdade é o entre-acontecer apropriante na vigência e dinâmica do Ser no sendo e jamais se lhe pode atribuir o atributo verdadeiro. O problema do atributo é sempre um problema do ente (sendo), jamais do Ser. Mal e bem é um problema do ente, jamais do Ser. O Ser não é bom nem mau, porque o Ser não é ente. Rosa, neste sentido, tem uma passagem importantíssima em sua obra-prima: Grande sertão: veredas. A caminhada de Riobaldo é o caminhar por entre os entes e o Ser, para chegar a ser o que é. A sua caminhada é a nossa caminhada, pois Riobaldo é uma personagem-questão. Com o pacto, ele se deixa tomar pelo Ser e então a questão do diabo, como lugar da questão do bem e do mal, encontra o seu devido lugar: no âmbito do Ser-tão não há bem nem mal. Diz:

- “Mano velho, tu é nado aqui, ou de donde? Acha mesmo assim que o sertão é bom?...”. Bestiaga que ele me respondeu, e respondeu bem; e digo ao senhor: - “Sertão não é malino nem caridoso, mano oh mano!: - ...ele tira ou dá, ou agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo” (Rosa, 1968: 394).

Essa questão dá a diretriz de todo o seu fazer poético, porque é a questão da referência de Ser e homem, e não uma relação atributiva de entes. Noutra passagem diz: “Mas a água só é limpa é nas cabeceiras. O mal ou o bem, estão é em quem faz: não é no efeito que dão” (Rosa, 1968: 77). O agir do homem baseado no poder de agir do homem é que gera o bem e o mal, ou seja, move-se tal agir nos atributos.
Porém, há um mistério desafiante nesse agir atributivo do homem como medida, pois, abissalmente, não é ele que decide o optar por esse agir, por ser a medida. Diz: “Quem que diz que na vida tudo se escolhe? O que castiga, cumpre também” (Rosa, 1968: 165). Cumprimos, quando nos medimos pela medida do ente ou do Ser. Todo próprio, até no impróprio, tem sua Moira, sua sina. Saber a sina como questão, eis a questão para quem a sina é questionar. Para quem a sina não é questionar, só restam os atributos, que também é viver. Diante do viver sem a questão do bem e do mal do jagunço Jõe, Riobaldo fica admirado e o questiona. E o que ele responde? “- Uai?! Nós vive ...” – foi o respondido que ele me deu” (Rosa, 1968: 169). Que questão Rosa quer nos pôr, quando cria o personagem Jõe? Na sua simplicidade de jagunço, viver não é questão. Viver já é a grande aventura. Mas o que é viver? É que para a travessia não basta viver. Além do verbo viver há outros três que ditam o alcance do homem humano: conhecer, ser, amar. É em torno dos quatro verbos que o questionar questiona. Mas este não é algo sobre, de fora. Não. Questionar é escutar a voz que os convoca e no convoca. E é "isso" que leva Rosa a fazer a pergunta, a colocar a questão. É que, segundo a sina de cada um, viver não basta, algo mais advém, mas não para todos, é verdade. Por quê? Essa a questão de Riobaldo, porque nem todos são lançados no abismo. Lançados estão, mas movem-se na superfície dos atributos, onde correm as duas margens do rio. Para eles não se faz questão a terceira margem do rio, o terceiro olho de Édipo. É que a algumas raríssimas pessoas Apolo fere. Eis o que nos diz Riobaldo:

Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas, veredazinhas (Rosa, 1968: 79).

Riobaldo é uma dessas raríssimas pessoas. Para ele não basta viver. Ele é tomado pelas questões e convoca o leitor para o acompanhar: “O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção” (Rosa, 1968: 79).
Os atributos são relações propositivas no âmbito dos entes. Nelas, o estatuto do que é bem ou mal muda dependendo do ponto de vista na relação. Mas não devemos confundir re-ferência com relação. O sendo, a verdade, a presença, é sempre referência do Ser e sendo. Quem se move apenas no âmbito das relações não pode jamais sair do âmbito dos entes e de seu conhecimento, os atributos. Apenas vive. E não há nisso nenhum julgamento. Há o mistério, o insólito, que não pode ser negado. Quem tem olhos para ver, vê. Os entes e seus atributos não passam do mover-se nos limites relacionais, gerando os formalismos. Nessa limitação, caem os que se movem apenas nos atributos propositivo-relacionais, nos conhecimentos “sobre” os entes e seus limites. Mas como haver sendo sem Ser? Quando o apelo do sendo é o Ser, não há como ficar se guiando apenas pelos limites dos entes. É necessária a escuta do lógos. E no dia-lógo(s) de escuta do Ser qualquer atributo relacional é uma impropriedade. Ser heideggeriano, rosiano, kantiano, e assumir o atributo seria ser impróprio. Até se pode, mas então não se é o que se é no sendo do Ser. ...não convém...
Que se pode fazer quando não se quer pensar? Cada um tem sua sina. Pensar é nosso destino e, por isso, pensar é também esperar que o sono sonolento dos atributos se dissipe e brilhe o acontecer da admiração, do próprio em cada um: o Ser vigorando no sendo. Então os atributos predicativos, qualificativos, passarão a ser o que são: atributos dos entes. Fora deles só sendo o sentido do Ser. E então chegou a hora e a vez do acontecer poético-apropriante.

Bibliografia

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 6. e. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
-----------------------------. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
HEIDEGGER, Martin. Marcas do caminho. Petrópolis: Vozes, 2008.
CAIEIRO, Alberto. Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.