29 maio 2008

Destino, dobra e duplo em "Grande sertão: veredas"


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Narrar é o próprio sagen como telos/dobra. Mas isto acontece quando o espelho deixa de ser a razão especulativa para ser o espelho enquanto ser/linguagem, onde linguagem é a casa/mundo/logos/ethos do ser. Quando no espelho vejo a reduplicação da minha imagem o que ela é ontologicamente? É uma imagem real ou é um duplo? Para decidir isto é necessário decidir a essência do espelho e a questão do espelho e do especular não é se o que se vê é real ou um duplo, pois para além e anterior a esta questão e resposta está a questão tanto do ver como do conhecer. Mas qual é a referência de ser e conhecer, de einai E noein? A questão do espelho e do especular não é se o que se vê é real ou um duplo. Isto é uma aparente questão. A questão consiste em apreender e compreender o a partir de onde se vê e se conhece. Aí podemos ter dois caminhos: o da dobra ou o do duplo. E estes se dão na interpretação metafísica ou não do on. Quando este é compreendido e conhecido a partir da arché e do telos então se dá a dobra e não mais o duplo.
O des-dobramento é a verdade que é a aletheia, pois toda aletheia já traz em si como arché a vida enquanto telos, isto é, a verdade, a aletheia, o des-velamento, o des-dobramento: mito e rito, musica e silêncio. Mas como des-dobramentos são aconteceres poético-apropriantes, pois o desdobrar implica a memória e o tempo, a linguagem e a poiesis. Por isto a dobra é Amor enquanto des-dobramento, pois toda ação se dá num empenho cujo penhor é o telos, ou seja, é o Bem e o Belo em Platão. Portanto, o Belo como Amor é sempre acontecer da arché na pro-cura de seu telos. Então é o espelho originário ou dobra o que já traz em si o vigor do desdobrar, ser o que é, no sendo o mesmo, ser também um outro, onde o outro não diz uma oposição (duplo) ao eu, mas o telos, não do eu como construção subjetiva, mas do eu/é que já é cada eu.
No questionar se questiona porque não se sabe, senão não era preciso perguntar. Por outro lado, já se sabe, caso contrário nem teria como perguntar se de alguma maneira já não soubesse. Mas nas questões essenciais nunca se pergunta por perguntar, só se pergunta para articular saber e ser, onde saber é ser o que se conhece. Eis aí a dobra enquanto Amor e Bem e Belo originários.
O destino sempre é dobra e o seu desdobrar-se se dá originariamente como noien e einai. O destino consiste na diá-noia e no diá-logo do ser que se dá no desvelamento do einai como noein, na medida em que tanto o noein como o einai se especulam como logos, onde o destino consiste no desvelar como diá-noia o einai e o einai como diá-logo. Por isso, o ser é a dobra de diá-noia e de diá-logo. O diá-, isto é, o entre de nossa liminaridade. Neste entre vigora o próprio se apropriando, enquanto destino e travessia, da arché em seu telos. É por isso que a subjetividade não pode fundar e dar o ser, pois, ao contrário, é este que se dá na dobra de diá-noia e de diá-logo. Por isso o querer como consertar só pode ser o não-querer como concertar ou pacto, levando este à realização da travessia e à manifestação do ser como não-querer, pois o vigor originário de manifestação está na fonte, na arché, de que o telos é a consumação, nisto consistindo o destino. A narração se torna assim o lugar da diá-noia e do diá-logo, constituindo a obra como disputa de terra e mundo, ou seja, o concertar amoroso.
O telos embora seja prévio no sentido de ser em si a arché se realizando, sendo, a travessia só se dá como diá-noia no diá-logo, sendo o narrar o auto-diálogo como apropriação do que é próprio no percurso da diá-noia. À narração propriamente dita precede a narração poética do destino/ser como possibilidade esta daquela, realizando o concreto narrar. Se isto não acontecesse assim, os leitores nunca poderiam ler poeticamente, mas apenas formal e discursivamente. Tanto para o leitor como para o narrador, ambos vigentes no destino, o narrar concreto só pode acontecer porque ambos vigoram já desde sempre na memória, enquanto presencialização da arché no telos. Por isso a ligação do diá-logo com a diá-noia se dá realmente como uma anamnese, não significando reconhecimento, mas como um morar junto à memória. Eis o motivo porque o diá-logo e a diá-noia con-vocam sempre a voz da memória como tempo, que é o doar-se e presenciar-se do ser na poiesis da linguagem. Conferir o ensaio de Heidegger Tempo e Ser.
A narração como anamnese em Grande sertão: veredas vai ser assinalada por quatro grandes momentos:
1º iniciação ou travessia do São Francisco;
2º o julgamento onde se decide e julga, no fundo, a vigência do consertar e do concertar,
pondo em choque real a disputa ou pólemos do poder como provindo do ser como verdade e ethos como diz Heráclito no fragmento 53: De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é senhor: a uns mostrou como deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros, livres. Cf. a interpretação-dialogante que Heidegger faz deste fragmento, em relação com a verdade libertadora, no livro: Ser e verdade. Petrópolis, Vozes, 2007.
3º o pacto e a regência do valor da verdade a partir da lethe que se dá e realiza no amante/poeta/pensador como aletheia, sendo aquela a arché desta enquanto telos ou bem e amor;
4º a manifestação e consumação do destino independentemente da intervenção e ação de Riobaldo bem como a regência do amor/bem como condução de todas as ações. O amor/bem se manifesta em três dimensões integradas: primeira, o amor encoberto e força originária da própria arché: Diadorim; segunda, o amor paixão erótica por Nhorinhá; terceira, o amor bem desvelado por Otacília. Num segundo e terceiro acontecem o telos.
Dia-bo é o jogo entre o consertar e concertar. Riobaldo desde que se decide pelo concertar deixa de existir o entre como jogo de poder inerente ao consertar e o possível inerente ao concertar, havendo com o pacto, portanto, a decisão pela negação do consertar e do vigorar do concertar ou seja da arché como amor.

Suporte



De todos os suportes de Teorias e Correntes nenhum suporta a insustentável leveza do real. O real é sem suporte.

22 maio 2008

O mito de Midas e o ser feliz

 
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O mytho é o nada que é tudo.
Fernando Pessoa. Mensagem
 

O mito tem sido muito silenciado na cultura ocidental. E com a expansão planetária desta, os mitos de outros povos acabaram sendo apreendidos e lidos a partir desse silenciamento. Este consiste num jogo muito sutil e violento: não deixar o mito falar e fala o tempo todo por ele. Tal silenciamento tomou três formas no ocidente e as três têm origem numa mesma decisão sobre o que é o “real” como essência do agir.
A primeira e mais violenta foi a filosofia. Ela se firma e institui combatendo o mito. A segunda, derivada dela, foi a teologia. Nesta, o theos já é lido a partir do logos, mas um logos metafísico, reduzido à techné e ao racional, ainda que fundamento. A terceira, derivada das duas primeiras, foi a ciência. Aqui, o racional já se impôs totalmente, sendo o mito analisado dentro de uma das disciplinas em que a ciência loteia e assedia o “real”: a mitologia.
Nosso intuito é deixar o mito falar. Por isso não partimos, ou ao menos procuramos não partir, de nenhum pré-conceito, mas nos lançamos no âmbito do questionamento e do pensamento enquanto e no âmbito da espera e da escuta da fala do silêncio e da epifania do inesperado. Se o mito foi silenciado nem por isso deixou de vigorar à margem, sobretudo na terceira, comparecendo então como o “mítico”.
O mito de Midas da Morte
Os mitos são de uma riqueza extraordinária e muitas podem ser as suas escutas ou interpretações, isto é, muitos podem ser os diálogos estabelecidos. Que mito escolhermos para questionar e pensar a essência do agir? No e pelo agir muitos podem ser os nossos motivos, empenhos e objetivos a atingir. Sempre nos movemos na dimensão do agir. Mas trata-se aqui da essência do agir, ou seja, daquele agir no qual e pelo qual se decide o que somos e não-somos. E quando nosso ser está em jogo, então trata-se fundamentalmente de sermos ou não felizes, onde a plenitude do que somos é nosso maior empenho e Penhor. Por isso escolhemos, para pensar a essência do agir, o Mito de Midas da Morte.
Midas, portanto, não é um rei, um indivíduo, é a humanidade de todo homem. É todo ser humano que, por e para ser sujeito, já está sempre empenhado numa busca de felicidade, isto é, num querer que quer e não quer querer (Leão,
1995: 20).
Na versão de Pausânias, a mais antiga, do mito de Midas da Morte, é-nos contado o seguinte:
O rei Midas se embrenha na floresta em busca de Sileno, o sábio preceptor de Dioniso. Uma angústia o move: É que nem o viver, nem o poder, nem o ter asseguram a felicidade dos homens. Por isso Midas vai à floresta em busca de Sileno, com uma pergunta angustiante: O que então o homem tem de fazer para ser feliz? Sileno responde: (Átlios brotós) Mísero mortal, por que queres sabê-lo? O que o homem pode fazer para ser feliz é não ter nascido, mas, uma vez que já nasceu, só lhe resta morrer.
A resposta de Sileno é, numa primeira aproximação, num primeiro contato, num primeiro entendimento, melancólica e desesperante. Deixa-nos perplexos. Mas o que o mito tem a dizer? Como deixar o mito falar? Esta pergunta se desdobra em outras: Que imagens temos aí? E que questões? Pensemos. Ouçamos.
O mito gira em torno de três figuras-imagens: Midas, Sileno e Dioniso. Estas imagens são o procedimento do mito de trazer e manifestar como palavra (mythos) as questões. Temos três imagens-figuras e elas são o pano de fundo em que aparece propriamente a questão como tal que o mito de Midas coloca: ser feliz. Por isso atentemos em primeiro lugar para cada uma das imagens, no que diz respeito ao presente mito, porque, em si, são extremamente complexas.
Sileno é conhecido por ser o detentor da sabedoria. Não se trata de qualquer sábio e, certamente, está longe da sabedoria que os filo-sofos procuram, porque a sabedoria tem muitos caminhos. A riqueza cultural grega está nos diferentes caminhos que ela empreende em busca desse saber radical, que é a questão do mito: a busca radical da felicidade, girando em torno da experienciação do real como Eros e Thanatos, que é a experienciação de todas as experienciações, porque implica nossos limites ilimitados. Essa busca aparece no mito, depois no pensamento, na poiesis, na filosofia, na teologia.
A sabedoria de Sileno se distingue porque ele foi o sábio preceptor de Dioniso. Esse deus-homem, homem-deus está ligado à physis como dzoé (vigor e fulgor do viver) e Eros, e sempre no limiar de Thanatos. A paixão pela vida como Eros-Dioniso é o que dá o alcance do que os gregos experienciavam como dzoé. O âmbito, alcance e profundidade de Dioniso fica circunscrito pelo par que ele forma com Apolo – o deus sol –, a própria luz. Midas não busca a sabedoria da luz, como será a trajetória do ocidente. Ele busca a sabedoria de Sileno, configurada em Dioniso. Isso significa algo muito simples: quando procuramos o sentido último de nossas ações, isto é, das que nos fazem felizes, temos que ir em busca da sabedoria de Sileno-Dioniso. Dioniso foi educado por Hermes, a palavra, e era o deus da inspiração. Dele nos vêm os dramas satíricos. O que tudo isso significa? O que isso implica para o presente mito?
Temos dois momentos no mito. A questão trazida por Midas. A resposta de Sileno. Midas é o lugar da questão. Trata-se da essência do agir, da felicidade. E quem não a busca? Segundo a opinião vulgar e aparente – a mais efetiva e difundida – a felicidade adviria de três circunstâncias, de três situações, as dominantes hoje mais do que nunca em nossa sociedade de consumo. 1ª. O viver. O viver é algo misterioso. A pessoa vivente se enleia nos múltiplos afazeres ou na sucessão constante e sem parar das vivências físicas, sensitivas ou estéticas. E de repente se dá conta de algo paradoxal: não estou vivendo. É o caso de Midas. 2ª. O ter. Não basta ter vida. Esta se desdobra em muitas ações ou empenhos, tendo os mais diferentes objetivos e finalidades. Realizadas, passamos a viver a vida a partir do ter. Temos conhecimentos, temos profissão, temos bens. O ter de alguma maneira con-figura o que somos como empenhos de desempenhos de nosso agir. Tanto que dizemos, fulano tal está realizado (se tem um bom emprego, uma boa profissão, bens). O agir está ligado à vida, mas é mais do que a vida. O conhecer e os bens fazem parte do agir da vida, daquilo que queremos em nossos empenhos e desempenhos, de nossos empreendimentos, da consecução de nossos objetivos. E, no entanto, o ter ainda não é o penhor, o motivo dos nossos empenhos: ser feliz, segundo a pro-cura de Midas. Neste, tudo isso fica patente, porque ele recebera o dom da transformar em ouro tudo que tocava. Certamente, Midas é o capitalista ideal. 3º. O poder. Midas tem três poderes: o inerente à vida, matriz dos dois outros. E nesse está o enigma, porque este se manifesta no homem, mas só aparentemente o exerce. Será que a genética vai penetrar nos arcanos deste poder? Não será a genética e os geneticistas a mais recente encarnação de Midas? O segundo poder, dominante em nossa sociedade, é de tudo que toca transformá-lo em ouro.Todo agir febril de nossos empenhos hoje vigem no vigor da técnica, esse conhecer manifestativo que quer tudo transformar em produtos de consumo, em bens, em capital. Na dimensão da técnica – que não é o técnico – a natureza é vista como conjunto de recursos naturais e os homens como recursos humanos, uns e outros disponíveis e à disposição para a consecução dos empenhos, das metas. É o poder de Midas. Mas não lhe trouxe nem nos traz a felicidade, embora pareça, ajuda. A Midas não ajudou. Ajudará de fato? O terceiro é o poder político. “Midas é a designação, é topônimo de uma força selvagem, isto é, forças ligadas à floresta, isso significa, à experiência humana do desconhecido, do não controlado, do não sabido, do não familiar, do estranho” (Leão, 1995: 18), de dzoé. Midas é um rei, lendária origem originária de um povo, uma coletividade, os frígios. O poder coletivo-político também não lhe traz a felicidade.
Mas todos esses empenhos e desempenhos não lhe bastam. Não que queira mais do que já tem. A essência do agir, o que o move, é uma angústia de ser o que conhece e tem para ser feliz, a angústia de que o penhor e o motivo dos seus empenhos ainda não foi alcançado.
E então procura por Sileno, o sábio preceptor de Dioniso, com a questão angustiante. Ele quer ser feliz. O que fazer? Notemos que o alcance da questão se desdobra em dois momentos. Em relação a Midas e em relação à resposta de Sileno. A pro-cura por Sileno, pelo saber de Sileno, é o horizonte no qual esses dois momentos se desdobram e concretizam. Há nisso o reconhecimento explícito dos limites do alcance dos diferentes “agires” (ações) como essência dos empenhos de Midas. A essência do agir baseada no sujeito, por isso mesma, ele a nega em si, pois não lhe dá o que quer, e a busca no saber de Sileno, onde acha que pode encontrá-la. Por outro lado, o buscar em Sileno só é possível porque ele já a tem, tanto que a quer e pro-cura. Logo, no mito de Midas nos é dito de uma maneira maravilhosa e simples que temos e não-temos, somos e não-somos a essência do agir, aquela e aquilo que já desde sempre pro-curamos em todos os nossos empenhos e desempenhos. Daí a sensação de constante incompletude em nós. O movimento de pro-cura de Midas é, pois, circular: ele pro-cura o que já tem, senão nem poderia pro-curar. Mas para achar o que já tem, ele tem que perguntar e pergunta: O que fazer? O que fazer não inventa nada, só concede o que já temos e não-temos, sabemos e não-sabemos, queremos e não-queremos, somos e não-somos.
Podemos notar que Midas, ao se dirigir a Sileno, não vai com qualquer pergunta, com qualquer questão. Não. É, para ele, a questão das questões. No fundo, a única questão. Toda questão só se dá como questão na medida em que se torna para o ser humano uma experienciação radical. É o caso do saber para Édipo. É o caso do ser feliz para Midas. Daí perguntar: O que fazer para ser feliz? É a questão de Midas. Observemos que a pergunta se desdobra em dois aspectos: o âmbito no qual se move o poder perguntar de Midas e o que este poder perguntar implica.
Comecemos por este que é bem simples. A questão-pergunta tem três pólos: fazer, ser, feliz. Eles se implicam: só serei feliz se souber querer a essência do agir para ser. Se for no que ajo, serei feliz. Isto significa: temos muitos empenhos na vida, muitas ações, mas só uma e tão-somente uma é essencial: aquela que implica ser, ser e nada mais. A sabedoria pela qual se alcança a felicidade está em agir para ser e ser para agir. Sabedoria não é, pois, um conhecimento que a mais refinada techné me propicie. Também não é o simples nascer-conhecer. Sabedoria é o empenho pelo que já desde sempre se é, onde, portanto, agir e ser é o mesmo, embora não sejam a mesma coisa. Se não somos nem podemos agir.
Nesse sentido, a pergunta-questão implica por outro lado que esse fazer, ser, feliz já vigem no querer que pergunta-questiona. Ou seja: querer ser feliz implica poder querer fazer, ser, feliz. O Poder de querer do questionar não funda o fazer, ser, feliz. Só por já ser é que pode querer e pode querer na medida em que se move já no agir-ser/ser-agir, que, note-se, não lhe advém de uma decisão pessoal nem coletiva, senão simplesmente não precisava pro-curar Sileno. Não tem seu fundamento na subjetividade nem no desejo pessoal. Só podemos perguntar porque, ontologicamente, já estamos abertos para o ser, não sendo, portanto, conseqüência desta ou daquela circunstância, conjuntura ou decisão histórica ou social. Por isso só podemos perguntar pelo ser a partir do ente. Por outro lado só podemos perguntar pelo ente a partir do ser, a partir da abertura para o ser. Por perguntarmos sempre concretamente pelo ente (o que é isto, o que é aquilo), é que podemos perguntar pelo real (on=ente=res). Fique claro: o perguntar enquanto poder perguntar se move no ser, mas cada pergunta concreta já pergunta sempre pelo ente. Por isso é que a pergunta pelo ser se dá sempre no âmbito do ente: O que é ser? Daí a única resposta possível: o ser não é.
Antes de examinarmos a resposta de Sileno, vejamos ainda algo absolutamente essencial e decisivo. A decisão de Midas – infeliz por viver, ter e ter poder – de buscar a felicidade, o lança nos arcanos da questão-querer. Quando ele se abre para a questão deixa que ela passe a ser a essência do agir. Mas por que perguntamos? O que implica a questão? Só questionamos porque algo se torna o Cuidado (Cura) de nossa pro-cura: a) porque sabemos e não sabemos; b) porque queremos e não queremos.
Para tornar nossa exposição mais didática, usemos uma dicotomia metafísica, para depois a ultrapassarmos. A palavra questão vem do verbo querer. Mas este implica um duplo agir: a) o ligado à consciência: o saber e o não-saber; b) o ligado à vontade/desejo, o querer e o não-querer. E o mais interessante é que o saber e não-saber não só não são determinantes da questão como também não são seu vigor essencial. E aqui fica claro porque Midas procura Dioniso (Sileno) e não Apolo. O saber e não-saber fazem parte do querer, mas não são sua essência determinante nem a Cura e procura essencial. Junto e mais radical do que o saber e não-saber há o querer e não-querer. A essência do agir se faz presente em Apolo e Dioniso, mas tem neste a sua fonte originária, de tal maneira que o ser-feliz, a sabedoria, implica sempre e radicalmente o querer e não-querer, de que o saber e não-saber é uma dimensão. Não pode haver dicotomia, mas esta não foi nem é processada pelo querer e não-querer, essência do agir, enquanto ser, mas, na história do ocidente, foi pela opção pelo saber e não-saber. A essência do agir é ser, e este implica, necessariamente, querer E não-querer, saber E não-saber. A trajetória do ocidente se deu pela opção do saber e do não-saber exercida pelo sujeito. Daí o predomínio da techné (conhecimento), implicando o esquecimento e silenciamento do querer e não-querer como essência da ação, do ser-feliz. Note-se bem, não se quer aí recair numa dicotomia metafísica, mas acentuar que o poder-querer questionar implica originariamente o ser como querer do ser para até poder querer ser o que se sabe e não sabe.
Por outro lado, não podemos cair numa visão essencialista e fundamentalista do ser, ou seja, como o fundamento, a essência última do saber e não-saber (epistemologia) e do querer e não-querer (voluntarismo inconsciente). Não. De modo algum. O ser e ser feliz é a unidade misteriosa desse poder querer E poder não-querer, de poder saber E poder não-saber.
Disto decorre algo absolutamente fundamental: o ser para ser a unidade misteriosa de querer e não-querer, saber e não-saber só o “pode” – e nisso consiste a essência do agir – enquanto ser E não-ser. Portanto, ser e não-ser, agir e não-agir é a Cura, o motivo da procura de Midas: ser feliz. Na medida em que ele vai em busca da sabedoria de Sileno, pressupõe-se que essas dimensões são da sua Sabedoria e que se farão presentes em sua resposta.
Qual é a resposta de Sileno?
Quando perguntamos e/ou dialogamos, nossa expectativa é de receber uma resposta que já se inscreva no nosso campo de querer e saber. Dialogar, em geral, para nós, é esperar uma confirmação. Quando há o desacordo, ficamos um pouco desarmados e in-conformados. Isso mesmo, uma não-forma do que já antes prevíamos como forma de resposta. Isso não é diálogo, mas monólogo a dois.
Por isso, a resposta de Sileno para Midas é tudo, mas absolutamente tudo, menos o que ele esperava. Pelo contrário, foi mais do que um choque, foi o advento do inesperado. Nisso consiste o diálogo. Mas o que é este inesperado? Nada que a luz da razão ilumine ou penetre. A resposta de Sileno é, num primeiro contato e entendimento, melancólica, desesperante, inaudita e misteriosa. O mito não explica nada. Nunca explica nada. Pelo contrário, na simplicidade e dinâmica das imagens nos lança no cerne das questões, pedindo, exigindo de nós um salto mortal para o abismo e no abismo em que já desde sempre nos movemos. O mito de Midas da Morte nos lança de chofre, inesperadamente, na mais profunda crueza, no núcleo duro e essencial da essência do agir.
Porque exatamente não explica nada, o mito nos convida e convoca ao diálogo. Mas um diálogo de escuta. Por isso não nos diz mais nada depois da resposta de Sileno. Qual foi a atitude e reação de Midas? O que ele fez? Como agiu depois? O que ele compreendeu e interpretou? O mito não diz nada. Nada. E precisava?
Deixemos o mito falar. Escutemo-lo, pois. Diz Sileno: “Mísero mortal, por que queres sabê-lo? O que o homem pode para ser feliz é não ter nascido. Mas, uma vez que já nasceu, só lhe resta morrer”.
A fala da escuta
Sileno, o sábio Sileno, começa por se dirigir a Midas de modo estranho. Uma estranheza que nos deve fazer pensar, porque é palavra de sabedoria a que ele profere. Não é qualquer palavra. E a sabedoria não é o que nos é e faz estranhos? “Mísero mortal”, diz Sileno. Midas, o poderoso Midas se vê, de repente, reduzido a seu Nada: mortal, mísero mortal, isto é, simples mortal. Nós somos o que somos: mortais. Essa é a nossa condição. Contudo, isso nos choca, nos desespera, porque a morte (nos ilude a biologia) é algo que ocorre no fim, depois de termos gozado e aproveitado a vida, os prazeres da vida. Pois a filosofia, esse saber só de conhecimentos e conceitos feito, não diz que o homem é um animal racional? E isso nada tem a ver com a morte, lida como fim biológico. Como então a essência do homem é ser simples e mísero mortal? Para quem buscava uma receita de auto-ajuda e de fácil felicidade, a sábia resposta de Sileno soa ... decepcionante, angustiante, despropositada, absurda.
Definido o que é Midas, o que somos, o que é todo ser humano, isto é, simples e míseros mortais, Sileno nos lança e a Midas no cerne do que nos leva à questão: Por que queres sabê-lo? Notemos que aí temos três núcleos essenciais: a) a conjunção interrogativa: “por que”. A sabedoria de Sileno, depois de dizer que somos mortais, devolve a questão, isto é, faz de nossa questão – querer ser feliz – uma questão, daí o “por quê”. No e pelo “por quê” já nos movemos em todo poder querer e poder querer saber, mas, com uma diferença aqui: ao fazer de nossa questão a questão de nossa questão ele nos lança já na essência do que nossa questão questiona, pro-cura. Na realidade, significa: Estás preparado e queres mesmo saber por que queres saber? Ou queres uma resposta de auto-ajuda e não querer saber a essência e o núcleo duro do que realmente precisas querer saber? b) o verbo “queres”. Que querer é esse? Tu o queres? Queremos? Estás preparado? Queres, de fato, o que queres como Cura de tua pro-cura? Será que não queres o não-querer, que não depende da tua subjetividade, mas vigora no vigor do que és? c) queres saber? Notemos que o saber é onde normalmente nos movemos e é o que nos atrai em todo querer ... superficial. Mas é importante perceber que não é o saber que é o poder de querer e, sim, que o saber é apenas uma dimensão em que o poder querer nos é dado. A ilusão de Midas, nossa, é de que o saber resolve e abarca todo poder e poder querer. E não. Ele é apenas uma dimensão e muitas vezes nem a mais importante. Isso levou Pascal a dizer: O poder querer tem razões que a própria razão desconhece. A resposta-pergunta de Sileno aponta para aí, para essas razões. E resta, depois da formulação lapidar e sintética da pergunta, o ponto de interrogação, esse limite ilimitado, limiar de todo querer e não-querer, saber e não-saber, ser E não-ser. Sileno não espera – e nem sabemos se Midas anuiu ou não, se estamos de acordo ou não, até porque é indiferente do ponto de vista da questão. Mas podemos nos fechar à escuta da fala do Mito e continuarmos nos nossos empenhos e desempenhos, e continuarmos infelizes, mas vivos, curtindo a vida num frenesi consumista, cheia de agitos, e longe do “mísero mortal”, nos lançado na cara por Sileno. Pois o melhor não é gozar a vida? – Sileno não espera e responde. O quê?
A sabedoria de Sileno e a questão
Que é isso, o saber de Sileno? Temos aí duas instâncias: a) que é isso, e b) isso enquanto saber. Podemos facilmente cair aqui na armadilha da resposta metafísica ao perguntar. A pergunta pergunta pelo saber de Sileno. E esperamos uma resposta que responda e corresponda ao saber de Sileno. Contudo, o alcance da resposta sobre o saber de Sileno não se dá nela, enquanto numa primeira instância define o saber de Sileno. O decisivo já está na primeira parte da pergunta, e a partir da qual é possível perguntar pelo saber de Sileno. Que é isso ... Aqui podemos nos mover numa dupla articulação. (1) No plano do ente: O que é? Pois tudo que é é ente. (2) Ou, o que é necessário, movermo-nos no plano do ser do ente. Neste caso, o alcance da resposta será medido não pelo ente, mas pelo ser do ente. O conteúdo da resposta à questão-pergunta: Que é isso, o saber de Sileno?, ao querer saber o saber de Sileno, esse saber como resposta nunca será o saber como tal de Sileno, mas tão-somente o inerente ao saber enquanto conteúdo entitativo, ou seja, aquele dado pelo alcance da resposta que é sempre no plano do ente, embora vigendo no ser. O saber, todo saber, é entitativo, só o não-saber, a partir do qual e no qual se põe a questão é não entitativo, ou seja, se dá e vige já desde sempre na âmbito do ser, a partir do qual e só a partir do qual se pode pôr qualquer pergunta ou questão (o querer enquanto em ação). O homem, portanto, em seu aparente querer poder, experiência já esta ambigüidade. Aparente significa aí: ao mesmo tempo não-sabe e por isso pode perguntar, e, ao responder ao que pergunta, responde sempre no limite do ente e só sabe o que se lhe dá como ente. O saber de toda resposta é sempre o limite experienciado a partir do não-saber, mas manifesto no plano do saber orgânico, que é sempre entitativo. Isso significa que a resposta não se dá nunca no âmbito do ser, mas apenas e tão-somente no plano do ente. Implica isto que a resposta só em parte é resposta à questão posta na pergunta, porque ela nunca se dá no plano do ser, mas somente no plano do ente enquanto ente do ser. A resposta vai sempre ser paradoxal, pois responde no plano do ente, embora se mova e só pode se mover no plano do ser. Porém, não está aqui sendo criada uma dicotomia entre ser e ente? Não. Estão sendo mostradas duas coisas: a) que por ser entitativa, a resposta ainda não alcança todo âmbito da questão (no caso, o saber de Sileno); b) mas como o ente é ente e, portanto, só pode viger no âmbito do ser, o que nela se diz é altamente positivo, porque o ente só vige a partir do ser, e essa é a dádiva de toda resposta que nos cabe e alcançamos.
Contudo, isso de maneira alguma nos deve fazer esquecer que o ente não é o ser e que, portanto, a resposta não dá conta da questão, não dá conta do ser. Não há, pois, aí uma dicotomia, mas uma tensão dinâmica pela qual qualquer resposta já solicita e convoca e recoloca a questão. A questão se move na densidade complexa e abismal do não-ser-ser. A resposta-conceito se move no âmbito paradoxal, mas restrito do ente. A questão sempre se dá como pergunta. A resposta pode se dar como ambígua, recolocando a questão. É o caso da resposta de Sileno. Ou pode se dar apenas no âmbito do visível do horizonte, na medida em que implica um tornar visível o que o horizonte oferece como não-visível. Porque o conceito só trabalha com limites e definições. O avanço (do saber) em direção ao não-visível consiste em torná-lo visível e esquecê-lo, até porque não pode ser definido. O querer como poder habita a questão, assim como a razão enquanto poder da luz, habita o conceito. Ora, a resposta no caso da presente questão: O saber de Sileno o que é? terá, pois, como tal um alcance entitativo e continuará como questão no horizonte do ser. Esta distinção é fundamental para entendermos a dinâmica e paradoxo e ambigüidade da resposta de Sileno, que não se dá como conceito mas como questão. Mas antes de examinarmos a resposta nessa ambigüidade irônica, vejamos ainda a pergunta como questão.
Já tratamos dela no âmbito do ser do ente, mas falta o que ela pergunta: o saber de Sileno. Por que não simplesmente o saber? Que horizontes abre aí a figura-imagem Sileno? Já acentuamos antes e é necessário relembrar, aqui e agora, que Midas não pro-cura o oráculo de Delfos, não pro-cura o saber de Apolo. Isto é decisivo. Por quê? Trata-se, portanto, de dois “saberes”: o de Sileno, preceptor de Dioniso, e o de Apolo, configurado nas respostas do oráculo de Delfos. Esta é mais uma armadilha metafísica pela qual facilmente se opõe Dioniso e Apolo – também não se trata de uma simples complementaridade como a do eterno retorno do mesmo, onde é mais importante o retorno eterno, e muito menos de uma suplementaridade. É que estamos mais pré-ocupados com a resposta e não nos abrimos para o âmbito maior da questão. A questão trata do saber. Mas já vimos que esta depende do âmbito em que se move a primeira parte da questão-pergunta: o ente, ou o ser do ente. Alguém poderá constatar facilmente que não é possível nos movermos no âmbito só do ente, pois este não subsiste sem o Ser. E isso é o mais óbvio - tão óbvio que o mito criou a figura de Mnemósine: a memória. Ora, esta não é só o que se lembra, mas também o que se vela e como tal vige no esquecimento, no vigor do silencio do esquecer, sem o qual não pode nem haver lembrança. Contudo, a presença da lembrança é tão pregnante, tão evidente, tão forte e abrangente que nos esquecemos, isso mesmo, esquecemos da memória como velamento-silêncio-esquecimento. Esquecer não significa, pois, deixar de ser, mas ser a memória só no âmbito do lembrar, isto é, do ente, do desvelado, da luz da clareira do desvelado. Ficamos tão empolgados pela luz de Apolo que esquecemos a clareira e o que nela se ausenta: o velado, o ser. O ente que irrompe na clareira e é iluminado pela luz de Apolo não pode nem se opõe ao ente pensado no âmbito da clareira e o que nela se ausenta. O ente é ambíguo também. Se não fosse nem poderia ser, ser o ente do ser. Vigendo no vigor do ser, ele é também ambíguo: se articula como o que se descobre no desencobrimento da clareira da floresta. Podemos só ter olhos para a luz e reduzir Apolo à luz e o saber a essa luz. Podemos reduzir o Logos, o dizer que reúne, propõe e colhe à luz que dicotomiza o ente do seu velamento: da clareira, e do velamento da physis, ou seja, podemos reduzir o ente à luz da razão. E fazer desta luz da razão o saber, ou seja, o racional, o que aparece e é à luz da razão. Evidentemente, este saber será entitativo e visto num duplo esquecimento: de Apolo e de Dioniso. Porque aí, tal saber não será o de Apolo, mas o da luz de Apolo, ou seja, o saber visto pela luz que irrompe na clareira, que é Apolo, e não a partir da Clareira. E ainda há o outro esquecimento nesse saber racional: o de Dioniso, ligado ao velamento da physis-dzoé, do ser dos entes. O saber de Sileno-Dioniso não é, pois, um saber racional-entitativo, ele é isso e mais, muito mais. Ele se move na âmbito e no horizonte da luz da clareira e do vigor da dzoé enquanto dimensão criptofânica, isto é, o desvelar-auto-velante da physis. Um saber que sabe o que sabe e não-sabe foi denominado pelos poetas e pensadores originários e pelo mito: Sabedoria. Ela inclui luz-razão, clareira-Apolo, dzoé-Dioniso - sabor como vigor da physis, enquanto saber E não-saber, ou seja, a Sabedoria e o sabor do saber E do não-saber. A felicidade, para ser saber, tem de se mover para além da luz da clareira de Apolo e mergulhar como sabor na dimensão de dzoé-Dioniso, tornando-se a sabedoria da physis. O sabor do saber jamais é irracional, o sabor da felicidade jamais é irracional. É apaixonado pela proximidade. Nele vige Apolo E Dioniso, e faz de um tal saber a paixão da Sabedoria. A paixão e a sabedoria como Penhor dos empenhos é a felicidade. Esta não pode ser tentada, buscada, procurada a partir do saber da razão e muito menos ser julgada no seu tribunal, pelo qual tudo que não for de seu âmbito e delimitação cai na vulgaridade e superficialidade do irracional, o que não é próprio nem alcançado pela luz da razão. A razão é o ente esquecido do Ser. A Sabedoria e felicidade só podem doar-se no ente a partir do Ser.
Errantes, in-sistindo no âmbito dos entes, esquecidos do ser do ente, não somos felizes, nem podemos. Mas há a pro-cura, a Cura pelo Penhor de nossos empenhos: o Ser feliz. É a pro-cura de Midas, do Mito de Midas da Morte. Por que da Morte? O que a morte tem a ver com felicidade? É o nosso paradoxo maior e riqueza do que somos - sermos para a morte. Como ser e ser para a morte? Que estranha sabedoria é essa? Que estranha felicidade é essa que o mito manifesta como questão?
Voltemos ao mito. Voltemos à resposta de Sileno a Midas. A resposta nunca pode dar mais do que o que é perguntado, ou seja, a resposta para ser resposta deve se mover no mesmo vigor e horizonte da pergunta-questão. Isto significa que devemos examinar a resposta no mesmo vigor e horizonte da questão. E já vimos que há dois caminhos, que não se excluem, mas onde pode haver um esquecimento. E quando a resposta nos lembra este esquecimento, pois preferimos in-sistir na errância ordinária do âmbito dos entes, podemos ter duas atitudes básicas. A mais comum, a que se inscreve na expectativa de resposta fácil e confirmativa do que já somos e sabemos ou queremos: uma receita prática e imediata. Quando esta não é dada, achamos tudo muito complexo e irracional, e nos advém melancolia, angústia e depressão. A outra – verdadeira pro-cura - porque impulsionada pela experienciação dos limites do ente – nos lança de chofre no âmbito da epifania do extra-ordinário, do inabitual, do abismo sem fundo nem fundamento, e do sentido do ser dos entes. E então damos o salto mortal.
Qual foi a atitude de Midas? O mito não diz.
A resposta de Sileno
O que Sileno responde? “O que o homem pode fazer para ser feliz é não ter nascido, mas, uma vez que nasceu, só lhe resta morrer”.
Uma tal resposta nos lança na mais profunda e abismal depressão, pois Sileno, aparentemente, dá uma resposta totalmente inversa e inesperada para o que Midas procura. Só lhe fala de não nascer e de morte. Midas procura a plenitude, o mais alto grau de realização da vida, a felicidade. E Sileno o lança nos caminhos e descaminhos da morte.
O início da resposta de Sileno já é um choque para Midas, ele um rei, cheio de vida, cheio de riquezas, cheio de poder, foi logo reduzido à mais radical e comum realidade de todos os homens: sermos mortais. Nada do que Midas aparenta ser importa. Tudo o que ele era valia para o âmbito dos entes, não para o plano do ser, porque neste somos o que somos: míseros mortais. Mas Midas, incompleto na completude dos entes, dos penhores de todos os empenhos e desempenhos, quer mais, quer ser. E a resposta o coloca nesse horizonte, no horizonte da questão. O mísero mortal escuta. Escutamos?
A resposta se dá em três planos e se move numa tensão ambígua e paradoxal. Há nos três planos um círculo, não vicioso, mas ontológico. Primeiro plano: “O que o homem pode fazer para ser feliz é não ter nascido ...” Na primeira parte desta resposta, temos relembrada a questão das questões para o ser humano: poder, agir para ser – não qualquer dimensão do ente, mas a que reúne todas - feliz, a suprema sabedoria. Contudo, a segunda parte deste primeiro plano é estranha e inusitada: “ ... é não ter nascido”. Se para ser feliz é não ter nascido, significa que o ser feliz se dá para além e anterior a todo nascer. Este é o inicio de todo possível ciclo de ser feliz. Porém, é impensável e o abismo dos abismos. Ele, em si, é inexperienciável e só podemos chegar a ele se já nos movermos nos dois outros planos. Eles são anunciados e enunciados na segunda parte da resposta: “ ...mas, uma vez que nasceu, só lhe resta morrer”. O segundo diz respeito ao nascer e o terceiro ao morrer. Estes dois planos mantêm uma tensão entre si e estão referenciados ao primeiro. A formulação é muito paradoxal e complexa, embora extremamente simples. O ser feliz – para o homem – passa por duas instancias que, aparentemente, soam iguais, isto é, o primeiro plano e o terceiro, ou seja: “não ter nascido” e “só lhe resta morrer”. A primeira e mais radical instância para o homem é “não ter nascido”. Esta o homem jamais poderá realizar, pois para ser homem só nascendo. O nascer afasta o homem inapelavelmente do ser feliz na primeira e mais radical instância: “não ter nascido”. Por outro lado, o “ter nascido” não o afasta e nem o impede de ser feliz, na segunda instância. Tanto que o mito diz: “só lhe resta...”, isto é, só há uma única saída, um único caminho: o morrer. Mas notemos que o terceiro plano e instância da resposta de Sileno à pro-cura de Midas, embora feche o círculo, ao retornar ao primeiro, não há uma igualdade entre o primeiro e o terceiro, isto é, “não ter nascido” e “morrer”. É certo que o homem nunca, jamais poderá ser feliz na dimensão do primeiro plano, do não ter nascido, pelo simples fato de ter nascido, pois se não tivesse nascido nem seria homem nem precisaria pro-curar ser feliz.
O homem ao nascer eclode no claro da clareira da physis como ente. E aqui está o enigma do que somos, pois o ente só é no e pelo vigor do ser. Por isso se lhe abre uma segunda instância em que pode ser feliz – a única, a que lhe resta - : morrer. Mas esta não é igual à primeira, por um motivo muito simples: só se pode ter e ser a experienciação de morrer como ser vivente. Quem não vive não pode experienciar a morte. A morte, por isso mesmo, não pode nunca ser pensada e experienciada em tensão com o não ter nascido. Mas, por outro lado, devemos afirmar concretamente que o deixar de viver é o mesmo que não ter nascido. Sem dúvida. Porém, não são a mesma coisa. O homem, ao querer ser feliz, busca, nesse caso, o mesmo, não havendo dois tipos ou níveis de felicidade. O homem é ou não é feliz. Por isso, no e pelo morrer, pode experienciar o ser feliz. A experienciação de ser ou não ser feliz nunca poderia ser concretamente experienciada a não ser depois de ter nascido. O nascer só aparentemente aparece no mito como algo negativo. Pelo contrário, só por ter nascido e por viver é que o homem experiência o não ser feliz. Só por ser é que ele pode experienciar o não ser. A vida é, pois, ambígua e, realmente, o grande paradoxo. Só no e pelo viver se é e não é. Nem o não-nascer, nem o morrer nos lançam nesse paradoxo. Só o viver. Só por viver e ser vivente é que podemos ser “míseros mortais”. Quem não nasceu ou já morreu não pode ser chamado de “mísero mortal”. Mas, por outro lado, o viver não é o que a metafisica e a biologia dizem, um percurso ou algo semelhante, ao final do qual se morre. Essa dicotomia não existe, nunca existiu. E ate a genética está comprovando essa verdade que o mito tão radical e poeticamente anuncia e enuncia, mito que é. No plano orgânico, há um permanente nascer e morrer de células. A morte biológica ocorre quando a morte de células é maior do que o das que nascem. Mas a vida e a felicidade não se resumem ao nascimento e morte de células: o homem quer, pode e sabe ser feliz, e não simplesmente viver. Uma vez que viver simplesmente não implica ser feliz, como o homem quer, pode e sabe ser feliz? O mito o diz: “... só lhe resta morrer”. Mas não podemos ler este morrer no plano metafísico biológico, como algo que ocorre no fim. Não. A morte é o permanente horizonte para o qual o homem tende e se lança, e só e tão-somente por isso ele é mortal. Porque então ser mortal é querer ser o que não-é: feliz. A experienciação de Eros e Thanatos é, ontologicamente, a experienciaçao de ser e não-ser, pois viver é ser o não-ser. É isso o que diz morte, é isso que diz para o homem: ser mortal. A experienciação da morte a partir da vida nunca poderá ser a mesma coisa que não ter nascido. Mas por outro lado, a experienciação da vida só é possível no horizonte da morte. Como seria possível falar em vida se não houvesse morte?
Viver já estamos vivendo. Morrer já estamos morrendo sempre. Viver é morrer para que morrendo vivamos. E o que isso implica? Uma pro-cura permanente e radical: ser o que não-é, ou seja, o ser feliz, mas onde o ser feliz é ser o não-ser. A felicidade não pode, pois, ser alcançada meramente no plano orgânico-vivencial, porque é a negação da própria vida em plenitude, ou seja, viver é experienciar o não-viver, o não-querer, o não-saber, o não-ser. E só por sermos e não-sermos é que podemos pro-curar e querer ser felizes. A essência do agir é, pois, a própria tensão permanente e radical de ser o não-ser para ser feliz. A essência do agir é, pelo querer o não-querer, o próprio ethos. E é o próprio ethos porque pelo e no agir já nos movemos sempre no âmbito do ser o não-ser. Nós, como ethos-morada, já desde sempre moramos e de-moramos na Cura (cuidado) em toda pro-cura de ser o que não-somos.
Quando, pois, Midas é no plano do viver, do ter e do poder, ele não é o que não é para poder ser feliz. Quando, pois, Midas vai em busca de Sileno, ele com sua questão: O que devo fazer para ser feliz?, ele pode não-poder, quer não-querer, sabe não-saber. Aberto o homem ao ser e inapelavelmente chamado e convocado a ser, ele, o homem, como ente que é, pode, quer e sabe que todo empenho e desempenho no plano do ente não lhe dá o que não é: ser feliz. Daí que a resposta de Sileno, lhe dizendo que para ser feliz, só lhe resta morrer, lhe dá a medida do Penhor de todo empenho e desempenho, de todas as suas ações, de todo agir no âmbito do ethos: morrer. Mas morrer não significa aqui acabar com a vida, muito pelo contrario. É dimensioná-la pelo máximo e plenitude de todo agir: o não-agir, de todo poder: o não-poder, de todo querer: o não-querer, de todo saber: o não-saber. Eros e Thanatos não são, pois, excludentes, mas a única possibilidade de o homem ser em plenitude o que não-é: feliz.
Em toda pro-cura da Cura se faz presente nosso querer como desejo. Mas qual é a Cura de nossa pro-cura? Nosso querer é mortal. Na busca de felicidade há sempre um querer que quer e não quer querer. Quando para sermos felizes, só nos resta morrer, é que um elo que nunca se deixa partir, liga sempre o desejo, qualquer que seja ele, ao inanimado (não ter nascido), que é uma força velada e misteriosa. Ela responde também pelos limites do que somos como entes. E é misteriosa por ser criadora, mas nós não sabemos o que ela produz. A essa energia se dá o nome de ser. Concretamente, o ser humano surge do desconhecido e vai para o desconhecido. Nosso empenho é de sermos felizes, mas nele nos confrontamos com algo muito simples e evidente: cada sujeito se confronta, na radicalidade de sua solidão, com o seu próprio desejo/agir de ser E não-ser sujeito, ou seja: o ser do sujeito é não-sujeito. Essa é a Cura de toda pro-cura/ação de ser feliz.
Não se pode de maneira alguma é pensar o agir e não-agir metafisicamente, isto é, na dimensão orgânico-vivente do agitar e não-agitar. E aqui lembraria a cena antológica de Carlitos, em Tempos modernos, quando reduzido, o ser humano, a uma peça de engrenagem técnico-orgânica, na linha de montagem na fábrica (modelo do processo de educação que hoje temos, de produção em série, com prazos marcados), desligadas as máquinas, Carlitos, automatizado no gesto uniformemente repetido, continua – em puro agitar e jamais agir – a repetir automaticamente o mesmo uniforme gesto. Hoje, querem fazer do educar uma grande linha de montagem de recursos humanos, desconhecendo que temos e devemos ter conhecimentos, mas não só para agitar os projetos técnico-científicos e de desenvolvimento, mas que só há um desenvolvimento que plenifica o ser humano e dele faz o que é, um ser humano: ser feliz. É esta a velha e sempre nova boa nova do mito.
Quando Sileno, na resposta à pro-cura de Midas, acena com duas dimensões de ser feliz – o não ter nascido e o morrer – para o ser humano, concretamente, só há uma: o morrer. E é nela que o ser humano se experiência como ser humano, porque o horizonte e sentido pleno do viver está no morrer, porque queiramos ou não, saibamos ou não, possamos ou não, somos entes e entes do ser. E o sentido e o horizonte e a vida do ente não vêm nem podem vir do ente – por mais que in-sistamos na errância e na falsa subjetividade fundada na razão de todo saber sem sabedoria – mas só e tão-somente no existir experienciante do ser para ser o que não-somos. Só por sermos entes é que precisamos morrer para ser o que, como entes, não-somos. Só no plano do ente e porque somos entes é que somos, necessariamente, mortais. E ser mortal diz exatamente isso: experienciarmos como entes ser o ser do não-ente. O ser do não-ente não é mortal, porque não é, pois se fosse seria ente e não o ser de todo não-ente. O Ser não é. Dá-se. É a presença presente de todo presente e doação do que somos como ausência de, como não-ser. Assim como a clareira é doação da floresta e a música, que é nossa vida, é doação e presentificação do silencio. Nesse e sempre nesse horizonte, a vida é doação da morte. Por isso somos mortais, sendo a morte não o fim, mas a plenitude da vida, onde agir e não-agir são um e o mesmo: ser-feliz.
Agora podemos entender o alcance e radicalidade da resposta de Sileno a Midas. O poder querer saber de Midas exercido na questão-pergunta já traz em si a resposta, como vimos. A questão como questão nunca se poderia dar no plano do não-nascer, primeira possibilidade de ser feliz. Mas se pode dar no morrer, uma vez que já nascemos. Viver diz, pois, para todo ente-humano, nascer para responder e corresponder ao apelo do viger e vigorar já desde sempre e originariamente no viver o não-viver, no poder o não-poder, no querer o não-querer, no saber o não-saber, no agir o não-agir, no ser o não-ser isto e aquilo. Isso é a essência do agir. Isso é poiesis. Isso é ethos. Isso é sabedoria. Poiesis significa agir, a essência do agir. Ethos é sentido de linguagem, o sentido de ser (isto ou aquilo) no não-ser. A sabedoria é o ethos da poiesis. Uma vez que toda sabedoria tem em seu radical o sabor, por que não abandonar de vez o conceito orgânico-metafisico de vida como sujeito?, e fazer da sabedoria da experienciação da morte o sabor do pleno e total viver/morrer, dos empenhos e desempenhos de nosso agir/não-agir um só Penhor: ser feliz? E então o mito de Midas da Morte poderá ser anunciado e enunciado no que ele é: o mito de Midas do ser feliz.